segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Mozinhos - Grão Vasco - Vasco Fernandes

GRÃO VASCO E OS SEUS. A bela exposição que está patente ao público no Museu Nacional Grão Vasco em Viseu, com o título 'Além de Grão Vasco' (comissariada por Joaquim Oliveira Caetano e José Alberto Seabra), vem ajudar a História da Arte a tomar maior consciência dos problemas que persistem em torno da chamada 'escola de Viseu'. A este propósito, permito-me tecer algumas considerações a respeito do que considero ser uma regressão de conhecimentos sobre a figura e obra de Vasco Fernandes (c. 1475-1542). O artista, considerado um dos nomes maiores da pintura europeia do Renascimento, passou de 'mito' absoluto, a quem no século XIX era atribuída toda a boa pintura antiga existente em Portugal, para uma fase (1924-2001) de natural re-conhecimento, assente em bases documentais e estilísticas sólidas, e involuíu em datas mais recentes para um plano radicalmente distinto, em que o 'corpus' da sua obra está a ser profundamente amputado...
O citado re-conhecimento de Vasco Fernandes deve-se a estudos de Maximiano d'Aragão (1897 e 1900) e Vergílio Correia (1921 e 1924), com pesquisas fundamentais e incontornáveis, que possibilitaram enfrentar seriamente o 'mito' e redesenhar a 'obra real' com bases sólidas -- facto que permitiu a Luís Reis-Santos (1946) elaborar um primeiro catálogo de obra, com cerca de noventa tábuas identificadas, 'corpus' esse acertadamente confirmado por Dalila Rodrigues (exp. da CNCDP, Palácio da Ajuda, 1992), e a que se vieram acrescentar (ao mesmo tempo que justamente se afastavam as anónimas tábuas de Linhares) um 'Calvário' da col. Alpoim Calvão e uma 'Virgem, Menino e Anjos Músicos' da igreja de Aldeia Viçosa. O panorama de conhecimentos sobre Vasco Fernandes e colaboradores estava estabelecido com grande solidez e poucos serão os artistas do século XVI sobre os quais dispomos de tantos conhecimentos em fontes primárias: desde as cinco tábuas de Lamego (1506-1511), ao tríptico Cook assinado (c. 1520), ao 'S. Pedro' da Sé de Viseu (c. 1530), às outras palas dessa Sé (c. 1535-1542), e ao 'Pentecostes' de Santa Cruz de Coimbra (assinado, c. 1535), conhecem-se nada menos que vinte e nove pinturas de Vasco absolutamente identificadas. E conhece-se, identificado também, o 'corpus' do seu colaborador António Vaz, o do seu sequaz Mestre de Lordosa, sendo ainda probabilístico reconhecer a 'mão' de outro suposto discípulo, Gaspar Vaz, em partes do retábulo de Nossa Senhora da Glória em São João de Tarouca, além de mais alguns seguidores e epígonos (de que eu próprio tratei, aliás, no catálogo da referida exposição de Viseu).
Acontece que alguns caminhos da História da Arte portuguesa recente tenderam a seguir uma via revisionista deste panorama estabelecido. Segundo as teses dos comissários da exposição, e segundo todos os trabalhos de Dalila Rodrigues posteriores ao seu catálogo da Comissão dos Descobrimentos, parece que Vasco Fernandes não pintou nem as excelentes tábuas de Cassurrães, nem o 'Judeu' do MNAA, nem as predelas do Museu de Évora (que eram de um antigo retábulo no convento do Paraíso), nem boa parte das cinco palas da Sé, nem as respectivas quinze predelas, nem parte da 'Ceia' de Fontelo, nem a tábua de Aldeia Viçosa, ou o díptico de Pindo ! Tudo isto seria pintado por Gaspar Vaz. E mesmo o importante conjunto oficinal de Freixo de Espada à Cinta -- o mesmo que um ilustre arcebispo de Braga, anterior embaixador em Roma e perito em pintura antiga, quis comprar, em 1680, por ser obra do 'insigne Vasco' ...-- seria realizado por outrém, não tendo sequer a sua direcção !
Torna-se evidente a menorização em curso da figura de Vasco Fernandes, conduzido em nome da sua suposta 'purificação'... O que se teria passado para esta radical reversão de conhecimento da figura de Vasco Fernandes, à revelia das bases histórico-estilísticas conhecidas ? Novos documentos de arquivo que surgissem ? Novas obras assinadas ? Nada disso. Dizem os comissários que se trata da análise do desenho subjacente, o qual (entre outros estudos laboratoriais) abona a presunção de haver uma segunda '«mão', excelente e unívoca, em todos esses quadros agora retirados do 'corpus' e que seriam, assim, devidos ao pintor Gaspar Vaz -- isto é, Gaspar Vaz teria pintado mesmo as predelas das palas da Sé, alcandorando-se ao nível de Vasco como um espécie de Salieri bem sucedido na apropriação da individualidade de Mozart... E isto afirma-se com toda a certeza, como um facto comprovado !
Ou seja: de Vasco Fernandes, restaria hoje cerca de metade da obra que em 1992 se reconhecia com máxima certeza como sua ! Tudo o resto passa agora, em legendas museológicas a-críticas, a integrar o nome de Gaspar Vaz como seu autor... Afinal, quem era este Gaspar Vaz, um pintor viseense formado em Lisboa mas cuja intervenção em São João de Tarouca continua nebulosa ? Que se sabe de novo que permita tributar-lhe agora nada menos que o melhor de quarenta pinturas de Vasco Fernandes ? Recordo, a noventa anos de distância, o que o grande historiador de arte Vergílio Correia escreveu, ao identificar documentalmente as tábuas da Sé de Lamego, a propósito das críticas que lhe fizera então José de Figueiredo, diminuindo a descoberta dos contratos e duvidando da autoria, apesar da força documental revelada: «Vasco Fernandes não iria entregar a outros o melhor quinhão do seu trabalho. Só procederiam de outro modo um inapto ou um santo, um por inabilidade profissional, outro por desprezo da glória terrena. Mas Vasco não foi um inapto e não conservou a tradição viseense rumores da sua santidade»...
É certo que Vasco teve colaboradores e adjuntos a pintar com ele, como era usual à época. Nada permite, porém, que o melhor das suas obras -- caso gritante são as predelas das palas grandes da Sé, e o óptimo tríptico de Cassurrães -- passem a ser exibidas com o nome de Gaspar Vaz como seu suposto autor ou co-autor !
Não será afinal a dita «mão» de superior desenho subjacente, detectada em todas estas tábuas, a do próprio Vasco Fernandes ? Problemas de arte como este justificam, por certo, amplo debate no seio da comunidade dos historiadores de arte, museólogos, conservadores-restauradores e demais técnicos de património. As obras de arte merecem que as analisemos com máxima ponderação e em sã interdisciplinariedade, discutindo as sombras de mistério que persistem a seu respeito. Mais do que todos, o Vasco Fernandes, o Grão Vasco da lenda e da História, merece que essa clarificação seja rigorosamente feita.