quinta-feira, 18 de maio de 2017

Mozinhos: Maria Lopes e outros contos do Rio Torto.

Maria Lopes
Quarta-feira, dia 3 de Março, de 1728, dia dos quarenta mártires, dia do beato jacobino canepacci, dia internacional da vida selvagem (a partir de 2013), a moleira Maria Lopes, do Rio Torto, mulher de Gaspar Rodrigues, filha de moleiros, ia para se levantar das palhas de centeio, sobre as quais dormia com o seu marido, assim unidos, por matrimónio católico, na igreja de São Pedro do Souto, mas ele puxou-a para si:
- Anda cá, minha flor, que te vou fazer bem… - Sussurrou Gaspar, firmando-se na mulher e logo lhe saltou para cima, mas ela protestou, ao mesmo tempo que se esgueirava, de debaixo dele:
- Larga-me homem da santíssima que me rebentas a bexiga, deixa-me mijar, por amor de deus.
Maria libertou-se, de um salto, pôs-se em pé, esticou a combinação, pernas abaixo que o marido lhe tinha arregaçado, destrancou a porta, saiu, batendo, novamente, a entrada. Gaspar tapou-se com a manta, esperançoso no regresso da mulher, no sentido de, com ela, fazer o amor matinal, precisamente, aproveitando a erecção…
Entretanto, já dormitava de novo, Maria tardava, quando dois estrondosos murros na respectiva porta do moinho, concomitantemente, habitação, o sobressaltaram:
- Oh da casa! Oh da casa! – Numa voz grave, tormentosa e cavernosa, masculina.
As crianças, as filhas do casal, Maria e Teresa, deitadas na cama de palhas, aos pés dos progenitores, desataram a chorar, apavoradas, acordadas com o soar dos murros na porta.
Gaspar, atordoado, ainda mal se vislumbrava nesga de claridade pelas frinchas, Maria tinha saído para urinar, com o coração a galope que nem o cavalo do padre Reinaldo, não pôde responder, de imediato. Aflito, temeu pela sua mulher, mas a uma hora daquelas, ali no seu moinho do Rio Torto, que lhe poderia ter acontecido? Quem era o da voz tão tormentosa e a que propósito? Refez-se, como pôde, vestiu as calças, sacando-as dali, de ao pé de si, descalço, tamancos na mão canhota, e perguntou, enquanto abria a porta:
- Quem é?
Logo deparou com quatro guardas do reino, fardados, nunca os tinha visto em parte alguma, mas sabia que o eram e o que habitualmente exerciam: prendiam, a mando do tribunal do santo ofício, hereges, mouros e feiticeiras…
- És o Gaspar Rodrigues?
- Sou sim, meus senhores. - Ao responder, afirmativamente, estremecia todo, alguma urina matinal libertou-se, pernas abaixo, molhando-lhe um joelho e, sem dar por isso, deixou soltar-se, da mão, ambos os tamancos.
- Vimos buscar a tua mulher! Onde está? – Assim, sem mais, nem menos, brutalmente, quatro desconhecidos, fardados, ao amanhecer, no dia dos santos quarenta mártires, da igreja católica apostólica romana, surgiram, como lobos, roubar, ao seu curral, a sua mulher, o seu melhor bem, que lhe tinha sido concedido, em nome de um deus no altar e, em nome desse mesmo deus, cruelmente, lha vinham usurpar, ao lar que ambos, arduamente, construíam.
As petizas enroscaram-se ainda mais nas mantas de burel, tremendo de medo ao escutarem a voz autoritária do guarda, no lado de fora da entrada do casebre, ambivalente, ou seja, moinho e casa de habitação com lugar para as mós, para a pilheira, a fogueira e o espaço onde todos dormiam sobre colmo.
Dois rafeiros que não tinham ladrado aos guardas, ao chegarem ao Rio Torto, em virtude destes os terem afagado, brindando-os com um pedacito de pão, romperam a rosnar e a latir, furiosamente, a partir do momento em que Gaspar se aprontou tão tremulo, encolhido, titubeante, sob o mando dos guardas, os cães como que mobilizados em defesa do moleiro.  
Maria que não tinha dado pela chegada das autoridades, por via de ter ido, por momentos, verificar se as portinholas das galinhas e do suíno, respectivamente, permaneciam encerradas, tal como as tinha deixado, ao escurecer do dia anterior, visto que, por vezes, pessoas ou bichos assaltavam os moleiros, pela calada da noite, e se não encontrassem farinha ou grão roubavam-lhes os animais domésticos. Correu logo para trás de um grande pedregulho, ao lado do seu moinho, escondendo-se e, ao mesmo tempo, observando, de lugar seguro, o que se passava à porta da sua casa onde tinha a sua família. Quis aparecer, acudindo ao marido que ela bem via aflito e acalmar as sua filhas que imaginava apavoradas, mas hesitou, mais por se encontrar em combinação de flanela, apenas agasalhada com um xaile pelos ombros, do que por receio das autoridades, àquela hora, prostradas à sua porta, sem saber, minimamente, o propósito.
Perante a atrapalhação e a tremedeira de Gaspar, os guardas irromperam casebre adentro, empurrando o moleiro. Um dos guarda deitou a manápula às mantas que encobriam as meninas, destapando-as totalmente e elas ali anichadas, batendo o dente de medo e de frio, naquela madrugada invernal de Março. Passaram revista ao resto dos aposentos, destapando, até, a panela do caldo sobre as cinzas do borralho da noite antecedente. As mós continuavam no seu movimento incessante, triturando e desfazendo grão a grão o centeio e a cevada que caía da moenga no olho de cada mó, respectivamente. Pois, vida de moleiro é a de aproveitar o caudal da água, enquanto ela é suficiente para mover as pesadas graníticas. A partir do mês de Maio, geralmente, todos os anos, os moinhos param por falta da sua força motriz, a energia hidráulica, por gravidade sobre o rodízio. Só após as águas outonais, por vezes, em pleno mês de Novembro, é que o rio Torto botava caudal capaz de mover mós, novamente.
Maria espreitou e Gaspar topou com ela que lhe acenou, mostrando-lhe que se encontrava em combinação. Ele logo se virou e apanhou, da beira da cama de colmo, a saia da moleira. Voltou-se e lançou-a à mulher, porém não teve o devido cuidado para não ser notado, no movimento, pelo que dois dos guardas o seguiram e, assim, descobriram o esconderijo da Maria Lopes. Correram para ela que nem galgos, nem lhe deram tempo dela enfiar a saia, apenas ia com a perna direita no ar, logo a arrastaram, cada um dos algozes, prendendo-a pelos respectivos braços.
- Deixem-na! Deixem a minha mulher! – Berrou Gaspar, furioso, que nem parecia o mesmo medroso tremedouro.
Entretanto, Maria, aproveitando a frouxidão dos guardas, espantados com a determinação de Gaspar, conseguiu recuperar a saia enfiando-a pernas acima.
- Que te deu valentão? Retorquiu um dos guardas, ameaçadoramente.
Os rafeiros assanhavam-se mais e os vizinhos, moleiros e camponeses do lugar do Rio Torto, acudiam face a tamanho alarido. Os quatro guardas abrandaram os movimentos bruscos e baixaram o tom ameaçador. Em tempo relativamente curto, em frente ao moinho habitação dos moleiros Gaspar Rodrigues e da sua esposa, Maria Lopes, todos juntos ouviam as ordens da guarda que ali veio em demanda de Maria Lopes, no sentido de a levar presa, por ordem do tribunal do santo ofício de Coimbra.
Maria Lopes, mãe de Maria Lopes, mulher do falecido Daniel Rodrigues, pai de Maria Lopes, de Francisca Lopes e de Úrsula Lopes, também já presentes, bem como os respectivos maridos e suas proles, imploravam clemência, carpindo, mas os guardas, resolutos, determinados e insensíveis, mandaram que Maria Lopes, mulher de Gaspar Rodrigues, natural do Rio Torto, moleira, de 25 anos, mãe de Teresa e de Maria, menores, marchasse, em frente deles, sob pena de ser obrigada a fazê-lo a chicote. Maria vestida de saia e blusita, xaile, pelos ombros, calçada de tamancos que, entretanto, a sua mãe tirara dos seus próprios pés e calçou nos da sua filha que via partir, cativa, impotente para o impedir. Pelo carreiro estreito, Maria Lopes, cativa, escoltada por quatro guardas do reino de Portugal, a mando e ao serviço da igreja católica, seguiam à borda do rio. A água, indiferente, marulhava de pedra em pedra na sua cantata incessante. Ao chegarem ao pontão que ligava as duas margens, a de Cedovim e a do Souto, Maria olhou, de esguelha, para a outra margem, a de Cedovim, onde se tinham postado vizinhos, assistindo, curiosos, mudos e amedrontados. Maria teve ganas de deitar a correr e fugir, fugir, correr margem direita do rio Torto abaixo, de modo a não ser alcançada pelos guardas, nem que tivesse de se deitar ao rio. Antes queria morrer afogada nas águas do rio que lhe moviam as mós do seu moinho do que ir ali vexada, presa cuja culpa não entendia. Todavia, rapidamente, percebeu que seria uma tentativa falhada, os algozes seriam implacáveis: agarrá-la-iam e ninguém lhe valeria, por isso, deitou olhar no chão, seguiu, virando à esquina da casa do moleiro vizinho, pelo carreiro, em direcção ao Souto. Seguia pelo caminho que quase diariamente tomava, atrás do seu jumento, na qualidade de moleirinha, toc, toc, fazendo entrega de farinha ou recolhendo grão para moer no seu moinho, herdado de geração em geração, mas que a obrigavam a abandonar sob ordem de prisão, acusada de heresia, coisa que o seu entendimento não alcançava.
O chão, esbranquiçado, por força da forte geada que se tinha feito sentir, durante a noite, provocava escorregadelas perigosas, que ela vencia, com dificuldade, e os guardas ainda mais desequilíbrios temiam, dado o desconhecimento do piso, porém melhor venciam pelo superior calçado que usavam. Da arriba, logo à saída da pequena povoação, dispersa, os vizinhos miravam, impotentes e incrédulos face ao sucedido naquela manhã fria de 3 de Março, quarta-feira, dia dos quarenta mártires. Adivinhava-se um dia solarengo, pois o sol matinal já beijava o cume do alto de Santo António. No entanto, as encostas, à sua direita e à sua esquerda, continuavam a esbranquiçar da geada que até parecia terra enfarinhada pela farinha do seu panal. Os castanheiros, os amieiros, as nogueiras, as amendoeiras e os freixos, ainda de galhos sem folha, ladeavam o caminho por onde Maria Lopes, a moleira, caminhava em frente dos guardas. Ia triste, chorando, baixinho. Não lhe deram tempo para se despedir das suas filhas. Foi para dar e receber um abraço do seu homem e nem isso lhe permitiram, empurrando-a, bruscamente, do alcance dos seus. Maria Lopes caminhava, forçada, sob prisão de coração desfeito, sem saber o que seria dos seus: quem cuidaria das suas meninas, quem daria a vianda ao porco, quem olharia pelas galinhas, quem faria a entrega da farinha aos fregueses, quem faria o caldo, quem botaria o forno, quem cozeria o pão, o pão de cada dia…
Maria ia triste, as lágrimas, silenciosas, escorriam-lhe pelas faces abaixo. A aragem matinal cortava-lhe as bochechas destapadas, por isso, apertou mais o lenço e puxou para a cabeça o xaile de burel.
- Vais com a mosca! – Gozou um dos algozes que, atrás, lhe seguia os movimentos e trejeitos, sem o mínimo de comiseração.
Maria Lopes, calada no fundo da sua alma, mal olhava em volta, ia com a sensação de que tudo em seu redor gemia de mágoa, as árvores ainda sem as flores e folhas primaveris, plangentes, parecia que lhe juravam, para sempre, nudez, despidas. Àquela hora, noutras manhãs, Maria tinha feito o mesmo percurso, madrugando na entrega da farinha. No entanto, nessas manhãs, atrás do seu burrinho, a paisagem sempre se lhe apresentou airosa, até nos dias de chuva e de nevoeiro a encantava com o seu quê de mistério. Desde o seu moinho até à casa dos fregueses, praticamente, nunca a apartavam os chilreantes da passarada, como que dando-lhe os bons dias. Porém, naquela manhã gelada de 3 de Março, ao romper do sol, nem um sinal de pintarroxo, muito menos de pintassilgo. Uma ou outra cotovia esvoaçou, muda, à sua frente, mas logo se escondiam, voando para longe, na direcção das searas de centeio, na encosta do seu lado direito. Searas, não por que se notasse o verde das plantas, pois a geada tingia-se de branco, mas porque ela sabia que aí tinham procedido a essa sementeira, os seus próprios cunhados tinham lavrado aquele fraguedo todo, cavando onde a relha do arado não penetrava.
Quase a dobrar a curva, prestes a passar pelo regato cujas águas se juntariam às que escorriam das faldas do Souto, para, juntas, desaguarem no seu rio Torto, um tudo-nada, a jusante do seu moinho, a partir do telhado, da casa da quinta do Carmelo, rente do tal arroio, esfumava já a fogueira. Maria logo pensou na sua casa, aflita, sem saber o que se lá passaria, sem ela para aquecer o caldo. A senhora Ermelinda assomou-se à porta e chamou:
- Maria! Maria, que aconteceu, minha filha?
- Cale-se! Meta-se na sua vida! – Berrou um dos guardas, cá de cima, do caminho, tocando, com um empurrãozito, Maria que abrandou, chorando, querendo mas sem conseguir responder à interjeição da freguesa.
Mais um pouco de ladeira, por entre galhas de castanheiros, eis que chegaram à curva, da qual já se mirava o casario do Souto. O guarda que seguia, imediatamente, atrás de si, encostou-lhe o punho do chicote à nádega direita e atirou:
- Para ali, para a esquerda, vamos para a Meda! Por onde querias ir tu?
Maria, obedecendo, irremediavelmente, verificou que os guardas não eram daquelas bandas, senão tomariam outro caminho: a escolha daquele itinerário, só de forasteiro mal informado. Certo, ela nunca tinha ido a Coimbra, mas moleira é, por natureza e por ofício, caminheira, se não conhece intui e, desse modo, pressentia que ir à Meda seria andar em ziguezague. Sempre tinha ouvido contar que para se ir a Coimbra tomar-se-ia o caminho de Lamego, por Ferreirim, Moimenta da Beira, Salzedas, Ucanha, Castro Daire, pelo traçado da antiga estrada romana que dava a Viseu. Daí a Coimbra, por Repezes, Vila Chã de Sá, Fail, Parada de Gonta, Canas de Santa Maria e Tondela. Ao ocorrer-lhe o nome de Tondela, lembrou-se do padre António Guilherme e, estremecendo, entendeu de onde, eventualmente, tinha partido a acusação de heresia. Teve vontade de gritar, ali, no meio das giestas e dos calhaus graníticos, que ela, Maria Lopes, moleira do Rio Torto, não tinha nada que ver com as pregações do padre que se dizia deus, o enviado, mas conteve-se: teve receio dos algozes.
Aquele carreiro levá-los-ia a Marialva e, aí, tomariam a antiga estrada romana da Guarda, por Folgosinho, Serra da Estrela, Famalicão da Serra, descendo para cruzar o rio Mondego, próximo de Videmonte. Maria Lopes foi arrancada de sua casa, do seu moinho e dos seus, abruptamente. Não lhe perguntaram se podia caminhar, se estava em jejum, se queria aviar merenda para o caminho. Quase a passar pelos moinhos do Polinário, bem a montante do seu, sentia-se exausta, trôpega. Os guardas perceberam que tinham ali um problema com a cativa, ela não aguentaria a caminhada até Marialva onde tinham as montadas. 
Um dos guardas disse:
- Estamos ferrados, nosso cabo…
- Ferrados… por quê? Joaquim… - Respondeu o cabo, apreensivo, verificando também que Maria Lopes quase já não caminhava e não esperando pela resposta do guarda Joaquim, ordenou:
- Alto! Vamos descansar um pouco, aqui.
Maria Lopes, estafada que nem parecia uma moça de 25 anos, parou e sentou-se na paredezinha à borda do carreiro, sem esperar de ordens para o efeito. O guarda mais voluntarioso e grosseiro com a cativa ia para reprimir Maria Lopes, mas o cabo fez-lhe sinal para condescender. Os algozes, também cansados da estafeta, pois tinham caminhado noite dentro, de Marialva para o Rio Torto, por Ranhados, e regressavam, via Meda, de madrugada, sem que tivessem feito uma pausa, sentaram-se, cada um em seu calhau. 
- Guarda Manuel, dê cá uma bucha que já merecemos o mata-bicho. – Ordenou o cabo e os guardas ali se serviram do bornal, tirando, para si, um pedaço de pão e um bocado de queijo de cabra, fedorento.
- Não comes nada, mulher? – Dirigiu-se o guarda mais violento, a Maria Lopes, zombando. 
- Tss, tss.. Não é que não a mandamos aviar merenda… e agora? – Sobressaltou-se o cabo, só, naquele momento, reparou que prenderam Maria Lopes, no intento da levar cativa ao tribunal da inquisição de Coimbra, sem farnel.
- Que forro levas aí, mulher? – Voltou o cabo dirigindo-se a Maria Lopes, no sentido de saber se ela tinha dinheiro consigo para as respectivas despesas e encargos com alimentação e transporte, até ao cárcere. 
- Não tenho nada, meus senhores. – Conseguiu responder Maria, a muito custo, de voz embargada, irrompendo em soluços, dilacerantes. 
- Voltamos atrás, meu cabo? – Acudiu o guarda Joaquim.
- Não! Vamos em frente, o juiz da comarca resolve… - Sentenciou o cabo.
Entretanto, recompostos os guardas, com a presa sentada na parede da borda do caminho, preparavam-se para tocar Maria Lopes. Porém, o cabo virou costas, afastando-se umas passadas e pôs-se a urinar. O guarda Manuel, que até à data, se tinha abstido de humilhar a cativa, deu, à mão, um pedaço de pão a Maria e, disfarçadamente, fechou o farnel, antes que o cabo desse pelo acto. O guarda Joaquim ia para intervir, mas logo o outro, o José, se interpôs, serenando os ânimos, entre Joaquim e Manuel. Maria recebeu o pedaço de pão e meteu a mão com ele sob o xaile, caminhando, logo que o cabo se juntou ao grupo, sem resistência.
Prosseguindo pelo caminho, passaram, através do frágil pontão, sobre o Torto, para a outra margem, a de Ranhados, a antiga villae romana Medobriga, rente aos moinhos do Mendes. Entretanto, o sol já ia alto e os camponeses deslocavam-se para os campos e os pastores conduziam os rebanhos para os montes, todos estacavam a mirar Maria Lopes, refém de quatro guardas, mas ninguém ousava perguntar pela causa, apenas se limitavam a descobrir a cabeça, fazendo vénias às autoridades, por medo de revanchismo. Desceram à borda da quinta da Canada, voltaram a atravessar outro curso de água, aos fundos da quinta das sapateiras. Os guardas sempre colados a Maria Lopes, no sentido de evitarem qualquer tentativa de fuga ou de outro disparate, pois, eles repararam que a cativa, ao passar sobre as poldres, abaixo da quinta das Sapateiras, tinha feito menção de se deitar à água. Prontamente, o guarda Joaquim lhe deitou as mãos, conduzindo-a de pilar a pilar. Subindo a encosta, chegaram a Ariola, o cabo deu ordens para mais uma pausa.
De Ariola surgiu um jovem casal, ambos no dorso de uma égua, cor de canela escura:
- Bom dia, senhores guardas. – Salvou o rapaz e acenou a rapariga com a cabeça, sem descolar as mãos da cintura do companheiro, ao qual se segurava sobre a albarda do quadrúpede. 
- Bons dias! Para onde vão vossemecês? – Interrogou o cabo.
- Até à Meda, para a Meda, senhor guarda, ao mercado… - Acudiu João Rodrigues da Cruz, o rapaz, marido de Eufémia Aguiar, a sua esposa, que levava consigo, a acavalo na égua. 
- Se vossemecê nos levasse, na égua, aqui este emplastro… - Retornou o cabo, referindo-se a Maria Lopes.
- Então não levamos? É para já, meus senhores. Oh Eufémia, vamos lá desmontar.
João Rodrigues da Cruz e Eufémia de Aguiar, camponeses, de certo modo, abastados do lugar de Ariola, jovem casal que mais tarde iriam ter filhos, um dos quais, Pedro de Aguiar que, por coisas do acaso ou de um destino qualquer, viria a casar com Ana Maria do Lugar dos Mozinhos, levaram, por anuência dos algozes, na sua égua, Maria Lopes, do lugar do Rio Torto, acusada, pelo tribunal da inquisição de Coimbra, de crimes de heresia, até ao cárcere da comarca da Meda, provisoriamente, até a arrastarem para julgamento e retida nos calabouços de Coimbra. 
Presente ao juiz do reino a presumível acusada de práticas de heresia, de acordo com os ditames do Direito Canónico, pelos factos, umbilical com as leis régias, Maria Lopes logo foi encarcerada numa cela onde apenas havia um caldeiro para as necessidades fisiológicas, palha e umas mantas sujas e rotas. A cativa foi empurrada para dentro do cubículo escuro, apenas uns taipais que não chegavam ao tecto do edifício e uns orifícios, ao acaso, permitiam alguma claridade. Já não chorava, atónita, ainda conservava o pedaço de pão, tal como lho tinha dado o guarda Manuel, devorou-o.
Ficou, ali, sem saber quanto tempo, nem onde se encontrava, apenas despertou com o abrir da cela de onde surgiu um vulto que lhe colocou, por perto, um tarro cheio de água e, ao lado, deixou mais um pedaço de pão escuro e recesso. Abandonada, Maria Lopes para ali se prostrou, irremediavelmente, sem nada, nem ninguém que lhe acudisse. No outro dia, julgou ela, pois, entretanto, desceu sobre a sela a escuridão total e retornou a nesga de claridade, a porta voltou a abrir-se e, desta vez, alguém empurrou, para dentro, uma pessoa. Tudo em gestos bruscos, ameaças e ofensas à nova companheira, uma mulher andrajosa. A companheira, que ali chegou, proveniente da luz da rua, não enxergava nada, mas Maria Lopes, que já tinha os olhos refeitos ao escuro, logo reconheceu a encarcerada, era a Maria da Luz, a senhora Maria da Luz, do Poço do Canto.
- Credo, minha Nossa Senhora, senhora Maria, também a trouxeram. – Balbuciou Maria Lopes.
- Ai minha filha que estamos pedidas. – Retorquiu Maria da Luz, visivelmente, menos atormentada do que Maria Lopes.
- Ai valha me deus, por que nos prenderam, que fizemos nós? – Voltou Maria Lopes.
- Então não te disseram qual era a culpa?
- Não, não senhora, aqui estou, como cordeiro nas garras de lobo.
- Olha, Maria, foste acusada de seguires os mandamentos do padre António Guilherme e, a mim, querem que confirme as tuas culpas. - Rematou Maria da Luz, aterrando ainda mais Maria Lopes.
- E olha que não me intimaram só a mim, têm para aí perguntado a muita gente se reconhecem o teu erro. – Reforçou ainda Maria da Luz, para desespero total de Maria Lopes que já nem respondia, nem questionava de tão perdida e apavorada com a presumível culpa.
Cá fora, na total ignorância de Maria Lopes acerca das movimentações relativas ao seu processo, os guardas foram a Cedovim, à Horta e a Poço do Canto recolher depoimentos que incriminassem Maria Lopes por crenças e práticas de heresia, contrárias aos mandamentos da doutrina católica e apostólica da santa madre igreja. Voltaram ao Rio Torto, obrigaram, sob coacção, que Gaspar Rodrigues, Francisca Lopes, Úrsula Lopes e Maria Lopes, respectivamente marido, irmãs e mãe da cativa, confirmassem que Maria Lopes acreditou nas pregações do Padre António Guilherme, de Tondela, quanto ao facto de ele ser o enviado. Por outro lado, mandaram que Gaspar Rodrigues fosse ao juiz da comarca da Meda entregar provimentos em reais e em mantimentos, no sentido da sua mulher pagar as despesas com a alimentação, o transporte e a estadia no cárcere. Gaspar reuniu os reais que pôde, alguns emprestados, sob penhora, e, nuns alforges, carregou com uns pães, queijos de cabra, carne de porco, azeitonas, chouriças e uma angoreta de vinho. Entregou tudo ao juiz que não lhe permitiu visitar a mulher, no cárcere.
Rol de testemunhas acabado cujo depoimento incriminavam Maria Lopes na prática de heresias através da veneração a falsos profetas e uso de rituais pagãos, logo foi, de trouxa aviada, em cima de uma mula ronceira, até Coimbra.
Aos dois dias do mes de Abril de mil e setecentos e vinte e oito anos, em Coimbra, na Casa do Despacho da Santa Inquisição, estando aí em audiência, de tarde, os inquisidores mandaram o alcaide Manuel de Moura que pusesse Maria Lopes no sexto cárcere do pano em companhia de Maria Antónia e Luísa Mendes. Leão Henriques o escreveu o termo.
Na Casa da Livraria da Santa Inquisição estando ai em audiência de tarde o senhor deputado Frei Veríssimo de Lima de ordem de sua Eminência mandou vir perante si a uma mulher que em o dito dia mes e ano veio presa para os cárceres desta Inquisição e sendo presente por dizer queria confessar culpas pertencentes a este Tribunal lhe foi dado o juramento dos Santos Evangelhos em que por sua mão sob cargo do qual lhe foi mandada dizer verdade e ter segredo o que prometeu cumprir.
Logo disse chamar-se Maria Lopes que disse ser cristã velha casada com Gaspar Rodrigues moleiro, filha de David Rodrigues, moleiro e Maria Lopes, natural e moradora da freguesia de Souto de Penedono Bispado de Lamego de vinte e cinco anos de idade.
 E logo foi admoestada que por si tomava tão bom conselho em confessar suas culpas nesta Mesa lhe convinha muito traze-las todas a memória para delas fazer uma inteira e verdadeira confissão impondo a si não a outrem testemunho falso que fazendo o contrário se arisca ao rigoroso castigo que no Santo Oficio se dá aos que de si ou de outrem falsamente em suas confissões respondeu que somente a verdade queria dizer a qual era:
Que houvera cinco meses pouco mais ou menos na vila de Ranhados e ermida de Nossa Senhora do Campo ouvindo ela confitente dizer que na mesma assistia o padre António Guilherme de Loureiro natural de Tondela e filho do abade de Moreira a quem não sabe o nome e que o dito padre curava com os exorcismos da Igreja às pessoas enfermas, por padecer uns acidentes desde a sua meninice se foi ter com o dito padre António Guilherme de Loureiro à dita ermida em companhia de sua mãe Maria Lopes e sua irmã Francisco Lopes e na mesma ermida o dito padre António de Loureiro fez os exorcismos e benzeu a todas três e a sua irmã Úrsula Lopes que já estava na dita ermida com o dito padre e a outras mais pessoas que estavam presentes na mesma ermida e depois de benzer a ela confitente o dito padre disse para todos que ela confitente estava tão vexada dos demónios como as mais sendo certo que nem antes nem depois do dito padre a benzer sentiu ela confitente dentro em si coisa alguma de espíritos malignos e só os acidentes que tinha desde menina o mesmo tinha ainda de presente mas reparou que pondo-lhe o padre António Guilherme as mãos sobre sua cabeça quando a benzeu que imediatamente sentiu uns grandes fogos pela cabeça e muitas palpitações do coração o que também lhe sucedeu quando o padre António Guilherme em outra ocasião lhe foi benzer a sua casa e moinho e a benzeu também a ela confitente pondo-lhe como dito tem as mãos sobre a sua cabeça e ao dizer o dito padre em vozes altas com um Cristo nas mãos estas palavras: contra vós espíritos malignos caiu ela confitente por terra sem sentidos com um acidente mas como os que dantes tinha e ainda tem.
Disse mais que na dita ocasião em que o padre António Guilherme de Loureiro benzeu a ela confitente na ermida de Nossa Senhora do Campo benzeu também a sua mãe Maria Lopes e suas irmãs Úrsula e Francisca Lopes e lhe fez os exorcismos e até o dito tempo todas três sobreditas não padeciam mais queixas que as de que vulgarmente se queixam as mulheres que eram umas dores de cabeça, agonias do coração e outras assim semelhantes mas depois que o dito padre as benzeu na sobredita forma, pondo-lhe as suas mãos sobre as suas cabeças logo todas se sentiram como vexadas do demónio e o padre António Guilherme assim lho afirmava que estavam e sua irmã Francisca Lopes mostrou mais que todas que estava pois dizia o inimigo pela sua boca (como afirmava o padre António Guilherme que o inimigo era o que falava) que até agora andavam curando-a da espinhela e que ele tinha estado bem regalado dentro daquele corpo e isto mesmo que sucedeu a ela confitente, sua mãe e irmãs de se sentirem vexadas do espírito maligno depois das bênçãos e exorcismos do padre António Guilherme sucedia a todas as pessoas que recorriam ao mesmo com algumas queixas como ela confitente viu e presenciou em muitas que seriam nove ou dez pessoas que estavam na sobredita ermida e se não lembra dos nomes delas.
Disse mais que passados quatro ou cinco dias depois que o padre António Guilherme benzeu a ela confitente, sua mãe e irmãs veio o mesmo para casa da mãe dela confitente nos moinhos do rio Torto com o pretexto de lhe querer benzer os moinhos e casa dizendo ser necessária esta bênção para sua mãe e filhas melhorassem das vexações dos espíritos e com efeito lhe benzeu os moinhos e casa, com várias cerimónias de que se não lembra e também os moinhos e casa dela confitente e estando todos na dita casa de sua mãe e também Ana Francisca, a Bochecha, outra Ana da Horta solteira filha de Manuel Fernandes de Ranhados, um moço chamado Polónio que todos acompanhavam ao dito padre António Guilherme, disse para ela confitente a dita Ana Francisca Ana Fernandes Polónio Maria Lopes mãe Úrsula irmã Francisca irmã a Bochecha que o dito padre António Guilherme era o mesmo Deus que se ela confitente tinha algumas coisas de que se pudessem fazer relíquias que lhas desse por que o dito padre como era Deus lhas converteria todas em relíquias e duvidando ela confitente de que o fosse Deus o padre António Guilherme pois nem ela nem as mais eram tão venturosas que pudessem estar falando com o mesmo Deus, a sobredita Ana da Horta lhe certificou o mesmo afirmando ser Deus o padre António Guilherme e que podia fazer as sobreditas relíquias e lhe mostrou outras que o dito padre já tinha feito e só pelas ter tido na sua mão lhe dizia que cheiravam muito e bem e isto dando-lhas também a cheirar a ela confitente a dita Ana da Horta, viu e experimentou ela confitente que cheiravam e eram as tais relíquias uns bocadinhos de maravalhas e uns pedacinhos de pano branco o que não obstante ela confitente sempre duvidou de que pudesse assim ser o referido pois disse para a dita Ana da Horta que aquelas coisas podiam cheirar por ela as ter tido de antes entre alguns cheiros.
Disse mais que na mesma ocasião o padre António Guilherme para certificar as pessoas que estavam presentes em casa da mãe dela confitente do que lhes acabavam de dizer Ana Francisca a Bochecha e Ana da Horta de que ele era Deus e de que podia de qualquer coisa fazer uma relíquia disse para todas as ditas pessoas que acabando de beber vinho o seu bafo nunca cheirava a vinho e bafejando com isto a todas as sobreditas pessoas tanto ela confitente como sua mãe e irmãs e as mais pessoas que estavam presentes virão e experimentaram que o dito bafo não cheirava a vinho e então disse Ana Francisca a Bochecha para uma mulher de Ana Francisca Freixo que também estava presente que é viúva não sabe de quem nem como a mulher de Freixo se chama e tem por alcunha a Freixa que engolisse o dito bafo do padre António Guilherme porque tinha virtude e ela dita Ana Francisca pela mesma causa o tinha já engolido por muitas vezes e com efeito a dita mulher de Freixo chegando-se mais para o padre António Guilherme e abrindo a sua boca o padre a bafejou e ela lhe engoliu o bafo mas sem chegar a boca um à do outro.
Disse mais que também na dita ocasião e casa da mãe dela confitente disse o padre António Guilherme para todas as sobreditas pessoas que ele era Deus e que a Santíssima Trindade se unira para ele vir ao mundo no qual havia de andar alguns anos para converter as criaturas das quais por muitas serem incrédulas tinha permitido a Santíssima Trindade ser ele o que viesse ao mundo e que o Reino de Portugal havia de ser o primeiro que se havia de converter e logo havia de passar a outros reinos e que por toda esta Quaresma se saberia bem quem ele era pois lhe havia de chegar nela a sua bula e que as mulheres que de presente o acompanhavam e o seguiam haviam de ser os seus apóstolos assim como Cristo Senhor nosso os teve quando andava pelo mundo e a tudo o sobredito davam inteiro crédito as duas Ana Francisca a Bochecha e Ana da Horta, Polónio e a irmã dela confitente Úrsula Lopes porque diziam que tudo era assim como o padre António Guilherme afirmava de si e ela confitente nunca lhe deu todo o crédito por que o seu coração sempre repugnava ao que o padre António Guilherme dizia e também as mais pessoas lho certificavam do mesmo.
Disse mais que estando como dito tem em casa de sua mãe e na mesma ocasião acima dita ouviu dizer mais ao padre Antonino Guilherme que aquelas criaturas que o seguiam e estavam vexadas traziam dentro em si muitos mil demónios aos quais todos ele havia de salvar e faze-los anjos ficando os que eram anjos demónios. E perguntando na mesma ocasião o padre António Guilherme às criaturas que estavam vexadas e estavam presentes ou aos demónios que ele dizia que as mesmas tinham se se queriam salvar respondendo lhe todas que sim o padre António Guilherme lhe mandou que fossem ao Céu e pondo-lhe a mão sobre as cabeças caíram todos com acidentes e então disse também o dito padre António Guilherme que se o demónio que trazia Ana Francisca a Bochecha se chamava toalha rota como tinha dito o mesmo demónio dali por diante se chamaria toalha limpa para receber ele dito padre em graça.
Disse mais que também ouviu dizer ao padre António Guilherme na mesma ocasião que ele tinha na sua casa de Tondela um sacrário o qual só viam todas as pessoas que na dita casa entravam em graça e que ele dito padre se tinha visto a si mesmo ao pé do dito sacrário e que todas as pessoas que o seguiam quando as levasse pelo mundo sendo os seus Apóstolos, as havia de levar por Tondela donde vissem o dito sacrário afirmando então de si o dito padre que se ele não fosse Deus como tinha dito não poderia ter em sua casa o dito sacrário e que dali a três anos já não havia de haver imagem a doutrina da Igreja se havia de mudar ficando uma e tirando outra o que havia de ficar era o Padre-Nosso e Mandamentos da Lei de Deus e a que se havia de tirar era a Ave-Maria e outra mais de que se não lembra.
Disse mais que estando o padre António Guilherme praticando e afirmando de si o que acaba de dizer e na casa de sua mãe Maria Lopes ouviu dizer a uma mulher de <a mulher de Freixo> Freixo de quem já disse se chamava por alcunha a Frecha (?) que o dito padre António Guilherme tinha as mãos tão formosas que lhe pareciam em tudo semelhantes com as do Senhor do andor dos Passos da sua terra da vila de Freixo e na mesma ocasião lhe disseram também Ana Francisca, a <dita Ana Francisca dita Ana Fernandes dita Úrsula> Bochecha, outra Ana, chamada da Horta e sua irmã Úrsula Lopes que o dito padre António Guilherme afirmava das duas Anas que já eram santas e que não lhe faltava mais que canoniza-las e que a ela dita Úrsula Lopes ainda a não podia escrever por todo de Santa por que ainda lhe faltava muito que padecer.
Disse mais que no mesmo dia em que o padre António Guilherme estava em casa de sua mãe Maria Lopes sendo sobre a tarde lhe disse a mesma ao dito padre que ele e estava parecendo o padre Eterno ao que respondeu o padre António Guilherme que ali estava e ali o tinha nele e tomando logo duas ou três maçãs e partindo-as em talhadinhas disse que as queria consagrar e com efeito fazendo sobre elas algumas cerimónias com a mão e dizendo algumas palavras que nada entendeu nem sabia o que o dito padre fazia mandou este que todas as pessoas que estavam presentes se pusessem de joelhos e recebessem as ditas talhadinhas de maçãs como quem recebia nelas o Corpo de Cristo Senhor Nosso e respondendo-lhe a mãe dela confitente que pouco aparelhada estava para receber o Santíssimo Sacramento o dito padre António Guilherme lhe respondeu que não importava porque bastava para o receber bem a contrição e pondo-se de joelhos e com as mãos levantadas todas as pessoas que estavam presentes que eram ela confitente seu marido Gaspar Rodrigues, sua <Gaspar Rodrigues marido, dita mãe Maria Lopes, dita Úrsula irmã, dita Francisca irmã, dita Ana Francisca, dita Ana Fernandes> mãe Maria Lopes, suas irmãs Úrsula e Francisca Lopes, Ana Francisca a Bochecha, outra Ana, chamada da Horta e outro moço chamado Apolónio receberam todos das mãos do padre António Guilherme como quem recebia a Sagrada Comunhão as ditas talhadinhas de maçãs entendo todos e crendo pelo que diziam e mostravam no exterior que nas ditas talhadinhas de maçãs recebiam o Corpo de Cristo Senhor Nosso.
Disse mais que não só todas as sobreditas pessoas de quem acaba de dizer receberam as talhadinhas de maçãs entendendo que nelas recebam o Corpo de Cristo Senhor nosso como dito tem mas também entendiam e criam que o dito padre António Guilherme era o mesmo Deus como por muitas vezes ela confitente ouviu praticar e dizer às mesmas pessoas que ele era Deus não obstante que ela confitente dentro no seu coração sempre pôs muita dúvida ao que o dito padre dizia e afirmava de si por cujo respeito o dito padre por muitas vezes lhe chamou incrédula e também a todas as sobreditas pessoas duvidava ao que elas lhe diziam e afirmavam do dito padre o que não obstante sempre no exterior fez o mesmo que todas as mais e a crer como elas que o dito padre era Deus pois às suas dúvidas lhe respondiam todas as sobreditas pessoas que a Deus nada era impossível.
Disse mais que tanto capacitaram a ela confitente os ditos e afirmações das sobreditas pessoas para ela confitente crer que era Deus o padre <como creio> António Guilherme que na mesma ocasião em que o mesmo esteve na casa de sua mãe ela confitente posta de joelhos lhe beijou os pés e pedir perdão de suas culpas dizendo-lhe com as mãos levantadas que não sabia com quem falava mas que se acaso assim era o que se dizia e se assim podia ser lhe desse perdão das suas culpas e então lhe deu três beijos nos pés à honra das três pessoas da Santíssima Trindade como assim lhe tinham ensinado Ana Francisca a Bochecha outra Ana, chamada da Horta, e sua irmã Úrsula Lopes as quais tinham ouvido dizer que o dito padre António Guilherme mandava em semelhantes ocasiões rezar três padre nossos e três glorias pátria à honra das três pessoas da Santíssima Trindade e que era o mesmo reza-las a Trindade Santíssima que o dito padre porque ele era a mesma Santíssima Trindade por cuja consideração ela confitente lhe deu nos pés os sobreditos beijos levando porém sempre o seu pensamento ao Céu e dizendo consigo que se ele era a Santíssima Trindade lhe dava os ditos beijos e se não era que lhos não dava.
 Disse mais que vindo notificadas para o Souto e para dizerem o que sabiam a respeito do padre António Guilherme, Ana da Horta e sua irmã Maria Antunes, (como assim lhe parece que se chama) e falando em casa da mãe dela confitente ao dito padre António Guilherme e dizendo-lhe o para que vinham chamadas e perguntando-lhe mais como se haviam de haver nos seus depoimentos o dito padre lhe respondera que confessassem toda a verdade do que lhe haviam visto e ouvido e perguntando-lhe mais o do padre se estavam elas certas em todos os sinais que lhe tinham visto respondendo-lhe a dita Maria Antunes que não o dito padre lhe mostrou então a sua mão para que nela visse e se firmasse dos sinais que nela tinha os quais ela confitente não viu nem sabe porque só lhe ouviu dizer o referido e mostrar a mão e saindo para fora de casa o padre António Guilherme se pôs a olhar para o sol com os olhos fitos nele dizendo para as ditas pessoas e todas as mais que estavam presentes que se ele não fosse o que era que não poderia fazer aquilo que ele fazia que era olhar direito para o sol e no mesmo tempo e ocasião disse também o dito padre António Guilherme que o haviam de prender a ela na mesma hora em que prenderam o filho sem declarar que filho ou de quem, acrescentando também que se lhe não dava que o prendessem porque já estivera no Santo Ofício e dos Senhores Inquisidores muito bem o conheciam.
Disse mais que a Ana Francisca a Bochecha de quem já tem dito ouviu dizer pouco depois que padre António <dita Ana Francisca> Guilherme se tinha abentado aos seus moinhos e casa que quem estivesse à missa não havia de rezar se não que havia de estar com toda a consideração e sentido no dito padre António Guilherme e na de que ele era Deus para o poder receber e comungar espiritualmente dizendo mais que não era ela a que dizia e afirmava o sobredito senão o Anjo que tinha dentro em si e lhe tinham deixado pois ela tendo sido tão grande pecadora e mulher do mundo não era merecedora de receber os favores com que se via e de receber a Deus em sua casa o qual a vinha buscar a ela na mesma e era o dito padre António Guilherme e dizendo logo a si mesma estas palavras = sobe, sobe Anjo e vem dizer o que te perguntam = e logo mostrava que falava o dito Anjo e dizia = guardai os mandamentos do padre António Guilherme quando estiveres à missa não rezeis e entendei que o dito padre que a esta dizendo é o mesmo Deus e nele crede como em tal = e outras mais coisas dizia para capacitar as pessoas na crença de que era Deus o dito padre António Guilherme que de presente lhe não lembram nem mais que confessar nesta Mesa. E declara que tanto o padre António Guilherme como Ana Francisca a Bochecha e todas as mais pessoas quando proferiram as coisas que tem deposto na sua confissão estavam em seu juízo perfeito sem perturbação de vinho ou outra alguma paixão que lhe perturbasse o entendimento menos suas irmãs ou outras algumas pessoas que se diziam e mostravam estarem vexadas dos espíritos malignos porque então quando mostravam que estavam e que diziam o que tinha deposto e lhe pareceu a ela confitente sempre que o padre António Guilherme lhe metia os demónios nos corpos porque só depois que as ditas pessoas lidaram e falaram com o dito padre é que deram sinais de terem espíritos malignos e depois que deixaram de falar com ele poucos ou nenhuns sinais deram de ter os mesmos espíritos principalmente suas irmãs Úrsula e Francisca Lopes, que depois que vieram e foram desta Santa Casa não deram mais sinais alguns dos tais espíritos e que estas eram as suas culpas e de as haver cometido está muito arrependida delas pede perdão e que com ela se use de misericórdia e mais não disse nem ao costume.
Foi lhe dito que tomou muito bom conselho em principiar a confessar suas culpas e lhe convém muito traze-las todas à memória para delas fazer uma inteira e verdadeira confissão declarando também a verdadeira tenção que teve em cometer as que tem confessado porque fazendo assim salvara a sua alma e se pusera em estado de que com ela se use de misericórdia e por tornar a dizer que não era de mais lembrar nem tivera outra tenção nas culpas que cometera senão a de cair nas ditas culpas pela sua grande ignorância e por lhe dizerem as pessoas que a enganaram que a Deus nada era impossível foi outra vez admoestava (sic) em forma e mandada a seu cárcere sendo lhe primeiro lida esta sua confissão e por ela ouvida e entendida disse estava escrita na verdade e que nela se afirmava e ratificava e tornava a dizer de novo que na mesma não tinha que acrescentar diminuir mudar ou emendar nem de novo que dizer ao costume sob cargo do juramento que lhe foi dado ao que estiveram presentes por honestas e religiosas pessoas que tudo viram ouviram e prometeram dizer verdade e assim o juram os Santos Evangelhos os reverendos licenciados Inácio Bernardes e José Antunes da Silva notários desta Inquisição que ex causa assistiram a esta ratificação e assinaram a que eu notário pela ré de seu consentimento por não saber escrever e com o dito senhor deputado Leão Henriques o escrevi.
Notário Veríssimo de Lima [assinatura autografa]
Leão Henriques [assinatura autografa]
Inácio Bernardes [assinatura autografa]
José Antunes da Silva [assinatura autografa]
E indo a ré para seu cárcere foi perguntado aos reverendos notários ratificastes se lhes parecia que ela falava verdade no que dizia em a dita sua confissão e por eles foi dito que sim lhes parecia ter vão assinar com o dito senhor deputado Leão Henriques o escrevi
Notário Veríssimo de Lima [assinatura autografa]
Inácio Bernardes [assinatura autografa]
José Antunes da Silva [assinatura autografa]

Maria Lopes foi, como reza a acta do inquisidor, conduzida ao cárcere. Ia apreensiva, tinha sensação de que algo lhe iria suceder de gravoso. Numa primeira impressão, no decorrer do interrogatório, sentia alívio por ter tido a oportunidade de narrar os factos tal como ela os tinha vivido. Depois de lida a acta, pressentia que, sem haver, nela, verdadeiras deturpações, a linguagem usada parecia-lhe elaborada demasiado para a simplicidade do seu depoimento, temendo, assim, susceptível de segundas interpretações, de modo a incriminá-la. Maria Lopes era analfabeta, o seu vocabulário era restrito, face a tão vastas formulações e considerações. Toda a doutrina que aprendera foi de memória, ouvindo e repetindo as rezas e as preces dos mais velhos, no Rio Torto. As homilias a que tinha assistido, nomeadamente, nas igrejas do Souto, Ranhados, Cedovim, Horta e dos Pereiros tinham apenas representado rituais celebrados numa língua da qual não tirava patavina, ou seja, o latim. As aclamações, asserções dogmáticas do padre António Guilherme sempre lhe tinham suscitado dúvidas, mas, ali, depois de cativa por nelas crer, sentia-se frustrada e revoltada, por não ter tido coragem de rejeitar o discurso do padre louco, eivado de loucuras celestiais.
Maria Lopes, na sua cela, exausta pelo facto de ter sido submetida a tamanha violência psicológica, sentiu profundo cansaço físico e mental. Quedou-se de olhar fixo, sem resposta à estimulação das companheiras prisioneiras; perdeu, subitamente, força muscular e caiu; pestanejou rápido com revolução ocular; com a boca fez movimentos de mastigação e esgares da face; encetou uma série de movimentos rítmicos, estrebuchando todo o corpo; urina escorreu-lhe pernas abaixo; mordia a língua: tudo num movimento confuso e inconsciente. Durante alguns segundos ou até um minuto ou mais, a ocorrência do ataque de epilepsia a Maria Lopes provocou alvoroço no cárcere e nos carcereiros que se apressaram a chamar um clérigo que, entretanto, chegou nos últimos estrebuches de Maria Lopes que logo voltou ao seu estado de saúde, normal. O padre desatou a esconjurar os demónios, empossando, em punho, uma cruz e, depois, virou costas, indo informar o inquisidor-mor da ocorrência, alegando que a presa Maria Lopes tinha sido possuída por uma crise demoníaca. Porventura, em 1728, num cárcere do tribunal do santo ofício, ninguém sabia, nem quereria saber que a epilepsia é uma doença que afecta o cérebro, caracterizada por descarga anormal de alguns ou todos os neurónios cerebrais. Expressa-se através de crises epilépticas recorrentes (duas ou mais), súbitas e imprevisíveis, incontroláveis pelo doente e com duração variável (geralmente entre alguns segundos a vários minutos). 
Ela, Maria Lopes, cativa, moleira do Rio Torto, sentia-se desfalecer, impotente e só, incapaz de contrariar as agruras, as ofensas, a fome, a solidão e, sobretudo, as saudades dos seus familiares, apenas se mantinha viva pelas suas filhas que deixara, forçada, e das quais nunca mais soube a mais pequena notícia: não sabia se tinham sobrevivido à falta dos seus cuidados. Maria Lopes, no seu sentimento de mãe, intuía que as filhas resistiam e aguardavam pelo seu regresso, por isso, ela também resistia, teimando em manter-se viva e lúcida, na esperança do reencontro.