quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Mozinhos - Capitães de Abril - Literatura


Faleceu Gertrudes da Silva, Capitão de Abril, nascido em Alvite, Moimenta da Beira
Morreu hoje em Viseu, aos 75 anos, Diamantino Gertrudes da Silva, Capitão de Abril, que à data da Revolução dos Cravos comandou as tropas sublevadas idas de Viseu para Lisboa, com as companhias de Aveiro e da Figueira da Foz, e que na marcha gloriosa teve a seu cargo a tomada da prisão de Peniche. Foi uma figura decisiva na gesta heróica da inesquecível madrugada. Era natural de Alvite (1943), concelho de Moimenta da Beira, e, por ser “um dos nossos maiores cidadãos, com um percurso de vida imaculado e um gosto especial por tudo o que era nosso”, o presidente da Câmara Municipal de Moimenta da Beira, José Eduardo Ferreira, curvado à “grandeza e nobreza de vida e de espírito” de Gertrudes da Silva, endereça à família as mais sentidas condolências.
Faleceu graduado de coronel das Forças Armadas, mas ficou para sempre a memória do Capitão de Abril, Herói de Abril. Ingressou na Academia Militar em 1963, seguindo a carreira de Oficial do Exército na Arma de Infantaria. Cumpriu duas comissões na Guerra Colonial, a 1ª em Angola e a 2ª na Guiné.
Integrou o Movimento das Forças Armadas, tendo-lhe sido conferido aquela missão relevantíssima para o sucesso da Revolução de Abril. A sua coragem (e espírito de missão patriótico) foi distinguida com várias condecorações de âmbito especificamente militar, sendo ainda agraciado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade pela sua particular participação no Movimento do 25 de Abril de 1974.
Dois anos depois da Revolução dos Cravos quis obter ferramentas que lhe permitissem compreender melhor a evolução histórica, matriculando-se em 1976 na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, concluindo a licenciatura em História em 1980.
Desenvolveu nas últimas décadas uma intensa actividade cívica através da apresentação de comunicações, em várias instituições, nomeadamente nas escolas.
No campo literário desenvolveu também intensa actividade, tendo publicado uma trilogia inspirada nas suas vivências da guerra colonial (“Deus, Pátria e... A Vida”, Palimage 2003; “A Pátria ou a Vida”, Palimage 2004; e da Revolução do 25 de Abril “Quatro Estações em Abril”, Palimage, 2007). Para além disso publicou ainda “Tempos sem remissão”, Palimage, 2011, livro de saborosa escrita aquiliana por onde perpassam sagas familiares da terra onde nasceu em tempos de Estado salazarista/fascista.

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Mozinhos - O Menino da Serra, do Rio e do Moinho








O Menino da Serra, do Rio e do Moinho
- Oh Abel! Oh Abel! – Gritava Lucinda, do alto da serrania para a margem do rio. Todavia, parecia que a voz de Lucinda ia nas asas dos gaviões, de serra a serra, de cume a cume e à margem do rio, à olga e ao lameiro, apenas se aquietasse o marulhar das águas, ora, ali mansas, mansinhas, acolá, logo ali, adiante, saltitantes, alegres, serpenteando, cantando melodias onomásticas: Aquilino, Aquilino, tra,tra,ta…ta, ta…
Abel cuidava da levada, no sentido de toda ou quase toda a água, desviada do leito do rio, por força do açude, plantada em toda a extensão, estorvando o natural deslize rio abaixo, fosse de encontro ao moinho. Aí sim, cairia sobre o rodízio cuja gravidade conferiria a força hídrica necessária para que o dito rodízio fizesse rodar a mó andadeira e, por sua vez, grão a grão, a partir do olho da mó, a farinha se amontasse no panal.
Abel, absorto, sem ouvir o chamamento da sua Lucinda, de sachola em punho, tapava todos os orifícios, canais construídos pelas toupeiras: malditos energúmenos – vociferou ele e repetiu e repetiu no seu monólogo. Tanto repetiu sobre as melodias das águas em fundo: tra, tra, ta zu, zu, zu… que até da onomatopeia se alheava – a rã continuava a coaxar, o pombo bravo a arrulhar, e Abel continuava: infernais, malditas e energúmenos toupeiras. Já, pertinho do moinho, ao cabo da levada, cessaram todas as onomatopeias e outras melodiosas e naturais vibrações do Parnaso, Ali, só a queda da água ecoava do alto sobre o rodízio e, este, girava, fazendo guinchar a mó: ru, ru aquilino, rum, ru, aquilino…
Abel entrou no moinho, recolheu e pesou a farinha, recargou a moenga de grão de centeio, apertando ainda mais o veio para que a farinha saísse fina, quase em pó, ao gosto do senhor José Santa Maria, cliente seguinte, e saiu: mó parada não faz farinha, anda moleiro – atirou, no seu monólogo, e repetiu, e repetiu, carreiro abaixo até ao rio, mesmo ao ponto onde a água, desviada, se voltava a juntar ao caudal, depois de mover a mó do Abel e com capacidade para rodar a do Gregório, logo, ali, a jusante. A mesma corrente não volta atrás no leito, porém, até à respectiva foz, fará mover quantos rodízios lhe surgirem, basta que mão humana a conduza…
- Abel! Abel! – Clamou por si o moleiro vizinho, o Gregório da Conceição.
- Senhor. – Respondeu Abel, de pronto, cessando o monólogo de: mó parada não faz farinha, anda moleiro…
- Oh rapaz, vais para aí com uma ladainha… Deste agora em falar sozinho, sais ao teu falecido avô Júlio que não se calava, por aí a imitar a passarada, a raposa, as perdizes, olha: até os lobos…
- Ouça, senhor Gregório, não ouve aquele pombo a chamar a minha Lucinda: Lu-ciiin-daaaa; Lu-ciiin-daaa?
- Tem juízo, rapaz, senão ainda te mandam para uma casa de correção dos doidos…
- Oh, não faltaria lá doidos, sem contar com os que se dizem de juízo perfeito…
- Lá isso, mas não me estás também a chamar tolo, pois não?
- Oh senhor Gregório, pela alma de quem lá tem: não senhor, por amor de deus…
- Está bem, está bem rapaz, anda daí beber um caneco, anda cá homem!
- Não senhor, bem-haja, fica para outro dia: escute, lá está o diabo do pombo: Lu-ciiin-daaa, Lu-ciiin-daaa.. E olhe que o rodízio também não para com a cantilena: Aquiii-liii-nooo, Aquiii-liii-nooo, Aquiii-liii-nooo…
- Homeça, rapaz, hã, hã, hã.. – Ria-se o moleiro Gregório, dando meia volta, enquanto Abel alargava a passada de regresso a casa, deitando, por cima do ombro:
- Até à manhã, senhor Gregório, se deus quiser!
- Vai com deus, rapaz. - Ainda retorquiu Gregório.
Lá do alto, da serrania da Retorta, o sol escapulia-se, escondendo-se, em forma de bola vermelha. Abel não queria voltar a casa noite cerrada. Temia que, em pleno baldio dos urgais, lhe saísse, ao encontro, um lobo, até um gato bravo receava e o regougar da raposa, o pio do mocho e o canto noctívago do noitibó traziam-lhe à memória maus presságios. Por isso, apressou-se, a trote, como o seu cavalo, o mulato, que deixara na corte a descansar das estafas dos habituais carregos de grão e de farinha de e para o moinho, bem como das cargas de fenos e de lenha a que submetia o quadrupede. Ali, em pleno monte dos urgais, entre urzes, giestas, estevas, rosmanos, carrascos e pinheiros, podia imitar o pombo – Lu-ciiin-daaa, Lu-ciiin-daaa; o rodízio – Aquiii-liii-nooo… Lá prosseguiu no seu monólogo, mas parou, repentinamente, ao recordar-se dos reparos que lhe tinha feito o moleiro Gregório. De facto, para quê, por que razão ele se comportava como o seu avô, objecto de troça por causa daquela mania de falar só…
Calou-se e pensou: disparate – os pássaros não falam e o pau do rodízio precisava era de azeite ou de óleo como se costuma fazer nas novas moagens, lubrificando os gonzos…Diabo das máquinas que vieram a acabar com a freguesia, qualquer dia não há quem queira farinha dos moinhos. Vai tudo para as máquinas: a maquia é menor, é rápido e mói todo o ano, o diabo do vapor não falta como a água do rio; a caldeira arde sempre…
Ia com pressa, as pernas galgavam pedras, montículos e de mais obstáculos, pelo carreiro. Ao abeirar-se da fonte comunitária, guindou-se à direita, pelo atalho do olival, rente ao castanheiro grande, na margem do ribeiro, a passarada levantou voo, esbaforida, face à inusitada presença humana, àquela hora, de aconchego a fim de dormir empoleirada. Aquele castanheiro não era apenas a sua árvore das castanhas, era também uma casa, uma morada, um abrigo da bicharada, ali nidificavam: papa-figos, estorninhos, melros, pintassilgos, chapins, até cotovias, em covinhas, ao toro, no chão.
Abel entrou na povoação e não via mulheres, nem crianças, só homens a descansar nas soleiras e paredes dos quintais, conversando e afagando os fiéis cachorros. Abel deu as boas noites e todos responderam num tom diferente, parecia que sabiam algo que a ele escapava. Ao chegar, junto da sua habitação, logo ali, a criançada a brincar no chão, curiosos, uma menina a fazer de parideira e uma outra a imitar o grito de um recém-nascido. Entrou, empurrando a porta semicerrada, lá estava o mulherio, ainda ouviu a tia Soledade: é bem redondinho, benza-o deus…
Pronto! Abel percebeu que a sua Lucinda tinha parido um menino, um filho de ambos e, em voz alta atirou:
- Bem me avisou o pombo e o maldito rodízio!
- Que é homem, que estás para aí a arengar? – Intrometeu-se a sua mãe, A senhora Ana Luísa, enquanto as outras sorriam, principalmente a sua mulher que sorria também, refeita do esforço, e reconfortada com uma canja de galinha, acabada de sorver.
- Eu chamei-te do alto quando me deram as dores, não ouviste… - Adiantou Lucinda, feliz.
Aos pés da cama, sobre uma tabuinha, a fazer de prateleira, permanecia o seu único livro, “Quando os Lobos Uivam” Aquilino Ribeiro, pôde ler na respectiva lombada. Abel atirou, determinado:
- Vai chamar-se Aquilino! Aquilino, como o do livro. – Apontou para a prateleirita…
Pronto! O menino acabado de vir ao mundo, mais um herdeiro dos hábitos e dos costumes das gentes da serra, das courelas, dos lameiros, das hortas, dos soutos e de um infindável de encantos da ruralidade ficou de nome próprio, Aquilino, o menino da serra, do rio e do moinho.
Foi assim que Abel quis registar o seu filho no registo civil da devida repartição, na vila.
O funcionário perguntou:
- Hora e dia do nascimento? - Abel retorquiu:
- Às 7 horas de sábado.
- Sábado, dia 14, foi de manhã ou à tarde? – Voltou o funcionário.
- À tarde.
- Então, nasceu às dezanove, homem…
- Nome completo?
- Aquilino Augusto Bouça Ribeiro.
- Não fica melhor Aquilino Augusto de Bouça Ribeiro?
- Sim, sim senhor, fica melhor, soa melhor – de Bouça Ribeiro, Aquilino Augusto de Bouça Ribeiro.
- Que raio de nome, homem, não podia ser João, Manuel, Luís, António, sei lá, agora Aquilino.- Contestou o funcionário, desagradado com o nome Aquilino.
- Faz-me lembrar o reviralho… - Retornou, ainda, mostrando má cara a Abel.

- Pois, É Aquilino que fica – Respondeu Abel. Pagou, e saiu de cédula do filho, em mãos…