terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Mozinhos - azeitona

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sábado, 15 de dezembro de 2018

Mozinhos - Menino do Rio







O Menino da Serra, do Rio e do Moinho


Luís de Sousa Peixeira


Conto


 









O Menino da Serra, do Rio e do Moinho
- Oh Abel! Oh Abel! – Gritava Lucinda, do alto da serrania para a margem do rio. Todavia, parecia que a voz de Lucinda ia nas asas dos gaviões, de serra a serra, de cume a cume e à margem do rio, à olga e ao lameiro, apenas se aquietasse o marulhar das águas, ora, ali mansas, mansinhas, acolá, logo ali, adiante, saltitantes, alegres, serpenteando, cantando melodias onomásticas: Aquilino, Aquilino, tra,tra,ta…ta, ta…
Abel cuidava da levada, no sentido de toda ou quase toda a água, desviada do leito do rio, por força do açude, plantada em toda a extensão, estorvando o natural deslize rio abaixo, fosse de encontro ao moinho. Aí sim, cairia sobre o rodízio cuja gravidade conferiria a força hídrica necessária para que o dito rodízio fizesse rodar a mó andadeira e, por sua vez, grão a grão, a partir do olho da mó, a farinha se amontasse no panal.
Abel, absorto, sem ouvir o chamamento da sua Lucinda, de sachola em punho, tapava todos os orifícios, canais construídos pelas toupeiras: malditos energúmenos – vociferou ele e repetiu e repetiu no seu monólogo. Tanto repetiu sobre as melodias das águas em fundo: tra, tra, ta zu, zu, zu… que até da onomatopeia se alheava – a rã continuava a coaxar, o pombo bravo a arrulhar, e Abel continuava: infernais, malditas e energúmenos toupeiras. Já, pertinho do moinho, ao cabo da levada, cessaram todas as onomatopeias e outras melodiosas e naturais vibrações do Parnaso, Ali, só a queda da água ecoava do alto sobre o rodízio e, este, girava, fazendo guinchar a mó: ru, ru aquilino, rum, ru, aquilino…
Abel entrou no moinho, recolheu e pesou a farinha, recargou a moenga de grão de centeio, apertando ainda mais o veio para que a farinha saísse fina, quase em pó, ao gosto do senhor José Santa Maria, cliente seguinte, e saiu: mó parada não faz farinha, anda moleiro – atirou, no seu monólogo, e repetiu, e repetiu, carreiro abaixo até ao rio, mesmo ao ponto onde a água, desviada, se voltava a juntar ao caudal, depois de mover a mó do Abel e com capacidade para rodar a do Gregório, logo, ali, a jusante. A mesma corrente não volta atrás no leito, porém, até à respectiva foz, fará mover quantos rodízios lhe surgirem, basta que mão humana a conduza…
- Abel! Abel! – Clamou por si o moleiro vizinho, o Gregório da Conceição.
- Senhor. – Respondeu Abel, de pronto, cessando o monólogo de: mó parada não faz farinha, anda moleiro…
- Oh rapaz, vais para aí com uma ladainha… Deste agora em falar sozinho, sais ao teu falecido avô Júlio que não se calava, por aí a imitar a passarada, a raposa, as perdizes, olha: até os lobos…
- Ouça, senhor Gregório, não ouve aquele pombo a chamar a minha Lucinda: Lu-ciiin-daaaa; Lu-ciiin-daaa?
- Tem juízo, rapaz, senão ainda te mandam para uma casa de correção dos doidos…
- Oh, não faltaria lá doidos, sem contar com os que se dizem de juízo perfeito…
- Lá isso, mas não me estás também a chamar tolo, pois não?
- Oh senhor Gregório, pela alma de quem lá tem: não senhor, por amor de deus…
- Está bem, está bem rapaz, anda daí beber um caneco, anda cá homem!
- Não senhor, bem-haja, fica para outro dia: escute, lá está o diabo do pombo: Lu-ciiin-daaa, Lu-ciiin-daaa.. E olhe que o rodízio também não para com a cantilena: Aquiii-liii-nooo, Aquiii-liii-nooo, Aquiii-liii-nooo…
- Homeça, rapaz, hã, hã, hã.. – Ria-se o moleiro Gregório, dando meia volta, enquanto Abel alargava a passada de regresso a casa, deitando, por cima do ombro:
- Até à manhã, senhor Gregório, se deus quiser!
- Vai com deus, rapaz. - Ainda retorqui-o Gregório.
Lá do alto, da serrania da Retorta, o sol escapulia-se, escondendo-se, em forma de bola vermelha. Abel não queria voltar a casa noite cerrada. Temia que, em pleno baldio dos urgais, lhe saísse, ao encontro, um lobo, até um gato bravo receava e o regougar da raposa, o pio do mocho e o canto noctívago do noitibó traziam-lhe à memória maus presságios. Por isso, apressou-se, a trote, como o seu cavalo, o mulato, que deixara na corte a descansar das estafas dos habituais carregos de grão e de farinha de e para o moinho, bem como das cargas de fenos e de lenha a que submetia o quadrupede. Ali, em pleno monte dos urgais, entre urzes, giestas, estevas, rosmanos, carrascos e pinheiros, podia imitar o pombo – Lu-ciiin-daaa, Lu-ciiin-daaa; o rodízio – Aquiii-liii-nooo… Lá prosseguiu no seu monólogo, mas parou, repentinamente, ao recordar-se dos reparos que lhe tinha feito o moleiro Gregório. De facto, para quê, por que razão ele se comportava como o seu avô, objecto de troça por causa daquela mania de falar só…
Calou-se e pensou: disparate – os pássaros não falam e o pau do rodízio precisava era de azeite ou de óleo como se costuma fazer nas novas moagens, lubrificando os gonzos…Diabo das máquinas que vieram a acabar com a freguesia, qualquer dia não há quem queira farinha dos moinhos. Vai tudo para as máquinas: a maquia é menor, é rápido e mói todo o ano, o diabo do vapor não falta como a água do rio; a caldeira arde sempre…
Ia com pressa, as pernas galgavam pedras, montículos e de mais obstáculos, pelo carreiro. Ao abeirar-se da fonte comunitária, guindou-se à direita, pelo atalho do olival, rente ao castanheiro grande, na margem do ribeiro, a passarada levantou voo, esbaforida, face à inusitada presença humana, àquela hora, de aconchego a fim de dormir empoleirada. Aquele castanheiro não era apenas a sua árvore das castanhas, era também uma casa, uma morada, um abrigo da bicharada, ali nidificavam: papa-figos, estorninhos, melros, pintassilgos, chapins, até cotovias, em covinhas, ao toro, no chão.
Abel entrou na povoação e não via mulheres, nem crianças, só homens a descansar nas soleiras e paredes dos quintais, conversando e afagando os fiéis cachorros. Abel deu as boas noites e todos responderam num tom diferente, parecia que sabiam algo que a ele escapava. Ao chegar, junto da sua habitação, logo ali, a criançada a brincar no chão, curiosos, uma menina a fazer de parideira e uma outra a imitar o grito de um recém-nascido. Entrou, empurrando a porta semicerrada, lá estava o mulherio, ainda ouviu a tia Soledade: é bem redondinho, benza-o deus…
Pronto! Abel percebeu que a sua Lucinda tinha parido um menino, um filho de ambos e, em voz alta atirou:
- Bem me avisou o pombo e o maldito rodízio!
- Que é homem, que estás para aí a arengar? – Intrometeu-se a sua mãe, A senhora Ana Luísa, enquanto as outras sorriam, principalmente a sua mulher que sorria também, refeita do esforço, e reconfortada com uma canja de galinha, acabada de sorver.
- Eu chamei-te do alto quando me deram as dores, não ouviste… - Adiantou Lucinda, feliz.
Aos pés da cama, sobre uma tabuinha, a fazer de prateleira, permanecia o seu único livro, “Quando os Lobos Uivam” Aquilino Ribeiro, pôde ler na respectiva lombada. Abel atirou, determinado:
- Vai chamar-se Aquilino! Aquilino, como o do livro. – Apontou para a prateleirita…
Pronto! O menino acabado de vir ao mundo, mais um herdeiro dos hábitos e dos costumes das gentes da serra, das courelas, dos lameiros, das hortas, dos soutos e de um infindável de encantos da ruralidade ficou de nome próprio, Aquilino, o menino da serra, do rio e do moinho.
Foi assim que Abel quis registar o seu filho no registo civil da devida repartição, na vila.
O funcionário perguntou:
- Hora e dia do nascimento? - Abel retorquiu:
- Às 7 horas de sábado.
- Sábado, dia 14, foi de manhã ou à tarde? – Voltou o funcionário.
- À tarde.
- Então, nasceu às dezanove, homem…
- Nome completo?
- Aquilino Augusto Bouça Ribeiro.
- Não fica melhor Aquilino Augusto de Bouça Ribeiro?
- Sim, sim senhor, fica melhor, soa melhor – de Bouça Ribeiro, Aquilino Augusto de Bouça Ribeiro.
- Que raio de nome, homem, não podia ser João, Manuel, Luís, António, sei lá, agora Aquilino.- Contestou o funcionário, desagradado com o nome Aquilino.
- Faz-me lembrar o reviralho… - Retornou, ainda, mostrando má cara a Abel.
- Pois, É Aquilino que fica – Respondeu Abel. Pagou, e saiu de cédula do filho, em mãos…