terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Mozinhos, Colectânea, Luís de Sousa Peixeira



Maquela do Zombo, 23 de Abril de 1971

Estimada Zilda, espero que esta minha missiva te vá encontrar bem de saúde, junto dos teus, eu fico bem, graças a Deus.
Zilda, há bastante tempo que te queria dizer que gosto muito de ti, mas tenho tido acanhamento, com receio da recepção, se calhar, não deste pelo meu afecto por ti. Lembras-te de quantas vezes ia à tua secção? Era tudo pretexto para te ver e, se possível, sentir o teu odor, o teu perfume…
Neste momento também poderia usar o argumento de te escrever com o propósito de te solicitar o pedido de aceitares ser a minha madrinha de guerra, conselho que nos foi dado, sobretudo, por umas senhoras, Movimento Nacional Feminino, que nos visitaram em Luanda, assim que chegámos da Metrópole.
No entanto, apesar de ousar formular também esse referido pedido, quero dizer que já não posso calar este ardor que clama por ti: o amor!
Aqui, nas matas do norte da província de Angola, tão diferente do que todos nos diziam ser, tão diferente de tudo o que nos ensinaram na nossa escola, a tantos quilómetros da tua secção do armazém, sinto-me muito, muito próximo de ti, tão próximo que a todo o momento exalo o teu esplêndido perfume, ele veio comigo e entranhou-se em mim, mais do que o medo que a todos nos assola o desconhecido nesta guerra, incompreensível, medonha…
Agora mesmo, que escrevo estas letras no aerograma, sobre um caixote de armamento, te recordo, na sala de aulas da nossa escola, com o teu dedinho, apontando os rios da província de Angola: se tu soubesses como tudo é diferente do que o nosso professor nos ensinou… Não digo que seja mais feio ou mais lindo, o que te afirmo é que este mundo é diferente do nosso, aí, e eu tenho saudade de ti e da nossa infância, da tua voz, do teu sorriso, até do teu alheamento por mim, dos teus trejeitos que pareciam sacudir a minha insistência…
Quero muito regressar são e salvo, peço-te, se não for o amor, pelo menos comiseração e, assim, rogares a Deus por mim.
Ainda ontem tivemos uma emboscada, quando fazíamos uma picada e a desgraça levou quatro companheiros à morte e nove feridos graves, evacuados. Não sei se te lembras do Chico da Madragoa, foi um dos vitimados, custou-nos imenso o desastre e, agora, estamos sempre à espera do pior…
Entretanto, apanhámos um turra e uma mulher, ele era apenas uma criança e ela uma qualquer, andrajosos e insignificantes: uma frustração para quem julgava, como eu, que os turras eram pretos musculados e russos comunistas.
Já fomos a umas tabancas, musseques, como se diz aqui, e só se encontra gente descalça e despida, gente pobre, pretos feios e raparigas esbeltas. Não nos afrontam, fingem-se amistosos, mas sabemos que colaboram com os turras dos quais só vimos os que citei, ela ficou cativa, até ver, e o rapaz foi abatido, ninguém consegue tirar uma palavra deles…
Bem, querida Zilda, eu para aqui com desgraças que, eventualmente, chocaram a extrema sensibilidade de rapariga católica, temente a Deus, Nosso Senhor. Não me esqueço do nosso dia de comunhão solene em que ias tão linda, com o teu vestido de pomba divina, divina como sempre te imagino para a vida toda e, quem me dera, para a nossa vida em comum, criando os nossos filhos, longe deste inferno de imbondeiros…
Aceita, pois, este pedido, se te aprouver, e pede a Deus que nos abençoe e nos dê a Graça de nos juntar, relembrando o companheirismo que nos foi transmitido nas homílias e na sã convivência de escuteiros que ambos temos percorrido, mas, no momento, nos apartou na distância física.
Sem outro assunto, por agora, envio cumprimentos para os teus pais e irmãos, para a tua avó, do teu sempre Joaquim.
Até à volta do correio: Joaquim Afonso Rato, soldado 24789, da infantaria 16, companhia L12, Maquela do Zombo, Angola.





Ambriz 26 de Setembro de 1966
Minha Ana Maria, da nossa nova base envio-te novas, com imensas saudades, deste que, na distância, te deseja toda a proximidade, física e espiritual, aliás, espiritual penso que estamos mais juntos do que nunca tínhamos estado, fisicamente, só no pensamento, sinto ainda os teus ardentes ósculos e os teus deditos por mim acima e abaixo.
Como deves calcular aqui as notícias chegam retardadas e escassas, lá onde temos andado, no mato, nas zonas da vila Henrique de Carvalho, Veríssimo Sarmento e Nova Chaves, nada chega dos acontecimentos do mundo, só, de regresso, em Malange, fiquei, mais ao menos, a par dos resultados da nossa equipa no mundial, entretanto, o meu colega Adelino tinha-me escrito, mas só há dois dias me entregaram o aerograma.
Já tenho pensado, cá para os meus botões, se valeu a pena ter enveredado pela carreira de oficial miliciano, talvez se se tratasse de mero praça, soldado raso, poderia também ter obtido licença do exército, ou seja, talvez tivesse feito parte da equipa no jogo com a Inglaterra, pelo que entendi, pela subtileza das frase do Adelino, a selecção de Portugal jogou com uma linha de ataque muito desgastada e, nesse caso, quem sabe se o seleccionador me teria posto a jogar. Por outro lado, havia lá outros avançados em forma e, quiçá, mais valorosos do que eu, por exemplo, o Lopo e foram para a bancada ver o jogo, parece que na avançada só podiam jogar os do Benfica, os melhores, só por que são da nossa equipa, o Sporting, ficaram de fora, mas enfim, foi pena, se calhar, não haverá outra oportunidade e logo que o nosso governo se empenhou tanto em mostrar ao mundo a nossa equipa, desconhecida e desvalorizada, antecipadamente, até por causa da guerra.
Atrás dizia-te, querida Ana, que estamos colocados em Ambriz, perto de Luanda, posso-te garantir que foi como se tivesse renascido para a vida, agora sim, apesar das responsabilidades que cabem ao desempenho de alferes, já vejo alguma alegria e, sobretudo, crença no futuro que, como sabes, passa por voltar à tua companhia, que almejo para o resto das nossas vidas, construindo família e cuidar da ganadaria.
Por falar em ganadaria, chegaram-me aos ouvidos de que em Nova Lisboa foi manejado um bom toiro com os ferros do meu pai, ainda lhe não perguntei mas fá-lo-ei, com certeza, bem queria ter assistido à corrida, todavia, isso seria um luxo, naquelas bandas, os terroristas estão muito activos. Por lá actua um afamado chefe a que tratam por Pedro. Certamente, eles serão conhecidos por nomes fictício, dizem que faz parte da estratégia de clandestinidade em que vivem, assim, como as terra que atrás mencionei em que o nativos designam por diferente toponímia, por exemplo, nunca dizem Nova Lisboa, mas sim Huambo, ouvi dizer que se alguma vez escorraçarem os portugueses que mudam o nome à maioria das cidade e vilas.
Minha Ana, deliciar-me-ia relatar-te muito mais destas paragens e, sobretudo, enfatizar-te o meu amor e saudades imensas que sinto de ti, minha adorada ninfa da nossa Avenida de Roma. Folguei saber que estais de saúde e aprecio as tuas missivas de ternura e tento retribuir, mesmo com a minha falta de jeito, contudo, sentidamente, posso-te garantir que és e serás sempre o amor da minha vida. No próximo aerograma conto descrever-te alguns lugares de Luanda: é bonita e, a maioria dos nativos, fala outra língua, um dialecto que designam por quimbundo. Pela falta de espaço, termino com incomensuráveis saudades e beijos. PS, não te esqueças, peço-te algumas novidades do Sporting.




Bafatá 12 de Dezembro de 1969

Minha saudosa Lucinda, rogo a Deus que estas letras te encontrem bem, eu fico como Deus, Nosso Senhor, quer.
Como vês por a letra, tive que pedir a outro camarada para me escrever, ai se soubesses como me arrependo de não ter ido à escola, quem não sabe é como quem não vê, sou um burro que nunca aprendi uma letra do tamanho dum boi.
E o nosso filho? Espero encontrar grande, cada vez que me lembro que só tinha três meses quando embarquei, e agora que já lá vão três anos…
Graças a Deus que já fomos desmobilizados, estamos em Bafatá e voltamos no Uíge, dizem que é melhor barco do que o Quanza que nos trouxe de Lisboa, até se diz que demora menos, não sei, para mim, desde que volte bem… já basta o desastre de jangada que tivemos quando regressávamos de Bamdadinca, afogaram-se mais de quarenta camaradas, salvei-me por ter embarcado noutro barco, olha, lá ficou o Monteiro, de Boticas, que me escreveu sempre as cartas, até hoje, por isso é que pedi o favor ao nosso furriel Veríssimo que é de Valpaços e, graças a Deus, volta connosco, deves saber de quem é família, dos do lagar da Corga. Por falar nisso, já andam aí na azeitona? Conto ir ainda ajudar que bem saudade tenho de varejar, estender as lonas erguer a azeitona e carregar as bestas…
Agora, em Bafatá, já comemos qualquer coisa. Mas há que tempo só andávamos à base de ração de combate, desde Nova Lamego nunca mais nos deram outra mistela, em Gabu, Banadica, Madina do Boé, Teixeira Pinto, nem água tínhamos quanto mais comida de panela, só latas de ração de combate, por isso, não vejo hora de comer convosco. O teu pai quando pensa matar o porco? Ele que não mate antes de eu chegar, porque não quero passar sem o sangue cozido e os torresmos frescos na sertã…
A minha mãe escreveu-me na última carta, que ainda o desgraçado do Monteiro me leu, dizendo que fazia tenções de matar por volta do Natal. Se Deus quiser, passamos todos juntos. Já aprendeste a fazer as filhós com a minha mãe? Num quero da maneira que faz a tua, nem a tua tia…
Olha, não me escrevas porque deve estar para breve a nossa partida, não é preciso que me vás buscar a Lisboa, ias gastar um dinheirão e tempo e, se calhar, num há quem fique com os Manuelzinho. Digo que não deve tardar o embarque porque já entregamos as armas e já recebemos ordem para entregar o fardamento na Carregueira, aí, na Metrópole, depois do desembarque. Até isso temos de devolver, nem umas botas posso levar para aí tirar o estrume às vacas e andar à azeitona que deve estar frio.
Também digo que vamos de abalada porque os pelotões de pretos que faziam parte do nosso batalhão já foram incorporados na companhia de maçaricos que nos vieram render, os desgraçados foram para Piche, onde os turras atacam mais. A nossa companhia volta mais pobre, com menos cinquenta e dois camaradas que cá ficaram nas minas e nas emboscadas…
Agora, com o desejos de vos abraçar despeço-me, até breve de quem te quer beijar para sempre, do teu Joel Francisco Ferreira.