quarta-feira, 25 de setembro de 2019
Lisboa Colonial Colonizada - Mozinhos
Lisboa Colonial Colonizada
1 «Olhó Diár Lisboa, Ó Polar, Ó Capital; Ó Polar Ó Lisboa Ó Capitale…» — apregoava o ardina, à esquina do Largo do Calhariz com a Rua Luz Soriano. Eram dezanove horas, quase cinquenta minutos. Caminhando desde a Rua Saraiva de Carvalho, dobrei à esquina da Barroca. Senti o bafo das bifanas encharcadas na mistura de banha de porco com óleo fula. Gordura saturadíssima numa frigideira besuntada que nunca tinha sido limpa a esfregão. Cada vez que as bifanas emergiam aquela mixórdia, o senhor Fernando acrescentava uma colherada de banha e mais uns decilitros de óleo. As latas de banha, os frascos de óleo e umas garrafas de vinho branco de Almeirim, eram depositadas numa prateleira, abaixo da mesa dos bicos do fogão de boca larga a gás butano. Tudo isso espalhado atrás da vitrina larga e embaciada, bem calafetada através dos amontoados de gordura solidificada nos cantos. Frinchas e múltiplos orifícios. Nas superfícies lisas, o senhor Fernando passava a espátula, raspando-as por camadas. Apesar de sentir as membranas do estômago coladas às costelas e uma voraz larica, o rançoso odor quase me fazia vo- LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 8 mitar. Esqueci-me da fome que sentia e entrei na porta ao lado da taverna. Era a segunda vez que lá estava. No primeiro andar, já decorria o plenário de delegados e activistas sindicais. Não tinha nada que enganar. No varandim, um pendão de ráfia tinha inscrito: “Unidade na Acção – Sindicato dos Trabalhadores Tipógrafos, Litógrafos e Ofícios Correlactivos do Sul e Ilhas”. Na mesa, virados para a plateia repleta, Aldino, ladeado do Silva e do Trigueira, introduzia a ordem de trabalhos sem hora final determinada — enquanto se registassem intervenções, ninguém arredaria pé, e, se o ousasse, não seria censurado verbalmente, mas, alvo de olhares reprovadores sinónimo de “rachado” (fraco, pouco combativo, desistente, denunciante). A maioria dos elementos — quase todos masculinos —, ostentava cabelo e barba compridos e desalinhados. Identificação revolucionária, à maneira do comandante Che-Guevara. Porém, Aldino, era um “cara lavada” contrastando com o barbudo Silva, já o Trigueira, apresentava um bigode farto, um pouco à laia de alentejano e, porventura, à moda de José Estaline. Já mais próximo, sentado na única cadeira vaga, a roçar a primeira portada a seguir à mesa dos três dirigentes sindicais, pude verificar que Aldino quase que não tinha barba. Na minha terra, um homem assim, sem barba, era como um bode com cara de cabra. Embora se tosquiasse semanalmente ou de quinze em quinze dias ou até de mês a mês — como se fazia anualmente aos carneiros —, todo o homem a sério teria de ter barba, caso contrário não se livraria da conotação de animal afeminado e com aquela vozinha que possuía, não faltaria falatório. Aldino era, contudo, oriundo da Madeira e, lá, certamente, não se estranhariam com um homem de cara lavada, de cara-de-cabra e voz fina, de cana rachada. Enquanto Aldino, presidente, fazia uso da palavra, muitos LISBOA COLONIAL COLONIZADA 9 cumprimentavam-se, outros acomodavam-se, geralmente escolhendo companheiros e simpatias. Como borboletas a chegarem-se para a luz, todos procuravam aproximar-se dos mais activos e palavrosos. O presidente granjeara a fama de paladino e perspicaz. Por isso, tinha sido eleito em assembleia constituinte, logo após a deposição da comissão directiva de bufos (gente afecta ao regime salazarista e colonial) que ali tinha estado desde os tempos de Salazar e foi permanecendo, durante toda a governação de Marcelo. — Camaradas! Camaradas! — Elevava a voz, tentando abafar o zunido da plateia. — Um ponto à mesa! — Solicitou Valente, lá do meio dos delegados e activistas. — Tem a palavra, mas só para interpelação — gritou Trigueira, erguendo-se e retornando rapidamente com as nádegas à cadeira. — Camaradas! Camaradas! Silêncio. Respeitem as intervenções, senão é melhor irmos todos para casa. — Reagiu novamente o presidente. — Para casa? — Gritou Albano, lá da última fila. — Em casa estivemos nós há quarenta e oito anos. Vamos prá rua, todos prá rua. — Assim não há condições de prosseguir com os trabalhos. Peço cinco minutos à mesa. — Ramos levantando-se do meio da primeira fila de cadeiras, defronte de Aldino. — Pedido concedido! — Condescendeu Silva, mesmo perante ao ar de espanto e de trejeito reprovador, quer do presidente, quer de Trigueira. — Ou os trabalhos continuam ou vamos embora, eu tenho muito com que me entreter, tenho lá uma garrafa de uísque que LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 10 me dá mais gozo do que estar à espera de quem não tem nada que dizer. — Rabujou Valente, gerando um coro de vozes em surdina, mas sem contestação frontal, dados os receios que tinham da eventual reacção de Valente. Assistia eu ao segundo plenário da minha existência. Não sabia bem o que representava tudo aquilo e os intervenientes eram praticamente os mesmos. Por isso, reconhecia-lhes a cara, relembrando também o nome e a respectiva voz: no anterior plenário, cada um que pedia a palavra, identificava-se por nome ou por apelido e acrescentava a designação da empresa de onde provinha. Entretanto, como isso já tinha ocorrido há alguns meses, tudo parecia mais estruturado e os activistas mais familiarizados. Notava-se que se tinham constituído grupos ou facções, porventura, por simpatia ou afinidades profissionais. Decorridos os cinco minutos de muito barulho, de arrastar cadeiras e síbilos, Rosalina levantou-se da ala esquerda da segunda fila, com o indicador da mão direita sobre o pulso canhoto e falou alto, em voz feminina mas firme: — Camaradas! Agora tem a palavra o camarada Aldino. Queremos ouvir e fazer as nossas intervenções, sem perda de tempo, que a nós mulheres não basta sermos exploradas pelos patrões, senão ainda pelos companheiros e pelos filhos a quem temos de fazer o jantar e cuidar da roupa. Todos encaixaram, alguns sorriam, outros praguejavam sussurrando. Mas fez-se silêncio. Pelo que, o cara-de-cabra sempre em pé, à espera do momento. De seguida retomou: — Camaradas, amigos e companheiros de luta, a convocatória distribuída não saiu a tempo de ser enviada para os locais de trabalho, por via da falta de meios de reprodução. Como sabeis, a comissão de fantoches do fascismo não deixou ao sindicato as condições mínimas para que possamos dar resposta LISBOA COLONIAL COLONIZADA 11 aos legítimos anseios dos trabalhadores. Por proposta da última reunião de direcção, pomos à aprovação da assembleia a compra de um estê ncil. — Quem vota contra? Quem se abstém? — Interpelou Trigueira concluindo rapidamente ao levantar-se e a baixar o cú à cadeira. Tão rápido que mal deu tempo de reacção à assistência: — Aprovado por unanimado! — Rematou. Contudo, quando Aldino já se aprumava para prosseguir no uso da palavra, Albano, de um salto, levantou-se: — Alto lá, camaradas! Quero fazer uma proposta de alteração. — Chuta, camarada — retorquiu o presidente. — Então aí vai: onde se lê “es-tên-cil”, deve ler-se máquina tipográfica de pinças. — De pinças?… isso já não presta! — Barafustou Sílvio, o encadernador. De seguida, um coro de vozes, atabalhoadas, sobrepunha-se: «Offset, offset». De repente, a balbúrdia tomou conta da assembleia, todos falavam e discutiam máquinas e processos tipográficos e litográficos, sem vislumbre de consenso à vista. Resende, o transmontano da tipografia Guide, foi ao palanque e gritou numa voz forte e claramente denunciadora da origem geográfica, pelo x no s. Conseguiu estabelecer assim o silêncio. — Camaradas! Camaradas… — antes que empreendesse o seu discurso, já o coro de sussurros avassalava na sala. Trigueira levantou, resoluto, o traseiro da cadeira e vociferou, à alentejana de Castro Verde, voz pousada e autoritária: — Camaradas… Na minha terra quando um burro zurra, os outros baixam as orelhas. Derrubámos o fascismo, intervin- LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 12 do no modo e no tempo adequado. Só faremos a revolução de forma ordeira, firme nos propósitos e em defesa da classe operária. O trabalho colectivo é aquele que nos levará à vitória final. Prosseguindo a ordem de trabalhos, como bem disse a camarada Rosalina, homens e mulheres juntos vergaremos o capital. Secundando o camarada Ramos, o camarada Valente e sobretudo os camaradas Resende e o Aldino, proponho a análise do segundo ponto da ordem de trabalhos, ou seja, a eleição da lista dos camaradas responsáveis pela negociação da contratação colectiva. Serão estes camaradas que elaborarão um caderno reivindicativo vertical. Nós pensamos que essa lista é aquela que melhor conhece e melhor saberá defender os interesses da classe, na unidade da acção, sob a direcção da CGTP, a central da classe operária e de todos os trabalhadores. Viva a CGTP! — Viva! — Gritaram. — Viva a classe operária — berrou a plateia em uníssono. — Quem vota a favor? — Interveio Aldino, por instantes todos se entreolharam, a ver quem se adiantava. Avançou Ramos, erguendo o braço direito, seguindo-se o Valente, ambos constando da lista proposta, mas só depois que a Rosalina elevou o seu braço, acima das cabeças masculinas, é que os outros se decidiram pela aprovação. Sem resmungo, levantei o braço a meia altura, sem ter a certeza de ter sido notado. — Quem se abstém? Quem vota contra? — Albano, não vi-te a erguer o braço, absténs-te, votas contra ou a favor? — perguntou Silva, que se tinha calado desde do momento em que autorizara a pausa de cinco minutos para serenar ânimos, em dissonância com os colegas de mesa. — Abstenho-me — retorquiu. Albano, estava visivelmente mal-humorado, alisando as LISBOA COLONIAL COLONIZADA 13 guedelhas ralas e oleosas que teimavam em tapar-lhe as faces chupadas e macilentas, denotando precoce envelhecimento, quiçá, por efeitos nocivos do chumbo com o qual, no quotidiano, mexia, expirando-o, de manhã à noite e, noutro tempo, fazia horas extraordinárias a compor caracteres alinhados em ramas, prontos para entrarem nas máquinas de impressão, para gáudio do patrão, insaciável e ávido de lucro. — A lista foi eleita por maioria, com uma abstenção e nenhum voto contra. — Informou Trigueira, já em pé, arrumando os papéis, preparando-se para sair. — Está encerrado o plenário. — Sentenciou Aldino. Alguns ainda se dirigiram aos membros da mesa com graças e bajulices, outros saíram atrás de Valente que se ia arvorando em autoridade no saber de sindicalismo e dotado de especial oratória, por isso, sofismava para impressionar e subestimava os aparentemente “mais humildes”, enchia o peito de ares de retórica barata. Olhava por cima dos camaradas como quem dominasse a doutrina revolucionária de uma classe de pacóvios e, ao mesmo tempo, detinha a bolsa e o nível de vida de um patrão dominador, mas prosseguia a pé, ia tomar o autocarro que o transportasse para Sapadores. Quase todos regressavam à casa de transporte público, exceptuando o Silva nos dois cavalos até Rio de Mouro, depois de um dia de trabalho e duas horas de plenário que, afinal, só serviu para autorizar a direcção a comprar uma maquineta de reprodução documental e apresentar um grupo de, supostamente, especialistas em negociações contratualistas, junto do novo Ministério do Trabalho. Alicio, seguia Aldino e Trigueira como espécie de testa de ferro, mais por força do seu corpanzil do que pelos dotes de paladino, era como se fosse a consciência da dupla. Funcionava como um terceiro elemento da conjura. LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 14 Uma arreliadora vontade de urinar tolhia-me os movimentos, perscrutei em volta e nem sinais de retrete. Quis subir a escada ao segundo andar e logo o cara-de-cabra me atirou: — Camarada, a tesouraria já está fechada. A toda a velocidade galguei degraus de madeira, de dois-a- -dois, mas ainda ouvi a Rosalina, ao lado do seu companheiro, defender que o José Cid é que tinha voz de cantor, apesar de reaccionário, gostava dele, sobretudo a cantar a moda dos vinte anos. O marido sorria e defendia as cantigas de intervenção do Fanhais. Um outro rematou, por cima do ombro: «Fado! Fátima! Futebol! É disso que nos deram!» Corri, voltei à esquerda, aflito para mijar. Na taverna só havia serradura no chão a sugar vinho, escarros, beatas e lixarada, deitada sobre os azulejos encardidos cuja cromática original tinha desaparecido. Não, não sabia se tinha retrete — mesmo que existisse, certamente, federia a sério. Subi a Travessa da Queimada e eis que deparei com a tasca do galego, tão ou mais sabuja do que a do senhor Fernando. O mijatório situava-se à esquerda. Logo que abri a portinhola, assolou-me um cheirete de porcaria antiga: cagava-se e mijava-se para o mesmo buraco e parecia que ninguém acertava com ele. Atrás do balcão havia um lavatório, encardido. A torneira estava avariada, faltava-lhe a borracha vedadora, como não sabia, rodei à esquerda até verter um fiozinho de água e lavei as mãos, utilizando um pedaço de sabão artesanal de gordura e soda cáustica. Quis servir-me de uma toalha, mas assustei-me com o aspecto sabujo e o fedor, pelo que tentei fechar a torneira: impossível, já não rodava mais e não estancava. O Martins, galego, olhou de esguelha e disse: «Deixe! Deixe! Ninguém o mandou abrir.» Atirou, grosseiramente, e com a toalheca que LISBOA COLONIAL COLONIZADA 15 utilizava de avental, cobrindo a torneira, deitou a manápula. Aquilo até rangeu e secou a bica. Sem saber o que fazer, mas aliviado daquela aflitiva necessidade fisiológica, pensei contrair despesa, para compensar. Fome tinha, porém o panorama parecia desastroso. Pedi uma sandes de presunto e um copo de vinho. — Tinto ou branco? — Perguntou, já parcialmente afável. — Tinto, se faz favor. Ripou dum facalhão, deu-lhe duas afiadelas no mármore do balcão, cortou duas lascas dum pedaço de presunto, retirado de umas quantas caixas e tralhas, baixando-se, apanhou um casqueiro dum saco de papel pardo. Abriu-o ao meio com o facalhão e introduziu o presunto para dentro. — Aí tem, o vinho é do corrente ou de Almeirim? — Do corrente, se faz favor. Encostado ao balcão, indiferente à imundice, ia devorando o naco de pão com presunto salgado. O vinho era áspero, carrascão, e desagradável. Para não colar o lábio inferior ao vidro do copo, sorvia como se bebesse dum poço, com os beiços no líquido. Uma senhora, nitidamente, envelhecida, certamente, pelo mau viver, entrou e fez pedido: — Martins, dá-me um copo três e um ovo cozido. — Obo num hay, pero tengo bacalhau frito. — Respondeu num misto de galego, castelhano e português alfacinha. — Martins, avia-me uma sopa — solicitou um sujeito magro, de meia-idade, de roupa velha e engelhada, encolhido de frio. Tinha o sapato do pé direito descolado na lateral e acabara LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 16 por sentar-se na cadeira que encontrou à porta da retrete fedorenta. O galego puxou a única posta de bacalhau frito, de dentro de uma espécie de gaiola de vidro, e esticou-a à senhora. Ela, pegando-lhe com dois dedos, começou a trincar. Devagar, pude verificar que tinha dificuldade em mastigar, dada a falta de alguns dentes. Dava voltas ao bacalhau na boca e ia cuspindo as espinhas para o chão, tapando a serradura. O homem magro e meio andrajoso continuava esperando pela sopa que o Martins colocara a aquecer — o caldeiro sobre o bico do fogão começava a esfumar, derretendo a bola de sebo que ele tinha deixado aí cair, através de uma roldana, presa ao tecto. De uma palmada, o galego retirou a bola de sebo do caldeiro e fez subir novamente a roldana cujo sebo ia pingando sobre o balcão e a própria camisa, aos quadrados, do galego. Já me acostumava ao nauseabundo odor da taberna do galego Martins, por via do espectáculo que ia presenciando e, mentalmente, passava em revista o reboliço ocorrido no plenário, quando a senhora se abeirou mais de mim e disse, baixinho, quase a medo: — Vamos lá, filho? — Ah, desculpe, não percebi, diga… — Dormir! Vai dormir pá, percebeste? — Pagou e saiu irritada. 18 2 Peres, o patrão, fartava-se de contratar raparigas para a encadernação e havia nelas uma particularidade: provinham da zona do Casal Ventoso, Meia-Laranja, Cascalheira, e uma ou outra de Alcântara e de Campolide, mas as do escritório chegavam de Alvalade. Disse-me Chispe, o impressor de offset: «Já viste? Temos mais uma colega.» — Eu a conheço, é da Maria Pia. — Intrometeu-se o Careca pau mandado. — Não, ainda não tinha reparado… — Elas eram mais de vinte e enquanto umas chegavam outras partiam. A experiência e o saber empírico não permitiam ultrapassar, aparentemente, fáceis obstáculos técnicos, porém, tentava sempre até à exaustão. Naquela manhã não havia maneira de afinar convenientemente a Roland Ultra, formato, 70x100. Por isso, não estava com paciência para futilidades nem mexericos. Entretanto, apareceu por ali a Fátima, fingindo que transportava folhas impressas para a máquina de encadernar, segredou-me ao ouvido, roçando os seus lábios que mais pareceram LISBOA COLONIAL COLONIZADA 19 beijos: «Temos mais uma cartonageira!» — Cartonageira? — Sim. Ai não sabes?… ele agora só faz contractos de cartonageiros, paga menos… olha e esta é mulata, como gostas de pretas, vê lá se vais ao sindicato. Eles são do teu partido… — Do meu partido, então qual é o meu partido? — O PC, como eles, pelo menos, é o que se diz por aí. — Não, por acaso, até sou simpatizante do MES. Mas vou tentar ver essa questão, falo com o Aldino… — Vê lá isso, cheira a esturro. Por mim elegia-se um delegado sindical. — Pode ser o senhor Bartolomeu… — Não, ele já disse que não aceita, só se fores tu ou o Cardozo. Meio-dia a tentar fazer com que o raio das folhas de IOR, de sessenta gramas, entrassem direitas no marginador, encostassem devidamente ao esquadro e às balizas, fossem bem presas pelas garras dos braços, sofressem a respectiva compressão entre o catechu e o cilindro impressor e, por fim, caíssem correctamente no carro. Depois de um almoço na tasca da Hortense, esfarrapando uma cabeça de corvina a meias, com chispe, na companhia do Rato, que preferiu panados de peru, voltei refeito para a Roland Ultra, com mais ânimo, pronto para imprimir durante toda a tarde, páginas dos putativos livros de aventuras para a Agência Portuguesa de Revistas. O Rato passeava-se da máquina em laboração, sob vigilância do auxiliar, e o espelho do lavatório de mãos. Disse ao LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 20 Alcântara: — Pá, aquela vai cair aqui no anzol. Aposto que não. — Vá, vale uma bojuda — caneca de cerveja. — Por mim até aposto um bilhete Sporting/Benfica, o Careca conhece aquilo, pá: é da Maria Pia e andou a estudar na Sidónio Pais, ouve lá: dali não levas népias!… — Vais ver, eu bem mordi os olhinhos da mulatinha… — Aí o Bairro Alto é que tem a mania das pretas e das mulatas: faz-te a ela, meu. — Não sei de nada, nem sequer a vi. — Respondi, pouco interessado no assunto. Entretanto, a Roland Ultra rolava a seis mil à hora. Era carregar o carro do marginador, abastecer de água para a molha e a tinta preta no tinteiro e deixar empilhar no carrinho de saída. Ia tirando uma prova: verificava o acerto, o nível da tinta e da água e deixava rolar até à última folha a entrar no marginador. Eis que apareceu a Fátima acompanhada da nova colega, logo o Rato saiu ao encontro delas. — Então, não me apresentas a nova colega? — Olha, Fenícia, este é o Carlos. — Apresentou Fátima. — Olá… — Correspondeu. — Olá, Fenícia, seja bem-vinda, flor Nícia. — Adiantou o Rato, atrevidote, sem graça. — Fenícia, sou Fenícia, ouviu bem? — Respondeu ela, um pouco incomodada com o Rato que lhe quis beijar a face. — Luís, cá está a nova colega. Sempre queres ir ao sindica- LISBOA COLONIAL COLONIZADA 21 to saber aquilo? — Apresentou e inquiriu Fátima, enquanto Fenícia esboçava um sorriso tímido e belíssimo, de olho meio em mim, meio na folha impressa sobre a minha mesa de trabalho. — Tá bem, depois falo convosco. — Respondi, atrapalhado face à presença da nova colega que me deixou desajeitado. 23 3 Depois de duas noites e dois dias de plantão, à porta do Ministério do Trabalho, centenas de trabalhadores gráficos regressaram à casa com a promessa do Secretário de Estado, do dito ministério, em como, finalmente, havia acordo, e o almejado contracto vertical das indústrias gráficas seria assinado pelas partes (governo, sindicato e patronato). Aldino, Trigueira e Alicio saíram das negociações arvorados em heróis. Eles próprios se tinham conluiado nos diferentes pontos de vista, de maneira que imperaram sobre os demais elementos da comissão negociadora. O Secretário de Estado era militante do PCP e o patronato adoptou-os, preterindo outros mais radicais como o Valente. Para comemorar o feito, a comissão logo programou uma reunião a fim de fazer o ponto da situação e lançar uma campanha de esclarecimento aos sócios. Todavia, um assessor do Secretário de Estado procurou Aldino e disse: — Camarada, o partido pensa que é urgente uma reunião no Vitória, amanhã às dezoito. — Vitória era a designação do Centro de Trabalho do PCP. LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 24 — Mas, camaradas, temos de fazer o ponto da situação, precisamente a essa hora lá no sindicato, combinámos há pouco. — São directrizes do comité central, marque essa reunião para depois. — Tá bem camarada, e quem vai à reunião do partido, todos? — Não, camarada, só camaradas de confiança: tu, o camarada Trigueira e o camarada Alicio e… — E o Albano, o Ramos, o Sílvio e o Valente? — Camarada, o partido pensa que são esquerdelhos. O Silva também pode ir, parece-nos um quadro a ganhar, não achas? — É sim! É um quadro a aproveitar, e a Rosalina talvez também se possa ganhar, até o Luís… — Mas essa é mais para as campanhas de rua: tem boa voz e é mulher, convém recrutar algumas mulheres e jovens — sentenciou o dirigente comunista. — Esse Luís não o conheço… A hora estipulada, no Centro de Trabalho Vitória, apresentaram-se para reunião: Aldino; Trigueira; Alicio; Silva; Resende; Ramos; Rosalina e Luís. Ela por ser mulher e Luís só por ser jovem. Esperámos um bocado, sentados em cadeiras de madeira, dispostas numa sala rectangular e encostadas à parede, em toda a sua extensão. Ao centro da sala estava uma mesa pequena e baixa, sobre a qual o Jornal Avante mostrava o título em letras garrafais: “A TERRA A QUEM A TRABALHA”. Aldino e Trigueira assumiam ares de homens da casa. Fizeram cumprimentos, acenando a uns e a outros. No espaço, sussurravam e Alicio achegava-se para eles, sorrindo e gracejan- LISBOA COLONIAL COLONIZADA 25 do. Os restantes, Silva, Resende, Ramos, Rosalina e Luís, mantinham-se a certa distância. Eramos convidados. Repente chegou o tal dirigente, o assessor do Secretário de Estado. — Boa tarde, camaradas. — Boa tarde camarada — responderam em uníssono Aldino, Trigueira, e secundados, fora de tempo, por Alicio. Os restantes apenas responderam ao cumprimento com um simples boa tarde. Eu não disse nada. Também ninguém notou. — Vamos para a sala de reuniões. — Ditou o assessor. Pelo corredor abeiraram-se do elevador. O dirigente premiu o botão e, à chegada do ascensor, abriu a respectiva porta. — Só podem ir quatro! — Disse — Os outros esperam e vão até ao quinto andar onde um camarada irá à vossa busca. Adiantou-se o assessor do Secretário de Estado e logo Aldino e Trigueira o seguiram. Alicio colou-se a eles, com receio que o deixassem para trás. No quinto piso, o dirigente decidiu levar os três sindicalistas para a sala de reuniões onde já estavam outros reunidos. Pude ver alguns deles através da porta entreaberta. No topo da mesa, um militante de bigode ordenou que entrasse apenas o assessor e o restante que o acompanhava iria de esperar no patamar, junto ao elevador. Rui, o dirigente de bigode, esperou que o assessor se acomodasse e depois, passou a proferir convictamente, como cumprindo uma ordem superior. — Camaradas, o papel dirigente da classe operária é determinante! O partido pensa que cada militante assuma as suas responsabilidades de lealdade sem vacilar. Cabe ao nosso partido conduzir as massas rumo à vitória final, portanto, o Comité Central deve distribuir todas as tarefas de acordo com as capacidades e características de cada militante. Antes de alargar- LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 26 mos o plenário, proponho que o camarada Victor, Secretário de Estado, nos dê a sua opinião acerca dos camaradas que vêm do Sindicato dos Gráficos. O camarada Victor já reuniu com alguns deles no Ministério do Trabalho e, portanto, tem uma ideia formada. — Eu proponha uma descrição breve, para os não fazer esperar — adiantou-se Belmira. — Então, aí vai: julgo que o camarada Aldino reúne condições de coordenação. O camarada Trigueira é do Alentejo e Castro Verde… é de confiança e galvanizador. O camarada Alicio é de origem operária, o pai trabalhou na Cintura Industrial de Setúbal e até fez greve no tempo do fascismo, parece-me um bom controleiro de célula. Com o Aldino e o Trigueira na Direcção, parece-me bom para distribuir o Avante e receber as quotas. Os outros, julgo que, ainda não estão totalmente ganhos para a luta do partido. É melhor chamar o Aldino e o Trigueira para falarem deles. — Nós ouvíamos a tudo aquilo no lugar aonde nos haviam deixado. Depois de serem chamados, os dois adiantaram-se em direcção à entrada da sala de reunião, enquanto Alicio se mostrou incomodado, mexendo-se, sem saber o que dizer nem fazer: aflito com a hipótese de ser relegado para o grupo dos secundários. Belmira também embaraçada, notando a atrapalhação de Alicio, proferiu palavras sem convicção, nitidamente por impulso. — Tu também podes entrar, camarada… Alicio sorriu, parecendo que o sol tinha raiado e logo entrou, colado aos colegas predilectos, todo feliz, ainda deu uma ligeira olhada aos preteridos, como que dando sinal de que se distanciava dos anónimos, dos vulgares. LISBOA COLONIAL COLONIZADA 27 Cá fora, quedámo-nos à espera de alguém que também nos solicitasse. Incomodados pela desfaçatez, mas calados e conformados, já que estávamos à porta de uma reunião dirigida por pessoas especiais — quiçá, figuras cimeiras da luta contra o fascismo, derrubado, precisamente por resistentes, heróis, lutadores destemidos que nas maiores agruras não tinham tido pejo em colocar as suas vidas ao serviço da luta pela liberdade e pela revolução. A voz do camarada de bigode sobressaiu de um arrastar de cadeiras e de breve e imperceptível burburinho: — Camarada Aldino o partido entende que a luta dos gráficos já atingiu um grau superior pelo que se exige uma resposta firme na organização dos trabalhadores. Pensamos mesmo que deves fazer parte da Direcção da CGTP, e o camarada Trigueira e o camarada aí — dirigindo-se directamente a Alicio —, como te chamas camarada? — Alicio, Alicio! — Respondeu ele, denotando alguma mágoa pelo facto de não ter sido reconhecido pelo prelector. — Bem, pensamos que vós, os três, deveis fazer parte da Direcção do sindicato e membros de ligação à CGTP e ao nosso partido. Temos que formar uma lista capaz de derrotar os do PS e os esquerdelhos. Aldino, os camaradas que estão lá fora são de confiança, têm condições para fazer parte da lista do partido, têm condições para levar a luta aos locais de trabalho? É preciso que sejam camaradas com aceitação e prestígio, nas suas empresas. 29 4 Sexta-feira, no fim de mais uma semana de trabalho, vagueava pelo Rossio, Restauradores e, subindo a Rua do Carmo, na direcção ao Chiado, direito ao Largo do Camões, apareceu- -me, por acaso, o Silvestre. — Eh pá, queres ir ao convívio da JOC, amanhã? — Onde? — Perguntei. — Nos Olivais, vais comigo a bute! — Tá bem, não tenho nada combinado… As portas do seminário abriram-se à comunidade para fins desportivos e actividades diversas de caracter recreativo. Foi nesse contexto que conheci o espaço ajardinado intramuros do seminário. A primeira vez tinha sido ainda na vigência do regime colonial marcelista. Tinha bem presente esse domingo, à tarde de Maio de 1973, em plena relva ao sol, ouvindo de surpresa, clandestinamente: «Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar. Não há machado que corte a raiz ao pensamento. Não há morte para o vento. Não há morte. Nada apaga a luz que vive, porque é livre como o vento. Porque é livre.» Nesse dia tinha sido milagroso o LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 30 convívio e a fraternidade. Havia moças cujos namorados cumpriam serviço militar obrigatório em Angola, Moçambique e na Guiné, e rapazes com ideias de fugir à guerra. De autocarro, do Largo do Rato para os Olivais, recordava ainda o discurso do Manel, do padre Chico e da Adelaide: «O Tony escreveu-me, afirmando que não volta. Quer ficar lá. Quê?, interrogou o padre. É o que disse’, retornou Adelaide. Eh pá, então o Tony rachou, interveio Manel.» Aquela conversa a três, para mim, tinha tido o sentido de código, pelo que, solicitei esclarecimento a Silvestre. Mas este recusou-se a adiantar explicações, fazendo ouvidos de mercador, porém, o Adelino, entretanto, explicou-me resumidamente que, os rapazes da JOC tinham orientações para fugir à tropa ou para se deixarem incorporar, mas recusando-se a matar em combate. O Tony tinha optado por ir para a Angola, apenas de corpo presente, e aproveitar para exercer acções políticas contra a guerra colonial. A namorada jurara fidelidade e combinaram casamento logo que Tony regressasse, no entanto, ela apaixonou-se por Silvestre, na ausência do namorado, heis as razões pelas quais Tony desistira do regresso à metrópole. Deolinda, a namorada de Tony, ficou furiosa porque, entretanto, fartou-se do Silvestre e queria o seu antigo amor de volta, arrependia-se de ter sido sincera, escrevendo a Tony, dando conta do caso, antes que alguém se antecipasse e a acusasse de traição em tempo de guerra. Tony recusou retomar o enleio com Deolinda e, por isso, decidiu, radicar-se em Luanda, como civil, trabalhando como escriturário num gabinete de importação/exportação. Enviou até umas fotografias bem agarradinho a uma lindíssima mestiça na praia da Ilha e no Cacuaco. Tive vontade de perguntar ao Silvestre por Deolinda, mas hesitei, pois sabia que ele dava umas voltas com a Carmo e à Deolinda nunca mais tinha visto lá na República da Rua do Sé- LISBOA COLONIAL COLONIZADA 31 culo: pena minha, ela tinha um corpinho e um sorriso, embora enigmático, mas belo, muito belo mesmo… Todavia, isso tinha sido no tempo da outra senhora, desta vez, estávamos em Abril, mas de 1975. Ia entusiasmado com a ideia de liberdade, festa e entusiamo, em harmonia com os novos tempos de revolução e de independência das colónias. Lá dentro, só a Leonor me cumprimentou com afectividade, de resto, ou não me reconheceram ou, pura e simplesmente, me ignoraram. Jogámos uns minutos de futebol onze. Numa jogada mais ríspida racharam-me a tola num cruzamento de bola para a área: fui com a Leonor aos bombeiros levar uns pontos e nada mais. De regresso comia-se frango assado, mas frio, com batatas fritas e pão. Alguém cantarolou: «Canta, canta amigo canta, sozinho não és nada. Juntos temos o mundo na mão./ A cantiga é uma arma, eu não sabia… contra a burguesia…» Um dos rapazes gracejava: «Méé, méé, mes,méé.» Outro ao lado fazia trocadilhos com barreirinhas. Barreirinhas cunhal. Só alguns minutos após é que percebi que, afinal, todo aquele grupo tinha aderido ao MRPP e estavam convencidos de que eu era simpatizante do MES e próximo de pessoas do PCP, e, assim, hostilizavam-me. No final do frango e das batatas fritas, Silvestre interveio. — Camaradas, é urgente correr com os revisionistas (PCP) e acólitos (MES, FSP, MDP) da direcção da república. Precisamos de formar uma lista para concorrer às eleições. — Como? Estamos em minoria! — Apressou-se Jorge. — Vamos fazer campanha eleitoral. — Retorquiu Silvestre e todos olharam para mim. LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 32 Afinal, eles sabiam que eu residia na república e que não era do MRPP. Entretanto, Leonor chamou-me e aproveitei para desandar para junto dela. Sentámo-nos na relva fresca, primaveril. Desajeitado, não sabia o que dizer. — És do PC? — Perguntou ela. — Não. — Então, não me digas que és chucha! — Um PS. — Nãã… Gosto do MES, por causa do Manuel Lopes e do Luís Moita… — Parvoíce — reagiu —, temos é de escolher o programa e não os dirigentes… Se tivesse ali um buraco escapulir-me-ia de vergonha, pois ela tinha razão e, na verdade, eu até estava de acordo, proferira aquilo sem discernir. — Bem, diz-me lá, tens namorada? — Hãã, não! — Respondi completamente atrapalhado nas palavras e nos gestos desconcertados. — Olha, um dia destes vamos ao cinema, de que filmes gostas mais? — Eu!? Prefiro franceses, italianos ou portugueses. — Queria dizer-lhe filmes de amor e temas sociais, sem violência, porém estava com medo das palavras e rematei com a alusão a alguns filmes vistos no Cinema Monumental, em Benguela, nomeadamente de Alfredo Tropa. Afinal Leonor encantou-se. Não sei se pela minha timidez, se pelo género cinematográfico. — E monumentos, tens visitado? — Ela novamente, insistindo em perguntas complicadas que me embaraçavam. — Costumo ir às igrejas, ao Castelo de São Jorge, e aos LISBOA COLONIAL COLONIZADA 33 Jerónimos. Também já fui ao Palácio de Queluz e ao Palácio de Sintra. Na semana passada fui ao Panteão. — Às igrejas, mas, és católico praticante!? É que… confesso, sou da JOC! Mas não ponho os pés na igreja. Há gente cristã humanista que não está de acordo com a hierarquia da igreja, percebes? Quando referiste esses do MES, pensei que fosses dos da Capela do Rato, é que… eu me revejo neles. Mas não sou do MES. — Então, és do MRPP, como eles? — Oh, vamos mas é mudar de assunto. — Rematou Leonor, visivelmente incomodada com o sectarismo e obsessão partidária que os companheiros tinham deixado transparecer em todas as afirmações e atitudes. — Mas quando eu digo que vou às igrejas, é para vê-las como monumentos. — Voltei no intuito de mostrar alguma coisa de jeito nos miolos. — Bem, sim senhor… estou a gostar… e o Panteão? Nunca lá fui, aquilo cheira-me a bolor bafiento… a fascismo. Têm lá o Carmona… — Quis ver como era, julgava que podia ver alguma coisa de camões e assim… Gosto de Guerra Junqueiro. — Disse por fim, a medo. — Guerra Junqueiro? — Levantou-se de um salto e beijou- -me, meio na face meio no lábio inferior e tremi de calor. Aqueles lábios de Leonor eram divinais. Produziram um efeito indescritível, electrizante, ainda me tentava recompor perante o sorriso e o brilho dos olhos dela, quando de repente, apareceu Silvestre chamando por nós. — Bora! 35 5 Lisboa fervia, a campanha para as eleições parlamentares estava no topo da agenda política. Aldino, Trigueira, Rosalina e Alicio apareceram na gráfica para falar com os trabalhadores. Ali não havia delegado sindical, nem comissão de trabalhadores. Pediram para falar com o chefe, o chefe não quis assumir responsabilidade e enviou-os ao escritório. Aqui a secretária do patrão, mandou-os esperar uma infinidade e, posteriormente, regressou com o pedido indeferido. Quando saia para almoço, na tasca da Hortense, alheio a todo o movimento dos sindicalistas, à porta da oficina, Aldino dirigiu-se a mim e, determinado, desafiou-me a reunir os companheiros ali mesmo. Uns acederam, outros rasparam-se, outros insultaram-nos, resultando tudo numa barafunda, ficando eu sem almoço. Aldino tentou elevar a voz fina, Alicio encostava-se a seu lado com cara de mau e Rosalina conseguia ainda comunicar ligeiramente com uns ou outros. Mas Trigueira, o alentejano, ainda impôs alguma autoridade: — Colegas e camaradas, tomem atenção! — No seu sotaque pausado continuou dizendo: — Estamos perante a um LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 36 acto deveras importante, vamos eleger, pela primeira vez, deputados à Assembleia da República e é daí que as nossas vidas dependerão. O movimento sindical não é um partido político, mas é formado por trabalhadores e o futuro dos trabalhadores dependerá do que for feito pelos deputados. — Ou vence a revolução ou a reacção! — Vociferou Alicio e a confusão alastrou com afirmações avulsas até que a campainha tocou e todos se escaparam para dentro, retomando o seu posto de trabalho. Ficou a Fátima em frente dos sindicalistas que logo se despediram com um forte aperto de mão e beijinhos da Rosalina. Ao fim da tarde, entre o render de turnos, o patrão mandou reunir os funcionários. Todos trajados a roupa de trabalho, os do turno diurno antes de se desfardarem e os do nocturno já prestes a substituir os primeiros. Espalhados pela encadernação, de máquinas silenciadas, apenas um ou outro ultimava pequenas coisas manualmente. O patrão entrou sorridente na secção. Denotava confiança e boa disposição. Cumprimentou alguns acólitos com apertos de mão, e acenou para todos, com gestos largos de mãos abertas e braços estendidos. Entre o conjunto de empregados, pressentia-se afabilidade, eram poucos os que deixavam transparecer certa desconfiança, mas, mesmo nesses, nada de hostilidade, apenas, porventura, os assolasse naturais hesitações, dadas as distantes barreiras hierárquicas. O patrão, sempre aparentemente, bem-disposto, optou por fornecer algumas informações no tocante ao bom desempenho da empresa e à carteira de encomendas. Muito optimista, de modo a descansar os mais renitentes e, por fim, rematou: — Meus senhores e minhas senhoras, caros colaboradores, que é como gosto de tratar todos os que trabalham connosco, LISBOA COLONIAL COLONIZADA 37 a empresa está no bom caminho, com uma sólida saúde financeira e, portanto, posso afirmar que ninguém aqui tem necessidade de fazer greve, pois, tudo o que está nas reivindicações do sindicato, nós cumpriremos, melhor, ainda vou mais longe: vou montar aqui um refeitório exemplar, para todos. Alguém tem alguma questão que queira colocar? — Disse, depois de um certo momento de silêncio, vendo que ninguém se adiantava, apreçou-se a concluir: — Então, desejo um bom trabalho para os do turno e um santo descanso para aqueles que acabaram mais uma jornada. Eu vou ainda resolver umas quantas questões. Como habitualmente, lá para a meia-noite vou para casa… Gabriel, o novo cortador de guilhotina, que há muito me observava, bateu-me, ligeiramente, no ombro. — Vamos à tendinha beber uma imperial e comer uns percebes? — Perguntou. — Huumm, e… um… — Embora lá, rapaz, pago eu! — Tá bem. — Respondi. O novo colega só tinha uns dias de trabalho, ninguém o conhecia, respondera directamente a um anúncio de jornal, sem recomendações, o chefe de secção admitiu-o à condição e, de facto, o homem dominava a técnica do corte. Não possuía os dotes físicos aparentemente condicentes, à primeira vista parecia uma criatura franzina, sensível e educada em demasia para o meio operário. Alguns sussurravam que o Gabriel era homossexual e faziam chacota dos que conversavam com ele. Desde o primeiro dia que o homem, educadamente, se dirigia a mim, na falta de outro interlocutor, perante questões de desempenho profissional, nomeadamente, quantidades, tipo de papel e outras burocracias, respondendo-lhe eu à medida do possível, LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 38 certo de que havia diligências que diziam respeito a outros impressores ou, por vezes, ao próprio chefe de sector. Fomos trocar de roupa e, à porta da rua, lá estava o Gabriel esperando. Ele não se fardava, apenas enfiava uma bata por cima da camisa, as calças e o calçado eram os de saída. Isso porque um cortador de guilhotina não tinha necessidade de cirandar de volta das latas de tinta, das peças lubrificadas, nem dos panos encharcados em petróleo de tanto lavar caoutchoucs, nem de esponjas de molhar chapas com água, goma e fixador. — Então, vamos? — Interpelou Gabriel logo que me viu a aproximar da saída. Não disse nada, limitando-me a seguir o novo companheiro que, sem esperar por resposta, deslizou ligeiramente à minha frente, colocando-se a meu lado um pouco mais adiante. Ainda ouvi risadas e percebi claramente que alguns colegas gozavam com o facto. Eu sabia que naquelas cabeças perversas iam já ilações inusitadas e maldosas, como se entre mim e Gabriel houvesse uma relação homossexual. Nunca tinha, até então, o mínimo de aproximação a tal facto. Na verdade, não acreditava que o novo cortador tivesse essa tendência, mas, perante as insinuações daqueles presumíveis especialistas, senti também as minhas dúvidas e tive vontade de voltar atrás e escapar-me para junto dos gozões. Num instante, fiz um exame mental rápido da situação e, depressa, concluí que não poderia recuar, seguindo, assim, ao lado do Gabriel, em direcção da tendinha, mesmo sentindo nas costas o gozo dos colegas que já se deliciavam com ideias e afirmações avulsas. Temi que, a partir daquele momento, fosse conotado com algo que não a minha heterossexualidade. Nem de propósito, na tendinha já estavam sentados dois colegas, disfarçadamente, para ouvir e, posteriormente, trans- LISBOA COLONIAL COLONIZADA 39 mitir aos outros. Sentámo-nos na mesa ao lado da do Careca e do Rato, os tais que se tinham antecipado para escutarem. Bom, senti um alívio, sabia que só por deturpação eles poderiam transmitir algo que não fosse conversa de machos, pelo menos da minha parte. — Para mim uma água. O que tu queres? — Perguntou-me Gabriel. — Uma mine… para mim uma mine e uns caracóis. — Retorqui, já com o Cebola, Manuel, empregado da Tendinha, à ilharga. — E o senhor? — Perguntou o Cebola, pois, tinha ouvido o meu desejo. — Uma água natural, se faz favor. — Pediu Gabriel. E logo notei de esguelha, os sorrisos maliciosos dos colegas espiões. — Cebola, cebola! — Clamou o Rato, quase em êxtase. — Vai chamar “Cebola” ós cornos do teu pai. Diz lá o que queres. — Respondeu o empregado, chegando-se para eles, sussurrando. — Tens Licor, pá! Licor de senhora, pá! — Aqui até há cabeças para te enfiar pelo cu acima. — Retomou Cebola, baixinho, aos ouvidos do Rato, mas de modo que pude perceber nitidamente. Virou-lhe a costa para atender um casal que acabava de se sentar no canto oposto. — Eu só bebo água, mas está à vontade, hoje pago eu o que quiseres, fui eu que convidei. — Afirmou Gabriel, deixando-me ainda mais incomodado. — Não, num quero mais nada, obrigado, também tenho que ir, estou com pressa — respondi, cada vez mais hesitante. LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 40 — Bem, temos que falar mais vezes… Então vais ter com a namorada é? — Ao proferir isso, tanto o Careca como o Rato mais se punham à escuta de modo deliciados. Pelo que Gabriel, ao perceber reagiu: — Camaradas, sentai-vos aqui, caramba! Há aí duas cadeiras: conversemos os quatros, é escusado estar aí a espiar. Aliás, de espiões já tenho a minha dose. Eles ficaram aflitos, sem resposta, encavacados, eu mantinha-me na expectativa; agradava-me a ideia dos colegas à mesma mesa, pois, desse modo, sacudiria aquela pressão sobre mim. — Tá bem. — Respondeu por fim o Careca. — Pá! Tenho quir… — atirou sorrateiro o Rato, na tentativa de se escapar. — Não, não! Desculpa, mas estavas aí quase a comer a nossa conversa, agora vens para aqui. — Sentenciou o Gabriel, resolutamente, sem a mínima chance para que Rato pudesse fugir de outro modo que não cobardemente. — Disse-vos que estava farto de espiões, não disse? — Questionou. — Só se o espião for o senhor. — Atreveu-se o Rato, contrafeito. — Convidei aqui o nosso colega para uma conversa porque me parece bom rapaz e gostava de trocar umas ideias acerca da nossa empresa. — Quis introduzir fio de conversa o Gabriel. — Olha-meste, inda agora chegou, já deita bitates. — Novamente Rato. — Não dou bitates, nem escuto conversas alheias! Se o colega estiver interessado a falar como homenzinho, deixe-me prosseguir, por favor. LISBOA COLONIAL COLONIZADA 41 — Vá lá, pá, deixa o senhor Gabriel falar. — Interveio então o Careca, já com uma postura diferente e mais respeitosamente. — Não gosto de falar nisto, mas há coisas que me obrigam: estive preso durante onze, isso pesa imenso nos momentos em que queremos manter alguma serenidade… — Mas… — ia interrogar eu, um pouco atabalhoado. — Bom, mas isso agora não interessa: vivemos em liberdade, ou seja, derrubámos o fascismo e se naquele tempo tive coragem para enfrentar a PIDE, também não é agora que vou temer os espiõeszinhos. Notei que o Rato começava a ficar aterrado e o Careca cada vez mais receoso e eu, estava finalmente empenhado nas palavras sábias do Gabriel. Como tinha verificado, aquele homem, mais ou menos, com o dobro da minha idade, apresentava um discurso fluido, personalidade, delicadeza e, naturalmente, de estatura intelectual bem mais elevado do que qualquer de nós na empresa. Ficamos atentos ao que ele falava. — Fui apanhado ali na Rua dos Correeiros, denunciado por um dos camaradas que não aguentou. — Um rachado! — Atirei, tentando algum atrevimento, mas logo me arrependi, pois o senhor Gabriel, nem parecia o mesmo indivíduo educado, assumiu uma postura severa e já mais alguém se atreveria a considerá-lo afeminado. — Quem te ensinou isso, rapaz? Não esperou pela resposta, nem eu saberia responder convenientemente. Prosseguiu dizendo: — Ninguém contava com a fraqueza do camarada. Cá fora é muito fácil argumentar, porém lá nos corredores da “António LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 42 Maria Cardoso” — sede da PIDE, em Lisboa — é que eram elas: assim que se entrava, começávamos logo a levar pancada, sem saber de onde vinha. Estava-se noites e noites, dias e dias, em pé, sem poder fechar olho, punham-nos numa cela com uma pinga a cair do tecto, passado um bocado, uma simples gota, parecia um calhau ao nosso lado, aos estrondos, enfim. Estive em Cabo Verde, no Tarrafal, mas não vamos falar disso, só quis conversar aqui com o colega e, agora, aproveito para debatermos, os quatro, acerca da necessidade de organizarmos os trabalhadores na empresa. — Não ouviu o patrão? Ele deu-nos a palavra e não duvide que não falha! — Asseverou o Rato. — Ora, ora, caro amigo, de promessas e de palavrinhas mansas… sabes, como diz o ditado: «com papas e bolos se enganam os tolos.» — Respondeu Gabriel. Ia para apoiar Gabriel, mas reparei que aquele colega novo não necessitava de moletas. Ele sabia usar a voz e as palavras convincentemente e no uso de umas quantas metáforas e explicações concretas, pareceu-me que brotava experiência, sabedoria e uma natural aptidão argumentativa. Pela minha parte estava de acordo e firmava-me na ideia de que o patrão usava o seu poder de influência, capacidade financeira, argucia, experiência de gestor de recursos humanos para ganhar tempo, manipular factos e evitar conflitos e, assim, continuar a dispor dos funcionários da maneira que mais lhe convinha. Ele sabia que os processos negociais se arrastariam e que, entretanto, não teria na sua empresa greves e outras convulsões capazes de interromper os seus planos de produtividade e, naturalmente, de lucro de capitais. Gabriel não quis explicar o que era a tal “frigideira” lá no campo do Tarrafal. Escapava-se de questões relacionadas LISBOA COLONIAL COLONIZADA 43 com a sua actividade política, familiar e social, mesmo perante perguntas directas, o seu discurso apontava sempre para as posições laborais, a luta de classes, as premissas do sindicalismo, do Marxismo, do sindicalismo democrático, do direito à educação, à saúde, à habitação e convivência democrática, em liberdade política. Irritou-se com o Careca quando este lhe frisou que tinha um familiar amigo de um tal administrador de uma prisão em Cabo Verde que se chamava Chão Bom. — Chão Bom… Chão Mau! Muito Mau! Ouviste? Isso a que os fascistas, os imbecis e os pacóvios chamavam, era, nem mais, nem menos, o maldito campo de morte lenta: o Tarrafal onde estive dez anos em torturas, trabalhos forçados e maltrato e onde vi morrer gente, gente grande, corajosa e boa. Inclusive o meu próprio pai, só porque lutavam por um país livre e democrático. Ouviram? Com essa breve referência de Gabriel, ao Tarrafal, onde acabava por desvendar um pouco da sua vida política e familiar, quedámo-nos os quatro, entreolhando-nos e esmagados pelas palavras de coragem e de ensinamentos do Gabriel, colega recente, educado, franzino mas resistente face às torturas infligidas pela polícia política com a qual nenhum dos três tinha tido contacto directo. Já passava das vinte e uma horas, despedimo- -nos e reparei que os colegas não olhavam para o novo companheiro presumivelmente afeminado, mas, antes com veneração e subordinação intelectual. No dia seguinte, da parte da manhã, verifiquei que não havia comentários acerca do Gabriel na oficina. Um pouco antes da hora do almoço reparei que o chefe da Secção dos Acabamentos levava Gabriel para o gabinete do patrão, mas também percebi que ninguém dava importância ao facto, mesmo o Rato e o Careca que laboravam, alheios. LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA 44 De regresso da hora do almoço não vi o Gabriel à boca da máquina de corte. Esperei um pouco, continuando nas minhas tarefas e o Gabriel não aparecia, até que o próprio responsável do sector da encarnação se postou à máquina, no lugar do Gabriel. Incrédulo, perguntei a um colega impressor e a outros e todos me encolhiam os ombros. Perguntei aos dois colegas de conversa na Tendinha do dia anterior e nada me disseram, mas o mais intrigante, é que não se alongavam em considerandos, nem mostravam o mínimo interesse pelo facto do colega ter desaparecido assim. Dirigi-me ao chefe da encadernação, pedindo explicações pelo sucedido, visto que ocupava o lugar que durante uns dias tinha sido do Gabriel. — Só te posso dizer que já cá não trabalha e tu se queres cá continuar, tem cuidadinho com as companhias. — Respondeu- -me o Hipólito, chefe dos encadernadores e das encanadoras e acólito do patrão. Quis dizer algo, mas ele logo virou costas, deixando
segunda-feira, 16 de setembro de 2019
Núcleo Duro - Ilha da Terceira
sexta-feira, 6 de setembro de 2019
Núcleo Duro - Marinha Grande
quarta-feira, 4 de setembro de 2019
CHILE: MIL GUITARRAS EN HOMENAJE A VICTOR JARA
domingo, 1 de setembro de 2019
Freixo de Numão Festa de Nossa Senhora da Carvalha
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