quarta-feira, 26 de junho de 2024

Maria Margarida, a ignota - desaparecida no imenso Brasil

 


 

 

Maria Margarida Vasconcelos Peixeira

 

Mozinhos, quarta-feira, dia nove de Junho, de mil oitocentos e oitenta e seis, pelas catorze horas, Antónia Margarida Martins Vasconcelos não aguentou; teve que parir mais uma menina.

Ainda no domingo do então pretérito dia seis, Antónia tinha estado no Souto em casa de José Joaquim Vasconcelos e de Balbina Cândida Martins, seus pais legítimos, e, nesse dia, pouco se notava o seu estado de gravidez. Isso mesmo lhe perguntara Balbina:

- Oh minha filha, não me digas que andas outra vez de barrigo…

- Que posso eu fazer, minha mãe? E o António ainda não deu por nada…

- Olha, deixa-me ver os teus pés inchados… Claro: prenha e adiantada… E não me tinhas dito… Há quanto tempo não te vem a pingadeira (menstruação), Antónia?

- Já nem me lembro de tal coisa, minha mãe. Parece-me que já desde do enterro da Bárbara Maria… Olhe, minha mãe, já desde do tempo em que ainda lhe dava o peito, bem antes dela me morrer, daquela maneira, valha-me deus.

Assim se tinha travado o diálogo entre mãe e filha. A conversa teria tido mais alongamento se não tivesse chegado a casa José Joaquim que, ao largar a picareta, à porta de casa, berrou lá para dentro:

- Balbina! O jantar está pronto (almoço)? Vá lá mulher que temos de ir regar ao caldeirão.

Se António Bernardo ainda não tinha percebido bem do estado da esposa, embora desconfiasse, a madrasta, Luísa Margarida, há muito tinha desabafado com a enteada, filha do falecido marido, Maria dos Anjos, irmã de António Bernardo:

- Maria, a Antónia anda de barriga outra vez.

-Oh, anda lá agora, tem cada coisa, mulher…

- Eu bem reparei nela ao deixar queimar a saia quando andava a deitar fogo às cumeeiras na fraga, reparei que já andava pesada. E os apetites dela, que julgas? Por mais de uma vez me cobiçou coisas: chouriça, até conserva de pimentos, vê num tempo destes a dizer que tinha desejos de pimentos de conserva… Ah, já nem me lembrava da Antónia agoniada e no lavadoiro aos vómitos, para aí… na vindima…

- Valha-me deus, isso já lá vão para aí dois meses, ou mais que ela queimou a saia na fraga.… E olhe que o bruto do meu irmão não lhe quis comprar outra…

- E então? Já estive para lhe perguntar. Disse ao teu irmão, mas já sabes como ele é, ainda ralhou comigo – oh, vossemecê meta-se na sua vida, não quero mais filhos.

- É bem bruto o meu irmão António, louvado seja deus… E olhe que o meu homem não lhe fica atrás, bem me dizia a minha mãe (Manuel António foi casado em segundas núpcias, Leonor Nascimento, a sua primeira esposa, tinha falecido em 1877, aos 50 anos; ele faleceu, posteriormente, aos 56, em 1880).

- Mas o teu homem sai lá aos de Custóias, teimoso que nem uma porta.

- A senhora a falar e os meus aí. Luísa, que vens fazer, minha filha? – Atirou Maria dos Anjos ao ver chegar a sua filha.

De facto Leonor do Nascimento, dos Mozinhos, filha de Alexandre José e Maria José, e o seu marido Manuel António da Costa Peixeira, natural do Souto, filho de Francisco António Costa e de Luísa Inácia Peixeira, tinham tido uma chusma de filhos. Porém só António Bernardo e Maria dos Anjos resistiram, escapando à razia do passamento infantil. Os avós de Leonor, Manuel Gregório e Bárbara Maria, também tinham tido vários filhos que, por uma razão ou outra, tinham morrido bebés de poucas horas, dias, meses ou anos. Luísa surgiu acompanhada de Maria Adelaide, filha de Inácia Joaquina e de João da Cruz, o alfaiate dos Mozinhos, oriundo de Penedono e clamou para a Luísa Margarida:

- Senhora Luísa, a minha tia disse para ir, depressa, a casa dela.

- Aconteceu alguma desgraça, minha filha?

- Não sei, a minha tia só me mandou dar o recado…

A mandante da intimação era Antónia, cunhada de Maria dos Anjos. Luísa Margarida, do Rio Bom, andava no lugar do vale, sachando batatas e carrapatos (feijão-frade), ao lado da sua enteada, logo abalou, atirando com o sacho para o toro da figueira e, açodada, descalça, deitou-se a caminho da casa da nora do falecido marido. Apesar da sua idade, em poucos minutos, andou os cerca de quinhentos metros, aprontando-se à porta de Antónia. Lá dentro, na companhia da esposa de António Bernardo, estavam: Inácia Joaquina, Maria de Deus e Maria do Espírito Santo. Antónia estava sentada na única cadeira junto da mesa da saleta que dava entrada para a cozinha, à esquerda, contígua ao canto da lenha e do cantareiro. Em frente, por trás do taipal, para o quarto do casal, entremeado dum pequeno espaço estava a salgadeira, a arca dos víveres e três prateleiras de arrumações de tralhas. A cama de Antónia e de António tinha sido montada num pequeno recanto. Aos pés, do lado direito, junto á parede, existia ainda uma caminha onde dormia Manuel, de cinco anos. Maria de Deus acendia uma fogueira para aquecer água, Inácia Joaquina, com o seu menino ao colo, Acácio, de cerca de um mês de vida, tentava acalmar Antónia que gemia. Luísa entrou, deparando com a assembleia logo entendeu e, usando da sua experiência, ditou:

- Não te aflijas, rapariga, já não é a primeira vez. Seja o que deus quiser.

- Oh senhora Luísa, ninguém estava à espera que entrasse em trabalhos tão cedo, ainda nem se vê barriga – adiantou-se Inácia Joaquina.

- Oh, esta rapariga anda sempre com essa saia largona e avental de burel. Aposto que nem o António Bernardo sabe que a mulher anda prenha.

- Ai não sabe não senhora. O que vai ser de mim quando o meu António souber. Sou uma infeliz.

- Cala-te para aí, criatura de deus, não és a primeira, nem serás a última a botar a barriga (abortar), mulher.

- Credo! – Da cozinha interveio Maria de Deus.

A morada do casal António e Antónia tinha pertencido aos avós de Maria dos Anjos e de António Bernardo, Gregório e Bárbara. Era paredes meias com o palhal que, por primeira herança foi de Leonor e Manuel António, com o falecimento destes, calhou a Maria dos Anjos. Em vida dos pais dos citados herdeiros, o palhal era corte do gado, com as partilhas e respectivas divisões dos imóveis, José Joaquim Macena passou a utilizar o palhal a título de espaço de arrumos de cereais, batatas, alfaias e até palha e painço.

Antónia tinha na cozinha: pilheira em granito sob a qual acumulava a cinza do lume ardido e, em cima, colocava lucerna, o lampião, a candeia, louça de barro (pratos, púcaros), seis garfos de ferro (fundido na forja do Souto) e mais uma ou outra miudeza; um pote em ferro de três pés, uma panela média e outra pequena, também em ferro (a média para cozer e refogar alimentos, a pequena para café e pequenos aquecimentos de água, leite, chá…); dois ou três potes em barros onde aquecia e fazia o caldo; algumas pequenas caixas de madeira num armarito entre a pilheira e a parede separadora da sua casa e o palhal de Maria dos Anjos; um banco de três lugares encostado à dita parede onde ela habitualmente se sentava; um cantareiro (na prateleira fundeira, quatro talhas, na prateleira superior, alguns pratos de louça para ocasiões particulares, por cima do cantareiro tinhas uns quantos objectos avulso); nas quatro talhas de barro guardava as conservas de culturas de primavera (em vinagre e sal), uma com azeite, outra com chouriças em azeite e a restante geralmente com água; o canto da lenha era um espaço quadrado que servia para aí conservar lenha enxuta; encostado ao taipal que separava a saleta de entrada e a cozinha, tinha sido pregada uma tábua, da umbreira da entrada, até à parede, junto do término da pilheira que era assento de António Bernardo e já tinha sido do seu pai Manuel António e, anteriormente, do seu avô Alexandre José e, quiçá, do seu bisavô, Manuel Gregório; aí, no cantinho, rente à parede, entre o banco e a pilheira, atrás do pote grande, quedava quase sempre o caldeiro de lata que utilizavam, quer para transportar a vianda dos porcos, quer o reforço da alimentação do burro e dos bois (água quente com farelos, couve, beterrabas, abóboras e, sobretudo, nabos, na época respectiva, ou seja no Inverno).

A referida salita que, na verdade, não era mais do que um pequeno corredor soalhado, da porta de entrada ao extremo da parede, de Norte para Sul, apresentava: atrás da porta uma bacia em madeira para lavagem de rosto e das mãos, junto a dois cântaros de lata com água da fonte (geralmente transportados por Antónia, à cabeça); agarrada à parede poente, uma mesa rectangular com duas pequenas gavetas (nos dias quentes as refeições eram tomadas aí, nesse momento, Antónia ocupava a única cadeira permanente, em trabalho de parto); seguia-se um taipal divisório com uma porta a ligar o descrito aposento a um outro, extensivo à parede fundeira onde havia lugar para uma salgadeira, uma arca onde guardavam alguma roupa e outros víveres nomeadamente pão cozido, uma pequena arca; à esquerda, junto ao taipal que fazia um recanto tinham sido feitas as duas camas – a maior colada ao taipal que dividia o quarto ao canto da lenha e a pequena, ao fundo, agarrada à parede do palhal de Maria dos Anjos.

A hora do jantar (almoço na época designava-se jantar e este, ceia) aproximava-se. O calor de Junho torrava os campos, as espigas do centeio gradavam e os caules pediam a citoira (foice), os fenos ressequiam nos lameiros e as hortas necessitavam de regas, as cerejas vermelhavam nas cerdeiras (cerejeiras), a garotada espantava a passarada do painço e das fruteiras. Os gados, acossados pela mosca e sob a canícula, eram recolhidos aos currais e às cortes para acarrar. António Bernardo ia chegando naquele preciso momento, vindo de acarar o rebanho no bogalhão onde as ovelhas, carneiros e meia dúzia de cabras, à sombra, defecavam as caganitas, preciosas para fertilização dos solos, das sementeiras no Outono seguinte.

Entretanto, as crianças, cá fora, aglomeravam-se, curiosas. Maria Albina, de seis anos, filha de Matias Trindade e de Maria da Assunção, brincava, simulando-se parideira. Silvina, mais ou menos da mesma idade, filha de João Evangelista e de Inácia Joaquina, fazia de parteira. António Bernardo ralhou para as miúdas:

- Raça da canalha, fora daqui! Ide com essa brincadeira lá para a vossa porta!

Luísa assomou-se ao postigo e determinou ao enteado:

- António, não podes entrar, vai lá ao vale chamar a tua irmã.

- Mas, não posso entrar na minha casa porquê?

- São cá afazeres de mulheres, faz o que te mandaram. – Adiantou Inácia Joaquina, ao mesmo tempo que o seu bebé começava num berreiro desenfreado e tateando na mãe, em busca de mamilos para sugar…

- Está doente a Antónia? – Insistia António Bernardo.

- Não, Homem! Não vês que está para parir? Vai lá aonde te mandei! Reforçou Luísa Margarida.

- Uma coisa assim, nunca vi parir sem emprenhar… ainda respondeu o marido de Antónia, ao mesmo tempo que desandava em demanda da sua irmã, ao vale.

Maria da Assunção, mulher do Matias Trindade, Teresa de Jesus Costa, esposa de Francisco Manuel Aguiar, a segunda mulher de Manuel Jesus Aguiar - Maria das Candeias Costa, irmã de Teresa de Jesus Costa, ambas naturais de Bebeses, também acudiram aos ais de Antónia.

- E agora a parteira… - interrogou-se Luísa Margarida.

- Se a minha sogra ainda fosse viva… Repostou Teresa de Jesus Costa, mais em jeito de reflexão, do que em resposta à questão.

- Não, Não, a tua sogra, que deus lá tem, não! Não vês o que fez à desgraçada da tua irmã? – Reprovou de imediato Luísa do Nascimento.

- Oh senhora Luísa, não venha agora com essas tolices. A minha irmã Ana morreu de parto, como muitas outras, bem sabe que a culpa não foi da minha sogra. Coitadinha, bem fez de tudo para a salvar, a ela e ao filho, mas foi a vontade de deus. – Tornou Teresa, secundada por Maria das Candeias, irmã mais nova que, depois, casou com o cunhado.

- Lá isso, sou da mesma opinião, a senhora Assunção fez tudo por salvar a nora. Até tenho pra mim que morreu de desgosto - Atalhou Inácia Joaquina, reforçando, em defesa de Teresa de Jesus e de Maria das Candeias.

- Se ao menos cá estivesse a minha prima Umbelina. Olha, ó Angelina vai lá chamar a tua irmã Lúcia, vou mandá-la buscar a Umbelina ao Ribô. – Umbelina de Jesus era cunhada de Manuel António Costa Peixeira e esposa de José Ramos da Costa Peixeira, pastores entre Mozinhos e Rio Bom. Fora a Umbelina que tratou de casar Luísa com Manuel António, sendo, então, ele viúvo de Leonor do Nascimento, e ela solteirona, filha de moleiros no dito Rio Bom.

Entretanto, Angelina, filha de Maria dos Anjos, não encontrava a irmã mais velha, Lúcia. Esta tinha ido à fonte, buscar um cântaro de água à cabeça. Lúcia tinha doze anos, tinha que arcar com as tarefas domésticas, substituindo a mãe, Maria dos Anjos, ou marchar com o pai, José Joaquim Macena, nos diversos afazeres da lavoura. Joaquina, mulher de Joaquim Fonseca era outra das parteiras habituais, mas andavam na ceifa na quinta do talão. Restava Joaquina Araújo Bastos que também andava do outro lado do rio na segada do pão (ceifa do centeio). Mesmo que Joaquina Bastos estivesse, no momento, era olhada com desconfiança, tinham-na como feiticeira, mulher de ofícios e mezinhas dos maus-olhados. Antónia até a acolhia como parceira das tricas, laricas e baldrocas. No entanto, Luísa do Nascimento e Maria dos Anjos não a quereriam na qualidade de parteira de humanos, geralmente, chamavam-na para parições de animais, sobretudo porcas e jumentas. De repente, Teresa de Jesus falou alto:

- Olha, ó senhora Luísa, e se mandássemos vir a Felicíssima do senhor Manuel? Olhe que a rapariga dá um jeitão. Não há por aí quem tire as crias como ela, tem umas mãos pequenas, sabe…

Maria de Deus encolheu os ombros, Luísa do Nascimento observou mais uma vez Antónia. Todas emudeceram perante a sugestão de Teresa de Jesus Costa que olhou para o lado de fora da porta, vendo aí a sua filha Maria a brincar com Lucinda, mandou:

- Ó minha filha, és capaz de ir chamar a Felicíssima da senhora Joaquina?

- Ela foi prá horta! Foi com a Olinda da senhora Ana. – Acudiu Gregório Augusto, filho de João da Cruz.

- Então vai lá tu chamá-la, vai depressa, vai numa perna e vem noutra, rapaz. Diz-lhe que venha ver a senhora Antónia.

Gregório deitou a correr, descalço, caminho abaixo, da silveira até às hortas do fundo, pegadas ao ribeiro que desaguava no Rio Bom. Lá andavam a arrancar ervas daninhas: Felicíssima, Olinda e Gerarda Augusta, esta rapariga crescidita, filha de Ana Joaquina e de António Manuel Aguiar. As moçoilas catavam ervas invasoras entre cebolo, pimenteiros, tomateiros e feijões de palha rasteira. Tratava-se de ervas resultantes de solos humedecidos, através de regas de levada, a partir do pequeno leito do ribeiro cuja água era captada a montante e conduzida por gravidade. A milhã, papoilas, serralha, beldroegas e coiros eram ervas úteis, colocadas de parte e, posteriormente, dadas aos coelhos domésticos. Porém, só após algum tempo, murchas. Isto por via de não perigar a vida dos leporídeos de capoeira que, por vezes, morriam quando ingeriam erva fresca e viçosa.

Felicíssima quis saber de Gregório o motivo, estranhando o facto de ter sido chamada pela senhora Teresa, tecedeira que tinha vindo de Bebeses. O rapaz, meio atrapalhado, disse:

- Não sei, pareceu-me que a senhora Antónia está com as dores…

- O quê? Quer parir? – Intrometeu-se Gerarda.

- Ainda há pouco tempo lhe morreu a filha, Bárbara, e já vai parir outro… Não pode ser porque não deitou barriga nenhuma… - Sentenciou Felicíssima.

Entretanto, sem mais delongas, Felicíssima e Gerarda deitaram a correr ladeira acima no caminho para a povoação, Olinda foi ao encontro da sua mãe que labutava numa horta ali por perto. Mal Felicíssima se plantou à porta de Antónia logo Teresa a arrastou para dentro, encostando primeiro postigo, barrando o acesso à miudagem, e, seguidamente, encostando também a porta porque a canalhada já se pendurava na gelosia, coscuvilheiros, a espreitar lá para dentro.

Luísa Margarida expondo a situação a Felicíssima, depressa entendeu a inépcia da jovem nas diligências de parteira – uma coisa era ajudar ovelhas, cabras e burras, outra coisa, bem distinta, seria conduzir Antónia no seu trabalho de parto – Felicíssima não fazia ideia da posição corporal que Antónia deveria adotar, nem como, eventualmente, puxar a cria, vagina só conhecia a sua e a das outras garotas, era a primeira vez que mirava uma mulher adulta assim, exposta, de partes intimas ao laréu…

- Rapariga, vai lá à tua vida – não tens jeito para nada… - Asseverou Luísa Margarida, sem qualquer objeção das mulheres presentes. Antónia cada vez gemia mais.

- É melhor mandar buscar a minha comadre Maria do Carmo ao Ribô – retornou Teresa de Jesus.

- Oh, para isso trazíamos de lá a Umbelina que nisso pede meças…. Novamente alvitrou Luísa Margarida.

Cá na rua, de fronte, à porta de Antónia, no acesso à sala, que também tinha sido herança de António Bernardo, a garotada rodeava Felicíssima que, com dificuldade, tentava narrar o episódio decorrido consigo junto de Antónia. Gerada Augusta afirmou, resoluta:

- Eu sei como se faz, vou lá eu!

Gerarda empurrou a porta, penetrando, de imediato, na habitação de António, deixando todas as mulheres surpreendidas. Luísa ia para reagir com veemência, mas Gerarda interveio logo para estupefacto das mais velhas:

- Eu sei como se faz! Já vi a minha avô fazer isso à minha mãe e à minha tia de Alcarva.

Sem esperar por consentimento a moça dirigiu-se à cama onde Antónia, deitada, de saia arregaçada, tentava fazer força, descoordenada. Gerarda Augusta, como se fosse a mais experimentada das parteiras, ordenou a Antónia que se posicionasse de cócoras, como se fosse urinar e empreendesse movimentos de pressão para o exterior como se quisesse expelir algo difícil. Desapertou dois botões da blusa de Antónia, tirou-lhe a saia, deixando-a em saiote (espécie de combinação, acima dos joelhos. Inácia já se chegava com um alguidar de água quente e dois panos, género toalha. Antónia não se sentia confortável na posição, pelo que se deixou cair de joelhos. Gerarda administrava os movimentos e disse:

- Chegue-me cá uma matula (pano/toalha). Já está a limpar, não tarda a aparecer a cabeça e as patinhas da frente!

- Rapariga, parece que estás a falar de algum animal, tem juízo… - Atalhou Teresa, incomodada com os trejeitos de Gerarda.

- Eu bem sei o que faço, olhe como limpa (surgimento de escorrências amnióticas). Tem a coneta (vagina) bem inchada, vai parir bem. Parece que vem de patas para a frente, ou é já a cabeça…

- Valha-me deus que esta rapariga é estouvada: não são patas, são pés! – Acudiu Luísa Margarida.

- Bem sei, ainda ontem ajudei a nossa reca a parir. – Retornou Gerarda.

- Se calhar, as matulas não são cabondes. É preciso uma para aparar as párias (placenta) e para cortar o umbigo (cordão umbilical)? A minha avó fez com a tesoira do meu avô.

- Graças a deus nosso senhor Jesus Cristo, louvado seja o senhor todo-poderoso e omnipotente do céu e da terra: já lá vem, minha nossa senhora. – Exclamou Luísa, perante o nascimento do bebé, mediante as manobras de Gerarda e o esforço da puérpera.

- Ah, tão pequenino, minha nossa-senhora. Mas parece-me do tempo todo. Isso, isso, rapariga, deixa-o chorar. -Interveio Inácia Joaquina.

- É assim que se faz, de cú pró ar, para ele berrar. Olhe, olhe é uma menina, tem já uma conetinha… Até já veio com cabelo e tudo. – Concluiu a jovem e acidental parteira.

E foi assim de inopinado e de todo imprevisto que Antónia deu à luz a sua segunda filha. O trabalho de Gerarda, a moça de dezasseis anos, fez furor, digno de vénias, fazendo ver às senhoras adultas, experientes e, elas próprias, mães. O recém-nascido veio perfeitinho no dizer das presentes. Depois de lavado pela mãos de Inácia Joaquina porque já era mãe experimentada e, por isso, sabia como pegar na bebé, ao contrário de Luísa Margarida que nunca tinha engravidado e, em plena menopausa, ninguém poderia garantir que não teria sido também estéril. Mulher maninha (infértil) não é mulher abençoada pelos anjos, nossa senhora e pelo deus maior, segundo crenças de beatas e pregadores do evangelho e do missal catolicista da época.

Chegado o momento de amamentar o bebé, já com Antónia recostada na cama e a canja quase a lhe ser servida, Teresa de Jesus poisando a recém-nascida sobre peito de Antónia, ao mesmo tempo, desapertando-lhe mais dois botões, de modo a franquiar os mamilos e melhor dar o colostro, deparou-se com mais um entrave - os mamilos da mãe eram demasiado grados face a tão pequena boquinha. Todas tentaram, de algum modo, ajudar Antónia. Porém, todos as manobras e sugestões não levavam a bom porto. A bebé parecia ir perdendo fulgor, de tão pequena e franzina, já se lhe temia pela real capacidade de resistência. Maria dos Anjos que se tinha dedicado afincadamente nos preparos da canja de galo, bem tentou, fazendo fé na sua experiência e no facto de também se considerar de mamilos rasos, isto é, sem biquinhos de teta. Inácia Joaquina decidiu-se por amamentar a recém-nascida com o seu leite, em prejuízo do seu bebé Acácio, sempre ávido pela mama. Ainda se conjeturavam medidas, quando Gerarda Augusta voltou, curiosa e jactanciosa, morta por saber do resto das diligências. Inácia, de mamas ao fresco, preparava-se para enfiar um dos seus mamilos pontiagudos naquela boca pequena, Gerarda logo se opôs:

- Não, não, as crias têm que mamar primeiro na mãe. – O saber empírico, por vezes, tem essa importância cujo valor a ciência abundantemente confirma. Gerarda defendia ali uma tese confirmada, como fundamental para a saúde humana. Durante o aleitamento, imunoglobulinas (IgA, IgG, IgM, IgD, IgE) são transferidas pelo colostro para o recém -nascido, havendo passagem de imunidade passiva da mãe para o filho, que ainda apresenta um sistema imune imaturo e precisa de proteção. A importância das imunoglobulinas, em especial, a IgA, como anticorpo, que favorece a saúde da criança, tem a função de inibir a adesão de vírus e bactérias. Assim, evita inflamações e infecções, tais como: diarreia, problemas respiratórios e otite média.

- Oh minha filha, não lhe consegui dar o peito. – Queixou-se Antónia, ao jeito de implorar auxílio àquela que tinha sido a sua improvável parteira.

- Deixem-me cá ver. – Atirou repentinamente Gerarda e, sem hesitações, pegando na mama de Antónia com uma mão e, com o seu dedo mínimo, abrindo a boca da bebé. De boca ligeiramente aberta, Gerarda mugia, aspergindo o leite. O recém-nascido engasgou-se, gerando-se uma confusão diabólica. Gerarda foi até desautorizada, e assim, desbaratando o prestígio que granjeara mediante as suas diligências e técnicas parideiras.

Luísa mandou o filho de Antónia, Manuel, de cinco anos, a correr, chamar Umbelina aos Urgais onde alguém, entretanto, afirmou tê-la visto a apascentar o gado na companhia do seu homem, o José Ramos. A ideia era a de Umbelina baptizar o recém-nascido, de emergência, na ausência de padre. Não haveria tempo para chamar o abade em tempo útil, dado que consideraram o recém-nascido quase morto.

Umbelina surgiu espavorecida devido à forma como Manuel transmitira o recado. A mulher de José Ramos Costa Peixeira acudia persuadida de que Antónia se encontrava moribunda. A afamada benzedeira e alma dotada de dons etéreos, diáfanos, capazes de expulsar males e espíritos perniciosos nos seres mortais, através de rezas e benzeduras de predestinados, inteirando-se da ocorrência. Ditou, de imediato, a saída de todos ocupantes no compartimento, exceptuando mãe e recém-nascida. Até mesmo a sua cúmplice Luísa Margarida foi expulsa, sem complacência, bem ao desagrado desta que ainda quis resistir, teimando em permanecer, tentando fazer valer o estatuto de amizade intrínseca à existência de ambas, desde a infância na qualidade de vizinhas, provindas dos moinhos do Rio Bom. Poucos instantes após, Umbelina reapareceu na soleira da porta, vinda lá de dentro da habitação, sem outra frincha que não fosse a própria porta, único meio de acesso ao seu interior, lúgubre. Propositadamente, Umbelina ressurgia de ar denso, encenando ali tragédia. No entanto, não resistindo, deixou escapar um esgar de sorriso para gáudio das vizinhas ali plantadas, nitidamente, preocupadas.

- Já mama, criaturas de deus… Maria dos Anjos, leva lá a canja à tua cunhada que bem precisa. - Rematou Umbelina que, ao avistar Gerarda, afastada e pálida, disse, alto:

- Chega-te aqui rapariga que ninguém te faz mal. Já sei que foste conveniente, como o senhor abade costuma dizer. Fizeste tudo muito bem. A Antónia está muito contente contigo, rapariga.

 

 

 

2

Decorridos mais de trinta dias após o baptizado de Acácio, filho de João Evangelista Aguiar e de Inácia Joaquina Pendilhe, neto paterno de José Bento Aguiar e de Luísa Teresa Sobral, materno de António Pendilhe e de Josefa Luísa, urgia baptizar a filha de António Bernardo e de Antónia Margarida.

O padre era o mesmo, ou seja, Inácio de Almeida, da paróquia do Souto. Antónia conversou com os seus pais, residentes na freguesia do Souto. Conjecturaram vários factores: disponibilidade financeira, maior ou menor aperto na lavoura, padrinhos a convidar, enfim, os meandros que uma ocasião daquelas necessitava, dentro dos preceitos de tradição local e religiosos.

Logo ali, os avós maternos terão manifestado a vontade de figurarem como padrinhos da neta, à qual propuseram o nome de Maria (em honra de nossa senhora da lapa), Margarida louvando o sobrenome da própria mãe. Isto é, Maria Margarida Vasconcelos Peixeira. Todavia, Antónia estava avisada de que, por vontade do seu homem, os padrinhos seriam os mesmos que tinham baptizado a sua malograda falecida filha, à qual tinham posto o nome de Bárbara Maria, em honra da trisavó de António Bernardo. Antónia ia insistindo que o nome de Bárbara não tinha dado sorte. Apesar da capela dos Mozinhos ser de devoção a Santa Bárbara, ela preferia que a segunda filha fosse baptizada de primeiro nome – Maria. Para ela o segundo nome tanto poderia ser Balbina, Leonor, Luísa, José, mas não escamoteava que se lhe pusessem Maria Margarida seria para si uma atitude muito do seu agrado.

Manuel António Alexandre e Luísa Inácia da Costa. Era, então, o casal determinado para baptizar a segunda filha de António Bernardo e Antónia Margarida. António Alexandre provinha dos Mozinhos e primo de António Bernardo, por via de Leonor do Nascimento, Luísa Costa provinha também da família de António Bernardo, mas da linhagem do seu pai Manuel António da Costa Peixeira, do Souto.

Assim, reuniam-se as vontades, condescendo uns e asseverando outros, Ficou decidido no Souto o que já tinha sido aventado nos Mozinhos – os padrinhos segundo a vontade do pai e o nome em conformidade com a proposta da mãe. Antónia voltou aos Mozinhos e António incumbiu-se de ir à paróquia solicitar o sacramento ao padre Inácio de Almeida.

António Bernardo, segunda-feira seguinte, aparelhou o burrico pardo e, pela hora da sesta, ia para se pôr a andar até ao Souto, na ideia de falar com o padre Inácio. Antónia fazia o queijo, sentada no mocho de madeira e mãos na francela, espremendo a coalhada, entre a passagem da saleta e o quarto do casal onde a menina dormia, de barriguinha atestada, após mamar nas tetas da mãe.

- Mulher! Vou falar com o abade! – Atirou António, cá do meio da rua.

- António, António… Chega aqui por amor de deus.

- Já disse, não ouviste? Vou combinar o dia do baptismo.

- Eu bem ouvi, homem, mas não quero que vás assim sujo. Anda cá vestir, pelo menos, uma camisa lavada. E o burro, vai assim sem uma manta de jeito nessa albarda?

António não quis saber das objecções da esposa e largou mesmo assim, de camisa carregadinha de pó, à frente e atrás e sovacos duros de suor ressequido. Logo ali à frente, nas escadas de acesso à sala de visitas/festas de Francisco Manuel Aguiar/Maria de Jesus Costa, subiu dois degraus, puxando a rédea ao burro, saltou-lhe para o lombo, escanchando-se na albarda gasta e coberta com uma serapilheira toda esburacada.

Entretanto, Manuel de Jesus Aguiar, Francisco Manel Aguiar e o primo de ambos, António Joaquim Aguiar, este filho do tio José Bento Aguiar e de Luísa Teresa Sobral (esta tinha vindo da Trancosã), casado com Maria de Jesus Araújo, de Alcarva, àquela hora do dia, tratavam de erguer um açude no Rio Bom.

Um açude, relativamente pequeno, a montante dos lameiros da quinta de Manuel de Jesus e a jusante do fraguedo que entremeava a dita quinta e o términus dos moinhos dos Freixos (Freixo eram o apelido do avô do trio (Francisco António Rodrigues, por via de ter vindo de Freixo de Numão casar com a avó Ana Joaquina Aguiar). Esses moinhos tinha sido herança de António José Aguiar, casado com Teresa Maria dos Pereiros, irmão de Joaquim António e de José Bento.

O objectivo da obra era o de desviar água do leito cuja levada seria, posteriormente, escavada em toda a borda cimeira dos lameiros, de modo que a água escorresse por via gravitacional, tornando a erva pujante, resultando, no verão, em abundante feno.

Embora estejamos perante um afloramento geológico xistoso, ali, nas margens da ribeira (Rio bom), no local adequado à implementação do açude, as fragas são compostas por veias graníticas, entrelaçadas de xisto. Isso dificultava a extração de pedras graúdas. Um açude optimizado para a função teria de ser construído com grandes pedregulhos, susceptíveis de resistir à força das águas das enxurradas. Os três homens, através de ferros, marretas e picaretas, tentavam fatiar os penedos juntos do local.

Num serviço daqueles não havia lugar a sesta. Logo que Maria das Candeias Costa chegasse com o almoço, de cesta à cabeça, os três aproveitariam para restabelecer forças: comer, beber e descansar cerca de uma hora.

Entretanto, os pastores, tanto de Francisco Manuel, como o de Manuel de Jesus, aproveitando o período de acarrar as cabras, desciam a ladeira, na ideia de ajudarem os patrões, no momento em que Manuel afirmava para o seu irmão e para o primo de ambos:

- Já vos disse que o António Bernardo me pediu para deixar baptizar a filha na nossa capela?

- Oh, disse-me isso à Teresa. Acho que não deves deixar. Eu não autorizava… - Atirou Francisco.

- Eu não sabia nada disso, mas se fosse comigo, nem pintado. Já agora, a capela é praticamente da nossa família. Foi o tio Joaquim que a compôs não foi? – Reforçou António Joaquim.

- Claro que foi o meu pai que lhe deitou o telhado e a arranjou. Pronto, Francisco, ainda não lhe respondi porque faltava falar contigo. Mas agora já vai ter a sentença: que a baptize onde quiser, na capela é que não, nem vou dizer nada ao senhor padre, nem aos membros da paróquia. Francisco, já sabes, na próxima reunião da junta da paróquia – caladinhos quanto a esse assunto (nessa época Manuel de Jesus Aguiar e Francisco Manuel Aguiar faziam parte do elenco que dirigia a paróquia do Souto, na qualidade de vogais cujo presidente era, então, Luís Augusto Sobral, morador na povoação da Risca).

- Claro! Assunto encerrado. António, não digas a ninguém que decidimos assim: ouviste? – Concluiu Francisco Manuel, dirigindo-se ao primo.

- Não se fala mais nisso – chiu, chiu, vêm aí os primos dele. – Sussurrou António Joaquim Aguiar ao referir-se aos moços pastores que se aproximavam.

Os pastores, de facto, eram primos carnais de António Bernardo e de Maria dos Anjos, dado que eram irmãos, filhos de José Ramos Costa Peixeira e de Umbelina de Jesus. Este casal pastor, entre Mozinhos e Rio Bom, educava os filhos na arte de apascentar gado e as filhas na prestação de serviço doméstico. Tinha filhas criadas internas na Quinta do Vale, na Quinta da Retorta e, por vezes, nos Almeidas do Souto. Os garotos, logo que conseguissem andar, eram acompanhantes do pai, guardando gado na Quinta do Beselgo, baldio dos Urgais e ali pelas margens da Ribeira (Rio Bom), bordejando Mozinhos, Arcas e Bebeses. Este casal, José Ramos e sua mulher Umbelino de Jesus, ele natural do Souto e ela do Rio Bom, comparavam-se, na sua actividade e no modo de educar a prol, ao casal da povoação da Trancosã: Silvestre José e Maria do Carmo. Tanto um casal quanto o outro, forneciam moços pastores habilitados para tomar conta de qualquer rebanho, de ovinos ou de caprinos. Já Joaquim António Aguiar e Maria da Assunção Corrêa tinham tido ao seu serviço os pastores que transitariam para os filhos e herdeiros do citado casal – Manuel de Jesus Aguiar e Francisco Manuel Aguiar. Em vida dos progenitores de Manuel de Jesus e de Francisco Manuel, um deles guardava e tomava conta de rebanho de ovelhas churras e merinas, o outro, o que passou para o serviço, de Francisco Manuel, era especializado em caprinos e assim continuou, apascentando cabras lá para as possessões do novo patrão, sobretudo na margem direita do Rio Torto (Quetudagem, Carrascal e Debarrigas), Covada, Soalheira, Urgais, Canadas e Volta da Pinta… As raças eram geralmente as predominantes na região entre terras de Moncorvo e o Douro Sul, isto é, cabras serranas e do ecótipo jarmelista.

Quanto a Manuel de Jesus Aguiar, que herdou pastagens e alguns lameiros no Nogueirão, Urgais, Combarão, Quinta, Chão Vermelho, São Francisco, Perdigueira, Covada e Ribeiro do Enxudre, adotou um misto de caprinos e ovinos. Dos ovinos tinha em vista sobretudo a lã e anhos, dos caprinos pretendia lucrar com a carne de cabrito e o queijo. Nessa época ainda funcionava o pisão da Ribeira da Póvoa onde, por força da energia hídrica, se martelava a lã, sobretudo preta, para o fabrico de burel cujo rendimento era significativo. Por isso, é que tanto José Ramos como o seu sobrinho António Bernardo apostavam em carneiros merinos, de lã extensa. Teresa de Jesus Costa era tecedeira e mestre de várias garotas nos Mozinhos.

Pouco após os dois pastores se juntarem ao trio na construção do paredão do açude, surgiu a relativamente jovem, segunda esposa de Manuel de Jesus, Maria das Candeias Costa, acompanhada da sobrinha Maria da Assunção, filha de Francisco Manuel e de Teresa de Jesus Costa. A patroa carregava com uma larga cesta à cabeça e a sua sobrinha, numa mão trazia uma cesta pequena e, na outra, uma cabaça empalhada, cheia de vinho.

- Bons dias. – Falou Maria das Candeias enquanto, com muito cuidado, pousava a cesta debaixo do maior amieiro, auxiliada pela sobrinha.

- Vem com deus, mulher! – Respondeu Manuel de Jesus. Os outros deixaram transparecer um ar de sorridentes, face à chegada do almoço.

Maria da assunção transportou na cestinha um pão inteiro, cozido no dia anterior; um alguidarzito, em barro vidrado, cheio de salada de alface, cortada à juliana, já temperada com azeite, vinagre e sal; um queijo médio de cabra; cinco garfos em ferro fundido na forja de Bebeses e cinco colheres de latão, que tinham sido compradas pela sua falecida irmã, primeira mulher do seu marido, na feira da Santa Eufémia. Na cesta grande, Maria das Candeias levou cinco púcaros de barro, cheios de sopa de grão-de-bico, batata, cebola e uns farrapos de couve, ripados a dedo; uma caçoila de batatas cozidas, aparadas; uma caçoila com carne de porco, cozida. Estendeu uma toalha estopa à sobra do amieiro e os cinco homens sentaram-se em redor da comida exposta, extasiando-se com o agradável aroma do repasto. A cada um foi entregue o seu púcaro de caldo, pela mão de Maria das Candeia e, por sua vez, a sobrinha do casal e filha de Francisco Manuel, distribuiu uma colher. Os garfos, as batatas, salada e a carne foram colocados ali, à mercê dos comensais. Cada qual, com o seu garfo, comeria do recipiente comum. O vinho das cabaças seria também levado aos queijos de todos, à vez. Francisco puxou da navalha de bolso e pedia a Maria da Assunção:

- Chega-me aí o pão, minha filha.

- Também quer para aí o vinho, meu pai?

- Deixa estar para aí, minha filha, por agora não tenho sede, enchi-me de água mesmo agora.

- De onde bebeu a água, meu pai? Interrogou a rapariga, olhando em volta, dado que a ribeira ia seca.

- Olha para ali, debaixo daquela pedra. E se está boa… Está mesmo fresca. Também já te fartaste dela, não já António?

- Ai não, ai não. Isto do vinho dá maus fígados. - Gracejou o primo António Joaquim.

- Caraitas, quem vos ouvir, vai dizer que não vos dou vinho cabonde, homens de deus. – Rematou Manuel de Jesus, quando todos já tinham sorvido o caldo, empinando o púcaro nos queijos, desprezando as respectivas colheres.

Acabada a refeição, Maria das Candeias e a sobrinha arrumaram as tralhas na cesta grande, virando-se para o marido informou:

- Manuel, a cestinha da merenda fica-vos aqui pendurada no salgueiro, olha, vês?

- Bem-hajas, mulher, ide com deus.

- Deixai a cabaça, criatura… gracejou António Joaquim.

- Fica aqui ao pé da água, à sombra, meu pai.- Rematou Maria Assunção.

- Está bem, minha filha. Diz à mãe que deite alguma coisa à burra.

Enquanto Maria das Candeias e a sobrinha se dirigiram para as hortinhas do Nogueirão onde procederiam à monda de algumas plantas hortícolas e, eventualmente, colheriam alfaces tenras, os cinco homens quedaram-se mais um pouco à sombra dos amieiros. A cestinha com o pão e o queijo resguardada dos cães, sempre famintos, a cabaça do vinho repousava em lugar fresco, abrigada da canícula que já se fazia sentir.

Manuel e Francisco descalçaram os socos, aproveitando para refrescar os pés, em meiotes de algodão. António Joaquim, parcimoniosamente, descalçou também os seus socos de pau de amieiro, encimados por atanado, pôs-se ali de pés nus, não usava meias, nem meiotes.

- Chega-te para lá com isso, rapaz. Cheiras mal dos pés que tresandas – credo. – Acudiu Manuel de Jesus, aflito com o fedor dos pés do primo.

Mais a jusante, os dois irmãos pastores também já tinham descalçado os socos e um deles tinha uma meia rota num dos pés. Francisco, troçando, atirou:

- Andas de pata empanada, Luís?

- Não senhor, patrão. Quero ver se me ajeito com meiotes, pró inverno.

Foi uma risada geral, dado que os mais carenciados não calçavam meias, nem ceroulas, quer em tempo frio, temperado ou escaldante. O calçado era sempre o mesmo – socos feitos por Joaquim Fonseca. Calças de cotim saídas do artista João da Cruz, o alfaiate que veio de Penedono casar aos Mozinhos com Teresa de Jesus Aguiar (prima dos Aguiares ali). Camisas de riscado, outras camisolas e jaquetas de merino, confecionadas por Maria de Jesus. Nos Mozinhos, Trancosã e Rio Bom, Ribeira da Póvoa e Talão coexistia uma comunidade quase autónoma do contexto regional, do país e do mundo. Produzia-se linho nas margens do Rio Bom, amieiros no Rio Torto e no Rio Bom, lã preta e branca dos gados de José Ramos, António Bernardo, Manuel de Jesus Aguiar, Lino Boavida, Luís Augusto Sobral, Silvestre José, entre outros rebanhos menores; Cereais nos campos sobretudo na Trancosã, mas também em tudo que deitasse um pó de terra; castanhas nas encostas da Risca, Rio Bom e Covada dos Mozinhos; hortaliça nas hortas do Rio Bom, Ribeira da Póvoa e dos Mozinhos; Pisão da Ribeira da Póvoa; Moinhos do Rio Bom, ribeira da Póvoa e do Rio Torto. Artesãos, artistas firmados, também ali estavam: pedreiros, carpinteiros (João Evangelista dos Mozinhos, casado com Inácia Joaquina), alfaiates (João da Cruz e Matias Trindade do Mozinhos), soqueiros (Joaquim Fonseca, Mozinhos), ferrador e cesteiro (António Manuel Aguiar, Mozinhos, que veio de Alcarva com o seu pai, Caetano José Aguiar, casado com Ana Joaquina Bastos), tecedeiras na Trancosã, Rio Bom e Mozinhos. Eiras e fornos em todo o território, quer fosse para secagem de figos, quer para cozer pão. Moleiros dos mais experimentados da região da Beira Alta e do Douro Sul. Depois, havia ali azeitonas e azeite, vinho de mesa, até alguns frutos secos (avelãs, amêndoas, nozes) e fruteiras de várias espécies e épocas – cerejas, amoras, maçãs, pêssegos, figos, abrunhos, marmelos… Madeira das castinceiras que brotavam do toro dos castanheiros enxertos longal, vimes para a cestaria e lenha para os fornos do pão e as cozinhas particulares a partir do baldio dos Urgais. Um baldio que era a alma de quase toda a freguesia do Souto e algumas famílias de Bebeses. Ali se apascentavam gados e se carregavam as bestas de urgueiras, estevas, giestas e até aí se deitavam os jumentos aos rosmaninhos.

Apesar da lavoura se centrar na produção de centeio e algum trigo, não era lugar para muitas juntas de bois. A terra é magra, pedregosa, xistosa. Solos do tipo podzólicos peculiares, ou seja, uma combinação de solos podzols, leptosols e cambisols dado que não estamos perante zona fria do tipo da Rússia e de mais da Europa do Leste onde são frio e profundos, férteis. Porém são solos de elevada produtividade se bem estrumados e se for respeitada a rotatividade necessária de culturas, embora de elevada acidez. A arada de tracção asinina ajustava-se às necessidades de sementeiras e os demais granjeios. Os jumentos eram mais adequados às posses de campesinos pobres de parcos recursos. Um boi comia muito feno e necessitava de lameiro, canas, nabal, painço e outros requisitos, embora pudesse ser investimento, era muito exigente no trato e no manejo. Manuel de Jesus Aguiar tinha-se afeiçoado às éguas e queria-as em todas as tarefas – arado, cargas e sobretudo passeios, não havia melhor propósito do que montar na sua égua e ir a feiras e romarias, dar nas vistas. Francisco Manuel Aguiar agradava-se da adaptabilidade asinina nas diferentes tarefas, se bem que reservasse o seu cavalo de tromba branca para as idas de negócio, lazer e representação oficial.  Tanto Manuel de Jesus como Francisco Manuel, a exemplo do seu pai Joaquim António, avô Francisco António Rodrigues, o Freixo, e até já do bisavô deles, Pedro Aguiar, não apreciam perante as hostes religiosas e políticas, nem mandavam chamar doutor, juiz ou curandeiro no dorso de um jumento. Era uma questão de estatuto, de brio. Sempre se apresentavam hierarquicamente perante superiores em cima ou de reata à mão um exemplar cavalar. Ninguém lhes chamasse peões, eles intitulavam-se cavaleiros.

Além do mais, praticamente todas as famílias criavam um porquinho de engorda para matança na época do Natal. Certo que nem todos tinham um chiqueiro. Porém, se não houvesse cortelho criariam o seu reco na via pública, como se fossem galinhas que também cirandavam todo o dia na rua, em busca de sustento. Se tivessem cortelho e sustento para o seu porco encerrado, aproveitaria dele o estrume e a carne, se não houvesse levedura, couves, beterrabas, nabos, abóboras, farelos, aparas e outros retaços deitavam o reco em liberdade e ele lá fuçava em busca de imundices e ervas comestíveis. Nesse capítulo, os moradores dos moinhos, os moleiros, tinham maior capacidade para alimentar animais domésticos, nomeadamente o farelo, proveniente da maquia que cobravam a cada lavrador, o cliente.

António Bernardo, no dorso do seu jumento, foi seguindo caminho absorto no seu intento, o de convencer o padre Inácio de Almeida em baptizar a sua filha na capela de Santa Bárbara do Mozinhos. Sempre pouparia tempo na deslocação ao Souto e, mais importante, desafiaria o seu casal vizinho, Francisco Manuel Aguiar e Teresa de Jesus Costa. Ele sabia que se o padre da paróquia acedesse à solicitação, nenhum dos vogais teria coragem de enfrentar o abade. Entretanto, já tinha feito esse pedido a um dos vogais do Mozinhos que fazia parte do elenco da paróquia, o mais acessível, no seu entender, ou seja, Manuel de Jesus Aguiar. Mesmo sem ter obtido qualquer confirmação, ia convicto na devida autorização eclesiástica, embora informal, como era costumeiro. Bernardo António e os outros moradores, quer dos Mozinhos, quer da Trancosã, eram conhecedores de que qualquer sacramento levado a efeito na capela de Santa Bárbara ou na de Nossa Senhora da Piedade, oficialmente, só poderiam ser ali realizados se autorizados pelo bispo de Lamego. Ora, como tal diligência carência de demoras e de gastos avultados, era norma o padre da paróquia, a exemplo de outros congéneres, consagrar o feito numa das capelas e, posteriormente, registar como se tivesse tido lugar na igreja paroquial de São Pedro do Souto. Nos Mozinhos a família dos dois vogais era vezeira nessa artimanha. Tinham a mania que a capela de Santa Bárbara, embora da paróquia, na pratica, era da família deles. Corria a memória que tinham sido os pais de Manuel Jorge, tetravô de Francisco Manuel, Manuel de Jesus, António Joaquim, João Evangelista, Teresa de Jesus, Ledovina de Jesus, entre outros, a promover a edificação da capela, em honra de Santa Bárbara. Dizia-se que tinham sido os ascendentes herdeiros do antigo mosteirinho dos monges negros, regra beneditina, cuja ocupação teria sido, precisamente, no lugar da capelinha de São Francisco, que então era possessão de Manuel Jesus Aguiar, através de sucessivas heranças, por via de primogénito. O facto da capela de Santa Bárbara ter sido construída no alto, defronte da vetusta capelinha de São Francisco, afirmava-se de modo propositado cuja porta, virada a poente, não tinha sido apenas regra da igreja católica, mas, antes, de maneira que a porta de Santa Bárbara comunicasse com a capelinha de São Francisco, visto que esta ostentava abertura para nascente.

Todos sabiam que nos Mozinhos, como na Trancosã havia uma família local zeladora pela capela. Na de Nossa Senhora da Piedade tinha existido mesmo ermitão reconhecido pela hierarquia eclesiástica oficial, nos Mozinhos era consuetudinariamente atribuído esse requisito aos antecessores e aos descendentes do casal Manuel Jorge e Ana Ribeiro, pelo menos, a partir dos meados de mil e seiscentos, altura em que se supunha data da respectiva construção. Tinha sido nessa tradição que o casal Joaquim António Aguiar e Maria da Assunção Corrêa, por volta de mil oitocentos e cinquenta, mandariam proceder a grandes obras de remodelação da capela, comemorando o segundo centenário da edificação de Santa Bárbara.

Isso mesmo teria sido levado, oficiosamente, a efeito com a concordância da estrutura eclesiástica cujo momento solene teria lugar, precisamente, na cerimónia baptismal de Manuel de Jesus Aguiar, três de Março, de mil oitocentos e quarenta e nove. Assim ficou lavrado em assento de baptismo, como se tivesse decorrido na igreja de São Pedro da paróquia do Souto:

“Aos três dias do mês de Março do ano de mil oitocentos e quarenta e nove, nesta paróquia de São Pedro do Souto, de licença do Reverendo Pároco, baptizei solenemente e pus os santos óleos a Manuel de Jesus, filho legítimo de Joaquim Freixo e de sua mulher Maria da Assunção Corrêa, do lugar dos Mozinhos, desta freguesia. Neto paterno de Francisco Freixo e de sua mulher Ana Aguiar do dito lugar; neto materno de António Corrêa e de Maria da Ressureição, do lugar de Bebeses, da freguesia de Santa Margarida da Póvoa. Foi padrinho o Reverendo Padre José de Figueiredo, desta freguesia do Souto. Testemunhou o Reverendo Padre Manuel de Nossa Senhora do Carmo e Cláudio da Silva de Lima, da freguesia de Penedono. Para constar fiz este termo que assinei – dia, mês, era ut supra. Padre José Lopes; Padre Manuel de Nossa Senhora do Carmo; Cláudio da Silva de Lima.”

António Bernardo regressou cedo e mal-humorado. Levou o jumento até junto da porta da corte, ordenado para o quadrupede:

- Xó, burro. Vê lá se queres ensardinhar? Aí, xô!

- Graças a deus, já voltaste, homem. – Disse Antónia Margarida de sobre o postigo onde dava mama à sua bebé.

- O baptismo ficou para o dia vinte cinco. Lá no Souto, o padre não quer cá vir fazer o sacramento.

- Ho, deixa lá homem, faz-se a boda em casa da minha mãe.

- Nem boda nem meia boda. Que benza a criança e está feita a festa. É da maneira que não mato a badana, mais fica…

- Que dia calha a vinte cinco? A quanto estamos?

- Nem sei, nem quero saber. Só me disse que nos batipza a menina a vinte e cinco, ao meio-dia…,

 

3

Aproximava-se o dia aprazado para o baptismo, porém António Bernardo não adiantava intentos face à sua estratégia para o sacramento da filha. Antónia Margarida abordava a questão, mas António Bernardo ou mudava de assunto ou permanecia calado, indiferente, aparentemente.

Por volta do dia vinte de Junho andava António Bernardo na segada do centeio na encosta virada a nascente do lugar do Cu do Boi na companhia do seu cunhado José Joaquim Macena, dois primos do Rio Bom, filhos de José Ramos Costa Peixeira e de Umbelina de Jesus e ainda do primo Manuel António do Alexandre, este morador na freguesia do Souto.

Findo o Outubro de 1886, as castanhas inundavam de ouriços cada toro de castanheiro, geralmente da variedade longal. Nesse ano as colheitas tinham-se atrasado, dada irregularidade das estações do ano. O estio não tinha sido cálido quanto o considerado habitual. Teresa, Maria das Candeias e Inácia regressavam da Covada, no instante em que António Bernardo tirava a junta de bois da corte. Os bovinos, de hastes demasiado longas face à largura da porta, deitavam a cabeçorra de lado, de modo a poderem sair do exíguo estábulo. O lavrador avistou o trio de mulherio, um pouco abaixo do lugar onde administrava a sua junta de ruminantes, e falou:

- De onde vêm vossemecês em procissão?

- Do São Francisco, vimos de cumprir graças ao santo. E aonde vai vossemecê com os bois, ao domingo?

- O vivo tanto come nos dias santos como nos outros dias, vou-me deitá-los ao lameiro do Cu do Boi. Mas a mim não me enganam assim com meias palavras, acho que foram às castanhas lá para a Fraga.

- É verdade, estava a brincar. Olhe já escorrichámos (terminámos) tudo. Só ficaram dois saquitos que o meu homem vai trazer. – Rematou, informando, Teresa.

- E a senhora Antónia, ainda anda com os do Vale? – Quis saber Inácia.

- Oh, está ali em casa a apaigiar (mimar) a canalha!

- Oh valha-me nossa senhora do rosário, a apaigiar: Quem faz o jantar, a ceia, quem vai levar o jantar e o caldo dos cães aos do gado, quem trata dos recos? – Respondeu lá de cima Antónia Margarida, que, entretanto, se tinha assomado ao postigo com o seu bebé a sugar-lhe as mamas.