segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Mozinhos - Grão Vasco - Vasco Fernandes

GRÃO VASCO E OS SEUS. A bela exposição que está patente ao público no Museu Nacional Grão Vasco em Viseu, com o título 'Além de Grão Vasco' (comissariada por Joaquim Oliveira Caetano e José Alberto Seabra), vem ajudar a História da Arte a tomar maior consciência dos problemas que persistem em torno da chamada 'escola de Viseu'. A este propósito, permito-me tecer algumas considerações a respeito do que considero ser uma regressão de conhecimentos sobre a figura e obra de Vasco Fernandes (c. 1475-1542). O artista, considerado um dos nomes maiores da pintura europeia do Renascimento, passou de 'mito' absoluto, a quem no século XIX era atribuída toda a boa pintura antiga existente em Portugal, para uma fase (1924-2001) de natural re-conhecimento, assente em bases documentais e estilísticas sólidas, e involuíu em datas mais recentes para um plano radicalmente distinto, em que o 'corpus' da sua obra está a ser profundamente amputado...
O citado re-conhecimento de Vasco Fernandes deve-se a estudos de Maximiano d'Aragão (1897 e 1900) e Vergílio Correia (1921 e 1924), com pesquisas fundamentais e incontornáveis, que possibilitaram enfrentar seriamente o 'mito' e redesenhar a 'obra real' com bases sólidas -- facto que permitiu a Luís Reis-Santos (1946) elaborar um primeiro catálogo de obra, com cerca de noventa tábuas identificadas, 'corpus' esse acertadamente confirmado por Dalila Rodrigues (exp. da CNCDP, Palácio da Ajuda, 1992), e a que se vieram acrescentar (ao mesmo tempo que justamente se afastavam as anónimas tábuas de Linhares) um 'Calvário' da col. Alpoim Calvão e uma 'Virgem, Menino e Anjos Músicos' da igreja de Aldeia Viçosa. O panorama de conhecimentos sobre Vasco Fernandes e colaboradores estava estabelecido com grande solidez e poucos serão os artistas do século XVI sobre os quais dispomos de tantos conhecimentos em fontes primárias: desde as cinco tábuas de Lamego (1506-1511), ao tríptico Cook assinado (c. 1520), ao 'S. Pedro' da Sé de Viseu (c. 1530), às outras palas dessa Sé (c. 1535-1542), e ao 'Pentecostes' de Santa Cruz de Coimbra (assinado, c. 1535), conhecem-se nada menos que vinte e nove pinturas de Vasco absolutamente identificadas. E conhece-se, identificado também, o 'corpus' do seu colaborador António Vaz, o do seu sequaz Mestre de Lordosa, sendo ainda probabilístico reconhecer a 'mão' de outro suposto discípulo, Gaspar Vaz, em partes do retábulo de Nossa Senhora da Glória em São João de Tarouca, além de mais alguns seguidores e epígonos (de que eu próprio tratei, aliás, no catálogo da referida exposição de Viseu).
Acontece que alguns caminhos da História da Arte portuguesa recente tenderam a seguir uma via revisionista deste panorama estabelecido. Segundo as teses dos comissários da exposição, e segundo todos os trabalhos de Dalila Rodrigues posteriores ao seu catálogo da Comissão dos Descobrimentos, parece que Vasco Fernandes não pintou nem as excelentes tábuas de Cassurrães, nem o 'Judeu' do MNAA, nem as predelas do Museu de Évora (que eram de um antigo retábulo no convento do Paraíso), nem boa parte das cinco palas da Sé, nem as respectivas quinze predelas, nem parte da 'Ceia' de Fontelo, nem a tábua de Aldeia Viçosa, ou o díptico de Pindo ! Tudo isto seria pintado por Gaspar Vaz. E mesmo o importante conjunto oficinal de Freixo de Espada à Cinta -- o mesmo que um ilustre arcebispo de Braga, anterior embaixador em Roma e perito em pintura antiga, quis comprar, em 1680, por ser obra do 'insigne Vasco' ...-- seria realizado por outrém, não tendo sequer a sua direcção !
Torna-se evidente a menorização em curso da figura de Vasco Fernandes, conduzido em nome da sua suposta 'purificação'... O que se teria passado para esta radical reversão de conhecimento da figura de Vasco Fernandes, à revelia das bases histórico-estilísticas conhecidas ? Novos documentos de arquivo que surgissem ? Novas obras assinadas ? Nada disso. Dizem os comissários que se trata da análise do desenho subjacente, o qual (entre outros estudos laboratoriais) abona a presunção de haver uma segunda '«mão', excelente e unívoca, em todos esses quadros agora retirados do 'corpus' e que seriam, assim, devidos ao pintor Gaspar Vaz -- isto é, Gaspar Vaz teria pintado mesmo as predelas das palas da Sé, alcandorando-se ao nível de Vasco como um espécie de Salieri bem sucedido na apropriação da individualidade de Mozart... E isto afirma-se com toda a certeza, como um facto comprovado !
Ou seja: de Vasco Fernandes, restaria hoje cerca de metade da obra que em 1992 se reconhecia com máxima certeza como sua ! Tudo o resto passa agora, em legendas museológicas a-críticas, a integrar o nome de Gaspar Vaz como seu autor... Afinal, quem era este Gaspar Vaz, um pintor viseense formado em Lisboa mas cuja intervenção em São João de Tarouca continua nebulosa ? Que se sabe de novo que permita tributar-lhe agora nada menos que o melhor de quarenta pinturas de Vasco Fernandes ? Recordo, a noventa anos de distância, o que o grande historiador de arte Vergílio Correia escreveu, ao identificar documentalmente as tábuas da Sé de Lamego, a propósito das críticas que lhe fizera então José de Figueiredo, diminuindo a descoberta dos contratos e duvidando da autoria, apesar da força documental revelada: «Vasco Fernandes não iria entregar a outros o melhor quinhão do seu trabalho. Só procederiam de outro modo um inapto ou um santo, um por inabilidade profissional, outro por desprezo da glória terrena. Mas Vasco não foi um inapto e não conservou a tradição viseense rumores da sua santidade»...
É certo que Vasco teve colaboradores e adjuntos a pintar com ele, como era usual à época. Nada permite, porém, que o melhor das suas obras -- caso gritante são as predelas das palas grandes da Sé, e o óptimo tríptico de Cassurrães -- passem a ser exibidas com o nome de Gaspar Vaz como seu suposto autor ou co-autor !
Não será afinal a dita «mão» de superior desenho subjacente, detectada em todas estas tábuas, a do próprio Vasco Fernandes ? Problemas de arte como este justificam, por certo, amplo debate no seio da comunidade dos historiadores de arte, museólogos, conservadores-restauradores e demais técnicos de património. As obras de arte merecem que as analisemos com máxima ponderação e em sã interdisciplinariedade, discutindo as sombras de mistério que persistem a seu respeito. Mais do que todos, o Vasco Fernandes, o Grão Vasco da lenda e da História, merece que essa clarificação seja rigorosamente feita.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Mozinhos - Tarrafal/Cabo Verde - salazarismo


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Precisamente há 80 anos, no dia 29 de Outubro de 1936, chegava ao Tarrafal, em Cabo Verde, a primeira leva de 152 presos, inaugurando assim este campo de concentração do fascismo português que iria ter duas fases: até 1954 para os anti-fascistas portugueses e entre 1961 e 1974 para os nacionalistas africanos.
A 18 de Outubro de 1936 partiram de Lisboa os primeiros detidos, entre os quais se contavam sobretudo anarquistas e sindicalistas revolucionários, militantes da CGT, bem como alguns activistas ligados ao PCP (sobretudo da Marinha Grande), participantes no levantamento grevista e insurreccional de 18 de Janeiro de 1934, e alguns marinheiros que tinham participado na Revolta dos Marinheiros ocorrida a bordo de navios de guerra no Tejo em 8 de Setembro de 1936, em solidariedade com os republicanos espanhóis.
Na altura, os presos foram alojados em barracas de campanha, com arame farpado à volta, e em situação muito precária. Só depois começou a construção das estruturas de alvenaria que tornaram as condições de habitabilidade menos dramáticas.
Campo de tortura, com a célebre “frigideira” e as próprias condições climáticas e sanitárias adversas, logo nos primeiros anos de funcionamento foram vários os detidos que morreram devido a maltratos e doenças diversas, relacionadas com a falta de condições de higiene e salubridade.
Sempre em grande número, sobretudo na década de 1940, os anarquistas presos – a maioria como Custódio da Costa ou Acácio Tomás Aquino estiveram lá durante 16 anos – constituíram-se em Organização Libertária Prisional (1936-1952). A OLP foi fundamental para o apoio e solidariedade aos presos anarquistas, ao contacto com outras organizações de presos de outras ideologias, etc.
Dos 340 antifascistas que passaram pelo Campo do Tarrafal (conhecido entre os presos como Campo da Morte Lenta), entre 1936 e 1953, 32 encontraram ali a morte e muitos outros trouxeram doenças e sequelas infindáveis. Entre os mortos anarquistas conta-se o último coordenador da CGT, o ferroviário Mário Castelhano e o anarquista de Coimbra, Arnaldo Simões Januário. No Tarrafal, morreu também Bento Gonçalves, secretário-geral do PCP.
Mortos no Tarrafal:
  • Francisco José Pereira: Marinheiro, 28 anos (Lisboa, 1909 – Tarrafal 20 de Setembro de 1937)
  • Pedro de Matos Filipe: Descarregador, 32 anos (Almada, 19 de Junho de 1905 – Tarrafal, 20 de Setembro de 1937)
  • Francisco Domingues Quintas: Industrial, 48 anos (Grijó, Vila Nova de Gaia, Abril de 1889 – Tarrafal, 22 de Setembro de 1937)
  • Rafael Tobias Pinto da Silva: Relojoeiro, 26 anos (Lisboa, 1911 – Tarrafal 22 de Setembro de 1937)
  • Augusto Costa: Operário vidreiro (Leiria, ? – Tarrafal, 22 de Setembro de 1937)
  • Cândido Alves Barja: Marinheiro, 27 anos (Castro Verde, Abril de 1910 – Tarrafal, 29 (24?) de Setembro de 1937)
  • Abílio Augusto Belchior: Marmorista, 40 anos (?, 1897 – Tarrafal, 29 de Outubro de 1937)
  • Francisco do Nascimento Esteves: Torneiro mecânico, 24 anos (Lisboa, 1914 – Tarrafal, 21 (29?) de Janeiro de 1938)
  • Arnaldo Simões Januário: Barbeiro, 41 anos (Coimbra, 1897 – Tarrafal, 27 de Março de 1938)
  • Alfredo Caldeira: Pintor decorador, 30 anos (Lisboa, 1908 – Tarrafal, 1 de Dezembro de 1938)
  • Fernando Alcobia: Vendedor de jornais, 24 anos (Lisboa, 1915 – Tarrafal, 19 de Dezembro de 1939)
  • Jaime da Fonseca e Sousa: Impressor, 38 anos (Tondela, 1902 – Tarrafal, 7 de Julho de 1940)
  • Albino António de Oliveira Coelho: Motorista, 43 anos (?, 1897 – Tarrafal, 11 de Agosto de 1940)
  • Mário dos Santos Castelhano: Empregado de escritório, 44 anos (Lisboa, Maio de 1896 – Tarrafal, 12 de Outubro de 1936)
  • Jacinto de Melo Faria Vilaça: Marinheiro, 26 anos (?, Maio de 1914 – Tarrafal, 3 de Janeiro de 1941)
  • Casimiro Júlio Ferreira: Funileiro, 32 anos (Lisboa, 4 de Fevereiro de 1909 – Tarrafal, 24 de Setembro de 1941)
  • Albino António de Oliveira de Carvalho: Comerciante, 57 anos (Póvoa do Lanhoso, 1884 – Tarrafal, 22 (23?) de Outubro de 1941)
  • António Guedes de Oliveira e Silva: Motorista, 40 anos (Vila Nova de Gaia, 1 de Maio de 1901 – Tarrafal, 3 de Novembro de 1941)
  • Ernesto José Ribeiro: Padeiro ou servente de pedreiro, 30 anos (Lisboa, Março de 1911 – Tarrafal, 8 de Dezembro de 1941)
  • João Lopes Dinis: Canteiro, 37 anos (Sintra, 1904 – Tarrafal, 12 de Dezembro de 1941)
  • Henrique Vale Domingues Fernandes: Marinheiro, 28 anos (?, Agosto de 1913 – Tarrafal, 7 de Janeiro (Julho?) de 1942)
  • Bento António Gonçalves: Torneiro mecânico, 40 anos (Fiães do Rio (Montalegre), 2 de Março de 1902 – Tarrafal, 11 de Setembro de 1942)
  • Damásio Martins Pereira: Operário (? – Tarrafal, 11 de Novembro de 1942)
  • António de Jesus Branco: Descarregador, 36 anos (Carregosa, 25 de Dezembro de 1906 – Tarrafal, 28 de Dezembro de 1942)
  • Paulo José Dias: Fogueiro marítimo, 39 anos (Lisboa, 24 de Janeiro de 1904 – Tarrafal, 13 de Janeiro de 1943)
  • Joaquim Montes: Operário corticeiro, 30 anos (Almada, 11 de Setembro de 1912 – Tarrafal, 14 de Fevereiro de 1943)
  • Manuel Alves dos Reis (? – Tarrafal, 11 de Junho de 1943)
  • Francisco Nascimento Gomes: Condutor, 34 anos (Vila Nova de Foz Côa, 28 de Agosto de 1909 – Tarrafal, 15 de Novembro de 1943)
  • Edmundo Gonçalves: 44 anos (Lisboa, Fevereiro de 1900 – Tarrafal, 13 de Junho de 1944)
  • Manuel Augusto da Costa: Pedreiro (? – Tarrafal, 3 de Junho de 1945)
  • Joaquim Marreiros: Marinheiro, 38 anos (Lagos, 1910 – Tarrafal, 3 de Novembro de 1948)
  • António Guerra: Empregado de comércio, 35 anos (Marinha Grande, 23 de Junho de 1913 – Tarrafal, 28 de Dezembro de 1948)
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Uma autêntica multidão acompanhou os restos mortais dos portugueses assassinados no campo de concentração do Tarrafal em direcção ao cemitério do Alto de S. João, em Lisboa, Fevereiro de 1978. O anarquista Acácio Tomás Aquino, entre outros, fez parte da Comissão  que organizou a Homenagem Nacional aos Antifascistas Mortos no Tarrafal:
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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Mozinhos - Cabo Verde




O Legado de Nhô Filili: Quando a literatura luso-cabo-verdiana se encontra com a Guiné 

Beja Santos 

“O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012, é um romance originalíssimo escrito por alguém que tem aprofundado conhecimento sobre a mestiçagem e a Cabo-verdianidade, trata-se de um registo poderoso de multiculturalidade em tempos da abolição da escravatura. A figura central é João Bento Rodrigues, conhecido por Filili, filho de minhotos, nascido na Ilha do Fogo. Será proprietário e funcionário régio, diretor local das alfândegas, irá afrontar a sociedade do seu tempo casando-se com a escrava Maguika, capturada nas matas da Guiné. É uma história de amor mas é acima de tudo um muito bem organizado romance histórico que tem o seu ponto de partida em 1869 (ano em que a monarquia portuguesa decretou a abolição da escravatura) e o seu termo será o período em que estão a eclodir as independências africanas.

É mesmo um romance histórico no seu figurino mais rigoroso: um cenário plausível, uma atmosfera de viragem, uma estrita compreensão das economias coloniais, um domínio absoluto da vida cabo-verdiana a partir do último quartel do século XIX. Dado o recorte da personalidade de Filili, a trama irrompe na Praia da Bateria, Filili, conhecido no meio local por Nhô Joãzim compra uma escrava ao corretor Abílio. Chama-se Maguika, mas Filili dá-lhe o nome de Guida, Margarida Gomes Fernandes. Guida é de etnia Papel, os tangomaus, intermediários no comércio de escravos, fora capturada por Bijagós, e ali estava. Os afetos prontamente faíscam:
“À medida que o tangomau desagrilhoava os tornozelos da fêmea nova e Filili pousava nela o olhar, estabeleceu-se uma clara empatia entre ambos. Ele quis saber se a sua nova escrava entendia a língua portuguesa ou o crioulo, mas de repente achou-se ridículo, não era suposto o escravo capturado entender o linguajar dos aculturados, e muito menos o do colonizador. Arrependido da observação, como se tivesse acabado de ofender a menina, Filili emudeceu. Mas ela, a quem jamais se ouvira uma palavra, atirou num português claro de sotaque arredondado: - Sou Maguika.”.

Enceta-se um romance em que a escrava fica como que numa aprendizagem de um Pigmalião, esse Filili asceta, cristão devoto e negociante irrepreensível. É esta menina vinda da Guiné que lhe irá dar coragem para enfrentar os negreiros, pôr em prática as normas régias tendentes a restringir e disciplinar o tráfico de escravos nos portos de Cabo Verde. O romance histórico entremeia informação que contextualiza o comércio negreiro ao longo dos séculos com o amadurecimento da relação entre Guida e Filili. Este restringe a sua vida social, deixa de ir aos bailes dos sobrados da elite, há mesmo uma apaixonada, de nome Antonieta, que não desarma. E as peripécias sucedem-se: 
Leila, a amante de Filili, que dele estava grávida, viaja com Abílio, pai de Antonieta, o guarda-costas Abel mata-o a pontapé para lhe roubar uma boa maquia e rapta Leita, leva-a pelo caminho dos desfiladeiros em direção às montanhas dos rabelados, era ali que viviam os escravos fugidos em redutos fortificados. E de uma assentada Antonieta teve dois desgostos: após o funeral do pai, abriu o cofre onde este guardava o dinheiro e descobriu que caminhavam para a miséria; e descobriu que Filili andava perdido de amores pela escrava guineense.

A descrição do processo educativo de Guida é um primor de análise em torno dos meandros do que seria uma educação romântica na colónia portuguesa com maior sedimento cultural. Mesmo a incandescência da paixão é pintalgada com cores ténues, expressões contidas:
“À terceira vez que sentiu passos no corredor, a escravinha tomou coragem e, de um salto, saiu da cama. Ao assomar-se à porta do quarto, deu caras com Filili, que caminhava para a frente e para trás, aparentemente insone. Mas, quando ele se voltou e viu o corpo da sua Guida à transparência da camisa de dormir, não aguentou mais e correu para ela, abraçando-a e beijando-a num sufoco. Ela, evidentemente, correspondeu.
Filili era, porventura, o homem de pele mais clara do arquipélago de Cabo Verde e Guida uma das negras mais escurinhas. Mas, no rolar dos corpos, ter-se-ão, de tal modo, misturado um com o outro que ficou sem se saber, exatamente, onde começaria o branco dele e acabaria o negro dela”.

E Filili confronta-se com os costumes da sociedade cabo-verdiana, passa a viajar na companhia de Guida levando consigo o cónego Teixeira, como se o representante o igreja o protegesse da má-língua. Luís Urgais enquadra com mestria os ambientes, as festas, a vida de interior, os protocolos, a vida rural, é um artífice laborioso, bem documentado, que empurra a leitura de uma página para outra. A viagem entre o Fogo e a Brava, num canal onde subitamente estala a tempestade, é de elevada pirotecnia literária. Igualmente contido quando disseca a sociedade feudal cabo-verdiana. E naquele cheiro de uma África com odores de água salgada e vegetação rasteira, o cónego Teixeira casa os dois amantes, um homem caucasiano de pele muito clara, descendente de minhotos, com uma negra da Guiné.

Não há paixão angelical que sempre dure, vão chegar os filhos, entra-se num período de marasmo de secas e de fomes cíclicas. O filho mais velho, de nome Armando Napoleão, ia a filha mais velha, Leonilde Amélia (Titcha), vão revelar-se dois trastes. Somos inseridos nas atmosferas fúnebres, aquela estiagem é interminável, as nascentes secam, o povo está à míngua. O autor exponencia a importância de Joana, a criada que vem dos tempos da infância de Filili e que há-de acompanhar Guida, tem um papel fundamental na narrativa, realçando pelas histórias que conta a força da esperança, a vibração do sonho. Chega-se à República e ao Estado Novo, há jovens cabo-verdianos que partem à busca de uma vida melhor na metrópole. Durante a guerra, o Mindelo iria funcionar como asilo para muitos europeus. O porto de Dakar irá substituir pela importância que no passado tiveram os portos cabo-verdianos. José, o filho dos amores de Leila e Filili, irá ser educado pelo pai e madrasta, é um modelo de virtudes. No envelhecimento, Filili descobre que os filhos mais velhos lapidaram património. Filili desaparece, Guida vai ser repudiada por esses filhos rapazes. No auge da dor, Joana conta uma história exemplar a Guida, exatamente naquela praia em que se tomara de amores por Filili. Está só, mas confia plenamente nesse enteado exemplar. E toda esta história que tem como cenário a evolução de Cabo Verde, este retrato de uma África bela e sedutora, uma verdadeira metáfora da história da mestiçagem biológica e cultural de que Cabo Verde foi exemplo acabado, termina com um pensamento de Guida para o seu Joãzim, ela dá conta de uma borboleta branca que por ali esvoaça, prenúncio de boas novas:
“Olhou o mar diante de si e abriu um sorriso do tamanho do mundo”.

Uma grande surpresa para a lusofonia, esta promessa literária de Luís Urgais. 

domingo, 31 de julho de 2016

Mozinhos - Sebadelhe - Prazo - Touça

Vestígios de ocupação Pré-Histórica,ocupação Romana e Medieval.São visivéis a \"pars Fructuária\" e as \"pars Urbana e Rústica\" de uma importante villa Romana.A casa senhorial Romana foi substituída,entre os séc. V e XIII d.c. por um templo Paleocristão.Uma estela e um ménir em granito marcam os rituais religiosos e funerários de uma Pré-História de tempos muito recuados.

Como ir:

De Foz Côa pela E.N.102 segue na direção da Guarda.A 3 Km.,vira à direita no cruzamento Pesqueira/Régua para Touça pela E.N.222.Depois da localidade de Touça encontra a sinalética de sítio do Prazo na E.N.222.Vir à direita e suiga até ao local das ruínas.

Aberto ao público:

Sim
 

terça-feira, 5 de julho de 2016

Mozinhos: Memórias Paroquiais

Souto

PT-TT-MPRQ/35/232, Memórias paroquiais, vol. 35, nº 232, p. 1653 a 1658
Descrição desta vila de Souto de Penedono mandada fazer pelo Excelentíssimo e Reverendíssimo Bispo por recomendação de Sua Majestade Fidelíssima que Deus guarde.
1. Esta vila do Souto de Penedono, cognome, que se lhe impôs, por estar uma pequena légua de Penedono, para diferença de outros Soutos, que há e não porque de Penedono tivesse ou tenha alguma dependência, mas antes consta do foral desta vila, que foi exarado no tempo do Senhor Rei D. Manuel de gloriosa memória, ser do couto de Leomil, terra, que hoje é do Exm.º Marquês de Marialva. Fica na província da Beira, bispado de Lamego, comarca de Pinhel, tem seu termo, mas não que tenha outros lugares ou aldeias e tem uma só freguesia.
2. É de El Rei Nosso Senhor, sem que haja fama, fosse de donatário salvo no tempo, que estava inclusa no couto de Leomil, que então dele se verifica ser do senhorio dele.
3. Tem cento e quarenta e cinco vizinhos, e o número de pessoas entre maiores e menores quatrocentas e vinte.
4. Está situada na falda de um pequena serra, que a faz abrigada do vento tempestuoso, se bem exposta ao Norte, desta se descobre a Praça de Almeida, Castelo Rodrigo, Escalhão, em distância de dez léguas, e na de duas se vê Freixo de Numão e Sebadelhe, e na de uma légua aparece Numão com seu castelo e muros, que dizem foi a antiga Numância, que tanto resistiu aos romanos, ainda que pequena povoação, que hoje há esta fora deles, também está à vista o lugar dos Pereiros, que é do termo de S. João da Pesqueira, terra do conde do mesmo nome.
5. Não tem esta vila aldeias, ou anexas, mas só sim algumas quintãs ou pequenos lugares que se incluem na mesma freguesia, [f. 1654] dos quais um se chama Arcas e terá vinte e cinco vizinhos, o segundo se nomeia Mozinhos e contém doze moradores, o terceiro se diz Trancosã e tem sete, o quarto e último se apelida Risace tem cinco
6. A paróquia ou igreja está dentro da mesma vila, a que se agregam as quintas ou lugarejos mencionados.

7. O seu orago é o glorioso Apóstolo S. Pedro, tem a igreja três altares, o maior em que está o tabernáculo, São Pedro ao lado de Evangelho e Santo António da Epístola, nos dois colaterais, no do lado direito está uma devota imagem de N.ª Senhora do Rosário, no do esquerdo uma imagem de Cristo Senhor Nosso Crucificado e esculpido de uma e outra parte, Nossa Senhora ao seu colo e o discípulo amado. A igreja tem uma nave, há nela uma Irmandade das Almas, que se compõem das pessoas da mesma freguesia e de muitas das vizinhas.

8. O pároco é abade. É abadia do Padroado Real de Sua Majestade que Deus guarde. Terá de renda para o abade trezentos mil réis e para a Santa Igreja Patriarcal de Lisboa duzentos, que entra na dita renda.

9. Não tem, nem nunca teve, beneficiados, nem benefícios simples.

10. Da mesma sorte não tem conventos de religiosos, nem religiosas, nem consta os houvesse.

11. Também não há hospital, nem casa de misericórdia.

12, 13, 14. Dentro da mesma há duas capelas, uma de Nossa Senhora das Mercês, que é de um Francisco António da Torre de Moncorvo, Província de Trás-os-Montes, que aqui tem um seu morgado, outra popular da invocação de Nossa Senhora ao pé da Cruz, [f. 1655] onde também está uma imagem do invicto Mártir S. Sebastião, e indo da freguesia para a quintã de Arcas, que distará meia légua, houve uma capela com meio caminho de Nossa Senhora da Lapinha, porque uma grande lapa lhe servia de forro, no tecto na maior parte dela, porém já antes do Terramoto de mil setecentos e cinquenta e cinco mostrava algum abalo e menos firmeza, com o terramoto muito mais e daí a pouco tempo caiu a dita lapa e se arruinou a capela, agora se quis edificar de novo junto da arruinada, e poderá conservar o nome pela antiga posse, mas não na realidade; na quintã de Arcas há uma capela dedicada ao Divino Espírito Santo, onde os vizinhos têm capelão a quem pagam, que diz missa nos

dias de preceito, para os que não podem ir à paroquial; nos Mozinhos há outra capela de Santa Bárbara; na Trancosã, que é outra quintã, outra de Nossa Senhora Piedade, que haverá quarenta anos foi muito frequentada de romeiros pelos muitos milagres, porém hoje apenas no Verão aí aparece algum; estas capelas estão dentro dos seus lugares e são dos seus moradores, porém o direito de apresentar ermitãos ou capelães para as missas pertence ao abade da dita freguesia.

15. Os frutos da terra de toda há mediana, só o azeite é menos e maior cópia é de castanhas, donde sem dúvida se derivou o nome da freguesia.

16. Tem dois juízes ordinários que também servem dos órfãos, dois vereadores e um procurador do concelho, e escrivão da câmara, que todos a constituem, sem sujeição às justiças de outra vila só ser da correição do corregedor de Pinhel, e Provedoria da cidade de Lamego.

17. Não é couto e por si é concelho e vila de Sua Majestade, [f. 1654] que Deus guarde, e pagam cada um de seus moradores a parte de um alqueire de trigo cada ano, e não só os moradores, mas qualquer pessoa de fora, que aqui tenha bens de raiz, por mínimos que sejam.

18. O tempo, que tudo risca da memória, não a deixou de sujeitos que daqui se singularizassem notoriamente nas virtudes, armas ou letras.

19. Nesta vila, nem dentro do seu termo, não há no decurso de todo o ano feira ou mercado algum.

20. Da mesma sorte não há nela correio, e se serve do da vila de Freixo de Numão, que dista daqui duas léguas.

21. Dista esta vila da cidade de Lamego, que é a metrópole e cabeça do bispado oito léguas, e da cidade de Lisboa capital do reino sessenta.

22. Tem esta vila privilégio, para se elegerem no princípio do ano por eleição tabeliães e escrivão de órfãos, dando-lhe ao depois de eleitos o corregedor de comarca provimento aos tabeliães, e o provedor ao dos órfãos, o que não há nas vilas vizinhas.

23. Não há fonte, nem lagoa célebre, nem águas de especial virtude.

24. Não há porto de mar, mas antes dista este, donde é mais perto, vinte léguas, que tantas há daqui à cidade do Porto.

25. A vila não é murada, nem consta, nem há vestígios, que fosse em nenhum tempo, e por isso não é, nem foi nunca praça de armas, nem há nela, nem na vizinhança castelo ou torre.

26. Não padeceu ruína no terramoto do ano de mil e setecentos e cinquenta e cinco além da capela de Nossa Senhora da Lapinha acima referida, que trata de reparar-se. [f. 1657]

1. O rio desta freguesia corre para a banda do Nascente, o rio Torto, nome que sem dúvida tem, porque correndo por Terras ásperas faz muitos giros.

2. Nasce em uma fonte, que se chama a fonte do Milho, daqui três léguas ou duas e meia, entre as Antas e a vila de Trancoso, não é caudaloso, mas antes os mais dos anos estéreis e faltos de água seca no Verão, ainda que no Inverno corre precipitado.

3. Não entram nele rios de nome, salvo alguns regatos sem nome, ainda que muitos, por serem as terras e país montanhosas e pouco planas.

4. Não é navegável, e como seca os mais dos meses, não cria, senão alguns pequenos pisciculos, que nascendo em águas novas, acabam no estio.

5. As suas margens se cultivam, se bem em poucas partes se rega com as suas águas, tanto, porque nestes tempos não corre, como porque nas suas vizinhanças não há boas terras.
 
6. O seu curso será de sete ou oito léguas e correndo por entre os povos de Antas, Ranhados, Poço do Canto, Cedovim, Souto, Póvoa, Pereiros, Valongo, Trevões, São João da Pesqueira, Castanheiro, Ervedosa, entra no rio Douro, entre a vila de Valença e Casais, onde perde o nome e o pouco cabedal de suas águas.
7. Tem muitos moinhos de moer pão com seus açudes que ordinariamente não moem todo o ano por falta de água. [f. 1658]
8. Tem oito ou nove pontes, todas de pau que também há rios sem ventura, mas a causa vem a ser, porque as terras por onde passa são quentes e de pedra piçarra ou bruzinha, e a mármore fica distante para a sua condução.
9. Por cima da quintã de Arcas, que como está dito pertence a esta freguesia, e por baixo da vila de Penedono no meio nasce um pequeno rio, a quem se dá o nome de rio Bom, que terá quase uma légua de curso e fenece no dito rio Torto, tem moinhos de cubo, que moem quase todo o ano, ainda que no Verão mais lentamente, e por acórdão das justiças estão adjudicados três dias da semana para regar os seus arredores e os mais para moerem os moinhos.
Não há serra que se faça ponderável, nem digna de memória, nem outras notabilidades dignas de se expressarem, que as terras humildes e pequenas em tudo são.
O abade Francisco da Costa Paiva

Souto do Penedono, Pinhel - Memórias paroquiais, vol. 35, nº 232, p. 1653 a 1658
Transcrição
(fl. 1653) <D’el rey Souto do Penedono comarca de Pinhel> n. 232
Descripçam desta villa do Soutto de Penedono mandada fazer pelo Excelentissimo e Reverendissimo senhor bispo por recomendaçam de sua Magestade Fedelecima que Deus guarde.
1 Esta villa do Souto de Penedono, (cognome que se lhe impôs por estar huão piquena legoa da Penedono, para differença de outros Souttos que há e nam porque de Penedono tivesse ou tenha alguma dependecia mas antes consta do foral desta villa, que foi exarado no tempo do senhor rey D. Manoel de glorioza memoria, ser do coutto de Leomil, terra que hoje he do Excelentissimo Marques de Marialva)[1], fica na provincia da Beyra, bispado de Lamego, comarca de Pinhel, tem seu termo mas nam que tenha outros lugares ou aldeyas e tem huma só freguezia.
2 He de el rey nosso senhor sem que haja fama, fosse de domnatario salvo no tempo que estava incluza no coutto de Leomil, que antam delle se verefica ser do senhorio delle.
3 Tem cento e quarenta e sinco vezinhos e o numero das pessoas entre mayores e menores coatrocentas e vinte.
4 Está situada na falda de huma piquena serra que a faz abrigada do vento tempestuozo se bem exposta ao norte desta se descobre a praça de Almeyda, Castello Rodrigo, Escalham, em distancia de des legoas e na de duas se veem Freixo de Numam e Sabadelhe e na de huma legoa apparece Numam com seu castello e muros que dizem foi a antiga Nomamcia que tanto rezistio aos romanos, ainda que a piquena povoaçam que hoje há esta fora delles tambem está à vista o lugar dos Pereyros que hé do termo de S. Joam da Pesqueira, terra do conde do mesmo nome.
5 Nam tem esta villa aldeyas ou annexas mas só sim algumas quintans ou piquenos lugares que se incluem na mesma (fl. 1654) freguezia dos coais hum se chama Arcos e terá vinte e sinco vezinhos, o segundo se nomea Mozinhos e contem doze moradores, o terceiro se dis … e tem sete, o quarto e ultimo se appellida … e tem sinco.
6 A parochia ou igreja está dentro da mesma villa a que se aggregam as quintans e logareijos mencionados.
7 O seu orago hé o gloriozo appostolo S. Pedro tem a igreja tres altares o mayor em que está o tabernaculo e Sam Pedro e o lado do Evangelho e Santo Antonio da Epistola nos dois colaterais no do lado direito está huma distinta(?) imagem de Nossa Senhora do Rozario no do esquerdo huma imagem Christo Senhor nosso crucificado e esculpidos de huma e outra parte Nossa Senhora ao pé da crux e o dissipolo amado a igreja tem hum só nave há nella huma Irmandade das Almas que se compoem das pessoas da mesma freguesia e de romeires(?) das vezinhas.
8 O parocho hé abbade hé abbadia do padroado real de Sua Magestade que Deos goarde terá de renda pera o abbade trezentos(?) mil reis e pera a Santa Igreja patriarcal de Lisboa duzentos que entra na dita renda.
9 Nam teve, tem nem nunca teve beneficiados nem benefícios simpleces.
10 Da mesma sorte nam tem conventos de religiozos nem religiozas nem consta os houvesse.
11 Tambem nam há hospital nem Caza da Mizericordia.
12 Dentro da mesma há duas cappellas huão de Nossa Senhora das Merces que hé de hum Francisco Antonio da Torre do Moncorvo, provincia de Tras dos Montes que aqui tem hum seo morgado 13 outra popular da invocaçam de Nossa Senhora aqui (fl. 1855) da Crux aonde tambem está huma imagem do martir mayor S. Sebastiam e honde da freguezia para a quinttam de Arcos que dista meya legoa houve huma cappella com meyo caminho de Nossa Senhora da Lapinha porque huma grande lapa lhe servia de forro no leito na mayor parte della porem já antes do terremotto de mil e setecentos e sincoenta e sinco mostrava algum aballo e menos firmeza com o terremotto muito mais e dahy a pouco tempo cahio a dicta lapa e se arruinou a cappella agora se quer edificar de novo junto da arruinada e poderá conservar o nome pela antiga posse mas nam na realidade; na quinttam de Arcos há huma cappella dedicada ao divino Spirito Sancto aonde os vezinhos tem cappellam a quem pagam que dis missa nos dias de … pera os que nam podem ir a parochial, nos Mozinhos há outra cappella de Santa Barbora, na Travazam(?) que hé outra quinttam outra de Nossa Senhora da Piedade que haverá quarenta anos foi muito 14 frequentada de romeyros pelos muitos milagres porem hoje apenas no veram ahy apparece  algum, estas cappellas estam dentro dos seos lugares e sam dos seos moradores porem o direyto de apprezentar hermittoens ou cappellaens pera as missas pertence ao abbade da dicta freguezia.
15 Os fructos da terra de todos há mediania só o azeite hé menos, o mayor … hé de castanhas, donde sam duvida de deriva o nome da freguezia.
16 Tem dois juizes ordinarios que tambem servem dos orphans dois veriadores e hum procurador do concelho e escrivam da camera que todos se conservam(?) sem subjucam as justiças de outra villa só ser da correiçam do corregedor de Pinhel e provedoria da cidade de Lamego.
17 Nam he coutto e por si he concelho e villa de Sua Magestade (fl. 1856) que Deos goarde e pagam cada hum de seos moradores a parade(?) de hum alqueire de trigo cada anno e não só os moradores mas coalquer pessoa de fora que que aqui tenha bens de rais, por mínimos que sejam.
18 O tempo que tudo risca de memoria não a deixou de subjeitos que daqui se singularizassem notoriamente nas vertudes, armas ou letras.
19 Nesta villa nem dentro do seu termo nam há no discursso de todo o anno feira ou mercado algum.
20 Da mesma sorte nam há nella correio e se serve do da villa de Freixo de Numam que dista daqui duas legoas.
21 Dista esta villa da cidade de Lamego que hé a metropole e cabeça do bispado outo legoas e da cidade de Lisboa capital do reyno sesenta.
22 Tem esta villa previlegio para se elegerem no principio do anno por eleiçam tabaliaens e escrivam dos orphans dando lhe ao depois de eleito o corregedor da comarca provimento aos tabaliaens e o provedor ao dos orphans o que nam há nas villas vezinhas.
23 Nam há fonte nem lagoa celebre nem aguas de especial virtude.
24 Nam há porto de mar mas antes dista esta donde hé mais perto vinte legoas que tantas há daqui a cidade do Porto.
25 A villa não he murada nem consta nem há vestigios o fosse que em nenhum tempo e por isso nam hé nem foi nunca praça de armas nem ha nella nem na vizinhança castello ou torre.
26 Nam padeceo ruina no terremoto do anno de mil e setecentos e sincoenta e sinco alem da cappella de Nossa Senhora da Lapinha asima referida que tracta de repararsse.
(fl. 1857) 1 Perto desta freguezia corre para a banda do nascente o rio Torto nome que sem duvida tem porque correndo por terras asperas faz muitos giros.
2 Nasce em huma fonte que se chama a fonte do Milho daqui três legoas ou duas e meya entre as Anttas e a villa de Trancozo não he caudelozo mas antes os mais dos annos estereis e faltos de agua seca no veram ainda que no inverno corra pecipitado.
3 Nam entram nella rios de nome salvo alguns regatos sem nome ainda que muitos por serem as terras e pais monsuozas(?) e que o planas.
4 Nam he navegavel e como seca os mas dos veroens nam cria senam alguns piquenos pisciculos que nascendo com aguas novas acabam no estio.
5 As suas margnes se cultivam se bem em poucas partes se rega com as suas aguas tanto porque nellas <como> não corre como poque nas suas vizinhanças nam há boas terras.
6 O seu cursso será de sete <ou> outo legoas e correndo por entre os povos de Antas, Ranhados, Peso do Canto, Cedovim, Soutto, Povoa, Pereyros, Vallongo, Trevaens(?), Sam Joam da Pesqueira, Castanheiro, Ervedoza, entra no rio Douro entre a villa de Valença e Cazais, aonde perde o nome o pouco cabedal de suas aguas.
7 Tem muitos moinhos de moer pam com suas acudes que ordinariamente nam moem todo o anno por falta de agoa.
(fl. 1858) 8 Tem outo ou nove pontes todas de pau que tambem há rios sem ventura mas a couza vem a ser porque as terras por onde passa sam quentes e de pedra piçarra ou louzinha e a marmore fica distante para a sua condução.
9 Por sima da quintam de Arcos que como esta dicto pertence a esta freguezia e por baxo da villa de Penedono no meyo nasce hum piqueno rio a quem se dá o nome de Riobom que terá quasi huua legoa de cursso e fenece no dicto rio Torto, tem moinhos de … que moem quasi todo o anno ainda que no veram mais lentamente e por acordans das justiças estam adjudicados tres dias da somana para regar os seos redores e os mais para moerem os moinhos.
Nam há serra que se faca ponderavel nem digna de memoria, nem outras notabilidades dignas de se expressarem que as terras humildes e piquenas em tudo o sam.
O abbade Antonio da Costa Payva [assinatura autógrafa]
 


[1] Nota: pontuação existente no documento original.

    

domingo, 3 de julho de 2016

Mozinhos: Quinta do Talão e Quinta do Alberto

 Mozinhos a partir da Quinta do Alberto...
Mozinhos, a partir da Quinta do Alberto
Quinta do Talão, já se não notam os acessos...
Casa da Quinta do Talão (em ruínas)
Na foz da Ribeira da Póvoa (ponte que liga Póvoa aos Pereiros (Rio Torto), junto à casa da Quinta do Talão.

Panorama actual da Quinta do Alberto

Nas margens do rio Torto, entre as freguesias da Póvoa (Penedono) e Pereiros (São João da Pesqueira), Mozinhos, Quinta do Alberto, Rio Bom e Quinta do Talão (entre outras pequenas localidades) formam um conjunto de antigos lugares habitados de antiquíssimas tradições culturais, económicas e sociais. Havia casais radicados em quintas e lugares que se dedicavam à agricultura, à pastorícia e à moagem hídrica, de relevância local e regional. Todavia, praticamente tudo e desvaneceu, sobretudo, com a queda abrupta dessas actividades, nomeadamente, a partir da entrada de Portugal na moeda única, o €. Pelo menos, ao longo do século XIX e, porventura, até meados do século XX, sucederam família de moradores no Talão e na Quinta do Alberto em regime de caseiros cujos proprietários residência nas cidade do Porto e de Lisboa, usufruindo dos rendimentos, deixando aos caseiros parcos ganhos, muito trabalho e imensas canseiras. Eram caseiros sobretudo originários dos Mozinhos, da Ribeira da Póvoa e dos Pereiros - a penúltima caseira da Quinta do Alberto apresentou-se assim: nasci nos Mozinhos, baptizaram-me no Souto, andei na escola primária do Souto (1ª classe), levaram-me para a Quinta do Talão, fui para a escola dos Pereiros até à terceira classe, casei na igreja dos Pereiros (marido da Ribeira da Póvoa), tive boda de casamento na casa da Quinta do Talão, voltei a morar nos Mozinhos onde tive um filho, fui moleira na Ribeira da Póvoa onde tive uma filha e aprendi a ser moleira, fui morar, de caseira, para a Quinta do Alberto onde criei dois filhos, fui morar para a Ribeira da Póvoa, depois para a Póvoa onde enviuvei e agora estou em Penela...
Pelo Talão passaram, dos Mozinhos, pelo menos, Joaquim Fonseca e Ana Joaquina e Manuel Macena e Isaura Grelo (esta do Rio Bom), dos Pereiros o "Zé Grande, com a filharada, e o "Crocheta"...

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Moinhos - Mozinhos- Bebeses- Arcas- Rio Bom- Ribeira da Póvoa- Rio Torto

Relação dos moinhos accionados por água e a vapor existentes no concelho de Penedono, 1938



Nome do Proprietário
Freguesia
Localização
Obs.


Afonso Marques
Antas
Antas
A Vapor
Basílio Augusto
Antas
Ponte Pedrinha
Hídrico
Diamantino da Trindade Ramos
Antas
Ponte Pedrinha
Hídrico
António Augusto Mateus
Beselga
Beselga
-
Maria de Jesus
Beselga
Beselga
-
José do Espírito Santo Vilaça
Castainço
Castainço
-
Gracinda de Jesus Constança
Castainço
Castainço
-
Manuel dos Santos Costa
Castainço
Castainço
-
Abel do Nascimento Sequeira
Ourozinho
Ourozinho
-
António Pereira Sequeira
Ourozinho
Ourozinho
-
José Maria Ribeiro
Ourozinho
“Dourada”
-
Ana do Carmo, viúva.
Penedono
Ado Bispo
-
José dos Santos Gomes
Penedono
Penedono
A Vapor
Tristão Augusto Abrunhosa
Penela
Penela
-
Joaquim Simão
Póvoa
Ponte da Veiga/Ribeira
Hídrico
José António Freixo
Póvoa
Ponte da Veiga/Ribeira
-
José Joaquim Filipe
Póvoa
Ponte da Veiga/Ribeira
-
Manuel de Jesus Ribeiro
Póvoa
Ponte da Veiga/Ribeira
-
Maria de Jesus Tomaz
Póvoa
Ponte da Veiga/Ribeira
-
Abílio Mendes
Souto
Rio Torto
-
“Viúva de Manuel Mendes”
Souto
Rio Torto
-
Francisco António Freixo
Souto
Rio Bom
-
João Manuel Grelo Marques
Souto
Rio Bom
-
Manuel Joaquim Gomes
Souto
Rio Bom
-

Moleiro, a jusante de Arcas.

[1] Moleiro, a jusante de Ranhados onde foi constrida a barragem actual.

 
[1]Os moinhos das duas margens do Rio Bom foram em maior número, no entanto, esta foi a relação elaborada pelos serviços da Câmara Municipal de Penedono e enviada para o Governo Civil de Viseu, em 1938. Todos os moinhos do Rio Bom, Ribeira da Póvoa/Ponte da Veiga e Rio Torto eram movidos a água, a partir de açudes e diques construídos nos respectivos leitos. Cada moleiro, particularmente no Rio Bom, possuía mais do que um engenho. Utilizavam geralmente uma mó para moer o trigo, outra para o centeio. Em certos casos, como, por exemplo, Francisco António Freixo/ Natividade Grelo, tinham ainda uma mó para o grão (grão de bico e garrobas) e outra para o milho, estes detinham três moinhos (um apetrechado com duas mós) em cadeia cuja levada percorria os engenhos de cima a baixo, desviada a água por um açude a montante e a meio curso por um dique, juntando-se no terceiro moinho e retomando logo o leito ao acabar de mover o engenho do quarto moinho (o primeiro e cimeiro foi de outros moleiros), rente ao rio. Embora esta relação de 1938 refira os moinhos aqui expostos, havia no conjunto das habitações de anteriores engenhos moradores que se dedicavam à agricultura, à pastorícia e às jornas, nomeadamente na quinta da Retorta, destaque-se os do moinho do Bento, do Chega à Riba e os do Freixo, estes nas duas margens, perto dos Mozinhos. No total dos núcleos que se dedicaram à actividade da moagem, no Rio Bom, ficaram conhecidos os nomes dos últimos moleiros/moradores: Manuel Joaquim Gomes/Dolorosa (margem direita, freguesia do Souto, próximo da quinta de Arcas); Lúcia (margem direita); Caldeirão (margem direita); Natividade/ Francisco António Freixo (margem esquerda), freguesia da Póvoa, lugar de Bebese), este faleceu em 1956, mas a viúva manteve-se ainda na década de 1960, falecendo em 1997; Mouco (margem direita); Grelos (margem direita) [João Manuel Grelo/ Maria do Carmo Marques], pais de natividade e de Cândida, mulher de Manuel de Jesus Grilo, o bento; Bento (margem esquerda); Chega à Riba (margem esquerda); Freixos (ambas as margens) [Joaquim Freixo/Mafalda]. No Rio Torto existiram vários engenhos, a jusante dos acima citados, quase todos destruídos com cheias da década de 1960. Na Ribeira da Póvoa, até mais tarde ficaram na memória colectiva mais tardia os moinhos do Guerra, do Mocho e do Nascimento (este o último a deixar de laborar e familiar da família do Rio Bom, a Lúcia).