HERESIAS - CONTOS LUSÓFONOS E AEROGRAMAS COLONIAIS
Resumo
Trata-se de um conjunto de textos ficcionados a partir de aturada
investigação da História Local e Regional.
Por um acaso, em trabalho de pesquisa nos Arquivos da Torre
do Tombo em Lisboa, acerca da influência judaica na nossa região do Douro Sul,
deparámo-nos com o processo Maria Lopes, cristã velha, moleira dos moinhos do
Rio Torto (Ranhados, Cedovim, Souto), 1728.
Ora, feita a transcrição documental, julgamos que a sua
recreação em conto de ficção literária é uma boa forma de caracterizar e
divulgar aspectos fundamentais da nossa História, tradições, geografia e
múltiplos elementos identitários.
Por outro lado, consideramos importante conectar o conto e
Maria Lopes com outros de cariz local, igualmente significativos para a
identificação social e cultural.
Foi, desse modo, que apresentamos a proposta, não apenas com
a tradição dos residentes como ainda outros que, por várias vicissitudes,
migraram para zonas urbanas e sobretudo em louvor dos que foram mobilizados
para a guerra colonial, 1961-1974.
O conto Menino da Serra e do Rio tem também que ver com a
história do autor, descendente de habitantes dos moinhos de Ariola, Meda, Rio
Bom, Souto/Bebeses e Pereiros, São João da Pesqueira.
Os Aerogramas resultam da leitura da correspondência nos
Arquivos da Torre do tombo onde figura correspondência de muitos dos nossos
conterrâneos. Essa é uma forma de os relembrar, naturalmente anónima e com o
maior respeito pela privacidade de cada um de nós.
Com os meus cumprimentos
Luís de Sousa Peixeira
Os Mitos[1]
Os mitos históricos são uma forma de consciência
fantasmagórica com que um povo define a sua posição e a sua vontade na história
do mundo.
O primeiro grande mito colectivo português, que aliás é um
mito de toda a Ibéria, foi o da cruzada, fixado eloquentemente por Camões no
poema nacional dos portugueses. Portugal era o paladino da fé católica, e a
expansão mundial da fé era a sua vocação própria, a razão de ser da sua história.
Em relação especial com deus, que o favoreceu desde o nascimento. Portugal
realizava um plano divino que culminaria na conversão do planeta.
Este mito nasce na guerra santa que travavam entre si os
mouros e os cristãos das diversas nacionalidades. Santiago, que aparecia nas
batalhas sob a aparência de um cavaleiro resplandecente, foi inicialmente para
todos os povos da Espanha, o ajudador na guerra santa, e já no século XII, pelo
menos, a campanha dos príncipes cristãos na Península foi equiparada pela
igreja à guerra da Palestina.
O mito da cruzada intensificou-se nos séculos XV e XVI,
quando os papas tentaram mobilizar os desavindos príncipes cristãos para
resistir ao avanço turco. Portugal combatia então com os muçulmanos em duas
frentes: no Norte de África e no Oriente até Malaca. A acção dos portugueses
podia ser idealizada num nível mundial de cruzada. Assim o viu Camões, e assim
o tinha já visto João de Barros nas “Décadas”, cujo espírito já se encontra na
“ Crónica do Imperador Clarimundo”, livro de cavalarias em que se adapta a um
sentido português o profetismo religioso da “Demanda do Santo Graal”. Gil
Vicente. Referindo-se à guerra com os mouros, chama a Portugal “alferes da fé”.
A um nível popular este mito exprimiu-se nas “Trovas” do sapateiro Bandarra,
que profetiza a unificação do mundo sob um só rei e um só pastor.
A este complexo mítico pertence o “milagre de Ourique”, que
pela primeira vez aparece relatado nas páginas da “Crónica de 1419”. Fernão
Lopes, todavia, não o inventou, porque o achou escrito num texto anterior,
certamente já do seu século. É de crer que este “milagre” tenha sido forjado
sob o impacte da guerra com Castela e que tenha inicialmente um sentido anti
castelhano. Ele significava que Portugal era um reino de fundação divina e que
a sua independência se fundava num direito superior ao direito humano. Mas já
em Camões se vê que ele se integra na concepção de Portugal como povo
predestinado ao combate pela fé. (…)