terça-feira, 30 de março de 2021

MOZINHOS. CONTOS LUSÓFONOS E AEROGRAMAS COLONIAIS

 

 


 

LUÍS DE SOUSA PEIXEIRA

CONTOS LUSÓFONOS E AEROGRAMAS COLONIAIS

 

 

Maria Lopes

Quarta-feira, dia 3 de Março, de 1728, dia dos quarenta mártires, dia do beato jacobino canepacci, dia internacional da vida selvagem (a partir de 2013), a moleira Maria Lopes, do Rio Torto, mulher de Gaspar Rodrigues, filha de moleiros, ia para se levantar das palhas de centeio, sobre as quais dormia com o seu marido, assim unidos, por matrimónio católico, na igreja de São Pedro do Souto, mas ele puxou-a para si:

- Anda cá, minha flor, que te vou fazer bem… - Sussurrou Gaspar, firmando-se na mulher, mas ela protestou, ao mesmo tempo que se esgueirava, de debaixo dele:

- Larga-me homem da santíssima que me rebentas a bexiga, deixa-me mijar, por amor de deus.

Maria libertou-se, de um salto, pôs-se em pé, esticou a combinação, pernas abaixo que o marido lhe tinha arregaçado, destrancou a porta, saiu, batendo, novamente, a entrada. Gaspar tapou-se com a manta, esperançoso no regresso da mulher, no sentido de, com ela, fazer o amor matinal…

Entretanto, Gaspar dormitava de novo, Maria tardava, quando dois estrondosos murros soaram na porta do moinho, concomitantemente, habitação:

- Oh da casa! Oh da casa! – Numa voz grave, tormentosa e cavernosa, masculina.

As crianças, as filhas do casal, Maria e Teresa, deitadas na cama de palhas, aos pés dos progenitores, desataram a chorar, apavoradas, acordadas com o eco dos murros na porta.

Gaspar, atordoado, ainda mal se vislumbrava nesga de claridade pelas frinchas, Maria tinha saído para urinar, com o coração a galope que nem o cavalo do padre Reinaldo, não pôde responder, de imediato. Aflito, temeu pela sua mulher, mas a uma hora daquelas, ali no seu moinho do Rio Torto, que lhe poderia ter acontecido? Quem era o da voz tão tormentosa e a que propósito? Refez-se, como pôde, vestiu as calças, sacando-as dali, de ao pé de si, descalço, tamancos na mão canhota, e perguntou, enquanto abria a porta:

- Quem é?

Logo deparou com quatro guardas do reino, fardados, nunca os tinha visto em parte alguma, mas sabia que o eram e o que habitualmente exerciam: prendiam, a mando do tribunal do santo ofício, hereges, mouros e feiticeiras…

- És o Gaspar Rodrigues?

- Sou sim, meus senhores. - Ao responder, afirmativamente, estremecia todo, alguma urina matinal libertou-se, pernas abaixo, molhando-lhe um joelho e, sem dar por isso, deixou cair os tamancos.

- Vimos buscar a tua mulher! Onde está? – Assim, sem mais, nem menos, brutalmente, quatro desconhecidos, fardados, ao amanhecer, no dia dos santos quarenta mártires, da igreja católica apostólica romana, surgiram, como lobos, roubar, ao seu curral, a sua mulher, o seu melhor bem, que lhe tinha sido concedido, em nome de um deus no altar e, em nome desse mesmo deus, cruelmente, lha vinham usurpar, ao lar que ambos, arduamente, construíam.

As petizas enroscaram-se ainda mais nas mantas de burel, tremendo de medo ao escutarem a voz autoritária do guarda, no lado de fora da entrada do casebre, ambivalente, ou seja, moinho e casa de habitação com lugar para as mós, para a pilheira, a fogueira e o espaço onde todos dormiam sobre colmo.

Dois rafeiros que não tinham ladrado aos guardas, ao chegarem ao Rio Torto, em virtude destes os terem afagado, brindando-os com um pedacito de pão, romperam a rosnar e a latir, furiosamente, a partir do momento em que Gaspar se aprontou tão trémulo, encolhido, titubeante, sob o mando dos guardas, os cães como que mobilizados em defesa do moleiro. 

Maria que não tinha dado pela chegada das autoridades, por via de ter ido, por momentos, verificar se as portinholas das galinhas e do suíno, respectivamente, permaneciam encerradas, tal como as tinha deixado, ao escurecer do dia anterior, visto que, por vezes, pessoas ou bichos assaltavam os moleiros, pela calada da noite, e se não encontrassem farinha ou grão roubavam-lhes os animais domésticos. Correu logo para trás de um grande pedregulho, ao lado do seu moinho, escondendo-se e, ao mesmo tempo, observando, de lugar seguro, o que se passava à porta da sua casa onde tinha a sua família. Quis aparecer, acudindo ao marido que ela bem via aflito e acalmar as sua filhas que imaginava apavoradas, mas hesitou, mais por se encontrar em combinação de flanela, apenas agasalhada com um xaile pelos ombros, do que por receio das autoridades, àquela hora, prostradas à sua porta, sem saber, minimamente, o propósito.

Perante a atrapalhação e a tremedeira de Gaspar, os guardas irromperam casebre adentro, empurrando o moleiro. Um dos guardas deitou a manápula às mantas que encobriam as meninas, destapando-as totalmente e elas ali anichadas, batendo o dente de medo e de frio, naquela madrugada invernal de Março. Passaram revista ao resto dos aposentos, destapando, até, a panela do caldo sobre as cinzas do borralho da noite antecedente. As mós continuavam no seu movimento incessante, triturando e desfazendo grão a grão o centeio e a cevada que caía da moenga no olho de cada mó, respectivamente. Pois, vida de moleiro é a de aproveitar o caudal da água, enquanto ela é suficiente para mover as pesadas graníticas. A partir do mês de Maio, geralmente, todos os anos, os moinhos paravam por falta da sua força motriz, a energia hidráulica, por gravidade sobre o rodízio. Só após as águas outonais, por vezes, em pleno mês de Novembro, é que o rio Torto botava caudal capaz de mover mós, novamente.

Maria espreitou e Gaspar topou com ela que lhe acenou, mostrando-lhe que se encontrava em combinação. Ele logo se virou e apanhou, da beira da cama de colmo, a saia da moleira. Voltou-se e lançou-a à mulher, porém não teve o devido cuidado para não ser notado, no movimento, pelo que dois dos guardas o seguiram e, assim, descobriram o esconderijo da Maria Lopes. Correram para ela que nem galgos, nem lhe deram tempo de enfiar a saia, apenas ia com a perna direita no ar, logo a arrastaram, cada um dos algozes, prendendo-a pelos braços.

- Deixem-na! Deixem a minha mulher! – Berrou Gaspar, furioso, que nem parecia o mesmo medroso tremedouro.

Entretanto, Maria, aproveitando a frouxidão dos guardas, espantados com a determinação de Gaspar, conseguiu recuperar a saia enfiando-a pernas acima.

- Que te deu valentão? Retorquiu um dos guardas, ameaçadoramente.

Os rafeiros assanhavam-se mais e os vizinhos, moleiros e camponeses do lugar do Rio Torto, acudiam face a tamanho alarido. Os quatro guardas abrandaram os movimentos bruscos e baixaram o tom ameaçador. Em tempo relativamente curto, em frente ao moinho habitação dos moleiros Gaspar Rodrigues e da sua esposa, Maria Lopes, todos juntos ouviam as ordens da guarda que ali veio em demanda de Maria Lopes, no sentido de a levar presa, por ordem do tribunal do santo ofício de Coimbra.

Maria Lopes, mãe de Maria Lopes, mulher do falecido Daniel Rodrigues, pai de Maria Lopes, de Francisca Lopes e de Úrsula Lopes, também já presentes, bem como os seus maridos e suas proles, imploravam clemência, carpindo, mas os guardas, resolutos, determinados e insensíveis, mandaram que Maria Lopes, mulher de Gaspar Rodrigues, natural do Rio Torto, moleira, de 25 anos, mãe de Teresa e de Maria, menores, marchasse, em frente deles, sob pena de ser obrigada a fazê-lo a chicote. Maria vestida de saia e blusita, xaile, pelos ombros, calçada de tamancos que, entretanto, a sua mãe tirara dos seus próprios pés e calçou nos da sua filha que via partir, cativa, impotente para o impedir. Pelo carreiro estreito, Maria Lopes, cativa, escoltada por quatro guardas do reino de Portugal, a mando e ao serviço da igreja católica, seguiam à borda do rio. A água, indiferente, marulhava de pedra em pedra na sua cantata incessante. Ao chegarem ao pontão que ligava as duas margens, a de Cedovim e a do Souto, Maria olhou, de esguelha, para a outra margem, a de Cedovim, onde se tinham postado vizinhos, assistindo, curiosos, mudos e amedrontados. Maria teve ganas de deitar a correr e fugir, fugir, correr margem direita do rio Torto abaixo, de modo a não ser alcançada pelos guardas, nem que tivesse de se deitar ao rio. Antes queria morrer afogada nas águas do rio que lhe moviam as mós do seu moinho do que ir ali vexada, presa cuja culpa não entendia. Todavia, rapidamente, percebeu que seria uma tentativa falhada, os algozes seriam implacáveis: agarrá-la-iam e ninguém lhe valeria, por isso, deitou olhar no chão, seguiu, virando à esquina da casa do moleiro vizinho, pelo carreiro, em direcção ao Souto. Seguia pelo caminho que quase diariamente tomava, atrás do seu jumento, na qualidade de moleirinha, toc, toc, fazendo entrega de farinha ou recolhendo grão para moer no seu moinho, herdado de geração em geração, mas que a obrigavam a abandonar sob ordem de prisão, acusada de heresia, coisa que o seu entendimento não alcançava.

O chão, esbranquiçado, por força da forte geada que se tinha feito sentir, durante a noite, provocava escorregadelas perigosas, que ela vencia, com dificuldade, e os guardas ainda mais desequilíbrios temiam, dado o desconhecimento do piso, porém melhor venciam pelo superior calçado que usavam. Da arriba, logo à saída da pequena povoação, dispersa, os vizinhos miravam, impotentes e incrédulos face ao sucedido naquela manhã-fria, de 3 de Março, quarta-feira, dia dos quarenta mártires. Adivinhava-se um dia soalheiro, pois o sol matinal já beijava o cume do alto de Santo António. No entanto, as encostas, à sua direita e à sua esquerda, continuavam a esbranquiçar da geada que até parecia terra enfarinhada pela farinha do seu panal. Os castanheiros, os amieiros, as nogueiras, as amendoeiras e os freixos, ainda de galhos sem folha, ladeavam o caminho por onde Maria Lopes, a moleira, caminhava em frente dos guardas. Ia triste, chorando, baixinho. Não lhe deram tempo para se despedir das suas filhas. Foi para dar e receber um abraço do seu homem e nem isso lhe permitiram, empurrando-a, bruscamente, do alcance dos seus. Maria Lopes caminhava, forçada, sob prisão de coração desfeito, sem saber o que seria dos seus: quem cuidaria das suas meninas, quem daria a vianda ao porco, quem olharia pelas galinhas, quem faria a entrega da farinha aos fregueses, quem faria o caldo, quem botaria o forno, quem cozeria o pão, o pão de cada dia…

Maria ia triste, as lágrimas, silenciosas, escorriam-lhe pelas faces abaixo. A aragem matinal cortava-lhe as bochechas destapadas, por isso, apertou mais o lenço e puxou para a cabeça o xaile de burel.

- Vais com a mosca! – Gozou um dos algozes que, atrás, lhe seguia os movimentos e trejeitos, sem o mínimo de comiseração.

Maria Lopes, calada no fundo da sua alma, mal olhava em volta, ia com a sensação de que tudo em seu redor gemia de mágoa, as árvores ainda sem as flores e folhas primaveris, plangentes, parecia que lhe juravam, para sempre, nudez, despidas. Àquela hora, noutras manhãs, Maria tinha feito o mesmo percurso, madrugando na entrega da farinha. No entanto, nessas manhãs, atrás do seu burrinho, a paisagem sempre se lhe apresentou airosa, até nos dias de chuva e de nevoeiro a encantava com o seu quê de mistério. Desde o seu moinho até à casa dos fregueses, praticamente, nunca a apartavam os chilreantes da passarada, como que dando-lhe os bons dias. Porém, naquela manhã gelada, de 3 de Março, ao romper do sol, nem um sinal de pintarroxo, muito menos de pintassilgo; um melro, vestido de negro, bico amarelo, quedou-se no seu ramo, desnudado, de salgueiro, julgou-o persignar-se à passagem do cortejo; uma ou outra cotovia esvoaçou, muda, à sua frente, mas logo se escondiam, voando para longe, na direcção das searas de centeio, na encosta do seu lado direito. Searas, não por que se notasse o verde das plantas, pois a geada mascarava-as de branco, mas porque ela sabia que aí tinham procedido a essa sementeira, os seus próprios cunhados tinham lavrado aquele fraguedo todo, cavando onde a relha do arado não penetrava.

Quase a dobrar a curva, prestes a passar pelo regato cujas águas se juntariam às que escorriam das faldas do Souto, para, juntas, desaguarem no seu rio Torto, um tudo-nada, a jusante do seu moinho, a partir do telhado, da casa da quinta do Carmelo, rente do tal arroio, esfumava já a fogueira. Maria logo pensou na sua casa, aflita, sem saber o que se lá passaria, sem ela para aquecer o caldo. A senhora Ermelinda assomou-se à porta e chamou:

- Maria! Maria, que aconteceu, minha filha?

- Cale-se! Meta-se na sua vida! – Berrou um dos guardas, cá de cima, do caminho, tocando, com um empurrãozito, Maria que abrandou, chorando, querendo mas sem conseguir responder à interjeição da freguesa.

Mais um pouco de ladeira, por entre galhas de castanheiros, eis que chegaram à curva, da qual já se mirava o casario do Souto. O guarda que seguia, imediatamente, atrás de si, encostou-lhe o punho do chicote à nádega direita e atirou:

- Para ali, para a esquerda, vamos para a Meda! Por onde querias ir tu?

Maria, obedecendo, irremediavelmente, verificou que os guardas não eram daquelas bandas, senão tomariam outro caminho: a escolha daquele itinerário, só de forasteiro mal informado. Certo, ela nunca tinha ido a Coimbra, mas moleira é, por natureza e por ofício, caminheira, se não conhece intui e, desse modo, pressentia que ir à Meda seria andar em ziguezague. Sempre tinha ouvido contar que para se ir a Coimbra tomar-se-ia o caminho de Lamego, por Ferreirim, Moimenta da Beira, Salzedas, Ucanha, Castro Daire, pelo traçado da antiga estrada romana que dava a Viseu. Daí a Coimbra, por Repezes, Vila Chã de Sá, Fail, Parada de Gonta, Canas de Santa Maria e Tondela. Ao ocorrer-lhe o nome de Tondela, lembrou-se do padre António Guilherme e, estremecendo, entendeu de onde, eventualmente, tinha partido a acusação de heresia. Teve vontade de gritar, ali, no meio das giestas e dos calhaus graníticos, que ela, Maria Lopes, moleira do Rio Torto, não tinha nada que ver com as pregações do padre que se dizia deus, o enviado, mas conteve-se: teve receio dos algozes.

Aquele carreiro levá-los-ia a Marialva e, aí, tomariam a antiga estrada romana da Guarda, por Folgosinho, Serra da Estrela, Famalicão da Serra, descendo para cruzar o rio Mondego, próximo de Videmonte. Maria Lopes foi arrancada de sua casa, do seu moinho e dos seus, abruptamente. Não lhe perguntaram se podia caminhar, se estava em jejum, se queria aviar merenda para o caminho. Quase a passar pelos moinhos do Polinário, bem a montante do seu, sentia-se exausta, trôpega. Os guardas perceberam que tinham ali um problema com a cativa, ela não aguentaria a caminhada até Marialva onde tinham as montadas.

Um dos guardas disse:

- Estamos ferrados, nosso cabo…

- Ferrados… por quê? Joaquim… - Respondeu o cabo, apreensivo, verificando também que Maria Lopes quase já não caminhava e não esperando pela resposta do guarda Joaquim, ordenou:

- Alto! Vamos descansar um pouco, aqui.

Maria Lopes, estafada que nem parecia uma moça de 25 anos, parou e sentou-se na paredezinha à borda do carreiro, sem esperar de ordens para o efeito. O guarda mais voluntarioso e grosseiro com a cativa ia para reprimir Maria Lopes, mas o cabo fez-lhe sinal para condescender. Os algozes, também cansados da estafa, pois tinham caminhado noite dentro, de Marialva para o Rio Torto, por Ranhados, e regressavam, via Meda, de madrugada, sem que tivessem feito uma pausa, sentaram-se, cada um em seu calhau.

- Guarda Manuel, dê cá uma bucha que já merecemos o mata-bicho – Ordenou o cabo e os guardas ali se serviram do bornal, tirando, para si, um pedaço de pão e um bocado de queijo de cabra, fedorento.

- Não comes nada, mulher? – Dirigiu-se o guarda mais violento, a Maria Lopes, zombando.

- Tss, tss.. Não é que não a mandamos aviar merenda… e agora? – Sobressaltou-se o cabo, só, naquele momento, reparou que prenderam Maria Lopes, no intento da levar cativa ao tribunal da inquisição de Coimbra, sem farnel.

- Que forro levas aí, mulher? – Voltou o cabo dirigindo-se a Maria Lopes, no sentido de saber se ela tinha dinheiro consigo para as despesas e encargos com alimentação e transporte, até ao cárcere.

- Não tenho nada, meus senhores. – Conseguiu responder Maria, a muito custo, de voz embargada, irrompendo em soluços, dilacerantes.

- Voltamos atrás, meu cabo? – Acudiu o guarda Joaquim.

- Não! Vamos em frente, o juiz da comarca resolve… - Sentenciou o cabo.

Entretanto, recompostos os guardas, com a presa sentada na parede da borda do caminho, preparavam-se para tocar Maria Lopes. Porém, o cabo virou costas, afastando-se umas passadas e pôs-se a urinar. O guarda Manuel, que até à data, se tinha abstido de humilhar a cativa, deu, à mão, um pedaço de pão a Maria e, disfarçadamente, fechou o farnel, antes que o cabo desse pelo acto. O guarda Joaquim ia para intervir, mas logo o outro, o José, se interpôs, serenando os ânimos, entre Joaquim e Manuel. Maria recebeu o pedaço de pão e meteu a mão com ele sob o xaile, caminhando, logo que o cabo se juntou ao grupo, sem resistência.

Prosseguindo pelo caminho, passaram, através do frágil pontão, sobre o Torto, para a outra margem, a de Ranhados, a antiga villae romana Medobriga, rente aos moinhos do Mendes. Entretanto, o sol já ia alto e os camponeses deslocavam-se para os campos e os pastores conduziam os rebanhos para os montes, todos estacavam a mirar Maria Lopes, refém de quatro guardas, mas ninguém ousava perguntar pela causa, apenas se limitavam a descobrir a cabeça, fazendo vénias às autoridades, por medo de revanchismo. Desceram à borda da quinta da Canada, voltaram a atravessar outro curso de água, aos fundos da quinta das sapateiras. Os guardas sempre colados a Maria Lopes, no sentido de evitarem qualquer tentativa de fuga ou de outro disparate, pois, eles repararam que a cativa, ao passar sobre as poldras, abaixo da quinta das Sapateiras, tinha feito menção de se deitar à água. Prontamente, o guarda Joaquim lhe deitou as mãos, conduzindo-a de pilar a pilar. Subindo a encosta, chegaram a Ariola, o cabo deu ordens para mais uma pausa.

De Ariola surgiu um jovem casal, ambos no dorso de uma égua, cor de canela escura:

- Bom dia, senhores guardas. – Salvou o rapaz e acenou a rapariga com a cabeça, sem descolar as mãos da cintura do companheiro, ao qual se segurava sobre a albarda do quadrúpede.

- Bons dias! Para onde vão vossemecês? – Interrogou o cabo.

- Até à Meda, para a Meda, senhor guarda, ao mercado… - Acudiu João Rodrigues da Cruz, o rapaz, marido de Eufémia Aguiar, a sua esposa, que levava consigo, montados na égua.

- Se vossemecê nos levasse, na égua, aqui este emplastro… - Retornou o cabo, referindo-se a Maria Lopes.

- Então não levamos? É para já, meus senhores. Oh Eufémia, vamos lá desmontar.

João Rodrigues da Cruz e Eufémia de Aguiar, camponeses, de certo modo, abastados do lugar de Ariola, jovem casal que mais tarde iria ter filhos, um dos quais, Pedro de Aguiar que, por coisas do acaso ou de um destino qualquer, viria a casar com Ana Maria do Lugar dos Mozinhos, levaram, por solicitação dos algozes, na sua égua, Maria Lopes, do lugar do Rio Torto, acusada, pelo tribunal da inquisição de Coimbra, de crimes de heresia, até ao cárcere da comarca da Meda, provisoriamente, até a arrastarem para julgamento e retida nos calabouços de Coimbra.

Presente ao juiz do reino a presumível acusada de práticas de heresia, de acordo com os ditames do Direito Canónico, pelos factos, umbilical com as leis régias, Maria Lopes logo foi encarcerada numa cela onde apenas havia um caldeiro para as necessidades fisiológicas, palha e umas mantas sujas e rotas. A cativa foi empurrada para dentro do cubículo escuro, apenas uns taipais que não chegavam ao tecto do edifício e uns buracos, ao acaso, permitiam alguma claridade. Já não chorava, atónita, ainda conservava o pedaço de pão, tal como lho tinha dado o guarda Manuel, devorou-o.

Ficou, ali, sem saber quanto tempo, nem onde se encontrava, apenas despertou com o abrir da cela de onde surgiu um vulto que lhe colocou, por perto, um tarro cheio de água e, ao lado, deixou mais um pedaço de pão escuro e recesso. Abandonada, Maria Lopes para ali se prostrou, irremediavelmente, sem nada, nem ninguém que lhe acudisse. No outro dia, julgou ela, pois, entretanto, desceu sobre a cela a escuridão total e retornou a nesga de claridade, a porta voltou a abrir-se e, desta vez, alguém empurrou, para dentro, uma pessoa. Tudo em gestos bruscos, ameaças e ofensas à nova companheira, uma mulher andrajosa. A companheira, que ali chegou, proveniente da luz da rua, não enxergava nada, mas Maria Lopes, que já tinha os olhos refeitos ao escuro, logo reconheceu a encarcerada, era a Maria da Luz, a senhora Maria da Luz, do Poço do Canto.

- Credo, minha Nossa Senhora, senhora Maria, também a trouxeram. – Balbuciou Maria Lopes.

- Ai minha filha que estamos pedidas. – Retorquiu Maria da Luz, visivelmente, menos atormentada do que Maria Lopes.

- Ai valha me deus, por que nos prenderam, que fizemos nós? – Voltou Maria Lopes.

- Então não te disseram qual era a culpa?

- Não, não senhora, aqui estou, como cordeiro nas garras de lobo.

- Olha, Maria, foste acusada de seguires os mandamentos do padre António Guilherme e, a mim, querem que confirme as tuas culpas. - Rematou Maria da Luz, aterrando ainda mais Maria Lopes.

- E olha que não me intimaram só a mim, têm para aí perguntado a muita gente se reconhecem o teu erro. – Reforçou ainda Maria da Luz, para desespero total de Maria Lopes que já nem respondia, nem questionava de tão perdida e apavorada com a presumível culpa.

Cá fora, na total ignorância de Maria Lopes acerca das movimentações relativas ao seu processo, os guardas foram a Cedovim, à Horta e a Poço do Canto recolher depoimentos que incriminassem Maria Lopes por crenças e práticas de heresia, contrárias aos mandamentos da doutrina católica e apostólica da santa madre igreja. Voltaram ao Rio Torto, obrigaram, sob coacção, que Gaspar Rodrigues, Francisca Lopes, Úrsula Lopes e Maria Lopes, respectivamente marido, irmãs e mãe da cativa, confirmassem que Maria Lopes acreditou nas pregações do Padre António Guilherme, de Tondela, quanto ao facto de ele ser o enviado. Por outro lado, mandaram que Gaspar Rodrigues fosse ao juiz da comarca da Meda entregar provimentos em reais e em mantimentos, no sentido da sua mulher pagar as despesas com a alimentação, o transporte e a estadia no cárcere. Gaspar reuniu os reais que pôde, alguns emprestados, sob penhora, e, nuns alforges, carregou com uns pães, queijos de cabra, carne de porco, azeitonas, chouriças e uma angoreta de vinho. Entregou tudo ao juiz que nem lhe permitiu visitar a mulher, no cárcere.

Rol de testemunhas acabado cujos depoimentos incriminavam Maria Lopes na prática de heresias, através da veneração a falsos profetas e uso de rituais pagãos, logo foi, de trouxa aviada, em cima de uma mula ronceira, até Coimbra.

Aos dois dias do mês de Abril de mil e setecentos e vinte e oito anos, em Coimbra, na Casa do Despacho da Santa Inquisição, estando aí em audiência, de tarde, os inquisidores mandaram o alcaide Manuel de Moura que pusesse Maria Lopes no sexto cárcere do pano em companhia de Maria Antónia e Luísa Mendes. Leão Henriques o escreveu o termo.

Na Casa da Livraria da Santa Inquisição estando ai em audiência de tarde o senhor deputado Frei Veríssimo de Lima de ordem de sua Eminência mandou vir perante si a uma mulher que em o dito dia mês e ano veio presa para os cárceres desta Inquisição e sendo presente por dizer queria confessar culpas pertencentes a este Tribunal lhe foi dado o juramento dos Santos Evangelhos em que por sua mão sob cargo do qual lhe foi mandada dizer verdade e ter segredo o que prometeu cumprir.

Logo disse chamar-se Maria Lopes que disse ser cristã velha casada com Gaspar Rodrigues moleiro, filha de Daniel Rodrigues, moleiro e Maria Lopes, natural e moradora da freguesia de Souto de Penedono Bispado de Lamego de vinte e cinco anos de idade.

 E logo foi admoestada que por si tomava tão bom conselho em confessar suas culpas nesta Mesa lhe convinha muito traze-las todas à memória para delas fazer uma inteira e verdadeira confissão impondo a si não a outrem testemunho falso que fazendo o contrário se ariscava ao rigoroso castigo que no Santo Oficio se dava aos que de si ou de outrem falsamente em suas confissões, respondeu que somente a verdade queria dizer a qual era:

Que houvera cinco meses pouco mais ou menos na vila de Ranhados e ermida de Nossa Senhora do Campo ouvindo ela confitente dizer que na mesma assistia o padre António Guilherme de Loureiro natural de Tondela e filho do abade de Moreira a quem não sabe o nome e que o dito padre curava com os exorcismos da Igreja às pessoas enfermas, por padecer uns acidentes desde a sua meninice se foi ter com o dito padre António Guilherme de Loureiro à dita ermida em companhia de sua mãe Maria Lopes e sua irmã Francisco Lopes e na mesma ermida o dito padre António de Loureiro fez os exorcismos e benzeu a todas três e a sua irmã Úrsula Lopes que já estava na dita ermida com o dito padre e a outras mais pessoas que estavam presentes na mesma ermida e depois de benzer a ela confitente o dito padre disse para todos que ela confitente estava tão vexada dos demónios como as mais sendo certo que nem antes nem depois do dito padre a benzer sentiu ela confitente dentro em si coisa alguma de espíritos malignos e só os acidentes que tinha desde menina o mesmo tinha ainda de presente mas reparou que pondo-lhe o padre António Guilherme as mãos sobre sua cabeça quando a benzeu que imediatamente sentiu uns grandes fogos pela cabeça e muitas palpitações do coração o que também lhe sucedeu quando o padre António Guilherme em outra ocasião lhe foi benzer a sua casa e moinho e a benzeu também a ela confitente pondo-lhe como dito tem as mãos sobre a sua cabeça e ao dizer o dito padre em vozes altas com um Cristo nas mãos estas palavras: contra vós espíritos malignos, caiu ela confitente por terra sem sentidos com um acidente mas como os que dantes tinha e ainda tem.

Disse mais que na dita ocasião em que o padre António Guilherme de Loureiro benzeu a ela confitente na ermida de Nossa Senhora do Campo benzeu também a sua mãe Maria Lopes e suas irmãs Úrsula e Francisca Lopes e lhe fez os exorcismos e até o dito tempo todas três sobreditas não padeciam mais queixas que as de que vulgarmente se queixam as mulheres que eram umas dores de cabeça, agonias do coração e outras assim semelhantes mas depois que o dito padre as benzeu na sobredita forma, pondo-lhe as suas mãos sobre as suas cabeças logo todas se sentiram como vexadas do demónio e o padre António Guilherme assim lho afirmava que estavam e sua irmã Francisca Lopes mostrou mais que todas que estava pois dizia o inimigo pela sua boca (como afirmava o padre António Guilherme que o inimigo era o que falava) que até agora andavam curando-a da espinhela e que ele tinha estado bem regalado dentro daquele corpo e isto mesmo que sucedeu a ela confitente, sua mãe e irmãs de se sentirem vexadas do espírito maligno depois das bênçãos e exorcismos do padre António Guilherme sucedia a todas as pessoas que recorriam ao mesmo com algumas queixas como ela confitente viu e presenciou em muitas que seriam nove ou dez pessoas que estavam na sobredita ermida e se não lembra dos nomes delas.

Disse mais que passados quatro ou cinco dias depois que o padre António Guilherme benzeu a ela confitente, sua mãe e irmãs veio o mesmo para casa da mãe dela confitente nos moinhos do rio Torto com o pretexto de lhe querer benzer os moinhos e casa dizendo ser necessária esta bênção para sua mãe e filhas melhorassem das vexações dos espíritos e com efeito lhe benzeu os moinhos e casa, com várias cerimónias de que se não lembra e também os moinhos e casa dela confitente e estando todos na dita casa de sua mãe e também Ana Francisca, a Bochecha, outra Ana da Horta solteira filha de Manuel Fernandes de Ranhados, um moço chamado Polónio que todos acompanhavam o dito padre António Guilherme, disse para ela confitente a dita Ana Francisca, Ana Fernandes, Polónio, Maria Lopes mãe Úrsula irmã Francisca irmã, a Bochecha, que o dito padre António Guilherme era o mesmo Deus que se ela confitente tinha algumas coisas de que se pudessem fazer relíquias que lhas desse por que o dito padre como era Deus lhas converteria todas em relíquias e duvidando ela confitente de que o fosse Deus o padre António Guilherme pois nem ela nem as mais eram tão venturosas que pudessem estar falando com o mesmo Deus, a sobredita Ana da Horta lhe certificou o mesmo afirmando ser Deus o padre António Guilherme e que podia fazer as sobreditas relíquias e lhe mostrou outras que o dito padre já tinha feito e só pelas ter tido na sua mão lhe dizia que cheiravam muito e bem e isto dando-lhas também a cheirar a ela confitente a dita Ana da Horta, viu e experimentou ela confitente que cheiravam e eram as tais relíquias uns bocadinhos de maravalhas e uns pedacinhos de pano branco o que não obstante ela confitente sempre duvidou de que pudesse assim ser o referido pois disse para a dita Ana da Horta que aquelas coisas podiam cheirar por ela as ter tido de antes entre alguns cheiros.

Disse mais que na mesma ocasião o padre António Guilherme para certificar as pessoas que estavam presentes em casa da mãe dela confitente do que lhes acabavam de dizer Ana Francisca a Bochecha e Ana da Horta de que ele era Deus e de que podia de qualquer coisa fazer uma relíquia disse para todas as ditas pessoas que acabando de beber vinho o seu bafo nunca cheirava a vinho e bafejando com isto a todas as sobreditas pessoas tanto ela confitente como sua mãe e irmãs e as mais pessoas que estavam presentes virão e experimentaram que o dito bafo não cheirava a vinho e então disse Ana Francisca a Bochecha para uma mulher de Ana Francisca Freixo que também estava presente que é viúva não sabe de quem nem como a mulher de Freixo se chama e tem por alcunha a Freixa que engolisse o dito bafo do padre António Guilherme porque tinha virtude e ela dita Ana Francisca pela mesma causa o tinha já engolido por muitas vezes e com efeito a dita mulher de Freixo chegando-se mais para o padre António Guilherme e abrindo a sua boca o padre a bafejou e ela lhe engoliu o bafo mas sem chegar a boca um à do outro.

Disse mais que também na dita ocasião e casa da mãe dela confitente disse o padre António Guilherme para todas as sobreditas pessoas que ele era Deus e que a Santíssima Trindade se unira para ele vir ao mundo no qual havia de andar alguns anos para converter as criaturas das quais por muitas serem incrédulas tinha permitido a Santíssima Trindade ser ele o que viesse ao mundo e que o Reino de Portugal havia de ser o primeiro que se havia de converter e logo havia de passar a outros reinos e que por toda esta Quaresma se saberia bem quem ele era pois lhe havia de chegar nela a sua bula e que as mulheres que de presente o acompanhavam e o seguiam haviam de ser os seus apóstolos assim como Cristo Senhor nosso os teve quando andava pelo mundo e a tudo o sobredito davam inteiro crédito as duas Ana Francisca a Bochecha e Ana da Horta, Polónio e a irmã dela confitente Úrsula Lopes porque diziam que tudo era assim como o padre António Guilherme afirmava de si e ela confitente nunca lhe deu todo o crédito por que o seu coração sempre repugnava ao que o padre António Guilherme dizia e também as mais pessoas lho certificavam do mesmo.

Disse mais que estando como dito tem em casa de sua mãe e na mesma ocasião acima dita ouviu dizer mais ao padre Antonino Guilherme que aquelas criaturas que o seguiam e estavam vexadas traziam dentro em si muitos mil demónios aos quais todos eles haviam de salvar e faze-los anjos ficando os que eram anjos demónios. E perguntando na mesma ocasião o padre António Guilherme às criaturas que estavam vexadas e estavam presentes ou aos demónios que ele dizia que as mesmas tinham se se queriam salvar respondendo lhe todas que sim o padre António Guilherme lhe mandou que fossem ao Céu e pondo-lhe a mão sobre as cabeças caíram todos com acidentes e então disse também o dito padre António Guilherme que se o demónio que trazia Ana Francisca a Bochecha se chamava toalha rota como tinha dito o mesmo demónio dali por diante se chamaria toalha limpa para receber ele dito padre em graça.

Disse mais que também ouviu dizer ao padre António Guilherme na mesma ocasião que ele tinha na sua casa de Tondela um sacrário o qual só viam todas as pessoas que na dita casa entravam em graça e que ele dito padre se tinha visto a si mesmo ao pé do dito sacrário e que todas as pessoas que o seguiam quando as levasse pelo mundo sendo os seus Apóstolos, as havia de levar por Tondela donde vissem o dito sacrário afirmando então de si o dito padre que se ele não fosse Deus como tinha dito não poderia ter em sua casa o dito sacrário e que dali a três anos já não havia de haver imagem a doutrina da Igreja se havia de mudar ficando uma e tirando outra o que havia de ficar era o Padre-Nosso e Mandamentos da Lei de Deus e a que se havia de tirar era a Ave-Maria e outra mais de que se não lembra.

Disse mais que estando o padre António Guilherme praticando e afirmando de si o que acaba de dizer e na casa de sua mãe Maria Lopes ouviu dizer a uma mulher de <a mulher de Freixo> Freixo de quem já disse se chamava por alcunha a Frecha (?) que o dito padre António Guilherme tinha as mãos tão formosas que lhe pareciam em tudo semelhantes com as do Senhor do andor dos Passos da sua terra da vila de Freixo e na mesma ocasião lhe disseram também Ana Francisca, a Bochecha, outra Ana, chamada da Horta e sua irmã Úrsula Lopes que o dito padre António Guilherme afirmava das duas Anas que já eram santas e que não lhe faltava mais que canoniza-las e que a ela dita Úrsula Lopes ainda a não podia escrever por todo de Santa por que ainda lhe faltava muito que padecer.

Disse mais que no mesmo dia em que o padre António Guilherme estava em casa de sua mãe Maria Lopes sendo sobre a tarde lhe disse a mesma ao dito padre que ele e estava parecendo o padre Eterno ao que respondeu o padre António Guilherme que ali estava e ali o tinha nele e tomando logo duas ou três maçãs e partindo-as em talhadinhas disse que as queria consagrar e com efeito fazendo sobre elas algumas cerimónias com a mão e dizendo algumas palavras que nada entendeu nem sabia o que o dito padre fazia mandou este que todas as pessoas que estavam presentes se pusessem de joelhos e recebessem as ditas talhadinhas de maçãs como quem recebia nelas o Corpo de Cristo Senhor Nosso e respondendo-lhe a mãe dela confitente que pouco aparelhada estava para receber o Santíssimo Sacramento o dito padre António Guilherme lhe respondeu que não importava porque bastava para o receber bem a contrição e pondo-se de joelhos e com as mãos levantadas todas as pessoas que estavam presentes que eram ela confitente seu marido Gaspar Rodrigues, sua <Gaspar Rodrigues marido, dita mãe Maria Lopes, dita Úrsula irmã, dita Francisca irmã, dita Ana Francisca, dita Ana Fernandes, mãe Maria Lopes, suas irmãs Úrsula e Francisca Lopes, Ana Francisca a Bochecha, outra Ana, chamada da Horta e outro moço chamado Apolónio receberam todos das mãos do padre António Guilherme como quem recebia a Sagrada Comunhão as ditas talhadinhas de maçãs entendo todos e crendo pelo que diziam e mostravam no exterior que nas ditas talhadinhas de maçãs recebiam o Corpo de Cristo Senhor Nosso.

Disse mais que não só todas as sobreditas pessoas de quem acaba de dizer receberam as talhadinhas de maçãs entendendo que nelas recebam o Corpo de Cristo Senhor nosso como dito tem mas também entendiam e criam que o dito padre António Guilherme era o mesmo Deus como por muitas vezes ela confitente ouviu praticar e dizer às mesmas pessoas que ele era Deus não obstante que ela confitente dentro no seu coração sempre pôs muita dúvida ao que o dito padre dizia e afirmava de si por cujo respeito o dito padre por muitas vezes lhe chamou incrédula e também a todas as sobreditas pessoas duvidava ao que elas lhe diziam e afirmavam do dito padre o que não obstante sempre no exterior fez o mesmo que todas as mais e a crer como elas que o dito padre era Deus pois às suas dúvidas lhe respondiam todas as sobreditas pessoas que a Deus nada era impossível.

Disse mais que tanto capacitaram a ela confitente os ditos e afirmações das sobreditas pessoas para ela confitente crer que era Deus o padre António Guilherme que na mesma ocasião em que o mesmo esteve na casa de sua mãe ela confitente posta de joelhos lhe beijou os pés e pedir perdão de suas culpas dizendo-lhe com as mãos levantadas que não sabia com quem falava mas que se acaso assim era o que se dizia e se assim podia ser lhe desse perdão das suas culpas e então lhe deu três beijos nos pés à honra das três pessoas da Santíssima Trindade como assim lhe tinham ensinado Ana Francisca a Bochecha outra Ana, chamada da Horta, e sua irmã Úrsula Lopes as quais tinham ouvido dizer que o dito padre António Guilherme mandava em semelhantes ocasiões rezar três padre nossos e três glorias pátria à honra das três pessoas da Santíssima Trindade e que era o mesmo reza-las a Trindade Santíssima que o dito padre porque ele era a mesma Santíssima Trindade por cuja consideração ela confitente lhe deu nos pés os sobreditos beijos levando porém sempre o seu pensamento ao Céu e dizendo consigo que se ele era a Santíssima Trindade lhe dava os ditos beijos e se não era que lhos não dava.

 Disse mais que vindo notificadas para o Souto e para dizerem o que sabiam a respeito do padre António Guilherme, Ana da Horta e sua irmã Maria Antunes, (como assim lhe parece que se chama) e falando em casa da mãe dela confitente ao dito padre António Guilherme e dizendo-lhe o para que vinham chamadas e perguntando-lhe mais como se haviam de haver nos seus depoimentos o dito padre lhe respondera que confessassem toda a verdade do que lhe haviam visto e ouvido e perguntando-lhe mais o do padre se estavam elas certas em todos os sinais que lhe tinham visto respondendo-lhe a dita Maria Antunes que não o dito padre lhe mostrou então a sua mão para que nela visse e se firmasse dos sinais que nela tinha os quais ela confitente não viu nem sabe porque só lhe ouviu dizer o referido e mostrar a mão e saindo para fora de casa o padre António Guilherme se pôs a olhar para o sol com os olhos fitos nele dizendo para as ditas pessoas e todas as mais que estavam presentes que se ele não fosse o que era que não poderia fazer aquilo que ele fazia que era olhar direito para o sol e no mesmo tempo e ocasião disse também o dito padre António Guilherme que o haviam de prender a ela na mesma hora em que prenderam o filho sem declarar que filho ou de quem, acrescentando também que se lhe não dava que o prendessem porque já estivera no Santo Ofício e dos Senhores Inquisidores muito bem o conheciam.

Disse mais que a Ana Francisca, a Bochecha, de quem já tem dito, ouviu dizer pouco depois que padre António, dita Ana Francisca, Guilherme se tinha aventado aos seus moinhos e casa que quem estivesse à missa não havia de rezar se não que havia de estar com toda a consideração e sentido no dito padre António Guilherme e na de que ele era Deus para o poder receber e comungar espiritualmente dizendo mais que não era ela a que dizia e afirmava o sobredito senão o Anjo que tinha dentro em si e lhe tinham deixado pois ela tendo sido tão grande pecadora e mulher do mundo não era merecedora de receber os favores com que se via e de receber a Deus em sua casa o qual a vinha buscar a ela na mesma e era o dito padre António Guilherme e dizendo logo a si mesma estas palavras: sobe, sobe Anjo e vem dizer o que te perguntam, e logo mostrava que falava o dito Anjo e dizia: guardai os mandamentos do padre António Guilherme quando estiveres à missa não rezeis e entendei que o dito padre que a esta dizendo é o mesmo Deus e nele creiam como em tal; e outras mais coisas dizia para capacitar as pessoas na crença de que era Deus o dito padre António Guilherme que de presente lhe não lembram nem mais que confessar nesta Mesa. E declara que tanto o padre António Guilherme como Ana Francisca a Bochecha e todas as mais pessoas quando proferiram as coisas que tem deposto na sua confissão estavam em seu juízo perfeito sem perturbação de vinho ou outra alguma paixão que lhe perturbasse o entendimento menos suas irmãs ou outras algumas pessoas que se diziam e mostravam estarem vexadas dos espíritos malignos porque então quando mostravam que estavam e que diziam o que tinha deposto e lhe pareceu a ela confitente sempre que o padre António Guilherme lhe metia os demónios nos corpos porque só depois que as ditas pessoas lidaram e falaram com o dito padre é que deram sinais de terem espíritos malignos e depois que deixaram de falar com ele poucos ou nenhuns sinais deram de ter os mesmos espíritos principalmente suas irmãs Úrsula e Francisca Lopes, que depois que vieram e foram desta Santa Casa não deram mais sinais alguns dos tais espíritos e que estas eram as suas culpas e de as haver cometido está muito arrependida delas pede perdão e que com ela se use de misericórdia e mais não disse nem ao costume.

Foi-lhe dito que tomou muito bom conselho em principiar a confessar suas culpas e lhe convém muito traze-las todas à memória para delas fazer uma inteira e verdadeira confissão declarando também a verdadeira tenção que teve em cometer as que tem confessado porque fazendo assim salvara a sua alma e se pusera em estado de que com ela se use de misericórdia e por tornar a dizer que não era de mais lembrar nem tivera outra tenção nas culpas que cometera senão a de cair nas ditas culpas pela sua grande ignorância e por lhe dizerem as pessoas que a enganaram que a Deus nada era impossível foi outra vez admoestava (sic) em forma e mandada a seu cárcere sendo lhe primeiro lida esta sua confissão e por ela ouvida e entendida disse estava escrita na verdade e que nela se afirmava e ratificava e tornava a dizer de novo que na mesma não tinha que acrescentar diminuir mudar ou emendar nem de novo que dizer ao costume sob cargo do juramento que lhe foi dado ao que estiveram presentes por honestas e religiosas pessoas que tudo viram ouviram e prometeram dizer verdade e assim o juram os Santos Evangelhos os reverendos licenciados Inácio Bernardes e José Antunes da Silva notários desta Inquisição que ex causa assistiram a esta ratificação e assinaram a que eu notário pela ré de seu consentimento por não saber escrever e com o dito senhor deputado Leão Henriques o escrevi.

Notário Veríssimo de Lima [assinatura autografa]

Leão Henriques [assinatura autografa]

Inácio Bernardes [assinatura autografa]

José Antunes da Silva [assinatura autografa]

E indo a ré para seu cárcere foi perguntado aos reverendos notários ratificastes se lhes parecia que ela falava verdade no que dizia em a dita sua confissão e por eles foi dito que sim lhes parecia ter vão assinar com o dito senhor deputado Leão Henriques o escrevi

Notário Veríssimo de Lima [assinatura autografa]

Inácio Bernardes [assinatura autografa]

José Antunes da Silva [assinatura autografa]

 

Maria Lopes foi, como reza a acta do inquisidor, conduzida ao cárcere. Ia apreensiva, tinha sensação de que algo lhe iria suceder de gravoso. Numa primeira impressão, no decorrer do interrogatório, sentia alívio por ter tido a oportunidade de narrar os factos tal como ela os tinha vivido. Depois de ter ouvir ler completamente a acta, pressentia que, sem haver, nela, verdadeiras deturpações, a linguagem usada parecia-lhe elaborada demasiado para a simplicidade do seu depoimento, temendo, assim, susceptível de segundas interpretações, de modo a incriminá-la. Maria Lopes era analfabeta, o seu vocabulário era restrito, face a tão vastas formulações e considerações. Toda a doutrina que aprendera foi de memória, ouvindo e repetindo as rezas e as preces dos mais velhos, no Rio Torto. As homílias a que tinha assistido, nomeadamente, nas igrejas do Souto, Ranhados, Cedovim, Horta e dos Pereiros tinham apenas representado rituais celebrados numa língua da qual não tirava patavina, ou seja, o latim. As aclamações, asserções dogmáticas do padre António Guilherme sempre lhe tinham suscitado dúvidas, mas, ali, depois de cativa por nelas crer, sentia-se frustrada e revoltada, por não ter tido coragem de rejeitar o discurso do padre louco, eivado de loucuras celestiais.

Maria Lopes, na sua cela, exausta pelo facto de ter sido submetida a tamanha violência psicológica, sentiu profundo cansaço físico e mental. Quedou-se de olhar fixo, sem resposta à estimulação das companheiras prisioneiras; perdeu, subitamente, força muscular e caiu; pestanejou rápido com revolução ocular; com a boca fez movimentos de mastigação e esgares da face; encetou uma série de movimentos rítmicos, estrebuchando todo o corpo; urina escorreu-lhe pernas abaixo; mordia a língua: tudo num movimento confuso e inconsciente. Durante alguns segundos ou até um minuto ou mais, a ocorrência do ataque de epilepsia a Maria Lopes provocou alvoroço no cárcere e nos carcereiros que se apressaram a chamar um clérigo que, entretanto, chegou nos últimos estrebuches de Maria Lopes que logo voltou ao seu estado de saúde normal. O padre desatou a esconjurar os demónios, empossando, em punho, uma cruz e, depois, virou costas, indo informar o inquisidor-mor da ocorrência, alegando que a presa Maria Lopes tinha sido possuída por uma crise demoníaca. Porventura, em 1728, num cárcere do tribunal do santo ofício, ninguém sabia, nem quereria saber que a epilepsia é uma doença que afecta o cérebro, caracterizada por descarga anormal de alguns ou todos os neurónios cerebrais. Expressa-se através de crises de epilepsia recorrentes (duas ou mais), súbitas e imprevisíveis, incontroláveis pelo doente e com duração variável (geralmente entre alguns segundos a vários minutos).

Ela, Maria Lopes, cativa, moleira do Rio Torto, sentia-se desfalecer, impotente e só, incapaz de contrariar as agruras, as ofensas, a fome, a solidão e, sobretudo, as saudades dos seus familiares, apenas se mantinha viva pelas suas filhas que deixara, forçada, e das quais nunca mais soube a mais pequena notícia: não sabia se tinham sobrevivido à falta dos seus cuidados. Maria Lopes, no seu sentimento de mãe, intuía que as filhas resistiam e aguardavam pelo seu regresso, por isso, ela também resistia, teimando em manter-se viva e lúcida, na esperança do reencontro.

Entretanto, Gaspar Rodrigues e as duas filhas chegaram a Coimbra onde lhe indicaram a localização do cárcere que retinha a sua esposa e companheira, mãe das suas meninas. Estacionaram fora da cercadura, prendendo a burra e logo descarregaram umas tralhas que traziam do Rio Torto.

Gaspar tinha preparado tudo, previamente, ou seja, adquiriu umas ferramentas toscas de modo sobreviver por conta de consertos nas funções de picheleiro. As petizas pediam esmola e logo juntaram umas quantas couves, feijões, cebolas e batatas com que Gaspar fez uma sopa. Num tarro levou ao cárcere, sozinho, por via do impedimento do carcereiro que negou o acesso das filhas à cela da mãe.

Maria Lopes recebeu das mãos do marido o caldo e as novas que lhe consolaram o corpo e a alma, dormindo uma noite de esperança e de sonhos a raiar e a rejuvenescer a sua vida.

Na manhã seguinte foi chamada ao inquisidor que lhe aplicou o castigo de degredo para Castro Marim, por três anos, julgando-a, assim, culpada pelos crimes pelos quais tinha sido acusada.

Maria Lopes, confusa, não percebeu logo a pena aplicada por uma questão de decifração de linguagem, mas alguém a esclareceu, aterrando-a, completamente, no dia seguinte ao do encontro com o seu companheiro e marido.

Gaspar Rodrigues voltou ao cárcere, desta vez, ladeado das filhas, às quais Maria Lopes quis abraçar, porém impossibilitada pelas grades da cela, contudo pôde tocar com os dedos os corpos das suas meninas. Novamente lhe arrancaram o marido e as filhas pela força bruta dos carcereiros, deixando-a sozinha com um tarro de caldo e um pedaço de pão que o companheiro lhe tinha mandado entregar.

Alguns dias se sucederam sem que o seu marido a pudesse visitar: o carcereiro recebia o caldo e pão das mãos e Gaspar e era escorraçado, sem qualquer justificação. Maria Lopes, inconsolada, para ali se postava, atónita, desesperada, ávida de notícias dos seus que ninguém lhe fazia chegar.

O inquisidor tomou conhecimento da presença dos familiares da condenada em Coimbra. Mandou inquirir Gaspar Rodrigues acerca dos pertences e constatou que Maria Lopes não teria meios para fazer face às despesas do seu transporte para o Algarve, nem para o seu sustento, pelo que conjecturou com os seus pares e, ao sétimo dia, mandou soltar Maria Lopes sob ameaça de castigo se prevaricasse nos ditames do tribunal da inquisição.

Família reencontrada, os quatros debilitados, dadas as provações psicológicas e físicas. Todos extremamente desnutridos, até a burra e o cão, fiel, apesar da fome, tinham de encontrar maneira e sobreviver longe do Rio Torto onde todos os bens o tribunal do santo ofício lhes confiscou nomeadamente o moinho, sem o qual não tinha sustento.

Indicaram-lhes os moinhos de Penacova na ideia de poderem exercer a sua actividade de moleiros. Assim fizeram, subindo e descendo serras até ao cume dos montes dos moinhos eólicos. Gaspar e Maria tiveram que se oferecer como assalariados especialistas. As necessidades obrigaram-nos a adaptar aos mecanismos da motriz eólica: em vez das levadas, tiveram que aprender a manusear as cordas, inçando e arreando as velas, de resto tudo lhes apresentava similar…

 

 

 

 

O Menino da Serra, do Rio e do Moinho

 

 


 

Fotografia no Cruzeiro (Souto/Risca/Mozinhos) Luís Augusto Sobral e familiares.

 

 

 

 

- Oh Abel! Oh Abel! – Gritava Lucinda, do alto da serrania para a margem do rio. Todavia, parecia que a voz de Lucinda ia nas asas dos gaviões, de serra a serra, de cume a cume e à margem do rio, à olga e ao lameiro, apenas se aquietasse o marulhar das águas, ora, ali mansas, mansinhas, acolá, logo ali, adiante, saltitantes, alegres, serpenteando, cantando melodias onomásticas: Aquilino, Aquilino, tra,tra,ta…ta, ta…

Abel cuidava da levada, no sentido de toda ou quase toda a água, desviada do leito do rio, por força do açude, plantada em toda a extensão, estorvando o natural deslize rio abaixo, fosse de encontro ao moinho. Aí sim, cairia sobre o rodízio cuja gravidade conferiria a força hídrica necessária para que o dito rodízio fizesse rodar a mó andadeira e, por sua vez, grão a grão, a partir do olho da mó, a farinha se amontasse no panal.

Abel, absorto, sem ouvir o chamamento da sua Lucinda, de sachola em punho, tapava todos os orifícios, canais construídos pelas toupeiras: malditos energúmenos – vociferou ele e repetiu e repetiu no seu monólogo. Tanto repetiu sobre as melodias das águas em fundo: tra, tra, ta zu, zu, zu… que até da onomatopeia se alheava – a rã continuava a coaxar, o pombo bravo a arrulhar, e Abel continuava: infernais, malditas e energúmenos toupeiras. Já, pertinho do moinho, ao cabo da levada, cessaram todas as onomatopeias e outras melodiosas e naturais vibrações do Parnaso, Ali, só a queda da água ecoava do alto sobre o rodízio e, este, girava, fazendo guinchar a mó: ru, ru aquilino, rum, ru, aquilino…

Abel entrou no moinho, recolheu e pesou a farinha, recargou a moenga de grão de centeio, apertando ainda mais o veio para que a farinha saísse fina, quase em pó, ao gosto do senhor José Santa Maria, cliente seguinte, e saiu: mó parada não faz farinha, anda moleiro – atirou, no seu monólogo, e repetiu, e repetiu, carreiro abaixo até ao rio, mesmo ao ponto onde a água, desviada, se voltava a juntar ao caudal, depois de mover a mó do Abel e com capacidade para rodar a do Gregório, logo, ali, a jusante. A mesma corrente não volta atrás no leito, porém, até à respectiva foz, fará mover quantos rodízios lhe surgirem, basta que mão humana a conduza…

 

- Abel! Abel! – Clamou por si o moleiro vizinho, o Gregório da Conceição.

- Senhor. – Respondeu Abel, de pronto, cessando o monólogo de: mó parada não faz farinha, anda moleiro…

- Oh rapaz, vais para aí com uma ladainha… Deste agora em falar sozinho, sais ao teu falecido avô Júlio que não se calava, por aí a imitar a passarada, a raposa, as perdizes, olha: até os lobos…

- Ouça, senhor Gregório, não ouve aquele pombo a chamar a minha Lucinda: Lu-ciiin-daaaa; Lu-ciiin-daaa?

- Tem juízo, rapaz, senão ainda te mandam para uma casa de correção dos doidos…

- Oh, não faltaria lá doidos, sem contar com os que se dizem de juízo perfeito…

- Lá isso, mas não me estás também a chamar tolo, pois não?

- Oh senhor Gregório, pela alma de quem lá tem: não senhor, por amor de deus…

- Está bem, está bem rapaz, anda daí beber um caneco, anda cá homem!

- Não senhor, bem-haja, fica para outro dia: escute, lá está o diabo do pombo: Lu-ciiin-daaa, Lu-ciiin-daaa.. E olhe que o rodízio também não para com a cantilena: Aquiii-liii-nooo, Aquiii-liii-nooo, Aquiii-liii-nooo…

- Homeça, rapaz, hã, hã, hã.. – Ria-se o moleiro Gregório, dando meia volta, enquanto Abel alargava a passada de regresso a casa, deitando, por cima do ombro:

- Até à manhã, senhor Gregório, se deus quiser!

- Vai com deus, rapaz. - Ainda retorqui-o Gregório.

Lá do alto, da serrania da Retorta, o sol escapulia-se, escondendo-se, em forma de bola vermelha. Abel não queria voltar a casa noite cerrada. Temia que, em pleno baldio dos urgais, lhe saísse, ao encontro, um lobo, até um gato bravo receava e o regougar da raposa, o pio do mocho e o canto noctívago do noitibó traziam-lhe à memória maus presságios. Por isso, apressou-se, a trote, como o seu cavalo, o mulato, que deixara na corte a descansar das estafas dos habituais carregos de grão e de farinha de e para o moinho, bem como das cargas de fenos e de lenha a que submetia o quadrupede. Ali, em pleno monte dos urgais, entre urzes, giestas, estevas, rosmanos, carrascos e pinheiros, podia imitar o pombo – Lu-ciiin-daaa, Lu-ciiin-daaa; o rodízio – Aquiii-liii-nooo… Lá prosseguiu no seu monólogo, mas parou, repentinamente, ao recordar-se dos reparos que lhe tinha feito o moleiro Gregório. De facto, para quê, por que razão ele se comportava como o seu avô, objecto de troça por causa daquela mania de falar só…

Calou-se e pensou: disparate – os pássaros não falam e o pau do rodízio precisava era de azeite ou de óleo como se costuma fazer nas novas moagens, lubrificando os gonzos…Diabo das máquinas que vieram a acabar com a freguesia, qualquer dia não há quem queira farinha dos moinhos. Vai tudo para as máquinas: a maquia é menor, é rápido e mói todo o ano, o diabo do vapor não falta como a água do rio; a caldeira arde sempre…

Ia com pressa, as pernas galgavam pedras, montículos e de mais obstáculos, pelo carreiro. Ao abeirar-se da fonte comunitária, guindou-se à direita, pelo atalho do olival, rente ao castanheiro grande, na margem do ribeiro, a passarada levantou voo, esbaforida, face à inusitada presença humana, àquela hora, de aconchego a fim de dormir empoleirada. Aquele castanheiro não era apenas a sua árvore das castanhas, era também uma casa, uma morada, um abrigo da bicharada, ali nidificavam: papa-figos, estorninhos, melros, pintassilgos, chapins, até cotovias, em covinhas, ao toro, no chão.

Abel entrou na povoação e não via mulheres, nem crianças, só homens a descansar nas soleiras e paredes dos quintais, conversando e afagando os fiéis cachorros. Abel deu as boas noites e todos responderam num tom diferente, parecia que sabiam algo que a ele escapava. Ao chegar, junto da sua habitação, logo ali, a criançada a brincar no chão, curiosos, uma menina a fazer de parideira e uma outra a imitar o grito de um recém-nascido. Entrou, empurrando a porta semicerrada, lá estava o mulherio, ainda ouviu a tia Soledade: é bem redondinho, benza-o deus…

Pronto! Abel percebeu que a sua Lucinda tinha parido um menino, um filho de ambos e, em voz alta atirou:

- Bem me avisou o pombo e o maldito rodízio!

- Que é homem, que estás para aí a arengar? – Intrometeu-se a sua mãe, A senhora Ana Luísa, enquanto as outras sorriam, principalmente a sua mulher que sorria também, refeita do esforço, e reconfortada com uma canja de galinha, acabada de sorver.

- Eu chamei-te do alto quando me deram as dores, não ouviste… - Adiantou Lucinda, feliz.

Aos pés da cama, sobre uma tabuinha, a fazer de prateleira, permanecia o seu único livro, “Quando os Lobos Uivam” Aquilino Ribeiro, pôde ler na respectiva lombada. Abel atirou, determinado:

- Vai chamar-se Aquilino! Aquilino, como o do livro. – Apontou para a prateleirita…

Pronto! O menino acabado de vir ao mundo, mais um herdeiro dos hábitos e dos costumes das gentes da serra, das courelas, dos lameiros, das hortas, dos soutos e de um infindável de encantos da ruralidade ficou de nome próprio, Aquilino, o menino da serra, do rio e do moinho.

Foi assim que Abel quis registar o seu filho no registo civil da devida repartição, na vila.

O funcionário perguntou:

- Hora e dia do nascimento? - Abel retorquiu:

- Às 7 horas de sábado.

- Sábado, dia 14, foi de manhã ou à tarde? – Voltou o funcionário.

- À tarde.

- Então, nasceu às dezanove, homem…

- Nome completo?

- Aquilino Augusto Bouça Ribeiro.

- Não fica melhor Aquilino Augusto de Bouça Ribeiro?

- Sim, sim senhor, fica melhor, soa melhor – de Bouça Ribeiro, Aquilino Augusto de Bouça Ribeiro.

- Que raio de nome, homem, não podia ser João, Manuel, Luís, António, sei lá, agora Aquilino.- Contestou o funcionário, desagradado com o nome Aquilino.

- Faz-me lembrar o reviralho… - Retornou, ainda, mostrando má cara a Abel.

- Pois, É Aquilino que fica – Respondeu Abel. Pagou, e saiu de cédula do filho, em mãos…

 

Forno no Moinho dos Freixos – Rio Bom que foi de António José freixo (Aguiar); Francisco Freixo/Luísa do Nascimento Peixeira Macena; Joaquim Freixo/ Mafalda.

 

 

 

 

 

Rio Bom

Moinhos dos Grelos – Rio Bom – que foi de Joaquim Grelo; João Manuel Grelo/Maria do Carmo Marques.

 

 


 

 

Albano era um menino afoito. Gostava muito de se embrenhar na mata.

A mãe, a senhora Libânia, preocupava-se com a ideia do filho se esconder no monte dos urgais. Logo pela manhã recomendava à sua filha mais velha:

-           Ana, toma-me conta do menino, não o deixes ir para o monte...

Contudo, Albano teimava em fugir. Aguardava que a mãe saísse no cumprimento das tarefas de moleira e raspava-se. A senhora Libânia, por vezes, ia entregar a farinha aos camponeses, demorando nos caminhos e na conversa. Ela ia às aldeias, lugares e quintas buscar o grão de centeio, trigo e milho, posteriormente, retornaria com a farinha e o farelo, depois de moído no seu moinho do Rio Bom. A senhora Libânia era, assim, uma portadora de mensagens: transportava o pão e as notícias de terra em terra e, à noitinha, depois da ceia, narrava todas as peripécias ao marido e aos filhos. No tempo frio, de Inverno, contava em roda da fogueira, na cozinha; nas noites de Estio, deliciava a prole e o companheiro, junto à soleira da porta da casa do forno.

       

 

                      

Moinhos dos freixos, Rio Bom.


        

 

Albano, nas suas fugas, só queria a companhia do finote, cachorro novato e seu companheiro nas brincadeiras do esconde, corre e apanha. Ana, a irmã mais velha, já fazia as lides da casa: cozinhava e deitava a vianda aos recos. Por isso, Albano aproveitava-se das ocupações da irmã e do pai, o senhor Ismael, que ora olhava pelo moinho, ora tratava das hortas ou dos lameiros, para se escapulir, rente às paredes, até se encobrir, completamente, entre o mato: giestas, rosmanos, tojos, estevas e urgueiras.         

   

 

 

 

 

Numa manhã outonal, céu encoberto por nuvens corredoras que a espaços deixavam o sol a descoberto, Albano, com o finote, correu para a floresta dos urgais. Aproveitou o momento de saída da mãe para os Pereiros; a desatenção dos irmãos mais velhos que brincavam, junto ao forno, imaginando-se lavradores e construtores de casinhas de pedra; a azafama de Ana na sua ronda matinal pela capoeira, recolhendo eventuais ovos aí deixados pelas poedeiras, deitando erva aos coelhos e a vianda ao porco que grunhia de larica; por último, o instante em que o pai se dirigira ao moinho, desempenhando a tarefa habitual de picar a mó, carregar a tremonha, recolher a farinha e o farelo e arrecadar a maquia, fazendo os ensacamentos respectivos: tudo prestes para que a sua esposa procedesse à entrega do produto transformado.

Albano andou, andou, até deparar com uma clareira, em forma de círculo, onde só um medronheiro existia, ao meio, rodeado de erva tenra e fresca. A árvore parecia um sombreiro, em formato de cone, com os frutos, vermelhos, pendentes, entre as folhas verde-escuro, viçosas.

O menino sentou-se debaixo do medronheiro, o finote imitou-o, ambos comeram um pedaço de pão que Albano levara no bolso e, como costume, partilhava, irmamente, com o fiel amigo.

Enquanto o finote dormia, estiraçado sobre a erva verde, Albano, sentado, ia passando a vista, encantado com o lugar, parecia um sítio mágico, do tipo das histórias do avô José e das aventuras fantasmagóricas que a mãe dizia ouvir no decurso do seu périplo.                       

Os bagos vermelhos cereja do medronheiro afiguravam-se como uma tentação e Albano não resistiu, hesitante, provou um fruto. Durante uns instantes esperou pelos efeitos. Ele tinha receio que lhe sucedesse alguma coisa de estranho em virtude de ter comido um fruto desconhecido. Lembrou-se da mãe que, frequentemente, lhe recomendava atenção para com o que levava à boca, pois havia ervas venenosas, plantas amaldiçoadas e frutos proibidos, matando todos aqueles que os ousassem ingerir. O avô José também lhe tinha contado que havia feiticeiras a esconjurar frutos e plantas de modo a que se os humanos lhes mexessem transformar-se-iam em lobisomens e porcos espinho.

 

Moinho dos freixos, rio Bom


                           

Ao fim de algum tempo, enquanto o finote dormia, tranquilamente, Albano estendeu o braço, colhendo os bagos mais apetecíveis e seguidamente comendo-os, esquecido dos conselhos da mãe e das lendas do avô. Poucos instantes após, sentindo as pernas fraquejar e a ilusão de que o mundo girava em volta de si, deitou-se de costas sobre a erva fresca.

Albano estava completamente ébrio. Ele não sabia que aqueles bagos vermelhos de medronheiro eram utilizados nas destilarias dos quais se extraia a aguardente de medronho de elevado teor alcoólico.

Impotente para fazer o quer que fosse, perante o seu estado de incapacidade física e mental, ali se deixou ficar estendido com a sensação de que o seu corpo girava em cima da mó do moinho como os grãos de milho até serem esmagados pela grande pedra granítica, movediça.

O finote, acossado pela fome e saturado dos pingos de chuva que, entretanto, chovia com maior intensidade, ou, porventura, no sentido de anunciar a ausência do seu amigo, regressou à casa dos donos, no Rio Bom. Os pais e os irmãos de Albano, ao verem que o finote regressava sem o menino, ficaram muito preocupados face à eventualidade de lhe ter sucedido algo de muito grave e empreenderam uma busca entre a mata dos urgais, no intuito de resgatarem Albano.

No entanto, o mato era denso e a noite estava muito escura, era noite de lua nova, pelo que não havia luar. A chuva continuava a desabar sobre os urgais. A única esperança era a de que o finote conduzisse os indagadores a alguma pista que os levasse ao encontro com Albano. Porém, Finote amuou e, face a exacerbada insistência, baixou a cabeça, metendo o rabo entre as pernas, recusando-se a obedecer às ordens de Ismael, cada vez mais aflito, ameaçando tanto o cachorro como os filhos que não tinham dado pela fuga de Albano. A mãe clamava pelo filho, mas não obtinha retorno.

Albano incapaz de reagir, sem capacidade de se aguentar nas pernas, fechou os olhos e ali tentou resistir à borrasca. Mentalmente relembrou a história do avô, segundo a qual um príncipe abandonado na floresta foi transformado num cabrito, por uma bruxa que vivia há muitos anos numa toca de castanheiro, ao pé de uma fraga enorme. O cabrito, só e desprotegido, entre o mato, foi caçado e comido por um lobo esfomeado; veio um porco-espinho e comeu o lobo que logo se transformou em lobisomem; de dentro do lobisomem saiu um pombo que voou para uma clareira da floresta onde depositaria o príncipe são e salvo, debaixo de uma árvore, à qual viria a chegar uma velha muito engelhada, andrajosa e só com um dente, canino, na boca de lábios sumidos. A mulher andrajosa abeira-se do príncipe, perfeito, e beija-lhe a boca. De repente, num raio de luz, a velha engelhada transformar-se-ia numa linda princesa, uma menina linda como não havia memória. Esta lenda estava a passar pela mente de Albano, em vigília, quando finote lhe passou a língua pelas bochechas, como que se o chamasse de volta.

     Enquanto não sentia força para se fincar no solo, Albano ali foi permanecendo, vendo os pingos cair sobre a erva e sentindo regelar o corpo, com a roupa colada ao seu corpito. O crepúsculo foi tomando conta da clareira, para além da qual a mata mais se adensava. Primeiro veio um coelho, a medo, foi penetrando na clareira, até que se afoitou face à inacção de Albano que apenas mexia os olhos. Pouco a pouco foram chegando mais láparos e até um lebrão por ali passou, todos comeram da erva tenra e todos abalariam de bandulho cheio. À beirinha da noite cerrada, uma raposa, orelhas fitas e cauda esticada, penetraria no círculo sem cerimónias. Farejando tudo à sua volta, passa revista ao tronco do medronheiro e desapareceria por entre as estevas, mediante a tentativa de Albano em se levantar, num momento em que sentiu a cabeça menos atordoada. Só após a saída da raposa é que ele deu pela falta do seu companheiro finote. Em esforço, ainda sob uma desmesurada cefaleia, ergueu-se, sentando-se na relva enlameada, quase nada enxergava em volta de si. Só o barulho da chuva nos arbustos e na copa das árvores. De perto foi ouvindo um ruído que se aproximava entre as folhas secas no chão de uma castinceira. Ao seu lado, viu chegar-se para si um cão grande. A princípio julgou tratar-se do mondego, rafeiro que raramente largava a senhora Libânia nas caminhadas de moleira recoveira, mas não, o bicho, de focinho esticado, farejou-o de perto, sem latido nem uivo.

Estava o lobo e Albano, assim, sós, quando no céu se abriu uma clareira medonha e, ao som de um estrondo de trovão, uma faísca cai sobre o medronheiro, rachando-o de alto abaixo cujos frutos vermelhos cereja enegreceram que nem caganitas de coelho bravo.

Albano caiu inanimado e para ali ficaria, não se sabendo o que terá acontecido ao lobo que naquele instante fatal o observava.

Albano Só viria a despertar mediante uma lambidela do finote.

Estava um Sol radiante. O medronheiro jazia queimado, fustigado pelo raio de fogo, caído dos céus. Atrás do finote, especado, estava, agora, o avô José, circunspecto. À medida que o menino se recompunha, sem ainda se saber situar no local e nos acontecimentos, o avô diz, suavemente, ao neto:

- Eu disse-te, Albano, é preciso respeitar o espaço que não nos pertence de pleno direito: nem os homens, nem os deuses deverão ocupar a morada dos animais, a floresta é sagrada e se nós lha usurparmos já mais haverá comida nem paz no Céu e na Terra...

 

 


Jumento e seu dono, Pereiros.

 

 

 

 

 

 

Bairro Alto

 

Eram dezanove horas, há quase cinquenta minutos que caminhava, desde a rua Saraiva de Carvalho. Daniel dobrou a esquina da Barroca, sentindo o bafo de bifanas encharcadas na mistura de banha de porco e de óleo fula, gordura saturadíssima numa frigideira besuntada que nunca tinha sido passada a esfregão. Cada vez que as bifanas começavam a emergir daquela mixórdia, logo o senhor Fernando acrescentava uma colherada de banha e mais uns decilitros de óleo. As latas da banha, os frascos do óleo e umas garrafas de vinho branco de Almeirim eram depositados numa prateleira, abaixo da mesa dos bicos do fogão de boca larga, a gás butano. Tudo isso espalhado atrás da vitrina larga e embaciada, bem calafetada através dos amontoados de gordura solidificada nos cantos, frinchas e múltiplos orifícios. Nas superfícies lisas o Senhor Fernando passava a espátula, raspando por camadas.

Apesar do apetite, o rançoso odor quase fez vomitar Daniel. Esqueceu a fome e entrou na porta, mesmo ao lado da taverna. No primeiro andar já decorria o plenário de delegados e activistas sindicais. Não tinha nada que enganar, no varandim, um pendão de ráfia tinha inscrito: Unidade na Acção – Sindicato dos trabalhadores Tipógrafos, Litógrafos e Ofícios Correlactivos do Sul e Ilhas.

Na mesa, virados para a plateia, repleta, Aldino, ladeado do Silva e do Fidalgo, introduzia a ordem dos trabalhos, sem hora final determinada – enquanto se registassem intervenções, ninguém arredaria pé e se ousasse não seria repreendido verbalmente, mas alvo de olhares reprovadores, sinónimo de rachado (fraco, pouco combativo).

A maioria dos elementos, quase todos masculinos, ostentava cabelo e barba compridos e desalinhados, identificação revolucionária, à maneira do comandante Cheguevara. Porém Aldino era uma cara lavada, contrastando com o barbudo Silva, já o Fidalgo apresentava um bigode farto, um pouco à laia de alentejano e, porventura, à moda de José Estaline. Mais próximo, sentado na única cadeira vaga, a roçar a primeira portada, a seguir à mesa dos três dirigentes sindicais, pôde verificar que Aldino quase não tinha barba – todo o homem, a sério, tinha de ter barba, caso contrário não se livraria da conotação de animal afeminado e então com aquela vozinha do Aldino, não faltaria falatório. Aldino era, contudo, oriundo da Madeira e, certamente, lá não se estranharia homem de cara lavada, de voz fina, de cana rachada.

Enquanto o Aldino, o presidente, usava da palavra, muitos cumprimentavam-se, outros acomodavam-se, geralmente, escolhiam companheiros e simpatias. Todos procuravam aproximar-se dos mais activos e palavrosos, como borboletas a chegarem-se para a luz. O presidente granjeara a fama de paladino e perspicaz. Por isso, tinha sido eleito em assembleia constituinte, logo após a deposição da comissão directiva de bufos (gente afecta ao regime salazarista e colonial) que ali tinha estado desde os tempos de Salazar e foi permanecendo, durante toda a governação de Marcelo.

- Camaradas! Camaradas! – Elevava a voz o presidente, tentando abafar o zunido da plateia.

- Um ponto à mesa! – Solicitou Valente lá do meio dos delegados e activistas.

- Tem a palavra, mas só para interpelação – gritou Fidalgo, erguendo-se e retornando rapidamente com as nádegas à cadeira.

- Camaradas! Camaradas! Silêncio, respeitem as intervenções, senão é melhor irmos todos para casa.

- Para casa? Em casa estivemos nós quarenta e oito anos. Vamos p´rá rua, todos p´rá rua – gritou ainda mais Luciano, lá da última fila.

- Assim não há condições de prosseguir com os trabalhos, peço cinco minutos à mesa. – Gritou ainda mais o Ramos, levantando-se do meio da primeira fila de cadeiras, mesmo defronte de Aldino.

- Pedido concedido! - Condescendeu Silva, mesmo perante o ar de espanto e de trejeito reprovador, quer do presidente, quer de Fidalgo.

- Ou os trabalhos continuam ou vamos embora, eu tenho muito com que me entreter, tenho lá uma garrafa de uísque que me dá mais gozo do que estar à espera de quem não tem nada que dizer. – Rabujou Valente, gerando um coro de vozes em surdina, mas sem contestação frontal, dados os receios que tinham da eventual reacção de Valente.

Assistia Daniel ao segundo plenário da sua existência, não sabia bem o que representava tudo aquilo e os intervenientes eram praticamente os mesmos, por isso, reconhecia-lhes a cara, relembrando também o nome e a respectiva voz: no anterior plenário, cada um que pedia a palavra, identificava-se por nome ou por apelido e acrescentava a designação da empresa de onde provinha. Entretanto, como isso já tinha ocorrido há alguns meses, tudo já parecia mais estruturado e os activistas mais familiarizados. Notava-se que se tinham constituído grupos ou facções, porventura, por simpatia ou afinidades profissionais.

Decorridos os cinco minutos de muito barulho de arrastar de cadeiras e ainda mais de sibilos, Rosa levantou-se da ala direita da segunda fila, com o indicador da mão direita no pulso esquerdo e falou alto, com voz feminina e firme:

- Camaradas! Agora tem a palavra o camarada Aldino. Queremos ouvir e fazer as nossas intervenções, sem perda de tempo, que a nós mulheres não basta sermos exploradas pelos patrões, senão ainda pelos companheiros e pelos filhos a quem temos de fazer o jantar e cuidar da roupa. – Todos encaixaram, alguns sorriram, outros praguejaram, sussurrando, mas fez-se silêncio, pelo que o presidente, sempre de pé, à espera do momento, retomou:

- Camarada, amigos e companheiros de luta, a convocatória, que vos foi distribuída, não saiu a tempo de ser enviada para os locais de trabalho, por via da falta de meios de reprodução. Como sabeis, a comissão de fantoche do fascismo não deixou ao sindicato as condições mínimas para que possamos dar resposta aos legítimos anseios dos trabalhadores. Por proposta da última reunião de direcção pomos à aprovação da assembleia a compra de um stencil.

- Quem vota contra?

Quem se abstém?

Aprovado por unanimado. – Interpelou e concluiu Fidalgo, rapidamente levantando-se e baixando o cu à cadeira, tão rápido que mal deu tempo de reacção à plateia.

Contudo, quando Aldino já se aprumava para prosseguir no uso da palavra, Luciano, de um salto, levantou-se:

- Alto lá, camaradas! Quero fazer uma proposta de alteração.

- Chuta, camarada – retorquiu o presidente.

- Então aí vai, onde se lê s..ten…cil, deve ler-se máquina tipográfica de pinças.

- De pinças… Isso já não presta! – Barafustou Armando, o encadernador, e de um coro de vozes, atabalhoadas, sobrepunha-se: offset, offset.

De repente, a balbúrdia tomou conta da assembleia, todos falavam e discutiam máquinas e processos tipográficos e litográficos, sem vislumbre de consenso à vista. Mamede, o transmontano da tipografia Guide, foi ao palanque e gritou:

- Camaradas! Camaradas! – Numa voz forte, claramente denunciadora da origem geográfica, pelo x do s, mas estabeleceu o silêncio e, antes que empreendesse o seu discurso, já o coro de sussurros avassalava na sala, Fidalgo levantou, resoluto, o traseiro da cadeira e vociferou, à alentejano de Castro Verde, voz pousada e autoritária:

- Camaradas… Na minha terra quando um burro zurra os outros baixam as orelhas. Nós fizemos a revolução, intervindo nos modos e no tempo adequados. Só faremos a revolução de forma ordera, firme nos propósitos e em defesa da classe operária. O trabalho colectivo é aquele que nos levará à vitória final. Prosseguindo a ordem de trabalhos, como bem disse a camarada Rosa, homens e mulheres juntos vergaremos o capital. Secundando o camarada Ramos, o camarada Valente e sobretudos os camaradas Mamede e o Aldino, proponho a análise do segundo ponto da ordem de trabalhos, ou seja, a eleição da lista dos camaradas responsáveis pela negociação da contratação colectiva. Serão estes camaradas que elaborarão um caderno reivindicativo vertical. Nós pensamos que essa lista é aquela que melhor conhece e melhor saberá defender os interesses da classe, na unidade da acção, sob a direcção da CGTP, a central da classe operária e de todos os trabalhadores.

Viva a CGTP!

- Viva! - Gritaram quase todos.

- Viva a classe operária – Berrou a plateia de uma só vez.

- Quem vota a favor? Interveio Aldino, por instantes todos se entreolharam, a ver quem se adiantava, avançou Ramos, erguendo o braço direito, seguindo-se o Valentes, ambos constando da lista proposta, mas só depois que a Rosa levou o seu braço, acima das cabeças masculinas, é que os outros se decidiram pela aprovação, sem resmungo, levantei o braço a meia altura, sem ter a certeza de ter sido notado.

- Quem se abstém?

 Quem vota contra?

- Luciano, absténs-te, votas contra ou a favor, não te vi erguer o braço – perguntou Silva, que se tinha calado desde do momento em que tinha autorizado a pausa de cinco minutos para serenar ânimos, em dissonância com os colegas de mesa.

- Abstenho-me – retorquiu Luciano, visivelmente mal-humorado, alisando as guedelhas raras e oleosas que teimavam em tapar-lhe as faces chupadas e macilentas, denotando precoce envelhecimento, quiçá, por efeitos nocivos do chumbo com o qual, no quotidiano, mexia, expirando-o, de manhã à noite e, noutro tempo, fazia serão para gáudio do patrão insaciável e ávido de caracteres alinhados em ramas, prontos para entrarem nas máquinas de impressão.

- A lista foi eleita por maioria com uma abstenção e nenhum voto contra. Informou Fidalgo, já em pé, arrumando os papéis, preparando-se para sair.

- Está encerrado plenário. – Sentenciou Aldino.

Alguns ainda se dirigiram aos membros da mesa com graças e bajulices, outros saíram atrás de Valente que se ia arvorando em autoridade no saber de sindicalismo e dotado de especiais dotes oratórios, por isso, sofismava para impressionar e subestimava os aparentemente mais humildes, enchia o peito de ares de retórica barata. Olhava por cima dos camaradas como quem dominasse a doutrina revolucionária de uma classe de pacóvios e, ao mesmo tempo, detinha a bolsa e o nível de vida de um patrão dominador, mas prosseguia a pé, ia tomar o autocarro que o transportasse para Sapadores. Quase todos regressavam a casa de transporte público, exceptuando o Silva no dois cavalos até Rio de Mouro, depois de um dia de trabalho e duas horas de plenário que, afinal, só serviu para autorizar a direcção a comprar uma maquineta de reprodução documental e apresentar um grupo de, supostamente, especialistas em negociações contratualistas, junto do novo Ministério do Trabalho.

Uma arreliadora vontade de urinar tolhia os movimentos a Daniel. Perscrutou em volta e nem vislumbre de retrete. Quis subir a escada ao segundo andar e logo Aldino atirou:

- Camarada, a tesouraria já está fechada.

A toda a velocidade galgou degraus de madeira, de dois a dois, mas ainda ouviu Rosa, ao lado do seu companheiro, defender que o José Cid é que tinha voz de cantor, apesar de reaccionário, gostava dele, sobretudo a cantar a moda dos vinte anos. O marido sorria e defendia as cantigas de intervenção do Fanhais. Um outro rematou, por cima do ombro:

- Fado! Fátima! Futebol! É disso que nos deram!

Correu, voltou à esquerda, aflito para mijar. Na taverna só havia serradura no chão a sugar vinho, escarros, beatas e tudo o mais, lixo, deitado sobre os azulejos encardidos cuja cromática original tinha desaparecido. Não, não sabia se tinha retrete, e mesmo que existisse, certamente, federia a sério. Subiu a Travessa da Queimada e eis que deparou com a tasca do galego, tão ou mais sabuja do que a do Senhor Fernando.

O mijatório situava-se à esquerda, logo que abriu a portinhola, assolou-o um cheirete de porcaria antiga: cagava-se e mijava-se para o buraco e parecia que ninguém acertava com ele.

Atrás do balcão havia um lavatório, encardido. A torneira estava avariada, faltava-lhe a borracha vedadora, como não sabia, Daniel rodou à esquerda até verter um fiozinho de água e lavou as mãos, utilizando um pedaço de sabão artesanal de soda. Quis servir-se de uma toalha, mas assustou-se com o aspecto sabujo e o fedor, pelo que tentou fechar a torneira: impossível, já não rodava mais e não estancava. O Martins, galego, olhou de esguelha e disse:

- Deixe! Deixe! Ninguém o mandou abrir. – Atirou, grosseiramente, e com a toalheca que utilizava de avental, cobrindo a torneira, deitou a manápula, aquilo até rangeu e secou a bica.

Sem saber o que fazer, mas aliviado daquela aflitiva necessidade fisiológica, pensou fazer despesa, para compensar. Fome tinha, porém o panorama parecia desastroso. Pediu uma sandes de presunto e um copo de vinho.

- Tinto ou branco? – Perguntou, já mais amável.

- Tinto, se faz favor.

Ripou dum facalhão, deu-lhe duas afiadelas, no mármore do balcão, cortou duas lascas dum pedaço de presunto, retirado de umas quantas caixas e tralhas, baixando-se apanhou um casqueiro, dum saco de papel pardo, no chão, abriu-o ao meio com o facalhão e introduziu o presunto para dentro.

- Aí tem, o vinho é do corrente ou de Almeirim?

- Do corrente, se faz favor.

Encostado ao balcão, indiferente à imundice, ia devorando o naco de pão com presunto salgado. O vinho era áspero, carrascão, e desagradável. Para não colar o lábio inferior ao vidro do copo, sorvia como se bebesse dum poço, com os beiços no líquido.

Uma senhora, nitidamente, envelhecida por mau viver, entrou e pediu:

- Martins, dá-me um copo três e um ovo cozido.

- Obo num ay, pêro tengo bacalhau frito – respondeu num misto de galego, castelhano e português alfacinha.

- Martins, avia-me uma sopa – solicitou um sujeito magro, de meia-idade, de roupa velha e engelhada, encolhido de frio – tinha o sapato do pé direito descolado na lateral e acabara por sentar-se na primeira cadeira que encontrou, à porta da retrete fedorenta.

O galego puxou da única posta de bacalhau frito de dentro de uma espécie de gaiola de vidro e esticou-a à senhora. Ela, pegando-lhe com dois dedos, começou a trincar, devagar, Daniel pôde verificar que a senhora tinha dificuldade em mastigar, dada a falta de alguns dentes. Dava voltas ao bacalhau na boca e ia cuspindo as espinhas para o chão, tapado a serradura.

O homem magro e meio andrajoso continuava esperando pela sopa que o Martins colocara a aquecer – o caldeiro sobre o bico do fogão começava a esfumar, derretendo a bola de sebo que ele tinha deixado ai cair, através de uma roldana, presa ao tecto. De uma palmada, o galego retirou a bola de sebo do caldeiro e fez subir novamente a roldana cujo sebo ia pingando sobre o balcão e a própria camisa, aos quadrados, do galego.

Daniel já acostumava ao nauseabundo odor da taberna do Martins galego, por via do espectáculo que ia presenciando e, mentalmente, passava em revista o reboliço ocorrido no plenário, quando a senhora se abeirou mais de dele e disse, baixinho, quase a medo:

- Vamos lá, filho?

- Aaa, desculpe, não percebi, diga…

- Dormir! Vai dormir pá, percebeste? – Pagou e saiu irritada.

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

Hoje

 

Mozinhos, José Joaquim de Sousa, Alcides Dinis (neto), Filomena Aguiar, Luísa de Jesus Sousa, Manuel de Jesus Sousa, Ana Páscoa.

                                               

   Mariete levantou o lençol que lhe tapava completamente a cabeça. Desde muito pequena que apanhara aquele hábito de dormir enroscada como se fosse uma múmia, totalmente envolta na roupa da cama, até fazia confusão como podia ela respirar. O Sol ia alto e ela para ali deitada, sem preocupações, nem responsabilidades, dormia até sentir o corpo dorido e levantava-se sempre de mau humor.

     Mariete!- chamou a mãe, lá da cozinha.

     Ela ouviu perfeitamente a mãe, mas é como se não tivesse dado por nada, continuou a fitar o cortinado, não perdia o costume de se pôr tempos infinitos a mirar os motivos estampados. Entretanto, fixou os números a vermelho no mostrador do relógio despertador que, por acaso, nunca tinha cumprido a função de despertar: dez horas e dez minutos. Pensou que ainda não seriam horas de se levantar. Aliás, antes das onze da manhã não contassem com ela para fosse o que fosse. Para quem nunca se deitava antes das duas horas da manhã até nem seria dormir muito: o Jaime, seu namorado, gabava-se de ficar a dormir pelo menos até às treze ou catorze.

     Mariete! Anda cá, minha filha, tenho que sair – prosseguiu a mãe.              

     - Qual é a espiga? Deixa-me! – Respondeu finalmente Mariete.

     -  Anda que temos de ir ao hospital ver a avó.

     - Vai tu, eu não tou nessa.

     - Mariete… hoje, tens mesmo de ir e não tornes as coisas pior do que já estão.

     Enquanto Júlia fazia mais umas arrumações e aprontava uns biscoitos para regalar a convalescente num hospital central de Lisboa, Mariete, ensonada e de mau humor, lá se plantou atrás da mãe.

     - Pronto, vamos lá ver a velha – refere-se ela à sua avó Cremilde.

     - Que modos são esses de te referires à tua avó?

     - Tá-se bem, prontos, não é velha, é decrépita, tá bem assim? Vamos de frosques, minha.

     - Mariete! Quantas vezes te disse que não admito essa linguagem, ai se o teu pai te ouve falar assim da…

    - O papá quer mimar a sua mamã, é? Porque não vai ele levar-lhe um chazinho e umas torradinhas? Antes quer tar no bem bom com a…

   - Mariete, não fales assim do teu pai!

  - Ai não, ai não? Antes queres fazer de conta que não é nada contigo?

  - E não é! Ele é um homem divorciado, ou já esquece-te que eu lho dei?

  -Metes-me pena, deixas que ele te use. Iá numa boa, dá agora numa de samaritano…

  - Quem paga a conta da luz, da água e as tuas noitadas, quem?

  - Deixa-me, tá no ir, não olhes por ti não …

 Cá fora, num calor abafado, Júlia caminhava diante da filha, ia circunspecta, numa das mãos transportava um saco de pano com os mimos para a sogra e na outra uma carteira a fazer par com os sapatos castanhos abertos, a saia branca rachada, ao lado, desnuda-lhe meia coxa, tisnada do sol da praia.

- Mãe, tu és feliz, assim? – Interroga a filha, agora, serenamente.

- Fazes cada pergunta…

- Então, responde, sinceramente, sente-te feliz com a vida que levas?

- Mariete, que te parece?

- Eu é que fiz a pergunta…

- A minha felicidade é o bem-estar dos meus filhos – responde a mãe, sem convicção.

- Mãe, eu fui bem clara e objectiva, responde à minha pergunta!

- Porventura, és polícia? Querem lá ver! – Retorque Júlia, em tom exaltado, perante a insistência da filha.

- Mãe, querida, acalma-te, só quero falar contigo de filha para mãe e de mãe para filha, como duas adultas. Lembra-te das nossas conversas no Central Paris, durante os nossos almoços que o pai pagava, enquanto ele ia com a amante almoçar ao Guincho, dizendo que tinha muito que fazer na empresa.

- E já te esqueceste que pôs a firma no meu nome?

- Não, não esqueci, não senhora. Eu bem sei que utilizou a sua mulherzinha, ou melhor a sua ex-mulher para ludibriar as Finanças e roubar os desgraçados dos trabalhadores que, ao fim de uma vida de trabalho, acordaram com a empresa falida e foram todos corridos para o Fundo de Desemprego, com um chuto no rabo.

- Mariete, o teu pai não nos deixou na miséria pois não?

- Não, claro que não, deu-te umas migalhas por lhe teres feito o favor de ficar com a empresa falida, só para ele pôr o dinheirinho seguro e, assim, dar por falência uma empresa altamente viável. Quanto é que ele tinha lá fora, não me sabes dizer?

- Não sei minha filha, sabes bem que nunca estive de acordo com as decisões dele, apenas vos quis proteger…

- Não estou a censurar-te, até acho que és a melhor mãe do mundo, mas não devias ter ido na conversa dele e dever-lhe-ias exigir o divórcio quando ele tinha a firma florescente e, assim, terias ficado com o teu quinhão, ao mesmo tempo que ele não poderia liquidar assim as finanças como o fez. Deixou uma porrada de fornecedores de calças na mão e os desgraçados dos funcionários a chupar no dedo.

- Não é bem assim, eles tiveram direito ao Fundo de Desemprego e alguns ainda receberam indemnizações. Os fornecedores recuperaram algum com as hipotecas.

- Mãe estás a ser injusta, tu sabes tão bem quanto eu que o pai foi um sacana que enganou meio mundo.

- Pois foi, filha, mas agora que queres…

- Que me digas se és feliz.

- Que achas? – Pergunta a mãe já mais suave.

- Penso que não, mas ainda a tempo de recompores a tua vida e finalmente encontrares o que sempre buscaste, ou seja, um homem que te amasse, de verdade…

- Mariete, tu sabes que apenas gostei de um homem e ele foi, precisamente, o teu pai e do teu irmão João.

- Isso foi há muito tempo e por acaso esse amor foi correspondido?

- No princípio, à sua maneira…

- Uma treta, não podes amar quem andou vinte anos a trair-te!

- Não foi bem assim.

- Não venhas com desculpas, já falámos milhões de vezes sobre isso, não mudes de conversa, vamos falar do que interessa, do Inácio.

- Que tem o Inácio?

- Não é preciso ficares assim, vermelha e nervosa como uma adolescente.

- Olha, deixa-te de tolices, entra lá, e não vás com essas conversas para junto da tua avó.

 

                                                       2

 

Decorrido cerca de um mês, Cremilde já se movimentava na sua nova morada, um lar residência para a terceira idade. O filho tratou do internamento, combinando o respectivo pagamento por transferência bancária: a pensão de sobrevivência de Cremilde até cobria as despesas. De princípio ainda aparecia às quartas-feiras, ao meio da tarde, de entrada por saída, posteriormente, levou-lhe um telemóvel, de carregamento condicionado, e pronto, desapareceu. Por vezes Cremilde pedia a uma empregada do lar para lhe fazer a ligação ao filho, com a desculpa de que não via os números no mostrador do telemóvel, mas lá se foi habituando a matar o tempo, mirando o vazio, através do vidro baço da janela ou conversando, vagarosamente com as companheiras. A televisão sempre ligada passou a não lhe captar a atenção, eram imagens e sons de fundo, sempre iguais, independentemente dos programas. Cremilde prolongava o tempo, povoando a mente de recordações…

Até o cheiro passou a fazer parte indelével do seu sossego desassossegado. A princípio incomodava-a aquele espaçamento odorífico, persistente de atmosfera azeda de sopa vertida e urina derramada. Um dia a sua neta Mariete disse-lhe:

- Vó, isto cheira a velho que tresanda.

Cremilde não respondeu à observação da neta, nem lhe trouxe qualquer perturbação, ela conhecia Mariete, sabia da sua irreverência e até achava graça aquela miúda que aparentava ser um ente antagónico a tudo o que cheirasse a hábitos, tradições e costumes, porém, bem lá fundo, como a mãe dizia, era uma doçura, com os defeitos, as virtudes e os preconceitos de uma geração que aparentava a mudança, mas carregava com o que de mais há de incapacidade humana que fosse capaz de produzir essa ruptura efectiva com o passado; são tiques de uma juventude à procura de algo que não quererá nem saberá encontrar.

Entretanto, uma tarde, Mariete apareceu com o namorado, de mão dada e muito afectuosa. Depois de se sentar a seu lado, ambas de rabo sobre a colcha estendida e o namorado de Mariete, sentado, de pernas esticadas, na única cadeira do quarto, a neta diz à avó, suavemente.

-Vozinha, agora tão depressa não virei visitar-te.

- Porquê, minha filha, é por causa do cheiro?

- Não vó, é porque vou aproveitar o programa Erasmo, sabes o que é?

- Mais ou menos, vais estudar lá para fora, não é?

- É isso mesmo, vou para a República Checa, depois de amanhã…

- Então vais estudar filosofia para a Checoslováquia…

- Não vozinha, querida, vou para Praga, República Checa.

- E o teu irmão, porque não vem ver-me?

- Trabalha com o pai…

- Trabalha com o pai, quem diria: filho, pai e avô, iguais, quem diria…

Assim se despediram, ficando a avó Cremilde a mirar o dia para lá do vidro da janela, cismando nos traços comuns dos três homens, de três gerações, como se fossem cópias; nunca tinham tempo, tudo era trabalho, mas ela sabia que isso era um pretexto, no fundo eram uns mandriões e desperdiçavam a maior parte do tempo útil em futilidades e artimanhas para ludibriar os outros, julgavam-se espertos, demasiado espertos e obtusos para não perceberem que os outros também pensam, estudam e sabem muito do que eles não poderão descortinar.

Cremilde quedava-se por trás da vidraça horas a fio, alongando a vista até à distância que os olhos lhe permitiam. Onde a visão não atingia usava a imaginação e viajava para lá da montanha e dos desfiladeiros, percorrendo caminhos idealizados e paisagens fantásticas. Fabricava uma geografia de acordo com as memórias dos lugares que tinha percorrido ao longo da sua vida, sobretudo, durante a sua infância, de comboio em carruagens desconfortáveis, puxadas a máquinas de carvão.

Nos primeiros dias em que para ali a levaram passava a maior parte do seu tempo fazendo retrospectivas da sua vida, tentando juntar os retalhos do seu percurso, porém isso conduzia-a sempre a certas incompreensões e consequentemente a angústias desnecessárias: não se conformava, então, com o seu destino de ali ter sido despejada. Depois, como método de sanidade mental e de precaução de saúde, decidiu fazer-se de esquecida e privilegiar a imaginação, ficcionando espaços e histórias, como se estivesse perante um romance ou um filme, ela própria escolhia os enredos e as conclusões. Por vezes ainda espreitava as imagens transmitidas pelo televisor, mas apenas as imagens porque as legendas já não conseguia ler e o som preferia ouvi-lo à distância e assim havia muitas palavras e notas musicais imperceptíveis, mas era preferível ao facto de ser agredida pelo som altíssimo se ela se colocasse junto dos companheiros que na sala passavam largas horas absorvendo programas e anúncios, uns atrás de outros.

                                              3

 

Júlia hesita face ao incessante assédio de Inácio, ele procura-a, todos os pormenores servem para se fazer aproximar, quer cativá-la, mas ela aborrece-se com aquela pressão. Tem receio de eventual despotismo masculino, recorda-se das exigências do ex-marido.

Aborrecida de estar só em casa, vendo televisão ou inventando tarefas domésticas, Júlia decide sair, aproveita para consultar o programa cultural do Instituto Castelhano. Há bastante que ali não ia, tinha tido um período da sua vida em que frequentava aquele espaço, tentando ocupar a mente e esquecer as tropelias do seu marido de então.

A rua é central, os passeios largos e os transeuntes circulam indiferentes e apressados e Júlia caminha entretida e, observadora, repara nas escadas exteriores de acesso ao instituto. Pela primeira vez, nota a elegância daquela entrada, sóbria de mármore e portas de madeira escura. Como era costume, o funcionário do serviço de segurança estava à esquerda, no interior de um pequeno compartimento ali colocado para o efeito. Júlia pergunta se a exposição patente está aberta ao público, delicadamente o segurança convida-a a entrar, franqueando-lhe o respectivo catálogo e ainda a informa acerca de um debate que então decorria no auditório. Na posse daquela informação ela demorar-se-ia menos na apreciação das obras expostas e dirige-se ao piso inferior, ao auditório, onde o conferencista disserta acerca de um autor andaluz, a quem são dedicados os desenhos e esboços de peculiar labor e rara sensibilidade literária pelos quais Júlia tinha acabado de visitar.

Perante uma plateia quase deserta, ela escolhe uma fila na qual apenas um homem estava sentado. Atenta à dissertação em castelhano, Júlia nem reparou no homem que acabava de pregar os olhos nela. O orador estendia o seu discurso aos tempos conturbados da Guerra Civil espanhola de 1936¬/39. Estabeleciam-se paralelismos entre a pintura catalã e a poesia da Andaluzia, tendo como pano de fundo a generosidade revolucionária da resistência republicana e a organização militarista das hostes franquistas. Terminado o tempo de intervenção, a mesa convida a assistência a usar da palavra, questionando ou comentando o prelector.

Naquele compasso de espera em que os assistentes hesitam em tomar a palavra, esperando por alguém mais ousado que libertasse a plateia da timidez, o cavalheiro aproxima-se de Júlia, estendendo-lhe o programa, querendo saber se haveria algo depois do debate. Júlia encolhendo os ombros, sorrindo por cortesia, responde que não sabia, mas indicando com o seu indicador a alínea seguinte onde constava o beberete.

Ele, não perdendo tempo, disse.

- Ah… desculpe o incómodo, veja que nem reparei, ando mesmo num estado lastimável. É que estou a passar por um período instável: a separação, não sei se a senhora imagina o desconforto. Muita gente nem sabe o bem que tem, se tiver um casamento harmonioso.

- Psiu, psiu! – Alguém admoestou entre os da plateia.

Perante a advertência, Júlia sentiu-se envergonhada e desconfortável. Ela tinha ido ali, sobriamente, como observadora e não sentia o mínimo desejo de se fazer notar; queria apenas ouvir, observar e regressar a casa incólume. Sentiu um impulso de se levantar e, abruptamente, abandonar o auditório. Porém reteve-se face aos olhares curiosos cravados nos seus movimentos, abstendo-se do ruído colateral, apenas se concentrando nas intervenções, ora da assistência, ora das respostas provenientes da mesa do colóquio, manteve-se firme até ao términos das intervenções. Por forma a evitar reparos, deixou que o público fosse abandonando o auditório no fito de posteriormente atravessar o piso superior onde iria decorrer o beberete na maior das descrições. Contudo, o cavalheiro também não tirava a bunda da cadeira, chamando a atenção dos presentes com o seu comportamento. Desse modo, Júlia, rapidamente, subiu as escadas e retirando-se irritada.

O homem, disfarçadamente, persegue Júlia. Todavia uns segundos apenas foram suficientes para que lhe perdesse irremediavelmente o rasto.

Júlia tomou o metropolitano e poucos minutos depois estava de regresso a casa, exausta e aborrecida com o ocorrido. Tirou os sapatos e deitou-se na sua cama, em cima da colcha branca rendada, oferta da sua sogra ainda antes do seu casamento. Recostada em duas almofadas, divertia-se a reconstituir a temática objecto e debate no instituto castelhano e quedou-se ao relembrar aquele homem atrevido que no momento lhe parecera libidinoso, mas agora já não o julga assim. Lembrou-se da conversa acerca da separação, então a despropósito. No instante em que ele a abordou ela mal reparara na sua figura, porém não compreendia como pôde reter dele uma imagem física tão nítida.

O ritmo cardíaco aumentou desmesuradamente ao reconstituir os factos com aquele desconhecido à ilharga. Intrigava-a a persistência daquela fisionomia em mente. Tinha a sensação de que o homem fazia parte do seu passado, porém sem conseguir resgatar essa vivência, nem tão pouco tinha a certeza se alguma vez tivesse encarado o sujeito. A memória não a auxiliava, mas a intuição persistia, sentia aquela figura perto de si, como uma peça sobressalente. Júlia de pernas esticadas ali ficou absorta com aquela imagem como disco riscado, nem avançava, nem retornava. Assim esticada pôde mirar-se através do espelho embutido na porta de correr do seu guarda-fatos. À meia-luz, reparou na sua silhueta elegante de mulher madura, cabelos lustrosos, pele morena e as pernas torneadas, aquelas pernas cobiçadas nas ruas, na praia, já no seu tempo de liceu e sobretudo de faculdade deixava alunos e professores de vista estampada nela.

Por fim, decidiu – amanhã volto lá, quem sabe se o homem…

 

 

 

 

 

 

 

 



 

 


 

 

 

 

 

Aerogramas coloniais

 

 

 


 

 

 

 

Maquela do Zombo, 23 de Abril de 1971

Estimada Zilda, espero que esta minha missiva te vá encontrar bem de saúde, junto dos teus, eu fico bem, graças a Deus.

Zilda, há bastante tempo que te queria dizer que gosto muito de ti, mas tenho tido acanhamento, com receio da recepção, se calhar, não deste pelo meu afecto por ti. Lembras-te de quantas vezes ia à tua secção? Era tudo pretexto para te ver e, se possível, sentir o teu odor, o teu perfume…

Neste momento também poderia usar o argumento de te escrever com o propósito de te solicitar o pedido de aceitares ser a minha madrinha de guerra, conselho que nos foi dado, sobretudo, por umas senhoras, Movimento Nacional Feminino, que nos visitaram em Luanda, assim que chegámos da Metrópole.

No entanto, apesar de ousar, formulando também esse referido pedido, quero dizer que já não posso calar este ardor que clama por ti: o amor!

Aqui, nas matas do norte da província de Angola, tão diferente do que todos nos diziam ser, tão diferente de tudo o que nos ensinaram na nossa escola, a tantos quilómetros da tua secção do armazém, sinto-me muito, muito próximo de ti, tão próximo que a todo o momento exalo o teu esplêndido perfume, ele veio comigo e entranhou-se em mim, mais do que o medo que a todos nos assola o desconhecido nesta guerra, incompreensível, medonha…

Agora mesmo, que escrevo estas letras no aerograma, sobre um caixote de armamento, te recordo, na sala de aulas da nossa escola, com o teu dedinho, apontando os rios da província de Angola: se tu soubesses como tudo é diferente do que o nosso professor nos ensinou… Não digo que seja mais feio ou mais lindo, o que te afirmo é que este mundo é diferente do nosso, aí, e eu tenho saudade de ti e da nossa infância, da tua voz, do teu sorriso, até do teu alheamento por mim, dos teus trejeitos que pareciam sacudir a minha insistência…

Quero muito regressar são e salvo, peço-te, se não for o amor, pelo menos comiseração e, assim, rogares a Deus por mim.

Ainda ontem tivemos uma emboscada, quando fazíamos uma picada e a desgraça levou quatro companheiros à morte e nove feridos graves, evacuados. Não sei se te lembras do Chico da Madragoa, foi um dos vitimados, custou-nos imenso o desastre e, agora, estamos sempre à espera do pior…

Entretanto, apanhámos um turra e uma mulher, ele era apenas uma criança e ela uma qualquer, andrajosos e insignificantes: uma frustração para quem julgava, como eu, que os turras eram pretos musculados e russos comunistas.

Já fomos a umas tabancas, musseques, como se diz aqui, e só se encontra gente descalça e despida, gente pobre, pretos feios e raparigas esbeltas. Não nos afrontam, fingem-se amistosos, mas sabemos que colaboram com os turras dos quais só vimos os que citei, ela ficou cativa, até ver, e o rapaz foi abatido, ninguém consegue tirar uma palavra deles…

Bem, querida Zilda, eu para aqui com desgraças que, eventualmente, chocaram a extrema sensibilidade de rapariga católica, temente a Deus, Nosso Senhor. Não me esqueço do nosso dia de comunhão solene em que ias tão linda, com o teu vestido de pomba divina, divina como sempre te imagino para a vida toda e, quem me dera, para a nossa vida em comum, criando os nossos filhos, longe deste inferno de imbondeiros…

Aceita, pois, este pedido, se te aprouver, e pede a Deus que nos abençoe e nos dê a Graça de nos juntar, relembrando o companheirismo que nos foi transmitido nas homílias e na sã convivência de escuteiros que ambos temos percorrido, mas, no momento, nos apartou na distância física.

Sem outro assunto, por agora, envio cumprimentos para os teus pais e irmãos, para a tua avó, do teu sempre Joaquim.

Até à volta do correio: Joaquim Afonso Rato, soldado 24789, da infantaria 16, companhia L12, Maquela do Zombo, Angola.

 

 

Ambriz 26 de Setembro de 1966

Minha Ana Maria, da nossa nova base envio-te novas, com imensas saudades, deste que, na distância, te deseja toda a proximidade, física e espiritual, aliás, espiritual penso que estamos mais juntos do que nunca tínhamos estado, fisicamente, só no pensamento, sinto ainda os teus ardentes ósculos e os teus deditos por mim acima e abaixo.

Como deves calcular aqui as notícias chegam retardadas e escassas, lá onde temos andado, no mato, nas zonas da vila Henrique de Carvalho, Veríssimo Sarmento e Nova Chaves, nada chega dos acontecimentos do mundo, só, de regresso, em Malange, fiquei, mais ao menos, a par dos resultados da nossa equipa no mundial, entretanto, o meu colega Adelino tinha-me escrito, mas só há dois dias me entregaram o aerograma.

Já tenho pensado, cá para os meus botões, se valeu a pena ter enveredado pela carreira de oficial miliciano, talvez se se tratasse de mero praça, soldado raso, poderia também ter obtido licença do exército, ou seja, talvez tivesse feito parte da equipa no jogo com a Inglaterra, pelo que entendi, pela subtileza das frase do Adelino, a selecção de Portugal jogou com uma linha de ataque muito desgastada e, nesse caso, quem sabe se o seleccionador me teria posto a jogar. Por outro lado, havia lá outros avançados em forma e, quiçá, mais valorosos do que eu, por exemplo, o Lourenço e foram para a bancada ver o jogo, parece que na avançada só podiam jogar os do Benfica, os melhores, só por que são da nossa equipa, o Sporting, ficaram de fora, mas enfim, foi pena, se calhar, não haverá outra oportunidade e logo que o nosso governo se empenhou tanto em mostrar ao mundo a nossa equipa, desconhecida e desvalorizada, antecipadamente, até por causa da guerra.

Atrás dizia-te, querida Ana, que estamos colocados em Ambriz, perto de Luanda, posso-te garantir que foi como se tivesse renascido para a vida, agora sim, apesar das responsabilidades que cabem ao desempenho de alferes, já vejo alguma alegria e, sobretudo, crença no futuro que, como sabes, passa por voltar à tua companhia, que almejo para o resto das nossas vidas, construindo família e cuidar da ganadaria.

Por falar em ganadaria, chegaram-me aos ouvidos de que em Nova Lisboa foi manejado um bom toiro com os ferros do meu pai, ainda lhe não perguntei mas fá-lo-ei, com certeza, bem queria ter assistido à corrida, todavia, isso seria um luxo, naquelas bandas, os terroristas estão muito activos. Por lá actua um afamado chefe a que tratam por Pedro. Certamente, eles serão conhecidos por nomes fictício, dizem que faz parte da estratégia de clandestinidade em que vivem, assim, como as terras que atrás mencionei em que o nativos designam por diferente toponímia, por exemplo, nunca dizem Nova Lisboa, mas sim Huambo, ouvi dizer que se alguma vez escorraçarem os portugueses que mudam o nome à maioria das cidade e vilas.

Minha Ana, deliciar-me-ia relatar-te muito mais destas paragens e, sobretudo, enfatizar-te o meu amor e saudades imensas que sinto de ti, minha adorada ninfa da nossa Avenida de Roma. Folguei saber que estais de saúde e aprecio as tuas missivas de ternura e tento retribuir, mesmo com a minha falta de jeito, contudo, sentidamente, posso-te garantir que és e serás sempre o amor da minha vida. No próximo aerograma conto descrever-te alguns lugares de Luanda: é bonita e, a maioria dos nativos, fala outra língua, um dialecto que designam por quimbundo. Pela falta de espaço, termino com incomensuráveis saudades e beijos. PS, não te esqueças, peço-te algumas novidades do Sporting.

 

 

 

 

 

 

 

 

Bafatá 12 de Dezembro de 1969

 

Minha saudosa Lucinda, rogo a Deus que estas letras te encontrem bem, eu fico como Deus, Nosso Senhor, quer.

Como vês por a letra, tive que pedir a outro camarada para me escrever, ai se soubesses como me arrependo de não ter ido à escola, quem não sabe é como quem não vê, sou um burro que nunca aprendi uma letra do tamanho dum boi.

E o nosso filho? Espero encontrar grande, cada vez que me lembro que só tinha três meses quando embarquei, e agora que já lá vão três anos…

Graças a Deus que já fomos desmobilizados, estamos em Bafatá e voltamos no Uíge, dizem que é melhor barco do que o Quanza que nos trouxe de Lisboa, até se diz que demora menos, não sei, para mim, desde que volte bem… já basta o desastre de jangada que tivemos quando regressávamos de Bambadinca, afogaram-se mais de quarenta camaradas, salvei-me por ter embarcado noutro barco, olha, lá ficou o Monteiro, de Boticas, que me escreveu sempre as cartas, até hoje, por isso é que pedi o favor ao nosso furriel Veríssimo que é de Valpaços e, graças a Deus, volta connosco, deves saber de quem é família, dos do lagar da Corga. Por falar nisso, já andam aí na azeitona? Conto ir ainda ajudar que bem saudade tenho de varejar, estender as lonas erguer a azeitona e carregar as bestas…

Agora, em Bafatá, já comemos qualquer coisa. Mas há que tempo só andávamos à base de ração de combate, desde Nova Lamego nunca mais nos deram outra mistela, em Gabu, Banadica, Medina do Boé, Teixeira Pinto, nem água tínhamos quanto mais comida de panela, só latas de ração de combate, por isso, não vejo hora de comer convosco. O teu pai quando pensa matar o porco? Ele que não mate antes de eu chegar, porque não quero passar sem o sangue cozido e os torresmos frescos na sertã…

A minha mãe escreveu-me na última carta, que ainda o desgraçado do Monteiro me leu, dizendo que fazia tenções de matar por volta do Natal. Se Deus quiser, passamos todos juntos. Já aprendeste a fazer as filhós com a minha mãe? Num quero da maneira que faz a tua, nem a tua tia…

Olha, não me escrevas porque deve estar para breve a nossa partida, não é preciso que me vás buscar a Lisboa, ias gastar um dinheirão e tempo e, se calhar, num há quem fique com o Manuelzinho. Digo que não deve tardar o embarque porque já entregamos as armas e já recebemos ordem para entregar o fardamento na Carregueira, aí, na Metrópole, depois do desembarque. Até isso temos de devolver, nem umas botas posso levar para aí tirar o estrume às vacas e andar à azeitona que deve estar frio.

Também digo que vamos de abalada porque os pelotões de pretos que faziam parte do nosso batalhão já foram incorporados na companhia de maçaricos que nos vieram render, os desgraçados foram para Piche, onde os turras atacam mais. A nossa companhia volta mais pobre, com menos cinquenta e dois camaradas que cá ficaram nas minas e nas emboscadas…

Agora, com o desejos de vos abraçar despeço-me, até breve de quem te quer beijar para sempre, do teu Joel Francisco Ferreira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Barrancos, 21 de Setembro de 1971

Meu mui estimado noivo que saudade tenho de ti e quão vontade da tua e da nossa felicidade. Abro a oportunidade de comunicar, via aerograma, para te manifestar os meus sinceros votos de saúde e de bem-estar, eu, confesso, não estou nada contente com a colocação, aqui, nesta escola do Alentejo.

Sinto-me só, não te tenho a ti nem à minha família por perto, esta gente é muito diferente da do nosso Viseu e não me entendo com eles, até a canalha parece que me rejeita, vê lá que troçam da minha pronúncia, julgando a deles mais bonita: alguns nem português sabem, ou não querem, usam um dialecto barranquenho que não é português, nem espanhol, é uma espécie de código de contrabandista de fronteira, aliás o que aprendem com os pais. E bem lhes tento ensinar as boas maneiras, mas eles nem tementes são a Deus.

Todavia, deixemo-nos de desgraças dos ímpios, Este fim-de-semana fui a Viseu, estive com o teu tio Arlindo, na loja da rua Formosa, que me reafirmou, logo que queiras, falará com o seu sócio da sucursal de Luanda e que, de certeza, te arranja um lugarzinho, no escritório. Agradeci-lhe muito, confessando-lhe o nosso desejo de experimentarmos, nessa província ultramarina, uma vida nova, mas, claro, depois de cumprires o teu dever de servires a Pátria e, conforme os santíssimos sacramentos, celebrarmos o nosso casamento, na Sé, fazendo jus à vontade dos nossos pais em comunhão com a bonomia e disponibilidade do Senhor Bispo da nossa Diocese. Também fui à missa da igreja dos Terceiros e que linda foi a sua homília, deu Graças aos soldados que, no nosso ultramar, defendem a Pátria de armas em punho, diluindo a Fé, das sagradas escrituras, em frente, no caminho da evangelização dos ignotos.

Porém, meu amado prometido, deixa-me fazer um reparo relativo à tua última missiva: achei que te encontravas esmorecido, nada confiante. Por momentos, senti-me perdida, perplexa, será que te desviaste do caminho certo, será que deixaste de crer no nosso projecto de vivermos aí na província de Angola, quererás tu retornar? Se assim for diz-me, para podermos, em bom conselho, decidir. Ainda alertou há bem pouco tempo, do alto do santíssimo altar da igreja de Nossa Senhora da Conceição, o senhor Padre Casimiro: Senhor, livrai dos perigos e dos males da carne os nossos soldados que, arduamente, combatem, por Ti, no ultramar. Não terás tu, meu formoso prometido, querido Augusto Manuel Silveira, caído na tentação do demónio da carne? Ai como eu temo que, por algum momento, fraquejes, não resistindo a peçonhas e desvairadas tentadoras da luxuria e da devassidão… Lembra-te, meu Augusto, que essas pretas e mulatas são a incarnação desses enganos, ardilosos caminhos da perdição: saibamos, pois, resistir, na floresta dos enganos, às más tentações, prossegue os ensinamentos da santa igreja católica apostólica romana.

Vê lá o que me disse um rapazote, de dez anos, aqui na escola: “os soldados no ultramar são carne para canhão”, tive vontade de fazer queixa do pai dele à guarda republicana e já sei que são pessoas do reviralho, até já fizeram greve, desafiando a ordem pública. Pelo menos, a sentença está feita: não o vou passar de classe, que me importa a mim que não saia da segunda, se nem da primeira deveria ter passado…

Por hoje, meu Augusto, despeço-me, sem, no entanto, te deixar de recomendar ânimo, coragem e perseverança na defensa dos valores da Pátria, de Deus e da Sagrada Família, seremos compensados pelas Graças do Senhor, no elevado pudor evangelho, recebe um beijo desta que te aguarda e venera para sempre.

 

 

 

 

 

 

 

CONDECORAÇÃO E LOUVOR

ALBINO DE JESUS FORTES; SOLDADO 12780; COMPANHIA DE CAÇADORES - 1969

PROVINCIA DE ANGOLA

Cozombo, 2, de Março de 1969

Aqui vai, Fátima, a prova da minha condecoração de Guerra, na medalha que levo ao peito lê-se: Sol – Cav – CG – 4ª Classe. Pedi ao nosso Aspirante que me escrevesse no próprio Diploma porque tem uma letra bonita e quero que fique registado para sempre. Olha não sei se chega primeiro esta carta se eu: vou de avião, de férias, e volto também de avião. Pede ao senhor padre para marcar o baptismo do menino para de Domingo a oito dias, encomenda um borrego aos da Restina. Já sabes, enquanto eu aí estiver não vais ganhar o dia, deixa o garoto com a tua mãe porque pra nós vai ser só cama e mesa, se partir as tábuas da cama punho outras. Para recordação levo o Louvor, a medalha e uma orelha dum turra, num frasco, em álcool, e quero que a punhas na janela para todos verem.

Matei o soba mais importante daqui do Moxico, fui num pelotão de batedores preto da nossa companhia, passamos por o lugar de Maria Amélia Muangai e caçamos os gajos no rio Zambeze, agora, os que me chamavam pato bravo só me chamam Django, só eu dos soldados da Metrópole recebi a condecoração e da mão do Senhor Governador, no Luso, com Honras de parada e tudo. Não quero outra vida, só quero ser militar. Quando acabar a comissão volto a alistar-me, vou ser 2º cabo e quero chegar a sargento, depois mando-te chamar. Muitos beijos, vou a caminho. do teu herói Albino.

 

 

 

 

 

Nangololo, 20 de Janeiro, de 1970

 

Amigo Frederico, muito tenho tido vontade de te escrever, como combinámos, lembras-te?

Acontece que só agora disponho algum tempo e tranquilidade para o fazer. Desde que chegámos aqui a esta região de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique, os turras macondes, como aqui lhes chamam, não nos largavam um só dia, nem uma só noite; que inferno que estes cabrões nos fazeram passar…

Só para teres uma ideia, há uns tempos, tivemos que abandonar o aquartelamento, destruir munições e armamento, à pressa, para não ser capturado pelos gajos. Fomos para um local chamado Chai, dois dias de viagem, sem praticamente água, fazíamos furos, mas nem vê-la. Lá chegámos estafados e mesmo assim, graças a Deus, só perdemos três camaradas (dois eram pretos, alistados, moçambicanos, aliás um até era da Rodésia). Depois fomos para Macomia, numa coluna automóvel, até Porto Amélia e embarcámos numa fragata para Lourenço Marques.

Bom, na cidade, todos julgávamos estar a salvo, longe do inferno dos macondes: foram duas semanas de borga, gajas e cerveja…

Agora a novidade, nem imaginas quem encontrei aqui num hotel onde há umas putas, só brancas, as pretas não entram lá… A Tininha da senhora Hortense!

Lembras-te do que dizia o pai dela, o senhor João da leitaria?

- Oh, a minha filha está bem lá na África, foi para Moçambique e é só massa, parece que o meu genro é quase dono da Província ultramarina, parece que até tem um hotel em Lourenço Marques…

Quando a encarei, nem quis acreditar, nem quis ir com ela para o quarto, com remorso do senhor João e da desgraçada da Hortense, que nem sonham ter uma filha puta ao serviço da tropa…

Bom, é segredo, isto fica entre nós, combinado? Nem uma palavra, já sabes, palavra puxa palavra e daqui a nada todo o Campo de Ourique, até Alcântara sabe da Tininha catequista que virou puta em Lourenço Marque, em Maputo, como lhe chamam os nativos, os gajos da FRELIMO, os turras, dizem que quando ganharem a guerra que deixará de ser Loureço Marques e volta a ser Maputo, como dantes, dizem os gajos.

Bom, como ia dizendo, nas duas semanas que estivemos no bem bom de Lourenço Marques, a engenharia fez aqui um quartel mais seguro com trincheira e tudo, por isso voltámos a Nangololo – até à data, e já cá estamos, de regresso, vai para três semanas e nada, nem um ataque, nem um assalto, nem um tiro de canhão. De vez em quando lá se houve um tirito de arma ligeira e nada: não tem passado disso. Se ao menos trouxessem as “tininhas para Nangololo”. Grande abraço, do Rui, até ao meu regresso…

 

 

11 de Novembro, de 1969, Batalhão de Caçadores paraquedistas, nº 31, cidade da Beira.

 

Minha querida irmã Noémia, recebi o teu aerograma hoje e hoje mesmo passo a responder, o que nos consola, neste fim-do-mundo, são as novas da nossa família lá de longe, de onde nos arrancou o dever de defender a Pátria, sem que para isso nos tenham dado ouvidos. Como ia dizendo, escrevo-te na certeza de que levará algum tempo a chegar à tua mão. Na esperança de que te vá encontrar de boa saúde, junto dos nossos queridos pais e irmãos. Diz à nossa irmã Rosário que não seja preguiçosa e me escreva também, eu nem sei a morada dela lá em Bragança. Bem sei que anda atarefada com os horários da fábrica e agora no Inverno logo anoitece, ao menos aqui é calor insuportável e dia, até às tantas, quem me dera que fosse sempre noite e acordar aí na vossa companhia.

Eu nem sei como o pai deixou a nossa Rosário ir, assim, sozinha, para Bragança. E o namoro dela com o Manuel ainda se mantem ou também já foi aos ares, é que se, como me dizias no último aerograma, for assentar praça em Figueira da Foz, não sei não… Ele é bom rapaz, mas, olha, a distância faz muitos efeitos, olha o Joaquim da Moira que abalou para França e não quis saber mais da Leonilde. Agora eu até o compreendo naquele desassossego que levou da Guiné, como sabes o Joaquim depois que esteve na tropa na Guiné não tornou a ser o que era.

Aqui há sempre dois batalhões, um em Nacala e outro na Beira: à vez, ora vai e vem um, ora vai e vem outro para a zona de conflito. Graças a Deus que o meu batalhão, por enquanto, não teve baixas. Já os do outro batalhão tiveram a infelicidade de caírem numa emboscada, deixando sete camaradas na picada e treze tiveram que ser evacuados de helicóptero para Lourenço Marques.

Nosso Senhor tem estado connosco. Há uns dias seguíamos uma picada em direcção a Mocimboa do Rovuma quando rebentou uma mina e, pela graça da Nossa Senhora, só o nosso alferes teve uns pequenos arranhões, umas pequenas escoriações como escreveu o nosso comandante. E olha que era uma mina do tipo fornilho que deixa estilhaços por todo o lado, mas, graças a Deus, estamos todos de saúde. Eu logo me atirei para baixo duma berliet Tramagal, mas passou, foi só o susto e dos grandes e pronto!

Quem foi evacuado aqui duma estrada perto para Mueda e depois para o hospital de Nampula foi um civil, um tal Juvenal de Mogadouro, do tempo da nossa mãe, mas vieram para cá há muitos anos e já não me lembro deles aí por Mogadouro, onde, como sabes, toda a gente se conhece. Ouvi dizer que sofreu uma emboscada dos turras e só por Deus não morreu no sítio, se não fosse o pronto-socorro do enfermeiro do nosso batalhão que de imediato chamou o helicóptero lá tinha ficado homem. Também já ouvi dizer que foi um ajuste de contas com os turras devido a negócios de armas, vá-se lá saber os mistérios deste mundo.

Com isto, não te enfadonho mais só, por último um saudoso e apertado abraço deste teu irmão que a todos os instantes deseja o regresso para junto de vós, Raimundo Gregório José da Fonseca.

 

 

 

Luanda, 25 de Janeiro, de 1970

 

Minha Marcelina, meu adorado amor, mulher da minha vida, minha sereia de Cacilhas: é assim que te recordo, a todo o momento. Desculpa se te aborreço com estas, aparentemente, pieguices. No entanto, na guerra, tudo apela ao sentimento. Embora nós estejamos em Luanda, onde não há conflito, aparente, onde não há maca como dizem aqui os kaluandas, os quimbundos, melhor, os matumbas manhosos como nós os consideramos.

A vida aqui em Luanda até é boa: não fazemos nada, para além de comer, beber, jogar às cartas e passear pela Mutamba, Miramar, Couqueiros, Bairro Operário, São Paulo, Vila Alice, Mussulo, Baia, Cidade Alta, só para fazer ronda, cumprindo ordens e matar tempo, até ao fim da comissão que parece uma eternidade, mas queremos é dar de frosques, é zarpar para Lisboa.

Cada um arranja a sua ocupação do imenso tempo livre, eu adoro escrever-te e imaginar-te à minha chegada, ao meu regresso, ao nosso reencontro, não esqueço nunca a maneira como te sentavas no cacilheiro, e eu derretido a contemplar-te, porém ainda me incomoda a indiferença que mostravas perante a minha insistência, promete que nunca me abandonarás, meu amor, meu doce de papaia…

Pronto, lá vem o tenente com a ideia de mais uma ronda: e eu, minha pombinha, fico por aqui, aproveito para te remeter o aerograma, mesmo sem receber a tua correspondência. Há muito, há uma eternidade que não recebo uma cartinha tua, compreendo que andes ocupada, mas faz um esforço por este Anibal que exaspera, que te ama e te quer mais do que ao ar que respira, até à volta do correio, meu amor adorado… O teu Anibal, soldado da cavalaria 31, Luanda, Angola.

 

 

 

Cacilhas, 1 de Março, de 1970

Anibal, peço, desde já, peço imensa desculpa pela demora na resposta, tenho recebido tantos aerogramas teus, escreves-me quase todos os dias?

Bem sei do carinho que manifestas para comigo, fico sem jeito, sempre soubeste da minha amizade e consideração, mas, desculpa, não sinto aquela paixão por ti, Como diz o ditado quem não aparece esquece, bem sei que me escreves com tanta frequência que até me sinto sufocada, sabes, meu bom amigo, sempre foram quase três anos de ausência, cansei-me de esperar. Agora que estás para regressar e acabar esse martírio do serviço militar, para não te iludir, sinto o dever, a obrigação de te dizer que gosto de outra pessoa. Por mais que te custe, perdoa-me, não me julgues mal, estou a ser sincera, desejo tudo de bom para ti e para o teu futuro na tua nova vida, felizmente, de retorno à vida civil e ao teu trabalho onde sei que te esperam, ainda há uns dias falei com o senhor Rodrigues e me disse ter já um gabinete par te receber de volta.

Desta tua amiga incondicional recebe um forte abraço e um beijo de amizade, Alcina Antunes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Porto, 10 de Março de 1970

Meu João, meu amor ardente, meu farol, minha vida, minha esperança, como é cruel a tua ausência em mim; como é pujante o sentimento, a lembrança dos teus ósculos no meu corpo. São três da manhã, o breu da distância não me deixa dormir, para aqui a arfar, despertada pela memória dos teus braços fortes, das tuas coxas retesas, dos teus lábios túrgidos e da macieza dos teus dedos nos meus cabelos. João, João quem te levou para tão longe, tão distante que não te vislumbro no emaranhado dessas matas ignotas, pejadas de perigos tormentosos…

A esta hora tardia se ao menos soubesse onde e como te sentes, se ao menos tivesse o dom de te acariciar a testa, enquanto descansas, enquanto dormes…

Logo será novo dia, o sol cairá sobre o rio; primeiramente beijará Vila Nova de Gaia e, depois, descerá à nossa Ribeira e eu caminharei sozinha, sem ti, meu amor. Andarei perdida, de olhos toldos face à tua ausência; caminharei absorta, triste, magoada e aturdida devido à dor, provocada pelo golpe que te arrancara de mim…

Angola, Moxico, Benguela, Luanda ou seja lá onde estejas só quero que me devolvas o meu amado, que mo envies, que mo remetas, que não usurpes o que pertence às entranhas do meu ser. Não é o ciúme das pretas e das mestiças, das concubinas, das meretrizes que me aflige, pois sinto que és um pedaço de mim, que ninguém mo poderá arrancar: só a morte, a morte e isso sei que é perigo real, porém se ela for assim madrasta, que me leve contigo pois é contigo que eu só quero estar, meu João, da Alice…

 

 

 

 

 

 

Belize, 25 de Agosto de 1965

 

Saudoso e estimado irmão, desejo que em companhia de todos os que nos são mais queridos, este aerograma te encontre de boa saúde e bem-estar, eu, por ora, fico rijo, felizmente, graças a Deus.

Como sabes, tenho o privilégio de pertencer à intendência do grupo militar que abastece os destacados no mato, ou seja, nas zonas de combate ao inimigo, aqui em Cabinda.

O pior é quando chove como neste momento que nos impede de progredir no terreno, dada a imensa lama, ao grande lamaçal, não imaginas o diluvio em que isto se torna, nunca pensei que Angola fosse assim, julgava que o mundo fosse como a vida e a atmosfera do nosso São Brás de Alportel: ai se no Algarve chovesse uma décima do que chove em Cabinda…

Por vezes, temos que aguardar horas, até que cesse a chuvada e há sempre o medo de que possamos ser atacados pelo inimigo, pelos turras: eles têm informantes por todo o lado, que julgas? Há pouco tempo soubemos que estivemos a uma unha negra de sermos emboscados…

O que me tem custado mais é receber notícias da morte e do ferimento de colegas. Por vezes têm sido vitimados amigos e conhecidos com quem tinha estado conversando pouco antes dos acidentes. Sabes, aqui é muito fácil travar conhecimento com outros militares, na guerra todos somos amigos e conhecidos. Já tenho pensado em ti, João, como irmão mais novo: não seria melhor procurares maneira de livrares de, eventualmente, caíres nesta vida?

Olha, parece que a chuva parou, de repente…

Um abraço e muitas saudades deste teu irmão, Ivanildo que te espera na volta do correio.

 

Bissau 14 de Abril de 1966

Meus saudosos pais e irmãos, os desejos deste vosso infeliz filho e irmão é o de que este aerograma os encontre de saúde, para desgraçado bem basto eu.

Neste momento recebi guia de marcha para o Hospital Militar da Estrela, adidos, anexo da Artilharia 1, em Lisboa, aguardo ordem de embarque.

Ai minha mãe que desgraça vai ser a minha vida assim entravado, sem as duas pernas, as minhas perninhas que me levavam a todo o lado, já não consigo chorar, só cismo naquilo que vai ser a minha vida daqui em diante. Disseram-me que há umas andadeiras, umas próteses ou coisa assim, mas tinha que ser eu a comprá-las.

Por agora não os quero maçar mais com as minhas desgraças: maldita a hora em que fui mobilizado para este inferno da Guiné, se ao menos tivesse ficado lá na picada…

Deste infeliz, muitas saudades e que Deus não vos desempare como a mim. Conto escreve em breve de Lisboa, nem sei o tempo que lá ficarei, dizem-me que é até cicatrizar bem. Soldado infantaria 14, nº 234 615, Manuel de Jesus Proença Silveira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Benguela 14 de Novembro de 1970

Estimada madrinha Isilda receba este meu aerograma como prova de gratidão. Pois, acredito que as suas orações que aceitou fazer por mim têm sido ouvidas pelo Altíssimo, Deus Omnisciente, Omnipotente, Criador do Céu e da Terra. Já cá estou, vai para oito meses, e ainda não ouvimos um tiro, nem notícia de turra.

Tenho muita fé nas suas orações e gostaria muito de a conhecer. Peço-lhe encarecidamente que me mande uma fotografia sua, acredite que a guardarei junto ao meu peito e a venerarei como a uma Nossa Senhora.

Foram as suas letras devotas que me tornaram ao caminho de Deus. Reconheço que andava transviado desse trilho, como bem me tem dito. Agora sinto-me mais confiante e crente na Boa Nova, tal como me indicou no seu último aerograma.

Escrevo-lhe do quartel desta bela cidade de Benguela, junto a um muro rente à praia morena. Temos feito algumas rondas pela cidade e pelas redondezas: Baia-Farta, Ganda, Catumbela, Lobito, Cubal e até fomos a Nova Lisboa numa coluna civil. Fomos destacados para acompanhar e fazer reconhecimento do caminho a umas pessoas importantes da Rodésia e da África de Sul, acompanhadas do nosso comandante, do senhor governador da província e de quatro senhoras do movimento nacional feminino. As senhoras deram-nos bons conselhos e distribuíram-nos muitos aerogramas. Assim, tenha eu tempo que aerogramas não me faltam para enviar a si, aos meus pais, avós, tios e irmãos. Peço desculpa se for indelicado, mas gostaria de arranjar uma namorada para futuro, quando voltar, se Deus quiser.

Vou-lhe dar uma novidade que ainda não dei a mais ninguém: a minha companhia vai ser destacada para o Leste, mas vamos na Graça do Senhor e tenho Fé nas suas orações, estimada madrinha. Com estas letras me despeço até à volta do correio, Graciano António Martinho Abrunhosa, sold. 34578, pelotão 9, Cª 33, Batalhão de Cavalaria 16, Benguela.

 

 

 

O Ministério do Ultramar comunica com pesar o falecimento de Graciano António Martinho Abrunhosa, soldado de Cavalaria, nº 34578 ocorrido no dia 14 de Dezembro, de 1970 decorrente de acidente, no estrito cumprimento do seu valeroso dever ao serviço da Pátria.

O Estado-Maior General do Exército endereça as mais sentidas condolências aos familiares e amigos – Pela Nação.

Sua Excelência o General

Augustos dos Santos Carvalhosa

 

 

Camabatela 14/01/71

Clotilde, Aproveito estar uma grande trovoada e chuva para te escrever, porque assim as comunicações não funcionam, tenho que desligar os aparelhos.

A encomenda que mandaste, chegou dois dias depois do Natal. Chegou tudo bem. As castanhas começamos a comê-las e só terminamos quando acabaram. Sabes uma coisa? O bolo-rei não tinha fava!

Já só faltam 7 meses! Isto vai com calma.

Enquanto vós estais aí com grandes nevões, (segundo dizem os jornais), por aqui a temperatura é agradável, só as chuvas é que são esquisitas.

Já estou de novo em Camabatela. Já estava saturado de estar no mato e de ver tanto capim.

Acompanhado duma boa musiquinha, consegui estar contigo no pensamento.

Agora que o temporal já lá vai, tenho que regressar ao trabalho e ligar os aparelhos que já me provocam raiva só de olhar para eles. Tenho que estar em forma.

E assim me despeço com um forte xi coração do teu mano amigo. Adeus e até Agosto ou Setembro.

 

 

 

Camabatela 15/02/71

Querida mana, não calculas como eu fiquei ao ler a tua carta e me falavas da matança do porco. Aquelas fêveras e os rojões de que falavas. Não continha a minha cabeça e os meus pensamentos. Pareciam o Rio Douro quando traz uma enchente das chuvas. O mano António também me falou do mesmo.

Sabes uma coisa? Estou muito, muito cansado. Andei 3 dias e 3 noites no mato a andar sem poder dormir e ainda carregado com o respectivo rádio. A roupa molhou-se e secou-me no corpo por 3 vezes. Foi por esta razão que te demorei mais a escrever.

Querida mana, quanto ao que vou fazer quando acabar a tropa, o mais certo é eu ir estudar. Sem isso eu não tenho possibilidades de ter um emprego digno. Já falei com o Capelão para me colocar como Perfeito no Seminário, assim já podia estudar e trabalhar.

 

 

 

 

 

 

Camabatela 17/05/71

Clotilde, espero que esta minha carta te vá encontrar de óptima saúde, bem como toda a nossa família.

De facto tens razão em dizer que estou a esquecer-me um pouco de vós, mas não. Nada tem acontecido de grave por c

Não estejas preocupada que eu aqui no mato só tenho como rival o isolamento. De resto tudo é melhor do que na vila de Camabatela.

Quando me falas do que vou fazer quando regressar. Nada te sei dizer, estou a ver tudo muito escuro, mas na lavoura eu não quero ficar.

 

 

Ambriz 2-11-1969

Mais ou menos bem conhecidos dos militares que passam por Luanda, o BO e o Marçal, musseques labirínticos. É corrupio de militares fardados ou à paisana, uns somente para ver, outros para satisfazerem as suas necessidades sexuais. Em cada porta ou janela as prostitutas pretas, mulatas, mestiças e até brancas, apelam aos transeuntes através de piscar de olhos, levantam a saia ou com um chamamento com o dedo indicador, do tipo: “anda cá oh crido, chega aqui oh bonitão”, ou o que lhes vem à cabeça. Há mulheres altas e magras, baixas e gordas, bonitas, feias, belas ou mal feitas, enfim, para todos os gostos. Acertado o preço do “serviço” ou “serviços” antes da entrada para, regra geral, ser executado num quarto desarrumado e mal iluminado, as meninas, as quarentonas ou mesmo cinquentonas, após satisfazerem os apetites dos seus clientes, entregam-lhes uma bacia com água, na qual misturam um líquido que se presume ser um antisséptico e uma toalha para se limparem por baixo. Quase sempre sem preservativo. Generalizou-se, no entanto, a ideia de que as cabritas são mais perigosas, ou seja, dado o seu tipo de sangue, transmitem doenças venéreas com muita facilidade. A blenorragia, vulgarmente conhecida como “esquentamento”, se tratada oportunamente cura-se em pouco tempo e sem deixar resquícios, com injecções de penicilina. A doença mais temida no contacto com as meninas de ocasião é, sem dúvida, a terrível Sífilis.

Há dias, fiz-me acompanhar de dois camaradas e também fui conhecer a bacia contendo o tal “antisséptico”. Estávamos de regresso quando nos apercebemos que a Polícia Militar começava a fechar e a identificar os visitantes e as anfitriãs daquele enorme e labiríntico prostíbulo. Depressa viemos a saber o que tinha acontecido.

Um soldado da Companhia Não-Sei-Quantos, forçou a entrada na casota duma bela mulata recusando-se ao pagamento antecipado. Era um indivíduo conflituoso e estava meio-embriagado. Forçou a menina, tentando a violação. Sem saber como, foi apunhalado nas costas e acabou por se esvair, mas em sangue. Debaixo da cama encontrava-se um negro (também existem aqui chulos) que fazem a protecção àquela trabalhadora do sexo, saindo do seu esconderijo e executando ali mesmo, a sangue frio e pelas costas, o desastrado quanto infeliz violador. A porta dissimulada nas traseiras permitiu-lhe a fuga.

Um abraço amigo do amigo Luís Roque

Ps. Se me quiseres comunicar algo, cuidado, as cartas são censuradas, já sabes o código e a morada, nada de aerogramas…

 

 

 

 

 

 

 

Relatório

Geralmente, na mata, a presença do médico faz-se substituir pela maior ou menor experiência do furriel ou do cabo enfermeiro. Estes últimos vão adquirindo um traquejo clínico e até cirúrgico, por forma a colmatar a ausência dos alferes-médicos, recém-formados e obviamente, sem currículo e, na maioria, sem vocação.

Naquele dia quente aterrou na pista do nosso aquartelamento um alferes-médico para efectuar, durante uma semana, um rastreio clínico aos militares e população autóctone.

No primeiro dia de consultas observou dezoito pessoas e a todas elas diagnosticou paludismo (doença tropical contraída em consequência da picada dum insecto). Haviam-lhe ensinado durante a especialização que aquela era a doença mais frequente nos países tropicais. O tratamento preferencial, aliás não há outro, é ministrado sob a forma de comprimidos: Resoquina, para além do controle constante do estado febril, aplicando-se panos molhados sobre a testa e todo o resto do corpo, substituindo-os sempre que necessário. Na minha tenda chegámos a fazer turnos, dia e noite, a um camarada com hipertermia.

Resoquina toma-se por tudo e por nada. Contem uma substância de alto teor de acidez e por isso deve ser tomado com muita água e algo sólido (uma côdea dura de pão, por exemplo). Quando prescrito há sempre o cuidado reiterado de indicar ao doente aquele procedimento.

No último dia da visita do médico ao aquartelamento, e dado encontrar-me muito debilitado física e psicologicamente, resolvi colocar-me na fila para solicitar ao médico autorização para me serem fornecidas cápsulas vitamínicas, que eu sabia existirem num armário da Enfermaria, assim como o ansiolítico, hipnótico, mio relaxante e anti-convulsiomante DIAZEPAM. Assim, evitaria ao meu amigo enfermeiro (por vocação) Luís Duque futuros constrangimentos e até uma eventual sanção disciplinar sempre que mos trouxesse, um a um, às escondidas. O Luís é um excelente rapaz e um bom amigo. Decorador e vendedor de móveis tornou-se num paramédico excepcional, a quem não o conhecendo, se lhe poderia retirar o “para”. Tinha vocação e era dedicado e exemplar tanto nos diagnósticos como nas pequenas intervenções cirúrgicas. O cansaço psicológico daquele ambiente bélico já não lhe permite aplicar uma injecção sem primeiro beber uma cerveja Nocal. Chega a beber trinta cervejas por dia, mas sempre lúcido e alegres: “tinha bom vinho! “, Como na gíria se costuma dizer. Também daria um bom psicólogo.

 

Apenas um exemplo: Entra um negro de aspecto robusto na Enfermaria e, com algum constrangimento, mas logo apoiado pela forma como foi recebido e entendido pelo Luís Duque, acaba por “confessar” ter “perdido apetite pelas mulheres”, solicitando “remédio” para que “a coisa voltasse funcionando”. O Luís conversou com ele, examinou-o, achou tudo normal e atribuiu aquela disfunção a factores de ordem psicológica. Então, entregou-lhe um comprimido branco sem marca (tratava-se daqueles comprimidos que colocávamos regularmente na água e que se destinavam a compensar a perda de sal).

O negro saiu agradecido. No dia seguinte apareceu novamente na Enfermaria, com um sorriso atrevido, dando um apertado abraço ao meu amigo enfermeiro, dizendo-lhe com um incontido agradecimento: - Puxa, nosso cabo, aquela medicação é tiriqueda ! Duas mulheres, puxa, duas mulheres, nosso cabo!

Porém, apoiado no seu “incontestável conhecimento científico”, o senhor-doutor-alferes-médico entendeu também diagnosticar-me paludismo. Dado o meu estado de fraqueza aceitei o seu diagnóstico e, após a consulta, corri a tomar o Resoquina. Eu (tal era o meu estado) que não me cansava de aconselhar aos outros que tomassem aquele medicamento com muita água, ingeri-o apenas com um golinho. O resultado depressa se fez sentir: vómitos consecutivos seguidos de prolongados e incontroláveis espasmos. Fui evacuado para o Posto Médico do Batalhão. Aí esperei e desesperei, sofrendo as dores e o mal-estar a nível do aparelho digestivo, durante quatro longas horas, até ao regresso do senhor doutor que se havia deslocado a uma frente de combate para acorrer a uma emergência (o doente era Oficial, claro !).

Quase noite, o senhor doutor chegou a Sanza Pombo e, como já tinha recebido via rádio a indicação da minha presença e estado aparente de saúde, dirigiu-se imediatamente ao Posto Médico.

Aí, preparou a seringa, tentando, por via endovenosa aplicar-me uma substância que eu reconheci como sendo a substância activa dum medicamento já conhecido: Buscopam. Mas foi com enorme dificuldade que o médico conseguiu “encontrar” a veia. A seringa já continha sangue quer no interior quer no exterior. O meu bracinho ia sendo picado várias vezes até que acabou por acertar e injectar apenas a metade do líquido que restava.

Após o “muito-obrigado senhor doutor”, ele ainda me passou com um antisséptico no braço que se ia tornando arroxeado, dizendo-me: - É pá, tu tens uma veia extremamente difícil de encontrar!

Arrastei-me até ao fundo da única rua existente, entrei numa loja, daquelas que vendem de tudo, comprei uma cerveja preta e dois ovos. No aquartelamento fiz uma gemada e tomei-a. Quando tomei conhecimento de que só daí a uns dias havia transporte até Quicua, nos dias seguintes voltei a repetir o tratamento caseiro mas efectivamente eficaz, que eu havia aprendido com a minha avó.

Este é o relatório possível que te posso enviar acerca do que me pediste, na falta de outro conhecimento.

Ps. Melhor outra morada, comunicação extraviada em Luanda… Indivíduo visto a rondar…

 

 

 

 

 

 

 

Malange, 23 de Agosto de 1971

Saudoso irmão, fizemos 360 quilómetros do destacamento até aqui, sabes o que trouxemos num unimog, coberto com um toldo? Caixões, caixões de camaradas caídos numa emboscada, o inimigo ficou lá abandonado às feras…

Durante a picada não me saiu da cabeça a conversa que tivemos com o camarada do Marcolino, o qual nos convenceu a não desertarmos no sentido de promovermos o diálogo interno.

Luís, não há diálogo possível na frente de combate: mata-se para não ser morto. Se os colonos querem defender os seus interesses que deem eles o corpo ao manifesto. Não te aconselho, ordeno-te: FOGE! Vai ter com a nossa irmã. Antes que faças 18 anos, foge, procura trabalho, casa-te e trata de me arranjar trabalho para quando me livrar disto.

Não te admito hesitações, a ordem está dada e rasga este aerograma e não digas a ninguém, trata disso e escreve-me já do sítio para o onde te estou a mandar ir.

Forte abraço do teu sempre leal irmão, Acácio.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

MBanza Kongo 25 de Agosto de 1972

Sua Reverência, Exmo Senhor Bispo, D. Jacinto, da minha missão de capelão na nossa possessão ultramarina da província de Angola venho, por este meio, solicitar a Vª Reverência licença para transportar connosco um casal de indígenas, de Luanda para Bragança.

Trata-se de dois petizes que sobraram de uma operação de limpeza militar levada a cabo numa aldeia terrorista. No termo da dita operação militar recolhi-os e pretendo levá-los para a metrópole onde me proponho evangelizar, fazendo deles cristãos e devotos dos mandamentos da Santa Madre Igreja católica Apostólica Romanas.

Sem outro assunto, pede deferimento

O Capelão Tenente, da Quarta companhia de Comandos,356, Carlos Manuel da Silva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carmona, 01 de Janeiro, 1973

  Estimada madrinha, começo por relatar o meu baptismo na frente de combate, fazendo jus à pergunta que me fez na sua última missiva: a minha primeira missão não passou de uma longa caminhada pelo mato ao fim da tarde, e depois de tanto caminhar parámos para passarmos a noite. Foi quando aconteceu o pior enquanto uns preparavam as tendas, outros preparavam a comida, sentinela e procuravam água. Quando estava tudo pronto para passarmos a noite, rebentou um súbito tiroteio que passado algum tempo terminou com uma busca. Na busca capturaram-se, terroristas que também estavam ali perto para passar a noite – um pouco insólito, pois com tanto “mato” fomos logo calhar dormir ao lado do inimigo. No fim do tiroteio decorreu-se à prisão dos terroristas, que eram três, assim como diversas armas. Por mais que me custe acreditar eles possuíam, se assim posso chamar, “reféns”, pois estas pessoas encontravam-se em seu poder até ao seu regaste feito por mim e pelos meus “colegas do mato”. Estas tinham sido retiradas das suas casas e terras e levadas para o mato, onde possivelmente seriam ou ameaçadas de morte em troca de possíveis informações, exemplo: a localização de alguns acampamentos dos Portugueses, ou outras informações que lhes interessariam.

À volta do correio logo lhe relatarei outros episódios, agora temos de tomar precauções, ouviu-se um rebentamento.

Ps, Matilde, fale-me de si e da sua cidade de Guimarães, será o primeiro local a visitar assim que acabar a minha comissão, do Américo Chaves, Sol. 789, Batalhão de fuzileiros.

 

 

 

 

 

 

Miteda, 22-7-1965

Querida mãe, finalmente chegámos ao nosso, para já, destino. Passámos por São Tomé e Príncipe e ainda fizemos escala em Bissau e em Luanda onde o navio Niassa deixou tropas. Estivemos dois dias em Luanda e levaram-nos a dar uma volta pela cidade. Depois remámos a Lourenço Marques e, finalmente, atracámos no porto de Nacala, província de Nampula. Por terra numa coluna militar seguimos por Mueda onde chegámos noite escura, neste momento estamos bem.

Na manhã seguinte, como não tínhamos água, alguns colegas foram ao rio encher uns bidons. Por azar ou por ignorância, alguns de nós andou por lá a ver a paisagem que é muito bonita e logo dois camaradas pisaram uma mina e lá ficaram desfeitos. Foi uma tragédia logo à chegada que muito nos traumatizou. Agora já sabemos que a FRELIMO nos vigia e nos faz emboscadas, estamos prevenidos, mas não se apoquentem, tenho fé que tudo corra bem e que daqui a 28 meses todos nos abracemos.

Um forte abraço para toda a família, do Venâncio, companhia de Caçadores 802

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

30 de Julho de 1967

Saudosos pais, espero que este primeiro aerograma os vá encontrar de boa saúde, eu estou rijo, graças a Deus.

Bem sei que já deveria ter dado notícias, mas estes dias têm sido agitados, mas só agora assentei arraiais, como soe dizer-se.

Olhem, acabei por embarcar de Lisboa dia 20 no navio Uige e chegámos à Guiné dia 25. Não atracámos directamente no porto mar, quedámo-nos ao largo e seguimos numa lancha da Marinha, mais pequena, descapotável. Vieram duas companhias, a minha tinha 180 homens. Chovia torrencialmente, foi a primeira molha.

Embarcámos em lanchas pelo Rio Cacheu, um dos maiores da Guiné. Dizem que essas lanchas costumam ser atacadas quando transportam abastecimentos e correio, mas, desta vez, fomos nós atacados e, infelizmente, o inimigo afundou algumas onde morreram alguns marinheiros, coitados.

Nós viajámos toda a noite pelo rio e desembarcámos em São Vicente, todos molhados. Depois seguimos para Ingoré, no Norte da Guiné, cerca de 20 quilómetros. Não havia carros para todos, alguns tiveram que vir a pé.

Ontem fizemos uma patrulha de reconhecimento até São Domingos, a 20 quilómetros onde tivemos o primeiro combate a sério com o inimigo, alguns fiaram feridos mas nenhum pertence à minha companhia. Na operação capturámos 900 quilos de armamento. À noite chegámos ao acampamento debaixo de fogo, caíram tantas granadas à nossa volta e não nos acertaram com nenhuma.

Hoje está um dia quente e calmo, parece que não se passou nada.

Muitas saudades e lembranças deste vosso filho, Armando Manuel Silva, até à volta do correio, 4º Pelotão, Companhia lagarto, Ingore – Bigene – Guiné.

 

 

 

Bigene, 25 de Abril de 1968

Meus saudosos pais, votos de boa saúde e de bem-estar junto de demais família.

Só hoje recebi o vosso aerograma. Fiquei contente com a notícia da nossa Emília ter casamento marcado com o Juvenal, mas não tinha sido melhor se tivessem casado antes de ele abalar? Depois, sabe-se lá como vai ser em França, ainda para mais, ir a salto. Bem sei que o Juvenal, depois da sua comissão em Angola, está preparado para as agruras, dizem que em Angola está mau como aqui, os turras cada vez estão mais assanhados.

Temos sido atacados todos os dias. Vi mais mortos durante um ataque ao quartel, um alferes pisou uma mina e acabou por morrer. Cada vez que fazemos patrulhas a pé pelo capim somos emboscados. Temos de seguir com uma distância de três metros entre cada um. Como eu sou das transmissões, tenho de pedir socorro, é sempre a mesma coisa, começa o tiroteio, baixamo-nos e pedimos ajuda aos aviões T6. Falamos sempre em código: aqui águia1, aqui águia 1, atenção águia, daqui crocodilo, escuto.

A aviação salva-nos muitas vezes, mas é preciso procurar uma clareira para estender a tela, senão os bombardeiros não nos enxergam no meio da mata. Há dias, um cabo saiu da fila, durante uma picada, foi pisar uma mina e logo ficou quase desfeito. Ainda o evacuámos num helicóptero, mas logo recebemos a notícia de que tinha morrido antes de chegar ao hospital de Bissau.

Por ora um xi coração e, não se esqueçam de dar os meus parabéns ao Juvenal e que, já sabem, quando acabar a minha comissão também faço tenção de ir para França. Até à volta do correio, Armando Manuel Silva, soldado transmissões.

 

 

 

 

Mucondo 25 de Julho, 1972

Jacinta, minha amada, respondo-te só agora aos teus três aerogramas, mas por via deles se terem atrasado – o correio chega ao acampamento de avião geralmente uma vez por semana, mas ultimamente nem isso, os turras têm fustigado a zona e é perigoso, os gajos têm ati-aéreas, são armas pesadas e ligeiras que nos têm causado algumas baixas. O abastecimento de frescos (carne, peixe, legumes e frutas) é feito por camiões civis, semanalmente. O arroz, massa e outros viveres, uma vez por mês. Estamos a 350 quilómetro a Norte de Luanda. Nas últimas semanas temo-nos dedicado à destruição das produções dos turras – queimamos-lhes as colheitas de mandioca, milho, feijão e tudo que encontramos, a ver se os obrigamos a desistir à fome, assim como lhes queimamos as palhotas, mas são duros de roer, arranjam sempre maneira de resistir.

Perdi alguns soldados, isto é inglório e injusto, sinto que poucos estão com a guerra, Claro, para não morrer temos que matar, esta semana perdi o melhor soldado e também matamos um turra, enterrámo-lo, deixando-lhe a cabeça de fora para os seus repararem. Alguns quiseram fanar-lhe pedaços como trofeus, mas não deixei – estou saturado e não vejo a hora de acabar com a comissão e zarpar.

Mas, minha Jacinta, não te quero meter nestas patranhas, continua a zelar por ti e vai preparando o nosso futuro, quem sabe se no estrangeiro, pelo que me vai chegando, na Alemanha ou no Luxemburgo é que a vida dos portugueses progride, que achas?

Muitos beijos e abraços, até à volta do correio cá te espero, João Vieira Teixeira, Alferes, Companhia de Caçadores 35 37.

 

 

 

 

 

3 de Julho de 1972

 

Hernâni, Como vais de namoradas? Ai como sinto saudades dos nossos bailaricos em Resende…

Não posso dizer que não tenho boa camaradagem aqui. Sabes uma coisa? A guerra também nos dá amizades sinceras. De resto, é capaz de ser a única coisa boa. Acho que ninguém para aqui veio de livre vontade. Sendo todos obrigados, unimo-nos na desgraça – resistindo pela vida.

Temos tido bombardeamentos intensos, estamos em constante vigilância, protegemos as costas de uns aos outros. Andamos a correr de vala em vala. Penso muito no meu pai, na minha mãe e nas minhas irmãs, tenho receio de não voltar a vê-los – até ao momento tivemos cinco baixas e cinco feridos graves.

Agora voltámos a Fulacunda. O mês que estivemos em Bolama foi menos mau, havia lá umas bojudas que nem queiras saber…

Já sabes, se vais assentar praça, não procedas como eu – deixa andar. Fica sabendo que há avaliação no final da recruta: os melhores vão para Angola; os médios para Moçambique; os piores, os desleixados, vêm parar à Guiné, para o inferno destes turras manjacos, fulas, mandigas, papel e a puta que os pariu.

Tudo isto, até me ajuda a passar o tempo e faz recordar-me das nossas coisas boas, Tens ido à caça?

Um grande abraço, espero notícias.

Raúl Assunção Lopes, soldado infantaria 38456, Guiné

 

 

 

 

Sacandina, 14 de agosto de 1972

Irmão, gostei da tua carta, até a mostrei a alguns camaradas do meu pelotão, somos quase todos da região de Lisboa e de Setúbal, há ainda meia dúzia da zona de Gondomar, Vila Nova de Gaia, Espinho e Porto. Não temos patos-bravos, nem bimbos no nosso pelotão, esses pertencem aos primeiros pelotões da companhia.

Afonso, diz lá ao mano, que ninguém vai saber, foi o pai que te encomendou o recado não foi?

Não te estou a ver dizer ao mano mais velho: Luís, tem cuidado com as mulheres da má vida, elas são portadoras de doenças, maus hábitos, são umas pecadoras, umas peçonhas…

Tu, que já és um homenzinho, que acabou de fazer os 14 anos, que aqui o teu mano cuidou desde que nasceste, que, portanto, sabe tudo acerca dos teus pensamentos, manias e influências, não me enganas. Mas escreves bem, moço: melhor, mas muito melhor do que eu.

Então vá: se o teu mano mais velho, desterrado neste deserto do caralho, não tivesse cerveja, putas, noitadas de batota e baladas do companheiro Castanheira, que trata a viola como ninguém, já teria dado um tiro nos cornos e acabado com a puta da vida.

Meu querido Afonso, irmão muito, mas muito estimado, coloca nessa cabecinha que aqui o mano mais velho sabe o que faz e só tem pena não ter dado o salto para o estrangeiro, antes de cair nesta merda.

Com que então o teu padrinho do crisma foi o senhor Abílio da retrosaria. A mulher dele ainda costuma vestir aquela blusa verde e saia preta?   He pá, não me sai da cabeça, a D. Isabel da retrosaria tem o melhor par de mamas da Graça, Sapadores e de Lisboa inteira. E eu que estive a um triz de saltar para cima daquilo – o Abílio não sabe andar naquela mobileta, naquele espectáculo de mulher. Que vá lá à paróquia e ao quartel dos legionários e me deixe tratar da sua Isabelinha, carago…

Outra coisa: o senhor Jorge, patrão do nosso pai, sempre lhe deu o tal aumento?

Já escrevi ao pai que, se não há aumento, peça a demissão, alguma coisa se arranjará. A mãe está farta de esfregar escadas e fazer limpezas por todo o lado.

Um homem com a experiencia do pai a levar para casa dois contos de reis ao fim do mês não dá. Olha, aqui os civis ganham bem mais do que aí na Metrópole. Quando estivemos no Grafanil bem vi que em Luanda se ganham bons ordenados e se tem vida melhor. Pelo menos há uma coisa boa nesta guerra, é conhecer mundo.

Nós estamos aqui numa zona de conflito, no mato onde não há civilização. No entanto, estamos a meia hora, a pé, do Congo Belga e perto de Maquela do Zombo e de Béu Comercial onde não há turras: só gajas e boas, pá! A mãe anda preocupada com a minha roupa, toda aflita porque não imagina quem me lava a roupinha e passa a ferro. Já lhe expliquei que tenho um criado preto que trata disso tudo e, só par nós, ainda me traz a irmã…

Afonso, comovi-me com os teus conselhos amigos. Porém, vou dar-te uma ordem: inscreve-te na escola, no horário nocturno!

Não quero que fiques só com a sexta classe, tens inteligência para mais. Seria uma pena conformares-te com o emprego de caixeiro da retrosaria do Abílio beato e legionário, esposo da mulher mais escultural de Lisboa, da metrópole e do mundo inteiro…

Quando a D. Isabel estiver aí na retrosaria, na presença do Sr. Abílio, diz-lhe assim: D. Isabel, o meu irmão manda-lhe respeitosos cumprimentos do ultramar. Depois conta-me a reacção dela e do marido, a ver se descubro uma coisa…

E agora, um grande, grande abraço do teu irmão Luís Martins, do pelotão dos irascíveis das matas Mayombe…

 

 

 

 

Benguela 23 de Maio de 1968

1[i]Bô nha mãe um crê bô saúde, um tá na benguela passa um férias sabe de mundo.

Bô sabê, um tem saudade de bossa, ma, meme tempe, ta contente li, ca nha vide de soldade de nós pátria.

Mim é soldade valente, brabo! Um tá enfrentá esse turra tude, si uns apanhás, um ta matás e tchás na tcnhom moda catchorre.

Bô sabê quês tchama a nós cauberdiane?

Ês tchama-no catanhós – um cosa feie. Ês ca ta crê nós nesse terra: Ês dizê que mandrongue é de puto, prete é de Angola e cauberdiane da puta que pariu.

Um ta pensá finca pés li nesse terra. Um crê tchamá mudjer de cau berde, fazê tcheu fitche e tchás li nesse terra, nesse pátria Portugal ultramarine.

Nha mãe um ta abraçá tchéu, tchéu, tchéu – A bô podê arranjá um crêtcheu pa mim?

Manuel Frozino, soldado infantaria 45689, Pelotão Avançado, Companhia 23467 Moxico, Angola.



[i] Minha mãe, desejo-lhe saúde. Eu estou a passar umas boas férias em Benguela. Sabe, minha mãe, tenho saudades suas, mas, ao mesmo tempo, estou contente aqui, com a minha vida de soldado da nossa Pátria. Eu sou soldado valente, bravo! Eu enfrento estes turras todos e, se os apanhar, mato-os a todos, deixando-os no chão como cães.

Sabe como eles chamam aos cabo-verdianos?

Chamam-nos catanhós, uma coisa feia (pejorativa). Não nos querem aqui, em Angola – eles dizem que branco (português) é da metrópole, preto é angolano e cabo-verdiano é da puta que os pariu.

Estou a pensar radicar-me aqui, nesta terra. Quero mandar vir mulheres cabo-verdianas, fazer muitos filhos e deixá-los em Angola. Esta província ultramarina de Portugal.

Minha mãe, abraço-a muito, muito, muito. Vossemecê poderá aí arranjar-me uma namorada?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cumeré 25 de Junho de 1973

 

Queridos pais, estimo que este primeiro aerograma os vá encontrar de plena saúde, junto de irmãos, avós, tios, primos e de mais família e vizinhos. Eu, por cá, estou vivo, graças a Deus.

Logo à chegada a Bissau fomos brindados com grande reboliço. Mal desembarcámos do navio Niassa, começámos a ouvir bombardeamentos. Como a província da Guiné parece toda plana, não se consegue identificar o sítio do qual partem os disparos.

Por enquanto, ficámos instalados no IAO – Integração Ambientação Operacional – Ouvi dizer que nos vão enviar para Nova Lamego.

Nem sabia que na Guiné havia uma povoação com o mesmo nome da nossa querida cidade de Lamego, até disse logo: olha, calha bem, volto já para casa, até volto a pé, a correr, sem parar, até à minha aldeia, Souto Covo.

Claro que sabia onde estamos e que para regressar a Lamego, a verdadeira cidade de Lamego, berço do nosso Portugal, nos esperam, talvez, 24 meses, se Deus quiser.

Com estas letras me despeço, até à volta do correio e a mãe que não se aflija, que rogue por mim à Nossa Senhora de Fátima.

Jeremias Alberto Antunes Correia, sol. 14818, Infantaria 17, Companhia 45789.

Também escrevi à Francelina do senhor João e da senhora Soledade, pedindo que aceite ser minha madrinha de guerra – só para não estranharem, no caso de aí alguém comentar, que já sabem: o povo é um linguareiro…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Salazar 26 de Junho de 1973

Minha muito estimada madrinha, é com enorme satisfação que mais uma vez lhe envio um aerograma; tenho muito prazer de consigo comunicar, é como se a conhecesse desde sempre, bendita a hora que me deram o seu endereço. Logo que lhe escrevo, fico ansioso por receber, de volta, novas suas.

Bem sei que os correios têm as suas delongas, mas quem me dera receber as suas cartas diariamente. Luisinha, perdoe trata-la assim, carinhosamente, julgo que me apaixonei por sim, os meus sonhos voam ao seu encontro. Eu sei que é linda, só uma alma pura, só uma donzela me poderia escrever cartas e palavras tão meigas e estimulantes, não tenha receio e mande-me uma fotografia sua, junto lhe envio as minhas mais recentes, numa caçada e num jogo de futebol, aqui na companhia. Quando não estou com o pensamento em si, é só quando jogo e caço, de resto, até a dormir a tenho na mente e no fundo da alma.

Sabe Luisinha, ainda agora chegámos e mal conheço Angola e se me deixassem escolher, entre ficar e partir, diria: quero regressar já, quero conhecer a esplendorosa rapariga que aceitou rezar por mim a Nossa Senhora de Fátima para que nada de mau me aconteça nesta guerra ultramarina.

Por agora me fico, preparando para uma primeira saída de escolta no mato, para logo voltar, na esperança de receber novas da minha amada.

Angola, companhia intendência de Dalatando, Sol, 13457, Joaquim Rosa Reininho.

 

 

 

 

 

 

 

 

Tete, 20 de Maio, de 1970

Estimado António, meu bom amigo de infância, aqui estou, dentro do possível, novamente comunicando contigo. Já sabes, é sempre um prazer saber novas através das tuas boas, claras e sucintas narrações. Ontem li e reli a tua missiva, admirando o teu poder de síntese – porventura, só Fernando Pessoa seria, assim, capaz de dizer tanta coisa em tão poucas palavras. Ainda bem que já tens prorrogado o prazo de adiamento face à incorporação na vida militar, seria uma pena não terminares já o teu curso. Na verdade, tu farás mais falta na qualidade de professor do que na função de eventual oficial miliciano.

Vou tentar descrever a minha última aventura. Então aí vai: quando cheguei a Mueda estava em curso uma partida em missão de bombardeiro. Olhei para o fim da pista vislumbro a asa a descolar e o pessoal a gritar – acidente, acidente!

Em vez do avião vejo uma nuvem, uma imensa nuvem a subir no ar, que, a princípio, pensei ser fumo, mas depressa me apercebi ser de poeira. Corri à pista, já com a poeira a assentar, reparei então que o aparelho aterrava sobre as bombas de 100 quilos que levava sob as asas. Estava incólume. Entretanto, prosseguiu a missão, naquele estado, uma vez que teria de largar as bombas, não podendo aterrar com elas. O piloto levantou cedo demais e devido a uma irregularidade da pista partiu uma roda. Mesmo naquelas condições foi cumprida a missão com êxito, foram despejadas as bombas numa presumível linha avançada da FRELIMO. O nosso herói regressou à base com algumas perfurações no bombardeiro, mas em perfeitas condições para futuras missões, se bem que cada vez mais arriscadas, visto que o inimigo, a cada missão, nos parece mais apetrechado militarmente.

Ultimamente, temos feito mais missões reconhecimento, transporte de víveres, de pessoal e, sobretudo, de recolha de feridos a partir das várias frentes de combate. Na última missão de helitransportados perdemos vários paraquedistas…

Com isto de deixo, por ora, com um grande abraço, do Elias Moutinho, Capitão Companhia 6667, Bombardeiros, Tete, Moçambique.