terça-feira, 30 de março de 2021

Mozinhos - Preta do Congo - romance

 

 

Luís de Sousa Peixeira

 

Preta do Congo

 

 



 

 

 

 

 

 

Preta do Congo

-Adelino, Adelino! Adeliiiinooo!

-Senhora, Senhora! O patrão está morto…

- Quê? Que conversa é essa? Sua doida…

Foi assim que D. Alzira soube da morte do marido, inesperadamente, mês de Novembro, de 1975. Ela notara que o seu homem, o fazendeiro Silva, tinha ido ao barracão do algodão e do café, mas demorava-se para o almoço. Por isso o chamava dado que a criada Berta também tardava na demanda do patrão.

De facto, o fazendeiro-mor das roças de Carmona (Negage) jazia ali, estendido, de olhos fechados, como se dormisse, tranquilamente.

Alzira, completamente perdida, sem saber o que fazer, apanhada numa situação que nunca tinha imaginado, parecia tresloucada. Berta postou-se, ali, atrás da senhora. Os criados, os pretos, como o Silva designava, já não ligavam: uns tinham abalado da fazenda há uns dias e no próprio 11 de Novembro, dia da Declaração da Independência de Angola, outros andavam por um lado ou por outro, sem ligar patavina ao patrão. Até as vacas tinham ficado no mato no dia anterior, ao deus dará.

Entretanto, sem se perceber muito bem, o padre Alberto apareceu para as exéquias do patrão Silva. Como se isso não bastasse assomaram colonos do Negage e de roças das proximidades. Ora, nem a Berta, preta do Congo, assim que a tratava o Silva, nem a patroa Alzira entendiam o por quê do surgimento dos vizinhos colonos e até uns quadros dirigentes da FNLA. Foi isso que enlouqueceu Alzira. Gritava:

- Que fizeram ao meu homem? Quem o matou? – Ninguém respondeu…

O funeral foi feito mesmo naquele dia, até o esquife parecia que tinha sido encomendado de véspera. Foi sepultado no seu quintal junto da mangueira onde, em vida, Silva se sentava habitualmente, bem perto do tanque de lavar roupa, local acoitado, parecia que alguém sabia que era o esconderijo preferido do patrão para copular Domingas, a lavadeira. No início ela não aquiescia, mas, por coação, lá cedeu e o patrão Silva adquiriu aquele fetiche. Alzira não queria saber, há muito que não lhe interessava sexo. De vez enquanto, mirava o tronco musculado do seu cozinheiro Pedro, o preto que tinha trazido de Benguela, ainda menino e ali ficou e se fez um matulão. De resto, Alzira preocupava-se sobretudo com os dois filhos e as duas filhas que residiam em Lisboa. Ela quis e pressionou o marido para que mandasse a prole estudar na Metrópole. As raparigas e o filho mais novo tiveram consentimento imediato do Silva, porém o seu filho José não: Silva queria-o ali no fito de lhe passar a pasta. No entanto, a mulher não se calava e exigiu pelo que, em Novembro de 1975, ali estava o casal rodeado de pretalhada e dos eus quatro casais empregados, naturais de Oliveira do Hospital, terra da qual todos eram oriundos.

No dia seguinte, Novembro de 1975, logo manhã cedo, um camião se aprontou para levar Alzira e as famílias dos empregados do puto. Numa carrinha de escolta surgiu o padre Alberto, o Osvaldo, um mestiço da FNLA, o Albarrã, colono transmontano e chegado aos da UPA, e uns quantos soldados.

Ordenaram a Alzira e aos súbitos:

- Está na hora de voltarem à metrópole, vão no camião até ao Caxito lá vai aparecer alguém que vos acompanhará ao aeroporto internacional. Seguem na ponte aérea para Lisboa.

Todos atarefados em recolher bens pessoais, sem saberem o que levar e o que deixar para trás, o padre Alberto disse:

- Levem só o extremamente necessário, pouca bagagem. O resto fica cá. Ninguém aqui vai tocar naquilo que é vosso e não tarda que volteis e para fazerdes desta terra uma grande terra, a Angola potência e pérola de África.

Berta estava ali especada, pasmada, Alzira, antes de trepar para o camião puxou pela criada, a sua preta do Congo, e disse, intrépida, para o padre Alberto ouvir:

- Ela vai comigo! Anda rapariga, vais connosco pró puto…

Berta foi, assim, conforme estava, sem bagagem. Bem, também a não tinha…

Supostamente, o conluio da retirada daqueles colonos tinha sido patrocinado pela FNLA com a colaboração do padre Alberto, homem bem quisto e de confiança em ambas as hostes. Quanto à morte do senhor Silva era mistério. Era isso que pairava nas cabeças dos brancos em fuga, em cima da camioneta grande. Iam desconfortáveis com as nádegas a bater, a bater devido ao asfalto em mau estado de conservação. Há muito tempo que deveria ter sido reparado. Contudo, devido às últimas chuvadas na província do Uíge e à barafunda causada pela hecatombe em angola, resultante da queda do regime colonial em Lisboa, aquele macadame encontrava-se numa verdadeira lástima, deplorável.

Alzira e Cecília, esposa do empregado Amâncio, seguiam na cabine, junto do motorista António, antigo criado do senhor Silva, antes de aquele ter desertado da fazenda, juntando-se à guerrilha da UPA, em plena guerra colonial. Aliás, era o António o elo de ligação dos da FNLA e com o colono Silva. Secretamente, esporadicamente, António regressava ao território do antigo patrão para recolher viveres que Silva ofertava, até para se sentir seguro. Claro que os militares do exército colonial nem imaginavam. Silva mantinha a dupla ligação: com os guerrilheiros, por um lado e, por outro, com os oficiais portugueses. Na casa do senhor Silva havia sempre umas garrafas de uísque traficado para o aspirante Antunes, o segundo sargente Raimundo e, sobretudo, para o comandante Teixeira. O capitão Amaral também aparecia, de vez em quando, todavia, era uma presença incómoda para o senhor Silva, dada uma conversa azeda que ambos tinham tido, com o Amaral a afirmar ao Silva que o tinha debaixo de olho porque desconfiava que era um dos apoios dos turras, mesmo nas barbas daqueles que davam o corpo às balas, ou seja, os militares portugueses.

O padre Alberto, o Osvaldo da FNLA e o trasmontano tinham ficado na fazenda, aparentemente, na qualidade de guardiães e zeladores do vasto património construído e fundiário da família Silva, tal como ostentava uma placa azulejar na sua casa, azulejos mandados fazer expressamente pelo fazendeiro na fábrica Viúva Lamego, sedeada na Quinta das Laranjeiras, Palma de Baixo, junto do Futebol Clube o Palmense, em Lisboa. Cecília perguntou, a medo, a António:

- Senhor António, que tempo vai demorar até ao aeroporto? – António soltou uma sarcástica gargalhada, com aqueles dentes fortes e brancos, intimidando mais cecília a seu lado na cabine. Ela bem se chegava para a patroa Alzira que já se estreitava contra a porta da camioneta, mas António evidenciava-se a meter e tirar mudanças e a roçar a sua pernona direita na esquerda de Cecília. António calou-se e voltou a rir, agora mais comedido e respondeu:

- As horas, os dias, as semanas ou os meses que forem precisos param chegarmos no Caxito. Depois, até ao aeroporto, já não é connosco, os portugueses que vos levem, dona Cecília… E sorriu novamente, prosseguindo, agora colocando a sua manápula castanha na perna esquerda de Cecília e atirou:

- Ah, agora me trata por senhor António, antes era António anda cá, vai lá, seu matumba… Mas se a Cecililha quer saber eu informo: vamos apanhar a estrada ao Uíge, depois tomamos a direcção de Quitexe, zona de Quibaxe, Úcua. A ideia é a de circular por estrada boa, mas fugir dos gajos do MPLA… Bacongo não quer comunistas em Angola!

Os Bacongo, cuja língua é o quicongo, ocupavam o vale do rio Congo em meados do século XIII e formaram o Reino do Congo, que, até à chegada dos portugueses, no fim do século XV, era forte e unificado. A capital, Mabanza Congo, ficava na província do Zaire. Durante a luta pela independência de Angola, apoiada pelos EUA, muitos Bacongo fugiram para o Zaire, levando a uma considerável diminuição da presença dessa etnia em solo angolano. Cerca de uma dúzia de línguas, de Cabinda ao Cunene e do oceano ao leste, porventura, seis dezenas de sublinguais regionais cobriam o território. Se o MPLA, apoiado pela URSS, países do Norte da Europa e uma grande parte dos membros das Nações Unidas, ostentava um cariz nacional e multicultural, a UNITA emergia a partir dum cunho regionalista rural, a coberto dum secreto tratado com a política portuguesa colonial.

Assim, a camioneta da família do falecido fazendeiro Silva, radicado há mais de quarenta anos em Angola, não pôde abeirar-se da localidade do Caxito. Os militares da FNLA que escoltavam os colonos em fuga iam efectuando avanços e recuos de reconhecimento, no sentido de serem evitados confrontos com o inimigo, ou seja, os tropas do MPLA. Circulavam na espectativa de se cruzarem com os do exército português. Contudo, cedo perceberam que os antigos militares coloniais tinham abandonado todas as posições no terreno, porventura antes do dia 11 de Novembro.

 Ainda distantes de Quibaxe, avistaram manobras de tropas e ouviram rebentamentos de fogo através do emprego de armas pesadas, nomeadamente morteiros 81. Guindaram para fora da estrada, estacionando, camuflados pela farta vegetação. Os portugueses primeiro receberam ordens para permanecerem na camioneta, depois foram apeados e incumbidos de montarem um género de piquenique, estendendo no chão todos os alimentos que levavam nos farnéis. O motorista António e os companheiros militares falaram, falaram, sempre em quicongo e afastados de Berta, evitando, desse modo, que alguém decifrasse as suas intenções, no momento. Por fim, todos comeram e arrecadaram os sobrantes na cabine da camioneta.

Os portugueses inquietos, perturbados com toda aquela movimentação, mas quedos e mudos face à, entretanto, animosidade dos acompanhantes bacongos, aguardaram até que António os chamou, num português fluente, para a orla de um caminho no sentido Leste, um trilho estreito, um carreirito, quiçá, feito e utilizado pelos guerrilheiros ou pelas tropas de ocupação no decorrer da guerra de libertação.

Aí, António explicou, parcamente, que o avanço por Quibaxe se encontrava impedido face à presença do inimigo russo, pelo que tinham alterado os planos, isto é, já não iriam ao Caxito, mas, antes, a Camabatela de onde os portugueses os fariam chegar a Luanda e embarcar todos em segurança para a metrópole. Berta esboçou um esgar em sinal de desconforto, de espanto, como que sabendo do logramento. Todavia, os da FNLA não deixaram margem para hesitações, nem queixumes. De pronto, ordenaram aos portugueses que seguissem o trilho, sempre em frente, sem desvios, nem delongas que brevemente chegariam à povoação de Camabatela e aí receberiam os seus pertences e a almejada escolta dos tropas portugueses. Um dos da FNLA intimou em quicongo Berta no sentido dela abandonar os pulas. Berta preparava-se para se raspar com os patrícios angolanos, só que Alzira agarrou-se à criada com todas as forças e os militares partiram, deixando a preta do Congo à sua sorte juntos dos desgraçados de Oliveira de Hospital embrenhados na mata, mais distante da localidade de Camabatela do que de Oliveira do Hospital ao Peso da Régua.

À medida que avançavam pelo carreiro, mais dificuldade de caminhar, dado o quase apagamento do trilho até que se acharam praticamente no mato fechado. Se o caminho fora utilizado há muito que o tinha deixado de ser. Berta, mais familiarizado com a tipologia e a orografia da região, descortinou uma zona cuja vegetação tinha sido queimada há largos meses. Os arbusto e as ervas já quase tapavam os vestígios de tudo o que tinha sido arrasado pelo fogo. Mesmo assim, caminharam em direcção ao local. Mais de perto ainda se notavam paredes de adobe, pequenas parcelas de assentamento de construções e uns restos de paus de vedações e de, eventualmente, casas. Berta disse, mas os de Oliveira do Hospital não acreditaram: “foi quimbo queimado pelos bombardeiros dos tugas…”.

Aflitos, já a tarde se alongava e o medo do anoitecer apavorava o grupo, decidiram regressar ao ponto de partida, à estrada. Valeu novamente Berta pelo sentido referencial, orientando o grupo até à estrada do Uíge – Caxito.

Cansados, famintos e apavorados sentaram-se no asfalto e não tardou que chegasse um conjunto de automóveis, carrinhas e camionetas na direcção de Quitexe. O grupo praticamente cobriu a estrada, acenando, desesperados, menos Berta que permaneceu na berma, aguardando o desfecho. A caravana parou. Informou que vinham de Ambriz cuja vontade era a de ter continuado pela orla marítima, por Catacanha, até Luanda. Contudo, depararam-se com combates entre o MPLA e a FNLA e tinham decidido tomar a via da Bela Vista com o objectivo de alcançarem Malanje onde sabiam funcionar um evacuamento para Lisboa. Num momento de tanto desespero imperou o bom senso e não faltou solidariedade entre os colonos que lá acomodaram os da família do falecido Silva. Alzira agarrou Berta e não a largou até se empoleirarem todos numa carrinha de caixa aberta, entre tralhas e cobertores.

Sem grandes sobressaltos, entraram em Malanje. Uma noite tranquila, a cidade dormia, apenas canídeos circulavam e as luzes iluminavam as ruas, os jardins e os edifícios, sem vivalma. Berta e companheiros da extenuante viagem, recheada de peripécias, aguardaram pelo amanhecer, junto do aeroporto. Malanje continuava a funcionar - comércio e tudo o mais. Os rostos da maioria dos colonos andavam mais fechados, sinónimo de apreensão, receando pela segurança e reservas quanto ao seu futuro. Os transeuntes africanos de origem calcavam os pisos mais seguros e esperançados, de sorriso no olhar. Não estava previsto a extensão da ponte aérea a partir de Malanje, pelo que os de Oliveira do Hospital, antigos empregados da fazenda Silva e a sua mulher, com a criada preta atrelada a si, lá se incorporaram numa vasta caravana de automobilistas para Huambo, na época, Nova Lisboa. Dizia-se, em surdina, entre os pretendentes à fuga para a metrópole, que Nova Lisboa tinha mais unitas, amigos dos pulas.

De facto, os aviões levantavam voo do Huambo para os aeroportos de Lisboa e do Porto, alguns até para Faro. Alzira, Berta e os seus empregados foram autorizados a embarcar no avião para Lisboa, Ela própria fez a relação deles, por escrito. À entrada da sala de embarque, um dos fiscais barrou Berta, interrogando-a:

- Onde vais tu? – Calada, inerte, esperou que alguém explicasse a situação e logo Alzira acorreu:

- Desculpe, está na lista que lhe dei, é a Berta!

- Berta quê? Onde?

- Aqui está – Berta Bumba… Está connosco, é portuguesa…

- Então mostre a identificação. É assimilada? Tem bilhete de identidade?

- Sim, mas como lhes contámos, roubaram-nos tudo, não vê que nenhum de nós tem bagagem? Há três dias que andamos com a mesma roupa e mal matabichamos… Ela está connosco desde criança e é como fosse da família, não podemos ir sem ela. E para ficar, como pode ela voltar a Carmona? Por favor, por amor de Deus, deixe a rapariga comigo que eu me encarrego dela…

- Bem, passa e rápido, antes que dê maca…

Entraram no aparelho da TAP, amontoados, sem lugar marcado. A bagagem de alguns tinha ido para o sector de carga, outra despachada para que fosse embarcada noutra ocasião e havia sacos e maletas espalhadas pelos regaços, pés e corredores. Os da roça Silva sentiam-se fragilizados, famintos, andrajosos e mal cheirosos, mas aliviados face ao sucedido. Berta Bumba, ao lado da patroa Alzira, junto à janela do avião, continuava serena, expectante. Nunca tinha visto um avião assim de perto, só os Heli canhões, helicópteros e bombardeiros dos tropas do puto, mas à distância. Aliás, ela tinha sido levada para Negage pelo fazendeiro Silva que a apanhara na rua da localidade de Maquela do Zombo, devido a um bombardeamento do qual Berta fugiu, deixando para trás a sua família morta e a sua cubata queimada, em Tambuco. Berta escapou ao bombardeamento porque não estava recolhida, tinha ido ao mato, buscar lenha para que a sua mãe cozinhasse fuba. Ali estava a criada, a preta do congo, sentada junto da senhora branca. Entreteve-se a mirar a confusão daqueles brancos, jamais imaginara pulas, assim, atrapalhados, aflitos, empurrando-se uns aos outros que nem mabecos disputando carcaças de pacaça, nem um mestiço, nem um preto a não ser ela própria. Lembrou-se do rapaz branco que a tinha recolhido no seu quimbo, um dia depois do massacre perpetrado pelos bombardeiros da tropa colonial.

De facto, nos momentos de solidão, de dificuldade sempre se lembrava daquele rapazote vestido de uniforme do exército português. Aquilo tinha sido um mistério ter surgido um rapaz, mais ou menos da sua idade, inesperadamente, sem que ela notasse a sua aproximação. Militar português não poderia ser por causa da idade – os tropas pulas eram homens feitos, com mais de vinte anos, aquele nem aparentava quinze. Da FNLA também não porque não tinham brancos, nem mulatos nas suas fileiras. Só se o rapazote fosse do MPLA onde havia de tudo: pretos, mestiços, brancos, angolanos, estrangeiros, mulheres, raparigas, rapazes, velhos, velhas, mancos, atletas, cegos, surdos…

Berta só ficou a saber que um rapaz branco a resgatou e, com a ajuda de duas senhoras kwanhamas, a tinha deixado em Maquela do Zombo. As senhoras ainda novas, pele bem menos escura da dela que bem sabia serem das etnias do Sul; ambas lá lhe referiram que eram kwanhamas e amigas; tinham calças e camisas diferentes, embora do género militar e, tal como o rapaz, botas do tipo das dos portugueses, bonés de pala, iguais. Ele com umas granadas à cintura e elas cada qual com a sua arma ligeira, mas pequenas face ao que tinha visto, quer aos da FNLA, quer aos portugueses. Berta bem percebeu que havia mais pessoas por perto, quer no acampamento onde pernoitaram, quer à ilharga dos trilhos que pisaram, mas não viu mais ninguém, directamente, por precaução, naturalmente teriam receio de serem denunciados à tropa portuguesa. Andaram na mata, por vários locais, dormiu na companhia dos três e comeu carne salgada e bebeu água deles. O rapaz só falava português e elas outras línguas sobretudo o quimbundo que entendia, parcialmente. Numa tarde, ao lusco-fusco, abeiram-se da referida localidade, as mulheres abraçaram-na e beijaram-na, o rapaz dizendo-lhe, ao mesmo tempo que lhe afagava uma face e lhe beijava a outra, com os olhos humedecido e, igualmente, as senhoras mulatas se emocionavam:

- Vai lá, agora tenta encontrar ajuda, mas é segredo, não fales a ninguém em nós, não digas que nos viste, a ninguém, mesmo ninguém, qualquer dia voltaremos para saber de ti: jura! Os três tinham ficado ali a olhar para ela que bem os sentiu e conferiu mais à frente, quando se virou e lhes acenou, mais com os olhos e com o coração do que com a mão, a qual mal conseguiu erguer…

Em Maquela do Zombo deambulou e comeu o que alguns patrícios quiseram partilhar com ela, até que o patrão Silva parou a sua carrinha izuzu de caixa aberta e lhe disse:

- Sobe para ali, vais comigo…

O avião iniciou o descolamento, levantando voo que nem um passarão ruidoso. Berta estremeceu, amedrontou-se deveras, tal lhe tinha acontecido ao assistir a um filme, apresentado pela tropa portuguesa, em Maquela do Zombo, ao ar livre, quando a tela mostrou um genérico de um comboio de frente em crescendo que lhe pareceu sair do ecrã para o terreiro e esmagar ali a pretalhada, impiedosamente. Em poucos minutos o monstro voador ganhou altura e Berta perdeu de vista as espantosas imagens da terra cá em baixo, olhava, olhava e só mirava o vazio sobre o cinzento das nuvens. Berta sabia lá o que era aquela coisa cinzenta que nem fumo frio, fechou os olhos, concentrou-se, evitando a sensação de mal-estar provocada pelo sobe e desce do aparelho em plenos poços de ar atmosféricos. Ia para vomitar de estomago vazio mas não vomitou. A plateia da brancalhada de pulas calou-se, a preta do Congo tentou reabrir os seus olhos grandes de menina do mato, mas sentiu a cabeça à roda, voltou a cerrá-los e aguardar, serenamente.

Adormeceu, dormitou, acordou e voltou a acordar e voltou a dormitar. Tinha fome, porém isso não era nenhuma sensação estranha, antes, era uma das muitas vezes em que não tinha nada para comer e dormitava, dormitava, inconscientemente, no sentido de poupar energias, no limbo entre o desfalecimento e a sobrevivência.

Porém, os colonos de primeira, segunda, terceira e até de quarta geração não estavam acostumados à carência alimentar, barafustavam com a tripulação, reclamando - exigiam refeição quente abordo. Tratava-se de voos de recurso, de emergência. Assim, já perto da abordagem do território europeu, quase com a Biscaia à vista, foi distribuído o que havia de reserva abordo: sumo e bolachas, mais não havia e, desse modo, os pulas em fuga, acalmaram-se, mais por via da notícia de chegada eminente do que por fome saciada.

Entretanto, antes do desembarque, a tripulação distribuiu a cada passageiro um boletim informativo onde se ditava:

O Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN), é um organismo criado em Portugal com o intuito de prestar apoio às pessoas que regressam ou fogem das colónias portuguesas.

Ao Decreto-Lei n.º 169/75 de 31 de Março cria o IARN, Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais, compete " estudar e propor superiormente as medidas necessárias para a integração na vida nacional de todos os cidadãos portugueses e encarregar-se dos assuntos que superiormente lhe forem cometidos e que dentro da sua esfera de acção possam estar directa ou indirectamente ligados ao processo de descolonização e ao possível retorno de emigrantes.

Assim, roga-se que, individualmente, preencham o questionário em apenso e o entreguem na porta de desembarque no aeroporto respectivo.

Alzira preencheu o seu e o da criada do seguinte modo:

Nome: Berta Bumba.

Filha de: Domingas; pai incógnito.

Idade: 15 anos.

Natural: Carmona.

Estado Civil: Solteira.

Habilitações Literárias: Não sabe ler nem escrever.

Profissão: Criada doméstica.

Tem residência em Portugal: Sim.

Se disse sim, indique a morada: Avenida da Igreja, 18, 3º, Lisboa.

Motivo de retorno: acompanhante da sua patroa Alzira da Purificação Amado da Silva.

Que tipo de apoio requer (logístico; monetário; outro): Monetário.

No aeroporto, mediante a apresentação do bilhete de desembarque, cada passageiro adulto teve direito a receber cinco mil escudos. Alzira quis receber o seu e o pertencente a Berta. Todavia, a criada era menor, como constava da ficha de inscrição, e, por outro lado, só se apresentasse documento legal de tutora ou de familiar directa. Saiu esbaforida, porta-fora, gritando e insultando, à toa, Berta segui-a como cachorrinho, atrás do dono.

Alguns passageiros, acabados de chegar, amontoavam-se na paragem dos autocarros destinados às carreiras do centro da cidade, levavam indicação dos hotéis, hospedarias e pensões aderentes ao processo de alojamento contratado pelo IARN, outros tomavam táxis para os diferentes lugares da cidade e do país, os ex-funcionários de D. Alzira, só com a roupa e calçado trazido no corpo, desde Negage, já com o dinheiro distribuído pelo IARN, abandonaram a patroa, fretando, logo ali, táxis directamente para Oliveira do Hospital. Alzira entrou numa cabine telefónica, na ideia de telefonar aos filhos para casa da Avenida da Igreja. Não tinha moedas, teve o impulso de mandar Berta trocar uma nota de cem escudos, mas recuou, apercebendo-se da inoperacionalidade da menina preta do mato. Dirigiu-se a várias pessoas, todas lhe acenavam, negativamente, até porque ela cheirava mal, tanto tempo sem se lavar, nem trocar de roupa, Berta atrás, andrajosa. Um rapaz, sem se deter, sacou umas moedas do bolso das suas calças de ganga e entregou-as a Berta, nem sequer foi a Alzira. A miúda negra, a única preta ali, recebeu as moedas da mão do moço, em andamento, sentiu um arrepio epidérmico, afectuoso, como se uma carícia de alguém conhecido e meigo. Estacou, boquiaberta, mas ele prosseguiu sem se deter, aparentemente, absorto. Alzira ripou, rudemente, as moedas da mão da criada e voltou à cabine. Berta ficou da parte de fora, observando a patroa na sua atrapalhação, nervosa. Ela, de auscultador em mãos, quedou-se uns instantes, tentado lembrar-se do número do telefone fixo da sus casa de Lisboa onde os filhos tinham sido colocados, a expensas do pai que todos os meses enviava o dinheiro solicitado, através do Banco Português do Atlântico. Alzira marcava o número incluindo o indicativo da metrópole (351), como se estivesse a ligar do Negage, em vez de marcar o 21 e seguintes. Esteve ali, cada vez mais irritada, até que saiu, frustrada e transtornada. Gritou para Berta:

- Anda, lesma, que fazes aí especada?

Quis tomar um táxi, mas não encontrava. Acenou a alguns que já transportavam passageiros, até que surgiu um que parara à sua beira e lhe perguntou?

- Para aonde é a corrida?

- Leve-me, depressa para a Avenida da Igreja!

- Então vá à pata! Ou julgas que estás a dar ordens a pretos… Arrancou, deixando-as ali especadas.

Alzira, sempre com Berta atrás, deitou-se a caminho, direita à Rotunda do Relógio, mas não tardou que avistasse um outro taxista, em sentido contrário. Parou e acenou-lhe largo. O motorista viu o chamamento, fez-lhe sinal para aguardar por si, deu a volta junto à praça de chegada do aeroporto, inverteu a marcha e, rapidamente, parou junto delas. A corrida foi breve e sem conversa, apenas o indispensável (destino, quantia a pagar, nem boa tarde, nem obrigado; saíram do banco traseiro e nem a porta fecharam – Berta porque não sabia dessas diligências e Alzira, propositadamente, por grosseria).

Tudo isso no decorrer da tarde do dia 29 de Novembro de 1975, em Lisboa onde no dia 25 tinha sortido efeito um golpe militar que depôs o governo provisória de então. Alzira não tinha conhecimento do sucedido, nem entendia patavina da actividade política económica e social, quer em Portugal, quer em Angola, quer no planeta inteiro. Para ela era a roça, a criadagem doméstica, notícias dos filhos e os mexericos entre as damas esposas dos colonos e empregadas brancas deles. De geografia conhecia Negage, Uíge, caminho para Luanda de carrinha caixa aberta, cinema Mira-mar, Mutamba, Vila Alice, Alvalade, São Paulo, alguma coisa das zonas de Viana e do Cacuaco e, naturalmente, a sua terra, Oliveira do Hospital. De História de Portugal e do mundo, não sabia absolutamente nada, porém considerava-se sabedora, opinava sempre acerca de tudo, a partir das citações bíblicas refentes a Adão e Eva, nem do missal e do catecismo se lembrava já, dada ausência de rezas e das homilias. Fazia orelhas moucas aos apelos do padre Alberto no sentido de frequentar as missas em Carmona. Todavia, fazia finca-pé na presença do dito sacerdote à mesa do almoço domingueiro, lá na roça, ao qual não se cansava de relatar o rol de boas acções para com os pobres, nomeadamente, aos mendigos e desvalidos, mesmo que pretos, quiçá, turras, “faz o bem e não olhes a quem”, repetia sempre.

De facto, alguns membros da Comissão Permanente do PS, no seguimento de um plano contrarrevolucionário previamente estabelecido, saíram, clandestinamente, de Lisboa, na tarde do dia 25, seguindo para o Porto, onde se apresentaram no Quartel da Região Militar Norte, através dum General piloto-aviador.

O Presidente da República decretou o estado de sítio na área da Região Militar de Lisboa, tendo um papel determinante na contenção dos extremos. Um Tenente-coronel, adjunto, iludiu pressões dos militares da extrema-direita que o incitavam a mandar bombardear unidades. Diversos Oficiais ditos moderados estavam então conotados com o PS (com o qual conspiraram na preparação do plano e das operações que desembocaram no 25 de Novembro de 1975) e o PPD.

Posteriormente, o "Grupo dos Nove", vanguarda de todas as forças políticas e militares do Centro e da Direita (parlamentar e extraparlamentar) e os seus aliados, alcançaram o controlo da situação.

Na Avenida da Igreja, Alzira teve dificuldade em reconhecer o local, valeu-lhe o número de porta que sabia de memória. Subiram a escada, mas não foi capaz de distinguir entre o andar direito, o frente e o esquerdo. Premiu uma campainha ao acaso, atendeu a d. Júlia, da frente:

- Sim, quem é?

- Sou a mãe, abre, minha filha…

- A mãe? Oh minha nossa senhora, não sabia que os anjos do outro mundo falam com os vivos na terra…

Júlia, a vizinha do andar frente, abriu a sua porta e encarou com Alzira e Berta. À primeira vista, assim de repente, julgou estar na presença de duas pedintes, uma preta, pelo que logo atirou:

- Não tenho nada, vão se embora. Era o que faltava e ainda pra mais uma preta, vai lá prá tua terra!

- Não senhora, sou a mãe da Fernanda e da Susana, não estão em casa?

- Mas… É a dona Alzira? Credo que nem a conhecia, também agora já não há ninguém que mude as lâmpadas das escadas. Agora que façam os donos, quem manda são os empregados. Mas olhe que a sua casa é aqui a do lado. Parece-me que não está ninguém. Ouvi dizer que o Zé Maria, a Fernanda e a Susana fugiram para a África do Sul, e o Afonso anda na política… Entre, entre… E essa aí, quem é? Que fazes aí especada? Não foste prá tua terra, a Guiné ó lá que é?

- Ah, desculpe dona Júlia, é a minha crida que trouxe comigo. Olhe esta desgraça, há não sei quanto tempo ando assim, com a mesma roupa no corpo: que desgraça, mas que desgraça nos havia de acontecer. Então, se não se importar fico na sua casa à espera que chegue o meu filho…

- Entre, entre, dona Alzira, vou dar-lhe um chazinho de camomila… A criada pode ficar aí na escada que ninguém a leva.

Alzira, pela primeira vez, desde que abalara da roça, teve de separar-se de Berta. Ainda pensou em qualquer maneira de evitar tal separação, com receio que ela fugisse. O problema de Alzira era a falta que lhe faria Berta na gestão das lides domésticas. Cozinheiro já não tinha, ficou lá, se a preta faltasse como seria a lavagem da roupa, a limpeza da casa e todo o mais que necessitasse para o seu conforto…

- Berta, ficas aí sentada, não demoro, não saias daí, ouviste? Já venho! – Determinou Alzira, imediatamente antes de penetrar na casa da vizinha, intransigente para com os pretos, pelos vistos…

A escada de pedra mármore até nem desagradou à angolana, pelo menos descansou sentada na pedra fria, fora do alcance da patroa enervada e da Júlia racista, de uma maneira avassaladora, nem em Angola se lembrava de tamanha hostilidade. Por duas vezes Alzira foi espreitar através da porta, só uma nesga desencostada da umbral, às escondidas de Júlia, fazendo sinal a Berta para aguentar ali.

Escuro denso nas escadas, preta do Congo embrenhada, Afonso voltou, assobiando, contente da vida, bateu a porta e foi trepando de degrau a degrau, isqueiro aceso, no intento de evitar tropeções. Deu de frente com uns olhos e dentes brancos, sobressaindo do invisível.

- Quê, um gato? Ssssssss! – Foi a reação, imediata, do filho mais novo de Alzira.

- Menino, sou eu. - Reagiu Berta.

De pronto, a porta do apartamento da vizinha Júlia se abriu, escancarada, luz interior acesa a iluminar o patamar, Alzira e Júlia em frente.

- Ai meu filho. – Alzira lançou-se de braços abertos a Afonso e este, atónito, ainda sem capacidade de resposta perante o inesperado reencontro, respondeu:

- Mãe?

- Meu menininho, meu menino que estamos desgraçados.

- Que aconteceu, onde está o pai?

- Foi uma desgraça, meu filho, o teu pai morreu naquela maldita terra, mataram-no, mataram-no! Ninguém me tira isso da cabeça!

- Mas como? Se ainda há quinze dias mandou o Zé Maria, a Susana, a Fernanda e o Delfim para a África do Sul…

- Eu não soube de nada, meu filho, o teu pai não me disse nada disso. Quem é esse Delfim?

-É o namorada da Fernanda, foi da secretaria de estado do governo do professor Marcelo Caetano e estava à rasca com o Copcon e com os comunistas, mas já lá vai tudo, estamos de volta à legalidade: os militares salvaram a situação com o golpe de 25 de Novembro e acabaram com os abrilistas, cubanos e russos.

O Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), formalmente constituído em 5 de maio de 1975, contra a crescente influência do Partido Comunista Português e dos vários grupos de esquerda, influência essa que se fazia sentir à margem da ainda frágil democracia. Foi criado após a Intentona de 11 de Março de 1975.

O MDLP foi liderado, a partir do Brasil, pelo General António de Spínola, mas toda a sua estrutura encontrava-se sediada em Madrid. Essa estrutura assentava num Gabinete Político, que assegurava a liderança política do movimento, dirigido por Fernando Pacheco de Amorim reportando directamente ao General António de Spínola e integrado, entre outros, por António Marques Bessa, Diogo Velez Mouta Pacheco de Amorim, José Miguel Júdice e Luís Sá Cunha. A estrutura militar era liderada pelo Coronel Dias de Lima, Chefe do Estado-Maior, também ele reportando directamente ao General António de Spínola e subdividia-se em dois braços, a RAI - Rede de Acção Interna, liderada por Alexandre Negrão e as FAE - Forças de Acção Externa, estas lideradas por Alpoim Calvão. Ambos, Alexandre Negrão e Alpoim Calvão, reportavam directamente a Dias de Lima. O MDLP terá tido um papel relevante na preparação do campo para o êxito do 25 de Novembro nos anos quentes que se seguiram à Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal.

Afonso introduziu a chave na fechadura, rodando-a à direita. Abriu a porta. Franqueou entrada à mãe, em primeiro lugar, seguindo-a. Tanto Alzira como Afonso ignoraram Berta e Júlia. Esta ficou ali a escutar e a presenciar o episódio do reencontro entre mãe e filho e aquela acabou por entrar também, atrás dos patrões, mas não fechou a respectiva porta, talvez julgando que em Lisboa se mantinham os hábitos da roça, ou seja, porta aberta. Já na sala naquele incessante pergunta e resposta entre Afonso e Alzira, Berta em pé, à espera de ordens, passeando os seus olhos grandes de menina enjeitada e triste, circunspecta, Júlia foi notada a espreitar. Alzira encerrou a entrada e resmungou para a pretinha:

- Nem ao menos serves para fechar uma porta, sua matumba. Estás em Portugal, ou pensas que ainda estamos em Carmona? Aqui não há turras, mas ladrões é o que por aí deve haver mais.

Alzira tinha fome e desconforto, convidou o filho para a cozinha, dando-lhe conta da sua viagem de fome, desencontros, aventuras, frustrações, viagem e desembarque, saltando muitas peripécias, no momento, consideradas desnecessárias. Afonso mostrou tudo o que possuía em casa em matéria de alimentação pronta a comer, quer na dispensa, quer no frigorífico. De imediato encheu um copo de leite fresco, retirado da prateleira da porta da geladeira, como se dizia no Negage. Bebeu um copo, bebeu outro e ainda escorreu o restante que pôs aos queixos, sofregamente. Não havia pão em casa, cortou um pedaço de salpicão e pôs-se a roê-lo. Sempre em conversa com o filho, trocando novidades e opiniões acerca de muita coisa, atabalhoadamente. Berta a olhar esbugalhadamente para a senhora que devorava comida, ignorando a fome da criada. Afonso mirava Berta, apenas, nem um comentário, nem qualquer gesto, nada, como se fosse só e apenas um qualquer móvel doméstico. Os dois comportavam-se como estivessem sós, Berta nem a atenção de gato merecia, como se ela não tivesse fome, como se não tivesse necessidades fisiológicas, até que, não podendo mais, deixou escorrer urina pernas abaixo, empoçando-se sobre os azulejos da cozinha. Aí a patroa reagiu:

- Que estás a fazer rapariga? Anda cá comigo à retrete.

- Mãe, mande-a fazer num balde, na casa de banho não que está limpa.

De volta à sala, Alzira, depois de ter deixado Berta na cozinha entretida com um pedaço de entremeada salgada, mirou tudo, detendo-se na observação de uma grande bandeira colada a uma das paredes:

- Quê meu filho, que pano é esse – mê, dê,lê, pê – não é o partido dos turras?

- Não, mãe – eme, dê, éle, pê – é o nosso grande movimento patriótico, de salvação nacional. O dos gajos de lá é – MPLA. Não se lembra dos tipos que foram comigo e com o Zé Maria de Luanda a Carmona e até comeram e dormiram na nossa casa?

- Então não, claro que sim, meu filho… Eram bem simpáticos e pareciam inteligentes, gente fina, tenho ideia que, pelo menos, um era cabrito, não era?

- Finos? Até de mais! Já eram todos do MPLA, e nós sem sonharmos.

- Como soubeste isso, meu filho?

- Tenho as minhas fontes, agora tudo se sabe…

- Olha, meu filho, ainda não me disseste por que ficaste cá e não foste com os teus irmãos, foi o teu pai que assim determinou?

- Bem, o pai tinha dito ao Zé Maria para fugirmos todos, mas eu não quis. Sabe, tenho cá a minha namorada. Trabalho para um partido novo e, se Deus quiser, agora com o golpe de estado do dia 25 de Novembro, haverá eleições e, seguramente, serei candidato às eleições constituintes e aí….

- Mas, meu filho, tu queres ser político?

- É o meu futuro, mãe, os tempos são outros. Para Angola já não voltaremos tão de pressa, sabe-se lá?

- E a roça e tudo o que deixámos em Carmona?

- Mãe, as colónias estão perdidas. Só nos interessa que consigamos pôr lá um partido amigo. Quanto eu sei, o único com algumas garantias é a UNITA.

- Mas, ouvi dizer que são só gente do manto, umbundos, matumbas…

- É, mas temos lá uns brancos a trabalhar: um médico, uma empresária e, de resto, o Malheiro Savimbi foi mandado para a Suíça fazer um curso. Vamos ver…

- Então, e o padre Alberto, o Osvaldo… Sempre ouvi dizer que eram contra os comunistas…

- Esses são pelos americanos, jogam com um pau de dois bicos, fingem-se amigos…

- E nós, meu filho, que vai ser de nós, o nosso dinheirinho ficou lá no banco em Angola?

- Mãe, nem um tusto! Pensas que andamos a dormir? Maior parte foi transferido para Pretória, na África do sul, outro, algum, está cá. Não contávamos com a morte do pai, agora temos que pedir ao Zé Maria, senão como seria a nossa vida aqui?

- E se vendêssemos esta casa e voltássemos para Oliveira do Hospital temos lá a nossa casinha que o teu pai mandou compor…

- Não, eu não vou, o meu futuro é aqui, em Lisboa e vou ser deputado, vai ver. O meu futuro sogro, agora que os comunistas foram corridos e o copcon liquidado, vai voltar a ter poder. Podíamos ir para a África do Sul e quem me diz que os pretos não tomam conta daquilo também?

- Só estou aqui ralada a pensar como o teu pai determinou tudo sem me dizer uma palavra que fosse…

- E não foi sempre assim, minha mãe?

- Olha, a conversa já vai longa, estou muito cansada. Vamos dormir todos e amanhã decidimos como nos ajeitar nesta casa.

- E ela, onde a vai pôr?

- Na varanda.

- É, amanhã é capaz de estar dura que nem um carapau, aqui as noites já são frias.

- Então, já sei.

Alzira pegou nas duas almofadas do sofá da sala, perguntou por dois cobertores. Levou tudo para a cozinha. Atirou para cima dos azulejos e ordenou:

- Vá, sua posta de carne, faz a tua cama aí.

- A minha cama está feita, meu filho?

- Tal e qual como a Fernanda a deixou. Até amanhã mãe.

- Dorme com Deus, meu filho.

O facto de Alzira ter sido ignorada pelo marido no concernente à transferência de montantes de dinheiro para os bancos da África do Sul e com a agravante de conjecturar tudo com o filho mais velho melindrou-a muito. Estava habituada ao quotidiano alheamento do seu Adelino Silva no que dizia respeito aos negócios da roça. Não tinha memória de gestos de afecto, nem manifestações de carinho e de apreço. Tinha perdido referência ao último acto sexual entre ambos. Desde que engravidou a última vez nunca mais partilharam o leito, mesmo nesse momento tinha sido, por acaso, na sala, durante uma sesta que, de repente, se abeirou da mulher, deitada, puxando-lhe as cuecas abaixo e se despachou, ejaculou, num instante, e logo saiu porta fora, sem uma palavra.

Assim, em Lisboa, não queria saber do marido sepultado em Angola, nada se importava mais com as memórias dele ao longo de uma vida de matrimónio. As saudades apertavam-na mas as relacionadas com a vida de largueza, de preguiça, de poder sobre a criadagem doméstica, dos mexericos com as outras colonas, em fim, tinha pena de ter perdido aquela sensação de domínio sobre os nativos. Em Lisboa só Berta a tratava por SENHORA, de resto era dona Alzira, senhora Alzira, você isto, você aquilo.

Afonso cada vez mais se ausentava de casa de sua mãe. A política era o seu modo de vida: o partido, a namorada, o seu futuro sogro, o seu objectivo de deputado parlamentar de extrema-direita, o seu ajuste de contas com as autoridades dos novos governos das ex-províncias ultramarinas ocupavam todo seu espaço mental.

No entanto, uma inquietação permanente o assolava à qual não queria dar importância, ou seja, as reservas de dinheiro e de diamantes que o seu pai tinha transferido para África do Sul. É certo que ele nunca tinha sido inserido nesses meandros de transferências de capitais e de pedras preciosas forjadas em branqueamentos. Todavia, através de certos dislates do Zé Maria, dos telefonemas e cartinhas do seu pai para o seu irmão mais velho acreditava que algo lhe escapava e que com a morte do progenitor, Zé Maria seria o único na posse de toda a informação e habilitado aos bens transferidos para aquele país. Ouviu o irmão e o pai, ao telefone, referirem-se ao cofre cujo acesso estava codificado no banco. A conta depositada em Portugal dava-lhe acesso. Contudo, era a única forma de sobrevivência dele e da mãe. Após a queda do regime colonial o pai cessou os depósitos para o continente e tudo teria trilhado o destino da África do Sul, regime racista no qual Adelino Silva confiava e asseverava política de futuro do branco, capaz de colocar os negros a quilómetros do poder político e financeiro.

Alzira sempre sobre o comando da vida e dos movimentos da sua criada, mandou mudar mobília para um lado e para o outro. Foi à arrecadação, lá nas águas-furtadas do prédio, e instalou Berta. Não havia água, nem sanita, mas tinha luz eléctrica e espaço suficiente para comportar uma caminha, uma caixa para alguma roupa e um balde para as necessidades fisiológica da miúda. Os gastos da casa deixaram de ser de abastança como eram no Negage. Lá o marido só perguntava, “Quanto é preciso?”, ela atirava um número e ele botava a mão ao bolso das calças, da camisa e ali aparecia o dinheiro em notas de escudos angolares. Se, por acaso, não houvesse nos alforges, retorquia: “amanhã cá o terá!”. Em Lisboa o filho também lhe fazia chegar as notas de escudos do banco de Portugal, mas com parcimónia, até porque o filho lhe ia repetindo, frequentemente, e de cada vez que ela se lamentava das limitações financeiras e da carestias dos bens:

- Não sei como vai ser a nossa vida, minha mãe, o Zé Maria não diz nada e a conta qualquer dia está a zeros…

- Oh meu filho, ando cá a magicar com os meus botões, E se eu fosse para a aldeia? Temos lá a casinha, os bocadinhos que herdei dos meus pais…

- Faça como quiser, eu não vou para lá, aliás, há uma coisa…

- Diz, meu filho, que coisa é essa?

- Vai haver eleições para a Assembleia Constituinte, para o próximo ano. Se não conseguir aprovar uma moção que me permita entrar no lote dos candidatos do partido, quando se realizarem eleições parlamentares, certamente terei mais hipótese numa lista do distrito de Coimbra. Em Lisboa há muita concorrência e nem o meu sogro terá força para me impor em detrimento de certos marmanjos…

- Mas, meu filho, sabes que não entendo dessas políticas, Coimbra vai também ser independente? Valha me nossa senhora que está tudo doido…

- Não, nada disso, cada distrito elegerá os seus deputados ao parlamento nacional, por isso, se a mãe for, até me dá jeito para saber como é aquilo por lá…

- Ah mas eu vou, levo a Berta, e meto-me lá em Meruge, se calhar nem a Oliveira irei, só ao mercado, ao médico e à farmácia, não julgues que vou lá para Coimbra cheirar: quero é largueza, como em Carmona – ponho horta, crio galinhas, coelhos e faço a minha vida, que pensas? Se me mandares uma tenção todos os meses, vou já preparar tudo, a Cecelinha mandou-me dizer que se está lá muito bem…

- Quanto a isso fique descansada, falo com o Zé Maria e ele próprio lhe remete uma verba mensal. Também quero saber das contas do pai, pois não sei de nada: quanto há, quanto é a nossa herança, nada, só ele sabe de tudo. Se acontece alguma coisa como é?

- Credo, meu filho, às vezes tens umas ideias. Não te esqueças que as irmãs estão lá com ele.

- É, as irmãs… Até parece que não sabe como é o Zé Maria…

- Como o vosso pai: faz tudo sem dar cavaco a ninguém…

- Ora, vê como sabe… Além disso é melhor mesmo não dar conhecimento à Fernanda, senão logo vai dar com a língua nos dentes para o Delfim. Esse gajo, esse lorpa, é capaz de nos passar a perna a todos…

- Bem, bem, olha, meu filho, que nossa senhora do Carmelo nos acuda e nos livre dos caloteiros…

Alzira habituada à roça, rainha dos prazeres ociosos, idiota obscurantista, atrevida e ignorante que tudo conhece, tudo podia menos enfrentar o despotismo, machismo e indiferença do marido. Em Lisboa, sentia-se encurralada entre gente alheia, ruas pejadas de transeuntes indiferentes ao seu inconformismo, a viver a esperança da nova sociedade liberta das peias fascistas. Não aguentou, decidindo partir, de regresso à sua aldeia, Meruge, mais de quatro décadas após a fuga para a África das patacas. Regressa em definitivo, acabrunhada sem o fausto, a bazófia e o convencimento que ostentara noutras ocasiões de vacances de colona, dona de fazendas e mandona de negrada na província de Angola. Pôs Berta a meter pertences nas malas que em tempos trouxera de Luanda e um taleigo dos trapitos da criada, num táxi chamado pelo telefone – ala que se fazia tarde em direcção ao Campo das Cebolas, a fim de aí tomar a camioneta para o seu berço, Meruge. Na carteira levava quinze notas de mil, quinze contos de reis. Ia também com a promessa de que, mensalmente, por volta do dia trinta, nos correios de Oliveira do Hospital, lá estaria uma certa quantia para que pudesse viver tranquilamente na sua aldeia. A garantia tinha sido dada pelo seu filho mais novo, o Afonso, irascível político da era pós colonial.

Berta (cafofa, menina tonta), mais uma vez, acompanhava a sua patroa, sem que fosse consultada, nem paga pelos serviços prestados. A menina preta do Congo com as suas parcas imbambas (tralhas), não sabia ler nem escrever e também não sabia o que era ter dinheiro em mãos, nunca ninguém lho tinha dado a troco de qualquer pretexto. Em Angola não era usual, nem prática no seu mundo de menina do mato. Desde que a levaram para a roça do patrão Silva lá andava pelo anexo onde dormia, o alpendre onde comia e os espaços interiores da casa da senhora que lhe mandava varrer, limpar e lavar. Era empregada sem contrato, nem salário. Também não era escrava vinculada, só sabia que a senhora a comandava e sustentava, mais nada…

Por outro lado, a saída da Avenida da Igreja agradava-lhe. Sentia-se muito só e discriminada, Alzira (Ngana, senhora branca) só lhe administrava ordens e desdém; a vizinha Júlia (Cassandra, branca ordinária), quando a encarava, descompunha-a e dizia-lhe para voltar para a Guiné, que diabo, nem sabia o que era isso da Guiné, porventura, algum lugar em Angola, não entendia. Afonso não lhe dirigia uma única palavra, mas mirava-a concupiscente, ela bem sentia os olhos dele pregados no seu corpo juvenil, do jeito do Silva nas trabalhadoras da roça, as quais ordenava buscar para fornicar no armazém, apesar da resistência delas. Afonso parecia ter nojo da menina preta porque não a queria na sua casa de banho, não queria que lhe pegasse nos seus pertences, mas cobiçava-lhe as pernas, as ancas e os pequenos mamilos com os olhares libidinosos. Num jantar que Alzira tinha oferecido à família de Madalena, namorada de Afonso, fecharam-na na varanda até altas horas, como uma cadela, ao frio. Desconhecia aquele mundo da cidade de Lisboa cuja população maioritariamente caucasiana muito diferia da do Negage onde predominava o negroide bacongo. Os mestiços e pretos até constituíam uma significativa percentagem, sobretudo em determinados lugares da cidade por onde tinha passeado, acompanhando Alzira, mas reparava que pensavam e agiam de maneira diversa e diferente dos de Angola. Os pulas em Angola eram quase todos contra a independência, em Lisboa eram maioritariamente adeptos. Manifestavam-se nas ruas a favor da independência das colónias, contra o colonialismo. As criadas em Lisboa eram sobretudo cabo-verdianas, catanhós (lambe botas dos colonos), como os angolanos as apelidavam, pejorativamente. O seu desagrado para com as catanhós acentuou-se com a alcunha com que uma cabo-verdiana a contemplou, na Avenida de Roma: cabungueira (pessoa que despeja matéria fecal nas lixeiras, na cidade da Praia, Cabo Verde). A ideia de ser levada para o campo, no dizer da patroa, lembrava-a a eventualidade de voltar à vida livre do kimbo, podendo desfrutar das mulembas (árvores frondosas), quiçá, com as suas massuicas (trempe, sobre as pedras das fogueiras), os seus mambos (assuntos), numa agradável mangonha (preguiça), escutando pírulas (pássaros de Luanda) e larar (defecar) livremente no mato. Vociferou ao vento: Tuji (merda)! – Saturada de Lisboa, dos pulas e dos catanhós.

Afonso embrenhou-se na luta pela contrarrevolução logo que o golpe militar de 25 de Abril de 1974 vingara. Descorou o estudo na Faculdade de Direito. Todavia, depois de encaixado no seu partido, na rampa de lançamento para lugares de direcção, quiçá, de candidato a deputado, verificou que necessitava de um diploma de licenciatura. Não teria futuro político se não fosse publicamente tratado por senhor doutor Afonso Amado da Silva. Tentou voltar às aulas, metendo amoeda ao prometido sogro, mas na faculdade imperava a influência das associações académicas esquerdistas do PCP e do MRPP. Os do MRPP, com o ódio que ostentavam perante os do PCP, porventura, até anuiriam, porém o conselho de reitores da universidade também primava pela tendência comunista e socialista, o que inviabilizaria eventual habilidade de alcançar o grau de licenciado, sem a devida prestação de provas, além da normal frequência das aulas em falta. Ter-lhe-á sido dito que se fosse aluno devidamente matriculado surgiria uma mãozinha para o empanar, mas de outro modo não se arranjaria maneira: teria de se voltar a matricular, cumprindo os dois anos que lhe faltavam, as ajudas estavam mais ou menos garantidas com a sub-reptícia dos professores ultraconservadores que se moviam dissimulados pelos meandros da faculdade. Não querendo voltar à faculdade, nenhum gabinete de advogados amigos lhe poderia facultar o estágio, mesmo que fictício. Alternativa, só aguardando pelo desenrolar do almejado processo de recuperação do poder político da antiga ordem conservadora na condução das universidades públicas ou, ainda mais arrojado, esperar que se implementasse em Portugal uma rede de universidades privadas, patrocinadas pelo Estado, concorrentes com o ensino público, a exemplo das designadas democracias ocidentais, nomeadamente da Europa e EUA. Quando parecia que o trilho de sucesso na ascensão política era evidente, Afonso começava a tropeçar nos escolhos, nas lutas internas, em obstáculos inesperados para incauto da sua natureza. Uma coisa era quando precisavam da sua energia, da sua voluntariedade, outra coisa verificava-se nos momentos de colher frutos, contemplar com atribuições e benesses…

Por outro lado, sentia-se desconfortável, sabendo que a única âncora ao sistema político e partidário dependia da sua ligação amorosa com Madalena. Se rompesse o namoro esfumar-se-ia a promissora carreira política. Por ele, o casamento não falharia, nem que tivesse de rastejar sob demandas do prometido sogro, homem do antigo regime, influente e parte interessado em múltiplos negócios de seguros, comércio, serviços e imobiliário. Contudo, sentia Madalena num processo de mudança de atitudes e de personalidade. Notava-lhe um certo esvair de beatitude, de futilidades e sobretudo um crescente interesse pelos meandros dos negócios e questiúnculas sociais relacionadas com o mundo do trabalho. Percebera a insubordinação dela ao ideário dele. Madalena passou do sim, sim, embasbacada, para uma postura de interrogação frequente, notou que a sua namorada também tinha dúvidas e buscava determinadas respostas. Madalena, gradativamente, ia despindo a roupagem de sujeito passivo, receptáculo, adotando, paulatinamente, nova postura, ou seja, sujeito activo, interveniente, perscrutador. As revistas de coscuvilhice, romances plangentes e fantasmagóricos, rendas e bordados, maquilhagens, modas femininas e de aconselhamentos domésticos deixaram de espelhar nos sofás e mesas de apoio, recambiadas para qualquer canto, esquecidas. Madalena já se atrevia a sair à rua sem batom, sem rímel, sem os cremes de rosto, nem sapatos de salto. Soltou-se pelas ruas, travessas, vielas no encalço de uma conversa de amigas, de eventuais momentos musicais, de qualquer galhofa descomprometida, em detrimento das aborrecidas e monótonas sessões da catequese que vinha administrando a crianças desatentas. Em casa, alheava-se das obsessões musicais dos irmãos que nunca se saturavam de ouvir e discutir roque norte-americano. Abandonava o namorado e o pai quando, na sala, se punham a conversalhar sobre o Sport Lisboa e Benfica, não queria saber do nome dos jogadores, dos golos marcados e dos sofridos e muito menos das picardias da arbitragem. Encerrava-se no seu quarto só para não os ouvir gritar goloolooo! Do Benfica!

Por vezes, passou a surpreender o pai e o namorado com interpolações e observações. A mais inesperada foi no dia em que Alzira presenteou a família da sua putativa nora em sua casa da Avenida da Igreja com uma majestosa Muamba de galinha, manjar, de todo, desconhecido dos convidados alfacinhas. Ora, estando todo aquele comensal a decorrer em aparente sintonia, Madalena, pediu a Alzira para que retirasse a desgraçada criada da varanda porque fazia frio e considerava uma atitude desumana. Alzira pasmou, perplexa, olhou para o filho e para os restantes convidados, indecisa, surpreendida pela descoberta de Madalena, pois convencera-se que só Afonso sabia dessa diligência. O pai de Madalena ainda tentou disfarçar, trazendo à liça a sua participação na companhia de seguros, em vias de restituição, mas Madalena insistiu:

- Eu vou lá abrir-lhe a porta, coitada, se calhar tem fome e com este frio…

- Não, deixa que me encarrego disso. – Adiantou-se Afonso.

O filho caçula de Alzira pediu licença para se ausentar da mesa, dirigiu-se à varanda, sussurrando na cozinha. Levou Berta à saída para o exterior, batendo novamente a porta e regressou, sorridente, ao seu lugar de comensal. Madalena, inquieta, interrogou o namorado:

- Que lhe fizeste? Onde a arrumaste?

- Então menina, que propósitos são esses? Interveio, imperial, o pai dela.

A conversa naquele dia ficou por ali, no entanto, Madalena, posteriormente, quis saber do ocorrido, censurando severamente Afonso e Alzira pela atitude racista e desumana, ao ponto de ter dito a Afonso:

- Não me admira nada que os africanos tenham expulsado os portugueses, pelo que vejo das vossas práticas…

Afonso aprendera com o pai no Negage no concernente à condução da vida familiar, isto é, quem ditava era o homem, à mulher cabia a gestão doméstica e o cuidar dos filhos. Silva usava habitualmente a expressão “ no poleiro canta o galo e esgravata, cacarejando a galinha”, “ (…) cada benfiquista, cada bom chefe de família…”. Ora, ele, Afonso, o seu pai, Adelino Silva, e o seu putativo sogro, homem influente no partido e no mundo dos negócios, se eram fervorosos benfiquistas, também teriam que corresponder na qualidade de chefes de família. No entanto, Zé Maria que era sportinguista é que era o predilecto do pai. Depois da morte deste era precisamente o seu irmão primogénito a ter na mão a faca e o queijo. Na África do Sul, na posse da herança, não sendo benfiquista, nem chefe de família, Zé Maria faria o que lhe aprouvesse, o galo a cantar seria ele. Se Madalena lhe prestava cada vez menos atenção, teria de se aproximar ainda mais do prometido sogro, o doutor Valdemar. Era mesmo por causa do exemplo de Valdemar que decidiu empreender esforços no sentido de obter o grau de licenciado em Direito. Não queria que alguém descobrisse e o retratasse na praça pública como falso doutor. Valdemar tinha feito o antigo curso comercial – uma verdadeira licenciatura nas palavras dele. Era o estatuto de personagem influente nos meios empresariais, sociais e políticos que lhe valiam a distinção. Todavia, ele, Afonso teria de cavalgar muito para atingir esse patamar e, de qualquer modo, a ascensão política e social de Valdemar advinha do tempo colonial e ditatorial, totalmente distinto do Portugal pós 25 de Abril de 1974.

Em todos os momentos possíveis, Afonso procurava impressionar Valdemar, umas vezes prorrogando as suas observações, opiniões e atitudes, outras fazendo-lhe ver as suas próprias retóricas, através de trechos decorados dos manuais greco-romanos, dos clássicos como ele fazia questão de frisar.

Estando ambos sentados na sala de estar, no intervalo do jogo FCP-SLB, Afonso dissertou: “O direito natural é o que a razão universal reconhece como tal. O direito positivo é a regra tal como existe de facto nos códigos e nas leis escritas. Sendo o elemento fundamental do Estado o poder, podemos constatar que o Estado actual, não só pode criar o direito, como tem ainda o seu monopólio. Para além de criar o direito, o Estado é o garante da sua realização, já que detém o poder. Deste modo, uma das finalidades do Estado é garantir o respeito pelas normas jurídicas através de órgãos específicos e impô-los aos cidadãos quando necessário”…

- O direito faz-se a nosso jeito e segundo a nossa conveniência! - Rematou Valdemar, sentenciando a conversa.

- Não poderia estar mais de acordo com o senhor: o Estado cria o direito. Dentro da forma política que este tem num momento histórico, certos homens ou grupos de homens, através dos mecanismos estabelecidos nessa forma política, ditam normas de conduta obrigatórias que são atribuídas ao Estado como entidade permanente. Isto faz com que a vigência destas normas seja também permanente, não no sentido de que não podem mudar, mas sim no sentido de que a mudança dos homens que as ditaram ou forma política em cujo âmbito nasceram não arrasta o seu desaparecimento. Essa mudança só pode ter lugar por uma nova decisão dos homens que constituem os órgãos habilitados para legislar em cada momento.

- É uma pena que ainda não tenhas o canudo na mão, rapaz, deixa que havemos de tratar disso. E não te quero lá na faculdade a aturar comunas, eu trato disso, ai se trato… Olha, lá está, a segunda parte do glorioso, vamos ouvir. Muda lá para a rádio Renascença, estou fartos destes locutores da Emissora Nacional, dantes é que era, agora é só comunistas, lagartos e tripeiros….

Afonso, seguindo as instruções de Valdemar, tentava sintonizar o aparelho, manualmente, na Rádio Renascença, rodando para a direita e para a esquerda, sem êxito, até que captou um posto qualquer de onde provinha a voz do radialista, “gooooolooo, é do Portooooo!”.

- Mais um? Desliga lá isso, vamos jantar! – Arremessou Valdemar, aborrecido.

Em pleno repasto, sentados à mesa, na majestosa sala de jantar, Matilde, a criada interna para todo o serviço, depois de levantar os pratos da sopa de grão-de-bico, triturados, e folhas, dispersas, de espinafre, acabou de colocar na mesa, com esplêndida aparência e aroma agradabilíssimo, uma avantajada travessa de peru assado no forno com batatas coradas, uma travessa de loiça chinesa com arroz branco, a graciosa molheira do conjunto chinês e ainda a preciosa saladeira, dito proveniente de uma antiga colecção de Changai, século XVII. O vinho mantinha-se em garrafa própria, proveniente das adegas de Vila Nova de Gaia. Valdemar queria assim, vinho da região demarcada do Douro, servido à mesa e vertido para os copos directamente da garrafa, nada de jarros nem jarretas.

A senhora da casa perscrutava Matilde no sentido de se certificar se o serviço se afigurava em conformidade, na outra ponta da mesa, Valdemar concentrava-se no peru, depois de ter vertido vinho no seu copo e ordenado que Matilde fizesse o mesmo no de Afonso. Madalena não bebia vinho e já tinha, previamente, o seu copo de água atestado, a exemplo da mãe. Se Valdemar parecia absorto e focado no jantar, Afonso dava mostras de desconforto, como corpo estranho, desacolhido. Madalena, a seu lado, parecia não dar pela sua presença, servia-se com parcimónia, denotando pressa de largar dali. Madalena estava mesmo diferente, reparou Afonso. Desceu para o jantar de trajes banais, tal como tinha chegado da rua, de calças, blusa, soquetes e ténis. Sentou-se à mesa sem esperar que o namorado lhe puxasse a cadeira. Naquele dia de vitória do Futebol do Porto sobre o Spor Lisboa e Benfica, certamente não se remataria o repasto com um cálice de Porto, vinho fino como referia sempre Valdemar, só para nem lembrar o epíteto. O silêncio adensava-se, dando demasiada importância à ausência dos rapazes que tinham solicitado autorização para comerem no quarto, hambúrgueres e coca-cola, ao som do roque, barulho metálico, ensurdecedor.

Afonso, mentalmente, buscava algo que tornasse notada a sua presença ali, mas embargava-se-lhe a voz. O peru delicioso mal descia, apesar de regar as goelas com o áspero tinto que, naquele dia, até sabia a zurrapa do Carregado.

De repente, Valdemar pôs termo ao monótono ambiente do roçar pratos, copos e talhares, atirando, de chofre:

- Rapaz, já sei o que vais fazer – vais publicar um livro!

Sim, não olheis espantados. Caramba, nem sei porque não me ocorreu isso há mais tempo: vais publicar um livro de teoria política. Até já tem título: Não há Liberdade Política, sem Liberdade Económica.

Afonso, colhido de surpreso, ia para esgar qualquer coisa, em esforço, mas o putativo sogro logo lhe fez o gesto de esperar, sossegado, adiantado:

- Não precisas de te preocupares com o texto, eu trato de tudo, já tenho quem escreva, um professor, um grande professor, uma grade inteligência de direita que não é capaz de falar em público, mas escreve bem, muito bem. Tu só emprestas o nome e ele vai ganhar o que nunca conseguiria de mero assistente.

A mulher sorriu, imaginando o quão de chique seria poder gabar-se nas conversinhas de chá e de salão de cabeleireiro. Que distinto seria falar do seu pretendente a genro, famoso, político e autor de teoria política, um iluminado, uma figura do futuro da Nação. Madalena, boquiaberta, abanou a cabecita em sinal negativo, de espanto, porventura, desolada. Ia para intervir, mas emudeceu, evitando, mais uma vez, enfurecer o pai. Em relação ao namorado, ignorou a sua reacção, na certeza de que aquiesceria, jubilando.

Afonso recuperou do inesperado e balbuciou:

- Assim até me posso apresentar com melhor curriculum nas futuras eleições…

- Cada coisa a seu tempo: primeiro publica-se a obra e depois veremos. – Rematou Valdemar.

À mesa voltou o ambiente denso, Matilde serviu a sobremesa – pudim à sua moda, com ovos caseiros da quinta de Cernache do Bom Jardim. Quando se preparava para voltar à cozinha, Valdemar pediu:

- Matilde, traz lá o maldito vinho fino!

Quanto a ti, Afonso, pensei mandar-te à Suíça, resolver isso do canudo. Em Geneve há quem trate do tema…

- Em direito administrativo? – Interveio Madalena, quebrando o seu mutismo, com um certo jeito de desdém, face a à proposta do pai.

- Qual direito, qual carapuça, isso requer estágios e exigências da ordem dos advogados: licenciatura em ciências políticas, é que é: tiro e queda, limpinho, limpinho. - Rematou o patriarca, sem margem para dúvidas.

- Desculpem se me engano, mas julgo que foi essa licenciatura que o Savimbi lá tirou. – Adiantou Afonso, confortável com a ideia de Valdemar o qual sentenciou:

- Bom, vamos adiantar a ida para a Suíça, até antes do lançamento do livro, faz de contas que é produto das investigações e lucubrações do retiro helvético. A partir desta conversa, o assunto morre aqui, nem uma palavra, das démarches trato eu com quem de direito.

 

Na camioneta do campo das Cebola, em Lisboa, para Oliveira do Hospital, Alzira de bilhetes em punho, depois de acondicionadas as malas e os sacos na bagageira pelo motorista sob observação dela, verificando a abundância de lugares vagos, sentou-se no banco imediatamente atrás do chofer, ordenando a Berta que fosse lá mais para a traseira, pretendia gozar a paisagem a seu belo prazer, sem empecilhos e também queria aproveitar a viagem para sonhar, pôr em ordem algumas ideias a implementar no seu regresso à terra natal.

Já ficava para trás Santa Apolónia, Braço de Prata, Santa Iria, pela estrada do Norte, quase a abeirarem-se da zona de Alhandra, Alzira virou-se para a traseira no sentido de se certificar de Berta. Mirou, mirou, espreitou, voltou a espreitar e não descobria a criada preta. No “machimbombo” iam duas ou três pretas e um preto, entre a brancada, dispersa pelos assentos. Alzira, sobressaltada, imaginando que a sua fiel Berta, menina do mato, se teria raspado, em Lisboa. Levantou-se, andou pelo corredor da camioneta, até ao outro extremo, desequilibrando-se aqui e ali face ao andamento da viatura, com o motorista a olhar pelo espelho, ao mesmo tempo que lhe ordenava o retorno ao seu lugar, em voz alta, receoso que eventualmente fosse interpolado pelas autoridades de trânsito rodoviário. Alzira voltou ao lugar dianteiro, aflita, chamou mesmo Berta dentro da camioneta e os restantes passageiros olharam, alguns resmungaram, incomodados. Alzira não se conformava, falou para o motorista e informou os companheiros de viagem do sucedido, tinha perdido a sua criada. Algumas pessoas sorriam, gozando a aflição de Alzira, outros condoeram-se e um, sarcástico atirou:

- Aqui acabaram-se as mordomias, a senhora tem que pôr as mãozinhas no fogão, os bracinhos no tanque e o corpinho ao manifesto…

A algazarra, a chuva de comentários e a discórdia instauraram-se na viatura pelo que o motorista, incomodado, estacionou logo na primeira zona de paragem junto de uma estação de serviço. Sem sair do autocarro tentou serenar ânimos, apelando à moderação de linguagem e de atitudes. Alzira carpia, culpando-se a si e à maldita revolução que lhe tinha provocado a viuvez e a fuga daquela terra onde fora feliz. Esconjurava os negros, os africanos, os comunistas e os russos, todos nomeados por si causadores de todas as suas desgraças. Sem fim á vista, o motorista abriu a porta traseira da camioneta e solicitou a saída de todos aqueles que, por momentos, quisessem arejar um pouco, antes de se retomar viagem. Alguns passageiros tomaram a oportunidade, outros permaneceram no interior, mas quase todos abandonando a discussão, excepto Alzira, inconsolável, lamentando-se, procurando a comiseração geral, sem, no entanto, o conseguir, pelo contrário, a reprovação agudizava-se à medida que mais balbuciava. O motorista parou o motor, saiu do seu posto de comando e no exterior deu umas passadas, magicando numa solução que pusesse cobro à barafunda. Entretanto, dirigiu-se ao porta-bagens, de chave em riste, e abriu uma das portas: de espanto, encarou com Berta encolhida no meio de malas e sacos de viagem, no porão da viatura. Estupefacto, falou:

- Estás aí, diacho, só comigo, como isto me foi acontecer…

Berta saiu imediatamente de entre a bagagem e passageiros logo rodearam o cenário, admirados, incrédulos e expectantes. Alguém gritou lá para dentro da viatura:

- Apareceu, estava na bagageira!

Alzira saltou cá para fora como uma gazela, como se fosse ainda moça, quase caindo mas reequilibrou-se em solo, esbaforida, quis saber tudo de uma vez, sem tempo para que a menina respondesse à catadupa de interrogações. Por fim, conclui-se que Berta, seguindo exemplo de outros passageiros, tinha saído da camioneta, ainda no Campo das Cebolas, sem conhecimento, nem vislumbre de Alzira e, distraindo-se, quando tentou regressar ao interior do “machimbombo”, o motorista tinha fechado a porta pela qual ela tinha saído. Atrapalhada, Berta enfiou-se na bagageira, no meio da panóplia de volumes. O motorista, como habitualmente, antes de empreender viagem, olhou pelos retrovisores e fechou as portas automáticas da bagageira, encerrando, sem saber, Berta que lá ia caladinha, acocorada, no escuro, como se fosse apenas um saquito de viagem.

Em Meruge Berta não encontrou os espaços abertos, nem a flora que esperava e muito menos a paz almejada. Ali tudo era apertadinho, até os quintais onde se semeavam e plantavam espécies desconhecidas para si, nomeadamente fruteiras e leguminosas, eram áreas delimitadas e pequenas, subdivididas e pertencentes a vizinhos. A comunidade vivia segundos preceitos consuetudinários e individualistas, em contraste com os seus ancestrais africanos, mais atreitos às regras e normas naturais e concernentes com os ciclos da natureza, o habitat, as idiossincrasias e a vida animal. No seu quimbo aprendia-se conhecer as plantas e raízes comestíveis e a resguardar-se de animais mortíferos e selvagens, bem como a sobreviver sob o domínio político e administrativo dos pulas brancos. Em Meruge o mais difícil era lidar com os costumes dos vizinhos, sobretudo preconceitos e tradições. Berta, em Meruge para aonde fosse, era notada e observada como uma coisa invulgar, uma espécie de ave rara. Nos primeiros dias a miudagem aglomerava-se à porta da casa de Alzira só para mirar a miúda preta. Se saísse à rua seguiam-na, sem perder de vista. A garotada corria no seu encalço, berrando: “olha a preta, vamos ver a preta…”. As mulheres idosas comentavam e persignavam-se à sua passagem. Os animais domésticos particularmente os cães e gatos deambulantes receberam-na bem, muito bem, não estabeleciam qualquer diferença, abeiravam-se dela como de outro qualquer, não cheiravam, nem observavam qualquer resquício epidérmico, certamente não contêm base de formação preconceitos rácicos.

Foi à missa domingueira e traduziu-se num alvoroço dos transeuntes e, durante a homilia, ninguém ligou patavina ao discurso do abade, o alvo de todos os olhar e comentários foi Berta, a menina preta, a criada que Alzira tinha trazido de África. Não lhe tocavam, só a devoravam com o olhar perscrutador. Os rapazes e as raparigas autóctones manifestavam entre si curiosidade em saber como seria Berta, a preta do Congo, nas suas partes intimas. Estava certo dia Berta a lavar umas roupas da patroa no lavadouro da aldeia e jovens logo tentaram espreitar as suas coxas de menina, na tentativa de descobrirem ali alguma originalidade rácica, quiçá, aparentada com a de qualquer animal doméstico ou até bravio das serras beirãs. Mamas, Berta não ostentava, apenas uns pequeníssimos mamilos soltos sob as blusitas, nem sutiã pediam, logo isso era uma característica face a outras raparigas, já espigadotes de maminhas arredondadas e atrevidas cujos biquinhos formavam saliências nos trajes de garotas de província, aspirantes a modernas, frescas e excêntricas citadinas.

As mulheres do campo, camponesas contemporâneas da juventude de Alzira consideravam que Berta seria útil na lavoura e nas lides domésticas, menos no que tocasse à confeção de refeições, isso não. Uma preta a partir a broa, a fazer estrugidos, a cortar a salada, a temperar as comidas, a provar a sopa e o conduto de sal e de azeite: credo, abrenuncia. Todavia, nem todos alinhavam pelo mesmo diapasão, os homens miravam-na com outros olhos, os de cobiça, sobretudo o Armando, o Peliça, o Jesus da senhora Arminda, o Alfredo do Rogério, o Zé da Torta e o Rodolfo, homens que tinham regressado da guerra no ultramar, a guerra colonial. Aliás o que se falava ali em Meruge acerca de africanos pretos era o que relatavam esses antigos militares, descrevendo-os como turras ardilosos e concubinas sensuais.

Assim, Berta era ali encarada sob a perspectiva masculina como menina sensual, afrodisíaca, objecto de prazer extravagante, segundo o prisma feminina, uma concorrente desabrida, cativadora de apetites sexuais inigualáveis, fonte de prazeres e peçonha luxuriante. As idosas designavam-na por pecadora, os homens velhotes condescendiam na aceitação da preta do Congo, contra as vertigens das suas velhas companheiras. Por isso, Berta agradava-se da companhia e das graçolas de alguns anciãos, sobretudo do velho Luís da quinta do Vale de Cabra, sempre brincalhão e sorridente desdentado para ela. Berta assemelhava-o a um velho leão já impotente, mas de fisgar libidinoso.

Isso tudo, fruto da chegada a Meruge de uma inesperada rapariga preta, bem preta, nada semelhante aos mestiços que já se iam vendo por Oliveira do Hospital e outras vilas e cidades, até 1974, quase virgens de moradores e visitantes de tez mais morena do que a queimada pela canícula no estio. Foi impacto do primeiro encontro, por ventura, aproximado ao embate do desembarque dos pioneiros brancos com os habitantes em terras de África subsariana.

Contrariamente ao julgado por Berta, a partir da recepção do merugenses no seu torrão natal, as aparentes hostilidades recrudesceram, dando lugar a uma normal convivialidade. Berta passou de objecto raro a jovem preta inclusa. As camponesas solicitavam a sua actividade nas diferentes tarefas, quer campesinas, quer domésticas. Alzira, gradualmente, humanizava-se, ao ponto de fazer Berta sentar-se à sua mesa. Tornaram-se parceiras no amanho das hortas e no tratamento dos animais domésticos, coisa impossível em Carmona onde patroa branca e serviçal negra tinham funções e lugares distintos. A professora da aldeia, a dona Alcina, quis alfabetizá-la. Alzira jubilou e anuiu, autorizando que Berta diariamente fosse a casa de Alcina, depois de terminado o dia lectivo. Melhor acolhimento passou a ter quando a professora Alcina a elogiou tanto na qualidade de aprendiza como no comportamento, educação e humildade. Alzira, acossada por Alcina e pelo José das finanças da repartição de Oliveira, foi a Coimbra com Berta no sentido de obter a sua nacionalidade de cidadã portuguesa. Aí deparou-se com empecilhos, burocracias e imperativos legais. Foi a Lisboa com ela, aproveitado alguns dias para descansar na sua casa da Avenida da Igreja, na ausência do seu filho Afonso que, entretanto, tinha ido para a Suíça a pretexto de concluir aí, numa universidade internacional reconhecida, o grau de licenciado em ciências políticas. Ainda bateu à porta do putativo sogro de Afonso, procurando a sua influência, porém Berta era mesmo considerada cidadã angolana. No novel departamento do corpo diplomático da República de Angola foi recebida e deferido o seu estatuto de cidadã residente estrangeira em Portugal, com o carimbo das autoridades portuguesas competentes. Alzira enraivecia-se só de pensar que Angola se tinha tornado um país independente e reconhecida até pelo governo de Portugal, mas não lhe serviu de nada, regressou a Meruge com Berta na qualidade de cidadã angolana livre e autorizada a residir em território português.

Alzira, em Meruge, não se conformava com o facto das antigas províncias ultramarinas se terem oficialmente tornado países independentes e soberanos e ainda por cima ter sido requerida a formular um contrato de trabalho com Berta. Em Carmona não havia contratos de trabalho, nem obrigações sociais com os empregados. O seu marido apenas respondia perante obrigações morais, nunca contratuais. Teria de estipular um contrato e um ordenado mensal a Berta, a criada que ela arrancara da tragédia de Uíge em guerra e penúria, segundo o seu entender de colona retornada, era uma afronta das autoridades do seu Portugal.

Foi à igreja desabafar com o padre da paróquia, insistindo nas suas boas acções de auxílio e de comiseração para com os pobres e os desvalidos da fortuna: “faz o bem não olhes a quem”. Relatou-lhe enfadonhamente os domingueiros repastos ao padre Alberto. Repetiu vezes sem conta as ofertas que fazia à igreja de Carmona e as obras custeadas pelo seu marido, quer na igreja da paróquia, quer na acção missionária de Carmona. Trouxe à liça o frequente acolhimento dos escuteiros na roça onde o seu marido colocava à disposição comida e alojamento, mas o padre permaneceu quedo e quase mudo, só um ligeiro assentamento de cabeça. Na aldeia praticamente nenhum vizinho dava importância à sua revolta face ao imperativo de oficializar Berta como sua empregada doméstica ou porventura trabalhadora rural, com contrato de trabalho contemplando salário, subsídio de férias e ainda décimo terceiro mês, bem como desconto obrigatório para a segurança social e sugerido seguro cobrindo eventuais acidentes de trabalho.

Alzira apregoava aos quatro ventos, para quem a quisesse ouvir: “Onde é que já se viu, ordenado, férias, dias de descanso e seguro? Que país é este? Isto não é um país, é uma painça! Uma vergonha, uma desgraça! Foi para isso que perdemos as nossas províncias ultramarinas? Nós em Angola é que fizemos andar isto para a frente! Ah meu rico Salazar, ah meu querido Salazar que fazes cá tanta falta… Isto só lá vai com um novo Salazar! Com um não, com dois! Com muitos Salazares, muitos Salazares!”.

Alzira escreveu aos filhos para a África do Sul, dando conta do sucedido face às exigências do Ministério do Trabalho e do Instituto da Segurança Social. Queixou-se ao seu filho primogénito, detentor do património herdado, que a vida estava cada vez mais cara, que não poderia fazer um ordenado à criada, que não poderia pagar qualquer quantia à segurança social e muito menos arcar com seguro de trabalho. Ela só tinha a receita que ele, Zé Maria, enviava mensalmente através dos correios para Oliveira do Hospital. Afonso desde que partira para a Suíça, deixo de dar notícias. Na volta do correio, Zé Maria, lamentava-se das despesas galopantes na África do Sul onde tinha que sobreviver e sustentar as irmãs, mas nunca referia qualquer valor do património herdado. No mês seguinte, ao levantar o seu cheque enviado de Pretória lá vinha um aumentozinho de trezentos e cinquenta escudos e nada mais, nem um comentário.

Berta praticamente deixou de ter obstruções na inclusão social em Meruge. Na sua terra natal, Angola, apenas coexistia segundo o estatuto de serviçal na base da pirâmide social, sempre subjugada, com os deveres todos segundo as vontades dos patrões brancos, sem acesso as espaços partilhados pela elite colonial, ou seja, na sua terra não tinha direitos, mas sim deveres, os deveres que os brancos lhe que quisessem exigir. Em Portugal, no puto, vivia integrada na comunidade de Meruge como um dos demais: ia à escola, trabalhava, comia à mesa e conversava num plano horizontal, como se fosse natural daquela terra e se a sua cor de pele fosse exactamente como a dos outros, excepto a patroa Alzira e dois ou três antigos colonos, por sinal antigos empregados da roça do patrão Silva, em Negage. Contudo, Berta tinha muitas saudades de Angola sobretudo na época do inverno. O frio beirão causava-lhe dificuldades de movimentos físicos e psicológicos, não sabia viver com temperaturas baixas, nem que vestisse meia dúzia de casacos, três calças, duas botas e três pares de meias. Apesar de Alzira, de vez em quando, arranjar uns quiabos, mandioca, papaias, mangas, mamão e uma ou outra iguaria tropical, oriundas do Brasil, Berta tinha saudades da fuba, das suas frutas, do seu peixe seco e, acima de tudo, da sua gente, dos seus, por melhor que os vizinhos a tratassem em Meruge.

António do senhor Alcídio e da dona Felismina do Carregal do Sal, residentes em Meruge, caseiros da quinta do Vale de Cabra, andava a estudar para padre, no seminário de Viseu, depois de ter sido iniciado no seminário maior de Lamego. Já rapazola adiantado nos dogmas teológicos e na retórica romana e seminarista, foi passar as suas férias natalícias em família na quinta do Vale de Cabra, de resto, como era habitual, desde que tinha ingressado no aprendizado clerical. Foi a primeira vez que encarou com uma preta, uma rapariga preta a sério. Em Viseu tinha visto um ou outro mestiço, mas preto, mesmo preto, só os conhecia das fotografias, sobretudo através das crónicas ilustradas das revistas missionárias, com destaque para a revista “Além-Mar” comboniana. De facto, o seminarista António Lopes, natural da vila do Carregal do Sal e, posteriormente, residente na quinta do Vale de Cabra, concelho de Oliveira do Hospital, só tinha um grande ojectivo na vida que era o de ser ordenado sacerdote na terra que o viu nascer e ser colocado, pela diocese, pároco de vila ou aldeia provinciana, de cidade não, tinha horror aos grandes aglomerados, em particular, Porto e Coimbra. Não queria saber das ordens missionárias, nem dos feitos de evangelização além-mar. Para si a terra era plana e a sua futura paróquia o centro do mundo. Pretendia, a exemplo do padre de Tábua, Dimas Santos Carvalho, administrar as equipas de catequistas, as comissões de festa, as homilias diárias, e dos dias santos, crismar, crismar a garotada e confessar, confessar o máximo de paroquianos. De mulheres queria alguma distância, elas perturbavam-no. Junto das raparigas sentia-se diminuído, incapaz de vencer a sua tremenda timidez. Ainda na escola primária, em classes separadas, de género, nunca invadia os recreios das meninas, preferia jogar ao pateiro, à bandeira ou a qualquer outro jogo, desde que fosse só entre rapazes. Algumas meninas marotas topavam-no e seguiam-no com picardias e dichotes para o verem atrapalhado e corado de vergonha. Ele, enrascado, enfiava os olhos no chão e esgueirava-se logo que pudesse. Depois, sozinho, afastado das meninas atrevidas, enervava-se e revoltava-se com a sua incapacidade inata de incomunicabilidade com o sexo feminino. De início adaptou-se relativamente bem às regras seminaristas. Ia preparado para aceitar, sem objecções. Queria cumprir o programa e, finalmente, exercer autonomamente numa paróquia de fiéis humildes como ele e os seus. Acostumou-se às rezas, às privações de liberdade pessoal, aos exercícios de memorização desmedida, enfim, a tudo o que o seu confessor ordenava e fiscalizava. Logo na primeira noite na camarata aprendeu a dormir em camisa de noite, do tipo batina branca até aos tornozelos, deitado de barriga para cima, braços e mãos fora da roupa da cama – nada de mãozinhas a tocar nas partes íntimas, quentinhas entre as entranhas, para que não houvesse tentações de masturbação. Nas noites de insónias aprendeu a rezar, rezar até adormecer, voltar a rezar se acordasse e levantar-se repentinamente ao primeiro toque da chamada matinal. Aprendeu a anuir a todas as emanações superiores e a abster-se de quezílias entre colegas. Na sua mente colocou sem reservas a sua função de noblato à maneira dos frades eremitas beneditinos, franciscanos e capuchos em que todas as tentações sensitivas eram emanações belzebunianas. Se o corpo pedisse descanso, havia que castiga-lo com mais e mais trabalho; se acordasse de erecção fálica, era tomar banho de água gélida; se os seus pensamentos fugissem para quimérica amorosas, mesmo que platónicas, havia que rezar, rezar sem cessar a Nossa Senhora do Rosário de Meruge, se bem que Nossa Senhora, seja lá do que fosse, também o atormentava com aquele ar de estátua fingida de púdica angelical inacabada. De facto, a imagem habitual nos lugares de culto, atribuída a Senhora de Fátima, causava-lhe certa impressão – cabeça inclinada, mãos inexpressivas, corpo sem formas humanas, nem celestes. Até lhe parecia que eram obras escultóricas saídas das olarias ou dos gabinetes antes do términus. O Deus implacável do velho testamento, o ditador impiedoso dos Assírios, dos caldeus, da Babilónia e sobretudo o da Judeia é que o fascinava, pela sua rudeza, voracidade e insensibilidade – esmagava-o tamanho poder e obtusidade. Um Deus maior, maior do que o bispo diocesano e do que o próprio papa de Roma, senhor da cristandade católica apostólica, infalível, omnisciente e discípulo directo do criador e governador do mundo e de todas as coisas teria que ser assim, todo-poderoso, ditador implacável, comandante pertinaz, brutal, sem condescendências, parcimónias, hesitações, nem reconhecimentos dos súbitos, nem piedade dos adversários. Foi assim que interiorizou as lições dos mestres escolásticos e era assim que respeitava as autoridades clericais.

António chegou a Meruge pela estrada do Barreiro onde um comerciante o tinha levado à boleia de Viseu e, posteriormente, o deixou na quinta do Vale de Cabra. Era um antigo conhecido de sua mãe que nuca passava por perto sem a visitar. Em casa, a meio da tarde, estavam Alzira e a sua criada preta do Congo. Ambas ajudavam Felismina no preparativo das iguarias e acepipes para a ceia de Natal. Berta batia farinha com ovos para rabanadas, sonhos, filhós e Alzira fritava com mestria, Felismina cirandava e abraçou efusivamente o filho à chegada deste, cumprimentando o comerciante com afectividade, porventura, demasiada familiaridade que pôs Alzira de sobreaviso. Alzira pelava-se por cusquice e mexericos, se lhe parecesse seria capaz de inventar logo ali o romance adultera, entre o recoveiro e a caseira do Vale de Cabra.

Berta sorriu mostrando a brancura dos dentes e dos olhos de menina mansa, afectiva, candura inocente, mas vivaz no brilho do olhar, introspectivo. António Lopes, o seminarista obstinado, sentiu agrado e paz, muita paz e confiança face à presença inesperada daquela penina preta, tão preta que nem reparou, apenas o brilho daquele olhar de moça, o olfato adocicado e a candura de expressão bastaram para se sentir bem, como nunca se sentira junto de ninguém, nem em lugar nenhum. A mãe reparou e disse:

- É a Berta que está com a dona Alzira, meu filho. Tu não te lembras da senhora Alzira e do Senhor Adelino, ainda eras muito pequenino quando cá estiveram de férias de África.

- Olha são os desígnios do Senhor, meu filho, são as emanações do Senhor pela reminiscência dos pecados: que Deus nos livre e guarde de todo o mal, amém. – Adiantou Alzira para o seminarista.

António Lopes não respondeu, nem arredou pé, nem olhava, nem falavam para ninguém, apenas se deixou ficar na companhia de todos e especialmente de Berta que também não abriu boca, mas transmitiu muito, olhando e sorrindo para o rapaz acabado de regressar a casa dos pais na quinta do Vale de Cabra. Berta agora sabia que um dos comensais para a ceia de Natal e o repasto do dia 25 seria aquele rapazote, que sabia estudante para padre. Na verdade, nem lhe parecia nada de beato, nem santo, nem diabólico, nem pastor das ovelhas da serra, nem artesão da forja, nem cavador das hortas, nem lavrador dos campos de milho. Também não o achou interessante, não a fez estremecer, a exemplo do moço que a tinha salvado dos destroços causados pelos bombardeamentos em Tambuco e a acariciou e beijou na face no momento de despedida em Maquela do Zombo ou daquele rapaz que, no aeroporto de Lisboa, lhe meteu umas moedas em mãos cujo tacto a abanaram como vara verde. Esses ou esse sim, tinha bem gravado na mente. Esses ou esse porque sentia tratar-se do mesmo individuo de que dela se despedira em Maquela do Zombo e a encontrou em Lisboa, no desembarque em Portugal, dando-lhe a si, as moedas que Alzira precisava para chegar à sua casa na Avenida da Igreja. Berta pensava muito nisso, não tinha contado a ninguém, era uma coisa só dela, até porque a considerariam louca se narrasse os episódios e alvitrasse que esse rapaz branco guerrilheiro do MPLA em Angola seria o mesmo que lhe deu as moedas em Lisboa. Era um sentimento e convicção pessoal, não teria que partilhar com ninguém, muito menos em Meruge onde nem sequer podia pronunciar MPLA, nem guerrilheiro. Em Meruge acolheram-na como gente depois do choque inicial, mas teria de pensar e agir em conformidade, de Angola só portugueses bons que tinham sido expulsos pelos turras matumbas e aliados dos comunistas russos e cubanos.

O rapazola filho do senhor Alcídio e da senhora Felismina representava para si porventura comiseração. Persentia no seminarista tristeza, frustração, amargura, insegurança. Berta nunca tinha assistido a sessões de catequese como a professora Alcina recomendava, porém intuía que António não carecia de pregações e sermões, apenas necessitava de amor, estima, compreensão e fé, mas não na do Deus dos altares das igrejas, mas sim, fé em sim e na capacidade humana, no amor fraternal e carnal de alguém que o amasse, não ela que disso não seria capaz. Para ela, Berta, havia um eleito e único e branco, o das matas, colega das duas kwanhamas e surgido inesperadamente no aeroporto de Lisboa, para si, o mesmo e seu anjo da guarda em vida e onírico enviado pelos deuses kiandas das profundezas do mar.

António Lopes como sempre não seria capaz de entabular conversa com uma rapariga, no entanto, isso não se passaria relativamente a Berta. A menina preta do Congo só lhe trazia paz e segurança, nada de intimidações. Aproveitando a momentânea ausência de Felismina e de Alzira, perguntou-lhe de onde era, se gostava de Meruge, do Natal, se iria à missa do galo, se jantaria com eles na quinta do Vale de Cabra. Berta respondeu e omitiu o que lhe pareceu numa voz meiga, de silabas bem batidas, vogais aberta palavras redondas e frases completas. Ele ficou a saber que a menina era do Negage (nunca tinha ouvido falar dessa terra, nem sabia onde ficava, mas não teve coragem de confessar a imperdoável ignorância de seminarista); que não cearia no Vale de Cabra, e talvez fosse à missa do galo.

À noite na grande ceia de Natal, a consoada abençoada com a presença do futuro padre, orgulho e encanto da mãe Felismina e consolo do pai tendo em conta a sua futura reputação na qualidade de progenitor de padre, António comia e tagarelava como nunca o tinha feito. Os irmãos e avós tiveram que ceder o estrelato ao seminarista cuja desenvoltura mais parecia a de um lauto vivão. António perguntava muito por todos e por tudo, sempre no caminho de se acrescentar algo a Alzira retornada. Quis saber quando e como regressou a Meruge, família e tudo o mais, se costumava ir à missa, com quem ia, mas sem pronunciar Berta, embora fosse mesmo esse o foco, o interesse em Alzira. Até que a mãe disse:

- A criada da Alzira, faz tudo e bem, nem parece uma preta, é desenrascada e tudo…

Foi isso, “nem parece uma preta”, que o trouxe à razão, Berta era preta. António perdeu entusiasmo, brilho no olhar, apetite e fechou-se no seu mundo sombrio de trevas e provações. Secundarizou-se na convivialidade, ausentou-se dos assuntos, cobrindo-se com o manto diáfano da insignificância.

Aproximava-se a hora da missa do galo e mantinha a hesitação de alegar desculpa de modo a faltar à homilia, mas logo concluiu que seria imperdoável faltar a um acontecimento daquela natureza na qualidade de pretendente a sacerdote. Certamente seria intimado pelo padre João à função de acolito nessa noite. Mas Berta?

Afinal era preta, quiçá, um demónio em figura de rapariga; um mafarrico encarnado para o tirar das boas graças do Senhor; um ente sobre o qual o Senhor o poria à prova; um engodo, a serpente negra metaforizada em maçã do paraíso; as aberrações dos infernos puxando-o para as trevas cavernosas da luxúria, do desengano e do pecado sem reminiscência. E logo em figura de mulher preta, sinónimo de todos os infiéis gentios, pagãos, peçonhas amaldiçoadas na caldeira do sexo e da devassidão desmedida, da perdição amaldiçoada pela virgem santa, mãe de Jesus o qual se sacrificou por amor ao Pai.

Foi à igreja, repescado logo para acólito com honras de servo eleito pelo Senhor. Contemplado com indumentária restrita àqueles que se despojam da matéria em prol da palavra do Divino. Alcídio encheu o peito com ares de miragem superior, olhando de soslaio para os pacóvios companheiros devotos. Felismina não cabia em si, só tinha ganas de gritar para a plateia: “olhem, vêm? Aquele é o meu filho! O filho do meu ventre, o filho que carreguei para escolhido do Senhor! Deus é o meu pastor e eis aqui o sangue do meu sangue em honra do Pastor!”.

António do cimo do altar, ladeando o padre consagrado e ungido com os santos óleos adstritos aos escolhidos e mandatados para proferir a palavra e guiar o rebanho do Senhor, reparou na única ovelha negra, Berta. Ela era a única preta entre os fiéis católicos naquela noite de Natal. Até podia ser um dos reis magos da boa nova, anunciado o nascimento do Menino.

De facto, concentrou-se na sua imagem de menina dos gentios, na penumbra do espaço sagrado e não vislumbrou mais do que uma criatura, belíssima, doce e ternurenta e pensou, mentalmente, pró inferno com os maus presságio, ela é divina e bela como nenhuma outra Nossa Senhora, ainda mais inebriante do que a figura de Nossa Senhora do Ó, exposta no Museu Nacional de Lamego.

Logo que terminou a missa do galo, António correu para casa, fugiu a eventuais encontros familiares e ocasionais, frustrando os progenitores que tanto se queriam mostrar com o filho a seu lado. Em casa esgueirou-se para o seu quarto, enfiando-se sob os lençóis e os pesados cobertores de papa. Não rezou, nem deitou os braços fora da roupa. Pela primeira vez desde que ingressara no seminário não hesitou em enroscar-se de mãos nas virilhas, no peito e em todo o seu corpo, sentindo-se homem, humano e carnal. Naquela noite não havia lugar a rezas ao Senhor, nem a qualquer Nossa Senhora, veio-lhe à memória a trova camoniana e recitou, reparando que o seu exaustivo exercício de memorização sortira efeito, pois o seu cérbero mais parecia um computador, uma caixa registadora ou um disco rígido, tal a facilidade com que as palavras saíam em catadupa: “Aquela cativa,/que me tem cativo,/porque nela vivo/já não quer que viva./Eu nunca vi rosa/em suaves molhos,/que para meus olhos/fosse mais fermosa. Nem no campo flores,/nem no céu estrelas/me parecem belas/como os meus amores. Rosto singular,/olhos sossegados,/pretos e cansados,/mas não de matar. Úa graça viva,/que neles lhe mora./Pretos os cabelos,/onde o povo vão/perde opinião/que os louros são belos. Pretidão de amor,/tão doce a figura,/que a neve lhe jura/que trocara a cor./Leda mansidão/que o siso acompanha;/bem parece estranha,/mas bárbara não. Presença serena/que a tormenta amansa;/nela, enfim, descansa/toda a minha pena./Esta é a cativa/que me tem cativo;/e, pois nela vivo,/é força que viva.

António não se levantou no dia seguinte, nem nos outros adiante, ficou de cama, assolado de paixão. Não confessava a causa das maleitas, nem manifestava vontade de as espantar. Sorvia umas canjas e cobria o rosto com as roupas da cama. Veio o dia do retorno ao seminário e não quis retornar. Foi visto pelo médico, pelo padre, pelo curandeiro, mas só a vidente afiançou:

- Deixem o moço que tem males de amores, arde de paixão, sofre o coitado…

O tio materno antes de regressar à capital, depois de uns dias de férias que tinham servido para matar saudades e abraçar os familiares e amigos de infância, foi ver o sobrinho e disse à irmã Felismina:

- Olha minha irmã, amanhã vou de regresso a Lisboa. Estou contente por ter estado convosco e especialmente ter ajudado na matança do porco. Ai que tão bem me souberam os teus torresmos. Mas quero dizer-te uma coisa, não me leves a mal.

- Diz, diz lá homem, até parece que já não somos irmãos com tantos rodeios…

- Então aí vai: o teu António já não sai padre. Percebi isso hoje. Manda-mo lá para Lisboa que faço dele um homem na mercearia…

 

Felismina amuou com a interjeição do irmão, mas bem sabia quão certo ele estava. Durante uma semana não desabafou com o marido, esperançada ainda na reviravolta da atitude do filho, irredutível em relação ao seminário. Chocou cinco dias de cama e, abatido, levantou-se, enfrentou a mãe com firmeza:

- Mãe, acabou-se, não voltarei ao seminário, Deus não me predestinou ao sacerdócio.

- Então que vais fazer da tua vida, meu filho? Queres ir prá lavoura onde nunca andaste, tão parco de forças?

- Posso ser pastor ou qualquer outra coisa, minha mãe, mas padre não serei!

Capítulo encerrado, Alcídio e Felismina não realizariam o sonho de ver um dos seus filhos padre. Se António tinha desistido, o Alexandre era um maltês e o Luís indomável e irascível juvenil. A Cristiana só tinha na cabeça namorados e mais rapazes e mais rapazes, a Laurentina parece que vivia o sexo desde nascença, assim, não haveria lugar, nem a padre, nem monges, nem freiras na família dos caseiros do Vale de Cabra.

A solução estava tomada e definitiva – António seria enviado ao tio onde teria de trabalhar de marçano e fazer-se homem, para saber o que custava a luta pela sobrevivência. Se quisesse ser alguém na vida que alombasse, já que desperdiçava a vida de senhor padre, costas direitas e veneração de paroquianos, mesa farta e outras mordomias que bem sabiam de facto, mas inarráveis.

O casal acatou a decisão do filho, fazendo fé nas suas alegações da falta de vocação. Nunca imaginando que na base dessa desistência pairava a paixão avassaladora de António por Berta. A preta do Congo se fosse considerada responsável pelo fracasso do seminarista na caminhada clerical, seria até esquartejada como se fazia às reses no Vale de Cabra. A menina trazida de Angola como uma coisa, um animal de companhia ou um adorno qualquer, involuntariamente, tinha salvado o infeliz António do calvário. Sim, da cruz que o seminarista carregava. Por muito que se aplicasse na matéria leccionada, por melhores notas que conseguisse nas provas do latim, do português da retórica teológica, mal suportava o assédio do seu confessor.

De facto, o seu tutor no seminário começando por aproximações aparentemente meigas, carinhosas, trepava a traços largos para uma relação de violência homossexual. António sentia-se incomodado, constrangido, pressionado, violado no imo da sua alma. O confessor massacrava-o com perguntas sobre as suas apetências íntimas, as suas reações à sua presença, à de rapazes, à de raparigas, aos sonhos e sobretudo às caricias do confessor nas pernas, no peito, no traseiro, no ventre e nos órgãos sexuais do noblato.

António procurava todos os meios para fugir do tutor e este, tudo fazia para se acercar dele. Um certo dia o confessor conseguiu levá-lo à sua cela a pretexto de lhe ensinar algo, mas ali presenteou-o com bolos secos, licor de romã e carícias, às quais António conseguiu escapar, fugindo, desabrido em soluços. De outra vez, na própria camarata, o tutor, por trás do aluno, tentou pentear-lhe o cabelo, passeando-lhe as mãos pela nuca, ao mesmo tempo que lhe encostava o seu volumoso órgão sexual arrebitado debaixo da batina contra o ânus do jovem, aflito que logo correu desabrido camarata fora, só parando em pleno claustro, desesperado sem saber o que fazer e para aonde correr mais. O confessor/tutor, dessa vez, aproximou-se de António, secretamente, e ameaçou-o se o denunciasse sofreria consequências severas. António por algum tempo teve sossego, parecia que o tutor pedófilo homossexual teria desistido de o apoquentar. Contudo, nas vésperas da sua partida para as curtas férias natalícias para Vale de Cabra, o tutor voltou à carga. Quis impedi-lo de usufruir do período de férias, valendo-lhe o facto do próprio confessor se ter ausentado por ordens superiores cujo motivo António desconhecia. António, desesperado, conjecturava no suicídio, só ainda não tinha tentado por mera falta de meios para o executar. Por isso, salvou-se das garras do pedófilo clérigo e caminhava desta vez determinado para uma nova etapa da sua vida, ou seja, a de marçano, empregado do tio no qual confiava e sabia amigo, heterossexual, casado e pai de filhos. Berta era a sua musa, o seu amor supremo, platónico e sensitivo.

No dia aprazado tomou o seu lugar na camioneta de passageiros que o levaria a Coimbra e, daqui, outra o transportaria à capital pela estrada nacional através dos campos da beira Litoral, da Estremadura e das lezírias ribatejanas, larguezas e prados que António nunca tinha visto, mas sabia existirem por tanto estudar geografia, orografia e História de Portugal, versão e visão do catolicismo ultramontano e salazarista. A família despediu-se dele em Vale de Cabra onde um táxi o foi buscar na incumbência de o deixar na estação de camionagem de Seia. Em conformidade com o combinado, antecipadamente, o taxista passou por Meruge, estacionando à porta de Alzira, a retornada, apitou e Berta apareceu com uma caixa de papelão em mãos. O motorista logo fez sinal para que Berta a colocasse na mala do carro, mas, entretanto, António abriu a porta do seu lado e Berta, pousando-lhe a pequena caixa no regasse, de sorriso, pequena covinha na face e ligeiras rugas de expressão na testa, disse numa voz mansa, suave, palavras redondas, prenuncia característica de angolano, de vogais aberta:

- É para levar para casa do seu tio, em Lisboa, a senhora júlia lá irá buscar. Boa viagem, adeus, obrigada.

António mais uma vez embasbacado, enrascado, sem pronta resposta, emocionado, embebecido e atrapalhado face à presença de Berta que até lhe roçou, naturalmente, as mãozinhas de menina preta nas suas pernas ao largar aí a encomenda, limitou-se a seguir com o olhar a garota que voltou costas, graciosa. António mirou-lhe amorosamente a elegância da figura e nos trejeitos. Adicionou à memória as expressões delicadas e simples de moça, emudecendo ao lado do senhor taxista Jerónimo que bem quis conversa, mas sem correspondência do cliente até Seia onde se despediu com um triste e quase imperceptível:

- Obrigado, senhor Jerónimo, Deus lhe pague.

- Adeus, rapaz, o teu pai já me pagou, se estivesse à espera dos trocos divinos, já tinha morrido de fome…

António teve sorte, o seu bilhete marcado, dava-lhe acesso a ampla miragem campos-fora. Encostou a nunca à cadeira, rodando para a direita, viu paisagens enquanto quis, depois, fechou os olhos, sacando da memória e debitou, mentalmente: “Se de saudade/Morrerei ou não,/Meus olhos dirão/De mim a verdade,/Por eles me atrevo/Alcançar as águas/Que nesta alma levo.

 As águas em vão/me fazem chorar,/Se elas são do mar/Estas de amor são./Por elas relevo/Todas minhas mágoas;/que, se força de águas/Me leva, eu as levo.

Todas me entristecem,/Todas são salgadas;/Porém as choradas/Doces me parecem./Correi, doces águas,/Que, se em vós me enlevo,/Não doem as mágoas/Que no peito levo.”

Madalena iam recebendo umas cartas, uns postais de Afonso que, das terras helvéticas, lhe prometia fidelidade e prosperidade. Ela às vezes dispensava-lhe uma olhadela, porém não respondia. Lá, tempos a tempos, dava-se ao trabalho de lhe enviar um postalzito, só para descargo de consciência e para evitar eventuais intermediações paternas.

Zé Maria informou Alzira, telegraficamente, que chegaria em breve a Meruge. Alvoroçou-se a retornada. Escreveu logo ao filho e às filhas uma carta individualizada para cada. Logo na manhã seguinte, dia de mercado em Seia, tomou lugar na carreira de Meruge para referida vila. Na carreira ocupou, como habitualmente, o assento imediatamente atrás do motorista. Escanchou as pernas no sentido de evitar companhia no banco de dois lugares. Berta acompanhava a patroa com um saco de compras ao tiracolo, mas, entrando atrás de Alzira, vendo uma garota conhecida em Meruge, foi para junto dela. Assim que chegaram a Seia, a retornada dirigiu-se à estação dos correios onde comprou selos e enviou as três cartas aos filhos, na África do Sul. Berta seguia a patroa como cachorro habituado ao dono, sem o perder de vista, à distância de dez a quinze metros. A branca entrou e saiu da estação dos correios de Portugal e a preta aguardou-a cá fora. Avançou uns passos, voltou-se para a criada e resmungou:

- Anda, mexe-te! Que estás aí a fazer especada?

Primeiro a retornada deu uma volta completa pelos feirantes e lojas de alvenaria, mirando e consultando preços de vários artigos, depois, parou, sentou-se num banco granítico, enfiou a mão direita no sutiã da mama esquerda e retirou umas notas dobradas. Contou-as, discretamente, levantou-se e retornou com as notas à mama canhota. Berta continuava em pé, ora contemplando a patroa, ora deitando vistas pelos feirantes e transeuntes. Alzira suspirou, de leve e ordenou à criada:

- Ficas aqui à minha espera que eu tenho que ir ao banco. Não saias daqui, ouviste?

- Sim patroa, fico à espera.

Já lá ia mais à frente, lembrou-se de qualquer detalhe e volto atrás, acenando a Berta para ir ao seu encontro.

- Rapariga, rapariga, chega aqui! Olha uma coisa, sabes onde fica o talho do Justino?

- Sei, sim, senhora!

- Então olha lá o que te mando, vai lá põe-te na fila e guarda a minha vez. Vou lá ter, quero chegar e ser logo atendida…

- Senhora, e se demorar que faço à sua vez, deixo passar à frente até a senhora chegar?

- Isso mesmo, vejo que estás menos matumba…

Alzira foi à feira abastecer-se, salvaguardando qualquer surpresa, ou seja, não queria que o filho aportasse em Meruge e não dispusesse de mantimentos em quantidade e de qualidade. Sabia que Zé Maria era exigente e alarve na carne grelhada, sôfrego na cerveja.

Claro que se lamentaria com a carestia de vida em Portugal. Tudo faria para apanhar mais alguns rendimentos, até porque ela era a herdeira-mor, a cabeça de casal, apesar do falecido marido ter só confiança no filho Zé Maria, a quem em vida tratou de dar acesso a todo o património. Não mostraria a sua conta bancária na caixa de Oliveira, nem lhe faria resenha dos gastos e aforros, só se lamentaria, dos preços, da saúde e de necessidades. Claro que não lhe faria referência aos trezentos e cinquenta escudos do tal aumentozinho recente. Faria de contas que se tratava de gastos com a criada, da empregada como a queriam a designar em Portugal. Nunca o filho saberia que aqueles trezentos e cinquenta escudos mensais iam directamenta para uma pequena conta de aforro que, entretanto, abrira num banco privado concorrente.

Para Alzira, Berta não tinha que ver a cor, nem sentir o cheiro do dinheiro, como dizia o seu marido em Carmona. O seu Adelino não pagava salários, nem gorjetas, nem qualquer benesse em notas de banco. Era um patrão experiente, batido no tratamento da pretalhada. Tudo o que entendesse distribuir ou partilhar fá-lo-ia em géneros. Para tal tinha a cantina onde os trabalhadores e não trabalhadores, os criados e não criados dispunham de oferta considerada adequada e bastante face às necessidades básicas de cada um e de cada família autóctone.

Os que trabalhassem para ele dispunham de um determinado montante em géneros: fuba, óleo, arroz, farinha, cerveja (cuca e nocal), vinho (bangassumo e vinul), peixe -seco, entremeada salgada, roupa de fardo (proveniente das obras de caridade estrangeiras), tabaco (negritas a avulso) calçado e panos garridos. Outras necessidades esporádicas fariam o pedido e ele aquilataria do fornecimento. O lojista, gestor e empregado branco de confiança, pula de preferência oriundo da região do patrão, faria a entrega dos artigos e registaria, distribuindo por crédito mensal atribuído, de modo a que os utentes nunca ficassem em dívida de maneira a evitar calotes e eventuais prejuízos para o dono da roça. Se trabalhassem para outro patrão, esse mesmo patrão estipularia os créditos e procederia aos devidos pagamentos. Portanto, não havia notas nas mãos de serviçais. Para malteses, desvalidos, velhos e outros desgraçados e vagabundos lá estava Alzira no seu papel de caridosa, distribuindo umas esmolas: “faz o bem, não olhes a quem”. Na doença e nos acidentes de trabalho o afectado que recorresse ao soba, ao feiticeiro, ao curandeiro e, por vezes, ao posto médico público onde haveria alguns remédios e serviços de primeiros socorros. Já quanto ao ensino, o patrão da roça, sintonizando-se com as directrizes coloniais de Lisboa, secundadas pelas autoridades coloniais de Luanda, tinha iniciado uma escolinha de mulemba.

Tratava-se de parcerias com a igreja missionária que ministrava o ensino do saber ler e escrever a algumas crianças indígenas à sombra das árvores ou num qualquer anexo de alvenaria ou de adobe.

Berta nunca chegou a frequentar a escolinha de mulemba, mas foi bafejada com o sortilégio de ter tido a professora Alcina de Meruge, cumprindo essa missão, se bem que já em tempos descolonizados e numa aldeia portuguesa a caminho da desertificação demográfica, por força da acentuada emigração das populações em idade fértil. Uma emigração dos aldeãos para países europeus e cidades litorais do continente portugueses, visto já não haver províncias ultramarinas e as ilhas insulares nada absorver dessa matéria.

Nas últimas décadas de colonização (a partir de 1961), as autoridades tinham concluído que a industrialização, a modernização das empresas nos territórios colonizados só seria possível manter e desenvolver com gente de origem local e escolarizada. A própria administração colonial necessitava de pretos na qualidade de assimilados. Os mulatos não eram bastantes e aos pretos analfabetos não podiam inculcar a doutrina e os preceitos da cultura católica lusitana. Era preciso fazer circular livrinhos, panfletos, jornais, revistas e outras formas de catequizar através de textos escritos em português. Também a escrita constituía a grande arma de unificação face à existência das línguas autóctones. Havia, pois, o imperativo de assimilar os povos indígenas, por mais que isso custasse às finanças administrativas e corresse o perigo de pôr as populações a pensar e a desenvolver as mentes, forçadas a aceitar a sua condição de subordinação.

Berta em Meruge mal conhecia a cor e pouco cheirava o dinheiro, mas já tinha bilhete de identidade de cidadã angolana (sem alusão à cor da pele, raça nem etnia) e autorização de permanência em território português. Bem sabia que em Angola do tempo dos seus pais os que tinham cartão de assimilado acediam a muitas coisas as quais aos não assimilados estavam completamente vedadas. Em Meruge não sentia o peso do racismo exacerbado, mas tinha saudades e continuava um indivíduo em ambiente estranho, em terra estrangeira, muito diversa dos seus hábitos e costumes. Apesar da assombrosa paixão de António da qual Berta não tinha mais do que uma certa desconfiança intuitiva, ela, na verdade uma menina solitária. Por mais graciosa que se afigurasse aos olhos dos rapazes brancos, nenhum ousava namorá-la, mais por receios da rejeição de terceiros do que por desagrado ou preconceito rácico do próprio. Se aquela pretinha do Congo ostentasse epiderme menos escura e cabelos menos encarapinhados, eventualmente seria melhor acolhida no seio de qualquer família beirã, pejada de ideias feitas e vulnerável à maledicência de vizinhos. Berta, inteligente e observadora, bem sabia que numa cidade de média ou de grande dimensão, mesmo no Portugal traumatizado com o regresso dos retornados, passaria praticamente incólume entre a multidão. Não tinha dúvida que poderia passear em Lisboa sem que alguém incomodasse. Quanto à integração no mundo laboral, isso seria mais difícil, porque tinha reparado nas catanhós cabo-verdianas cuja função se cingia ao mercado dos serviços de limpeza. Depois, no seu íntimo secreto, residia a esperança de reencontrar o moço do aeroporto que lhe tinha enfiado as moedas nas suas mãos como carícias. Para ela tratava-se do mesmo rapaz da guerrilha, no Uíge.

Alzira teve uma visita inesperada que mudou a sua vida. O seu plano de voltar à terra que a viu nascer e aí regatar os modos e o ritmo dos seus ascendentes deixou de fazer sentido com regresso do emigrante Benjamim Floriano Antunes da Silveira. Floriano, como era tratado na terra, tinha sido obsessivamente apaixonado por Alzira. Contudo ela rejeitou-o, ele naquela época era pobre, filho de pai cavador que nem conseguia alimentar a sua prol que mendigavam e rebuscava sustento. Na primeira janela que se abriu para a emigração clandestina, após o final da segunda guerra na Europa, Floriano esgueirou-se para França. Durante anos em Meruge não se soube de Benjamim Floriano. Era analfabeto, filho de analfabetos, nunca escreveu, até que um emigrante de Seia deu a notícia de que o Benjamim estava na Alemanha e bem, muito bem mesmo. Tinha casado com uma moldava e até já era patrão de “batiman” em França e construtor de pré-fabricados na Alemanha e na Suíça. A vida dá voltas e reviravoltas, Benjamim teve uma filha com Rominieva Procova. A menina cresceu, licenciou-se, saiu de casa, tornou-se quadro qualificado na RFA e militante do partido conservador alemão. Rominieva trocou-o por outro e Benjamim regressou a Meruge onde reencontro Alzira, a viúva retornada. A retornada não tinha que rejeitar Floriano porque ele o que mais tinha era dinheiro, tanto que lhe proporcionaria uma vida como nunca tinha tido, mesmo que ngana pula em roça de café, algodão e de dona de cabeças de gado incontáveis. Até o prazer sexual recuperou ao fazer amor com Benjamim que a presenteava com belíssimos passeios de Mercedes Benz, dormidas em hotéis de quatro e cinco estrelas, colchões ortopédicos, lençóis de seda, mata-bichos fartos e requintados, almoços e jantares de categoria. Alzira já não precisava de criada preta, nem ajuda nas lides do campo, Benjamim representava a sua verdadeira independência, o virar de página. Enterrava assim a sua faceta de viúva retornada que sobrevivia às expensas dos filhos usurpadores dos bens que a ela pertenciam na qualidade de mãe e cabeça de casal. Berta teria que ser despachada, eis a questão.

 Zé Maria surgiu em Meruge relatou à mãe episódio da estadia na África do Sul, a seu jeito. Acusou o cunhado Delfim de ter usurpado dinheiro e pedras preciosas que Adelino Silva tinha transferido de Luanda para Pretória. Acusou as irmãs de coniventes passivas e alegou que, com o proveito da usura, geriam um complexo turístico próprio no Chipre Ocidental. Informou a mãe de que, entretanto, residia em Lisboa, dirigindo um negócio imobiliário e em parceria com o irmão Afonso tinha fundado um escritório de importação e exportação vocacionado para o mercado dos novos países de expressão portuguesa.

Alzira, com naturalidade, de certo modo alívio, deu-se por satisfeita, pediu a Zé Maria:

- Filho, queres levar a rapariga contigo lá para Lisboa? Já não preciso dela…

Zé Maria mirou, de soslaio, Berta. Quedou-se na fixação dos membros inferiores e na esbelta figura de moça crescida, mulher feita, apenas as maminhas se mantinham irrelevantes.

- Se quiser, levo-a comigo. Ao menos sempre fico com alguma lembrança de Carmona. Queres ir para Lisboa, miúda?

- Sim, menino… - Respondeu Berta, interessada na proposta, mas preocupada com o olhar concupiscente, libidinoso de Zé Maria. De repente lhe pareceu o velho fazendeiro Silva salivado, indecoroso, macho cobridor das fémeas negras no Negage.

Berta ganhou uma das maletas de Alzira para levar os seus parcos haveres. A patroa ao lado de Benjamim não necessitava de maletas usadas, nem da criada preta que os serviços sociais de imigração exigiam integrar no mundo do trabalho com contrato legal. A preta do Congo foi despachada para Lisboa, ou seja, foi entregue a Zé Maria, sem direito a estorno.

Zé Maria, o primogénito de Adelino Silva e de Alzira Amado, cidadão português nado e criado no Negage, batido na boa-vida de Luanda, formado em negócios de enriquecimento rápido e obscuro na África do Sul segregacionista, despediu-se da mãe; abriu a porta-bagagem do seu BMW, fazendo sinal para que Berta lá colocasse a maleta ao lado do seu saco de viagem. Depois de uma olhadela em redor, fez um ligeiro sinal de despedida à progenitora e um ar de desprezo a Benjamim Floriano. Entrou no carro com a chave de ignição em riste, acionou o motor que roncou acelerado e apressou a menina do Uíge, entretanto, alvo de despedidas por parte de senhoras e jovens Merugenses.

Berta acomodada no banco ao lado do condutor que fumava, acelerava com pés de chumbo e mirava de soslaio as pernas dela. A sua nova criada ia ali de saia curta, rodada de um castanho mais para o avermelhado, blusinha branca e casaquito laranja, de malha vã, ponteada a cruzamentos largos. Nos pés calçava uns sapatitos do tipo alpercata, oferecidos por Benjamim no mercado de Seia. Ambos calados e Berta sem ganas de perguntar seja lá o que fosse ao seu antigo/novo patrão. Olhava pelo vidro as paisagens da região a qual aprendeu a apreciar. Aproveitava para passar em revista a sua estadia em Meruge, as pessoas, a forma como tinha sido recebida e a evolução do processo até àquele momento em que partia convicta que em definitivo. Gostou da forma afectuosa de alguns na despedida, em contraponto com a inóspita recepção a quando da sua chegada. Lembrou-se de António, o seminarista que também tinha migrado para a capital, triste, enigmático, do qual nunca tinha tido notícias. Imaginou-se em Lisboa, cidade da qual tinha uma ideia positiva, tendo em conta a diversidade cultural, mesmo que proliferassem catanhós e nganas do género da Júlia da Avenida da Igreja. Assolou-a a ideia de perguntar a Zé Maria se iam residir na casa da mãe e do menino Afonso, mas desistiu, permanecendo no seu mundo de mambos. Reparou que ele, repetitivamente, ferrava os olhos nas pernas dela. Incomodou-se a menina quicongo, esticando, quanto pôde, a sua sainha com ambas as mãos, repesa de não ter antes vestido umas calças, em Meruge, antes de sair da casa da sua patroa.

Na verdade, ao lado do menino Zé Maria, feito homem parecendo-lhe ter envelhecido muito desde o tempo em que ele tinha estado de férias no Negage, sentiu-se traída, por Alzira. Então a patroa que a arrastou da roça, não a largou no Huambo, atrelou-a a si no avião, nas ruas de Lisboa, pô-la a dormir na arrecadação da sua casa da Avenida da Igreja, puxou-a para a sua aldeia natal, Meruge, mostrou-a aos seus conterrâneos, emparceirou-a nas lides do campo, sentou-a à sua mesa, franqueou-lhe uma cama sob o mesmo tecto e, de repente, trocou-a por Benjamim, sem mais nem menos. Ali estava ela sentada no carro veloz de Zé Maria, um homem praticamente desconhecido, um pula daqueles que não inspiram confiança. À medida que o BMW a distanciava de Meruge, mais apreensão lhe causava a inesperada separação de Alzira. Fazia-lhe espécie ter sido descartada como um objecto ainda a usar. A patroa branca nunca dera mostras de abrir mão da sua companhia até Benjamim a resgatar de um amor de tempos idos. Em Meruge empenharam-se para que se tornasse cidadã portuguesa. Alzira bateu a imensas portas, levou-a aos departamentos oficiais. Quando compreendeu a impossibilidade de fazer da criada cidadã luso-angolana, avançou mesmo para o processo de legalização de imigrante angolana residente em Portugal, apesar da renitência em encarar Angola outra coisa que não fosse uma mera província ultramarina, como tinha aprendido na instrução primária e um paraíso de preguiça e boa-vida como no Uíge tinha experienciado.

Em plena autoestrada Zé Maria começou por espreitar as bermas e disse:

- Tenho ideia que havia por aqui um posto de reabastecimento…

Berta não respondeu, nem era suposto fazê-lo. Continuou a acelerar e o ponteiro do mostrador da velocidade a beijar o traço do limite superior. A menina ia com certo receio, verificando que o patrão conduzia a uma marcha estonteante que lhe parecia insegura. Ora guinava para a esquerda, ora guinava para a direita, sem pejo em ultrapassar camiões, camionetas, carros e carripanas. Sempre na frente numa correria louca, desabrida, até que o endiabrado condutor fez pisca-pisca para a direita, abrandou demasiado e quase derrapou para uma saída. As rodas do automóvel rodaram sobre cascalho e estacaram mais à frente. Não havia ali nenhum posto de abastecimento de combustível, nem nenhum café restaurante de beira da estrada. Porém, mais adiante, existia um pequeno edifício de alvenaria de duas portas onde Berta, graças aos ensinamentos da professora Alcina de Meruge, pôde ler perfeitamente - Cavalheiros (ao lado um bonequinho de figura com calças), na outra porta, ao lado – Senhoras (bonequinho desenhado de saias).

Zé Maria saiu do carro, deu dois passos na direcção dos sanitários públicos, já com as mãos na braguilha, virando ligeiramente a cabeça para trás, perguntou:

- Miúda, não queres mijar?

Berta permaneceu queda e muda, apenas emitiu baixo um ligeiro muxoxo (estalido de língua), desagradada com a atitude e a pergunta brejeira, indelicada, obscena. Zé Maria postou-se logo ali a urinar com o líquido expelido a passar-lhe por baixo do pé direito como um riacho, sob a ponte entre a sola e o salto do sapato. Ela, sem querer, ainda lhe viu o gesto grotesco de sacudir o pénis com a sua própria mão, no regresso ao BMW, só junto da porta é que terminou de correr o fecho ecler das calças de sarja, cinzentas. Ao volante, antes de retomar a autoestrada ejectou a fita magnética do suporte que, no gravador, transmitia sonoramente alto música sul-africana em língua inglesa. Ligou o rádio numa estação de emissora de anúncios e noticiários breves, destacando movimentações financeiras e cotações nas principais bolsas de mercados nacionais e internacionais.

Mesmo a entrar na grelha de pagamento de portagem manual, disse, em tom meramente informativo:

- Cá estamos em Lisboa: sê bem-vinda à tua nova cidade. Se te portares bem, como eu quero, vais por cá ficar uns tempinhos, uns tempinhos, mas é como eu mandar, à minha maneira…

Entregou um talão às mãos de uma moça portageira, mulata, graciosa que lhe soletrou um valor numa voz mansa, suave, aveludada. Zé Maria entregou a soma exacta, engatou o motor em primeira e arrancou alvoroçado, fazendo chiar os travões, para, logo ali à frente, meter uma segunda e, quase de simultâneo, uma terceira mudança de velocidade, ao mesmo tempo que grunhia entre dentes:

- Puta de merda da cabrita, já arranjou tachinho no Estado, havia de ser comigo, dava-lhe o emprego, ai se dava: ia pra alterne render pra mim… - Falou assim, como se monologasse, como se Berta não fosse ali sentada no banco do seu BMW, a seu lado.

Eis na Avenida do Aeroporto, ao bordejar Campo Grande, Zé Maria, reduzindo velocidade, piscou com o BMW para a esquerda, foi a ponto morto, parou no semáforo, perante o sinal vermelho, inusitadamente disse:

- Vermelho é para parar, não é?

 E tu, não andas com o chico, pois não?

Vê lá que eu não posso com o encarnado. Nem comunas, nem lampiões, nem menstruações… Para mim é o verde, o verde do Sporting. Ali à direita é o Estádio de José Alvalade, do Sporting, o meu clube!

Berta ia para emitir novo muxuxo, mas cerrou os dentes e nada disse. Ela conhecia aquele lugar, aquela ponte, a Avenida das Linhas de Torres, o Estádio José Alvalade, o Jardim do Campo Grande e muito mais daquela zona da cidade. Assim que acendeu luz verde Zé Maria deixou descair o carro, afrouxando a patorra quarenta e quatro do travão, suavemente, meteu uma primeira, depois uma segunda mudança. Guinou então à esquerda, moderadamente, como se fosse um condutor ajuizado e seguiu em frente, rente à portaria do Museu da Cidade, mais à frente, quase a chegar ao compus universitário da Universidade de Lisboa, hesitou na marcha, mas seguiu em frente, depois de ultrapassar o edifício da Biblioteca Nacional, recolhido no amplo espaço, voltou à esquerda, subindo a Avenida Estados Unidos da América. Ia quase a alcançar a Avenida de Roma desabafou:

- Foda-se, já me enganei outra vez… Queria tomar a Avenida do Brasil e não consegui.

- Pode virar aqui à esquerda… - Opinou Berta, serenamente.

- Xi, estás muito esperta, demasiado esperta para o meu gosto, por esta não esperava, sim senhor, os meus parabéns. E eu a pensar que levava aqui uma matumbeca de Carmona… - Foi a resposta dele, pasmado com o sentido de orientação da menina preta do Congo em plenas ruas da cidade de Lisboa.

Deixou a Avenida de Roma, pela faixa direita da Avenida da Igreja, até à Igreja de São João de Brito, ainda entrou, mas saiu de uma transversal, sem encontrar lugar de estacionamento. Novamente à Avenida de Roma, contornando a estátua de Santo António, em busca de sítio onde pudesse estacionar o seu BMW. Porém numa artéria assim tão movimentada e tão pejada de transeuntes, lojas de comércio e de serviços, só conseguiu parar em transgressão, frente ao edifício dos correios de Portugal, lugar reservado. Desligou o motor, puxou o travão de mão, fechou o vidro da porta do automóvel, ordenando:

- Vá, espertalhona, sai lá, traz as malas. Não, deixa ficar o meu saco, trás só a tua maleta!

A porta do prédio estava escancarada, entrou, seguido de Berta. Lá no patamar do apartamento, premiu a campainha da vizinha Júlia. Ela atendeu de seguida, surpreendida por encarar Zé Maria com a criada preta:

- Credo, senhor, para que traz essa aí?

- Olhe, dona Júlia, venho pedir-lhe o favor de me dar a chave, não trouxe a minha.

- Claro, sim senhor, vou já busca-la.

No interior, Zé Maria deu uma volta pelas divisões: quartos, casa de banho, despensa, sala, cozinha e varanda. Quedou-se frente à máquina de lavar roupa e perguntou:

- Olha lá oh rainha ginga, sabes trabalhar bem com esta máquina?

- Sei sim, menino, eu é que fazia isso sempre…

- E sabes selecionar bem os programas e as cores? Não quero roupa tingida!

- Eu sei, alguma tem que ser lavada ali naquele tanque, na varanda.

- Ah sim, é isso mesmo, aquele tanque é bom. E tem ligação para o esgoto e até torneira: viva o luxo. Quem mandou fazer esta obra?

- A senhora, a mãe do menino…

Bom, então vamos combinar uma coisa: vais ficar a morar nesta casa, no quarto das minhas irmãs; lavas a roupa toda que eu trouxer e mais a que o Afonso te entregar também; vais passa-la toda a ferro; limpas a casa; cozinhas e comes aqui na cozinha. O fogão, como é, sabes lidar com isto, sem fugas de gás?

- Sei, sim, menino, trabalha a electricidade, só a água quente é que é a gás, canalizado, abre-se ali dentro do armário.

- Bem, amanhã venho cá para ver isso tudo e certificar-me se posso confiar em ti, agora tenho que ir, o carro está mal estacionado.

Antes de sair, Zé Maria foi ao telefone, marcou um número e falou: “Afonso, ouve lá, a criada fica aqui na casa de Alvalade, trouxe-a de Meruge. A mãe não a quer lá. Vais trazer a tua roupa para ela lavar e passar a ferro. Olha, manda fazer dois jogos de chaves, um para mim, outro, se calhar, para entregar à dona Júlia. Ela fica com chave e dinheiro para o que eu achar que precisa comprar. Toma atenção, meu rapaz, ela é minha, não lhe vais tocar com um dedo, ouviste? Bom, adeus, tininho, ãh. Vê lá se és como o pai que as comia a todas, primeiro…”

Lá fora buzinavam, foi à janela e viu que alguém apitava reclamando pelo facto do seu BMW estar estacionado em lugar cativo dos CTT. Correu para a saída, mas antes deu à mão de Berta alguma notas em escudos, dizendo, sem se deter:

- Vai comprar alguma coisa para comeres e para lavares a roupa.

Zé Maria bateu a porta e Berta ficou especada no átrio de casa, a sua nova morada, sozinha. Por momentos sentiu-se livre, sem mandantes à ilharga. Poderia fazer o que entendesse naquele espaço, nem precisava de ir dormir à arrecadação, rente ao telhado do prédio, onde os outros condóminos arrumavam tralhas, e outras coisas desnecessárias, monos que era como se sentiu quando Alzira a colocou lá a dormir, urinar, defecar e lavar-se. Seria a dona da casa: dormiria numa cama de casal, bom colchão, roupa de cama; sanitários e banheira em condições, por sua conta; cozinha; sofá onde nunca tinha sentado o traseiro – tudo à sua disposição e apenas teria de lavar roupa no tanque e engomar, tudo a que estava acostumada. Até poderia lavar algumas peças na máquina, por exemplo, os lençóis. Se não teria capatazes por perto e se sabia manobrar o equipamento, nada a impediria.

Deu volta aos arrumos, às gavetas, aos guarda-fatos, ligou o gás e o frigorífico. Contou o dinheiro que Zé Maria lhe tinha entregado. Fez levantamento das necessidades imediatas. Foi ao quarto de Afonso buscar um lápis de carvão e um caderno, do qual arrancou uma folha em branco, sentando-se à mesa da cozinha começou a sua lista de compras, pela primeira vez sem a observação de Alzira – sabão clarim, sabão azul, detergente roupa máquina, detergente louça. Pronto, parou, aquilo seria a ferramenta de trabalho, com ela venceria as dificuldades laborais. Pensou melhor, deu mais uma olhadela às vassouras, ao aspirador, aos alguidares, bacias, panelas e caixas. Acrescentou à lista uma escova para esfregar os colarinhos, tira-nódoas para qualquer eventualidade, amaciador de roupa, lixivia e detergente lava-tudo para o chão. Pensou que estraria melhor apetrechada com aquilo tudo. Contou novamente o dinheiro e calculou eventualmente o preço de per si, somando tudo no final. Considerou razoável, mesmo que Zé Maria não lhe acrescentasse a verba nos dias seguintes. Só depois pensou na comida – teria de adquirir géneros para cozinhar. Retirou outra folha em branco do caderno e escreveu – leite, pão, fruta, farinha, peixe, sal, azeite e carne… Manteiga, açúcar, ovos, arroz, esparguete e massa, cebolas, cenouras, alhos, tomate, batatas, hortaliça… Tudo seria muito dinheiro, se faltasse, na mercearia, subtrairia algumas coisas a rever. O merceeiro, senhor Joaquim, estava habituado a fiar-lhe por conta da dona Alzira, não haveria problemas, pensou. Pegou no saco grande das compras que normalmente usava para o mesmo efeito a mando de Alzira. Meteu as chaves todas no bolso (entrada do prédio, caixa do correio e porta do apartamento, amarradas por um cordel tosco) e saiu, descendo as escadas, quase tão feliz como era em Tambuco, antes dos pulas lhes matarem a família e os companheiros do kimbo.

Cá em baixo, ao anoitecer de um dia outonal, agradável, respirou e sorriu, percorreu a avenida, só depois entrou na mercearia do senhor Joaquim.

- Menina, bons olhos a vejam, que vai ser? – Comentou e interrogou o comerciante.

- Tenho aqui esta lista, senhor Joaquim.

- Oh, esta letra não é da dona Alzira… - Adiantou, o merceeiro, coscuvilheiro. 

- É minha, fui eu que escrevi…

- Ei-la, ei-la, já sabes escrever, como?

- Aprendi alguma coisa, na aldeia com a professora, dona Alcina… Também já tenho bilhete de identidade e visto de residência…

- Muito me contas, rapariga, temos progressos, a dona Alzira é uma santa e ainda há quem diga mal dos retornados, por mim não tenho razões de queixa, bem a não ser uns excomungados, mas adiante, vamos lá aviar isto que é o que importa. E a senhora dona Alzira, está boazinha de saúde, está?

- Sim, está boa…

Joaquim mandou Miguel, rapaz empregado, reunir todos os produtos da lista elaborada a punho por Berta. Ela, sempre atenta, mandou acrescentar ainda um pacote de omo para lavar tecidos, manualmente, duas mandiocas, de fruta, pediu laranjas e maças, de peixe, pescada e peixe vermelho, de carne, umas costeletas e carne de vaca para cozer. Solicitou a soma total, pensou um pouco, deu mais uma olhadela pelas caixas expostas e mandou acrescentar um pedaço de entremeada salgada, dois chouriços de carne, uma porção de feijão manteiga avulso, três latas de atum, duas de sardinha e feijão-frade enlatado e rematou:

- Pronto está tudo, quanto devo, se faz favor?

- O merceeiro voltou a somar tudo de novo e soletrou o valor total, pronto para assentar no livro de vendas a crédito, à mão e a lápis. Lápis porque, antes de fechar a mercearia, lá iria, como habitualmente, dar uma vista de olhos e, muitas vezes, de borracha nos dedos, apagar o traço e o resultado final, somando outra parcela – diversos – aí acrescentaria um valor a adicionar…

- Não é para assentar, pago agora. – Avançou Berta de notas na ponta dos dedos.

- Vê lá, rapariga, é bastante, depois a tua patroa cá virá fazer as continhas. Tomara eu que assim fossem todos de boas contas como a senhora Alzirinha…

- Bem-haja, mas tenho aqui o dinheiro.

Joaquim recebeu contrafeito, pois, desse modo, perderia a parcela dos diversos, um dinheiro extra que lhe dava muito jeito nos proventos finais. De saco das compras bastante pesado, porém, quase a entrar no edifício, o bafo do frango assado tentou a menina preta do Congo, feita senhora independente que até já escrevia e lia umas coisas. Parou frente à montra da churrasqueira e olhou para o frango no espeto a rodar sobre o calor do carvão. Numa banca ao lado, o funcionário esquartejava frangos assados, douradinhos, tostadinhos, pincelava com gindungo e amontoava, em espera de clientes que os adquirissem. Berta entrou na churrasqueira pediu um frango, dois pacotes de batatas fritas, pagou e saiu. Subiu as escadas de dois em dois degraus, de água na boca, com ideia de se banquetear com aquele frango assado, um churrasco, só para si.

Sentada à mesa da cozinha comeu o seu frango, reservando ¼ para a refeição do dia seguinte. Arrumou tudo nos devidos lugares e pensou que, sozinha em casa, se o Zé Maria lhe desse verba suficiente, haveria de comprar alguma roupa: cuecas, camisolas, calças, meias, casaco e sobretudo compraria uns sapatos, na feira do relógio.

Por outro lado, haveria de cozinhar comida da sua terra, matar saudades. Por exemplo, calulu de carne seca, muamba de galinha, fuba, peixe seco e mufete (mufete é um prato típico da ilha de Luanda constituído por peixe grelhado, carapau, peixe galo ou cacusso, feijão, óleo de palma, mandioca, banana-pão, batata-doce e farinha musseque, acompanhado por molho de cebola com vinagre, azeite doce, gindungo e uma pitada de sal), até uma caldeirada de cabrito à angolana, tudo dependeria do orçamento e, quanto a isso, só Zé Maria poderia proporcionar.

Ao lembrar-se de tal eventualidade, ocorreu-lhe a ideia da contrapartida, isso atormentou-a deveras e era isso que a apoquentava, ou seja, aquilo que Zé Maria pretenderia em troca. Se fosse apenas lavar e engomar roupa, isso encantá-la-ia, mas a intuição dizia-lhe que Zé Maria queria sexo, à maneira do patrão Silva no Negage. Teve vontade de fugir dali, certamente que dificilmente a encontrariam na Lisboa metropolitana. Se estivesse em Angola, em qualquer cidade, pequena ou grande, não teria problemas, todos os caminhos dariam a Mbanza Congo, ao Zaire ou a outro sítio qualquer onde acabaria por encontra refúgio e subsistência para si, agora no puto, em Portugal, assustou-se e considerou que seria muito difícil, se calhar, ninguém lhe deitaria a mão, ninguém a tiraria do buraco. Mais uma vez fixou-se na memória da imagem recorrente – a do rapaz branco guerrilheiro do MPLA, em Tambuco e nas companheiras kwanhamas que a retiraram dos escombros, conduziram por dias e noites, pelas matas, dando-lhe das suas rações de combate furtadas à tropa colonial, partilhando água dos seus cantis e deitando-se a seu lado nos abrigos improvisados. Quedou-se a pensar nesses três companheiros que caminhavam a coberto de outros que não lhe mostraram, por segurança. Não lhe tinham feito perguntas, nem promessas. Não lhe disseram como se chamavam, nem o que faziam, nem porque a salvaram. Só a conduziram por carreiros e trilhos, só partilharam com ela os viveres que possuíam, só lhe mostraram atitudes de compreensão e gestos de cumplicidade. No final quedou-se nas lucubrações da despedida, comovente, junto de Maquela do Zombo. Como que ali na sala de Alzira, em Lisboa, sentisse os beijos das kwanhamas e a carícia doce do moço na face. Berta pronunciou devagarinho, sozinha, as palavras: “Vai lá, agora tenta encontrar ajuda, mas é segredo, não fales a ninguém em nós, não digas que nos viste, a ninguém, mesmo ninguém, qualquer dia voltaremos para saber de ti: jura”. Sim, Berta não foi preciso jurar. Para si era um segredo que não partilharia, fosse lá com quem fosse. Tal como o momento no aeroporto de Lisboa em que o rapaz branco, sem se deter, lhe entregou as moedas na mão como se fossem carícias, beijos cúmplices. Para ela, preta do Congo, sozinha num andar de um prédio em Lisboa, o rapaz de Tambuco era o mesmo do aeroporto. Não é que em Lisboa lhe olhasse os olhos, mas, por intuição, pela sensação epidérmica e essencialmente pelo olfacto, as suas narinas inalaram aroma íntimo. Não tinha dúvidas de que o moço do aeroporto cheirava a rapaz do MPLA. Os dedos que pousaram na palma da sua mão, eram, para si, os mesmos que lhe tinham acariciado a face em Maquela do Zombo. Berta até apostaria que era o portador dos mesmos lábios que tão bem lhe tinham roçado na face em Maquela do Zombo.

Sozinha, dirigiu-se à sala, sentando-se no sofá onde nunca o tinha feito, ligou a televisão que antes nunca tinha ligado e pôs-se a ver e ouvir o que provinha do canal-um da RTP. A primeira sensação de liberdade, pouca a pouco esvaia-se e invadia-a um pesado e denso ostracismo. Não sabia se por hábito, solidão ou insegurança, sentia falta de Alzira. Com a presença da patroa não temia a investida de Zé Maria, assim, seria presa fácil para qualquer dos filhos machos dela. Sim, Berta queria namorar, queria muito fazer amor, ser acariciada e acariciar, mas não um daqueles marmanjos, feitos homens garanhões, cobridores de pretas do mato, amantes inveterados de mulatas e maridos de brancas. Não queria que um daqueles ressabiados e lascivos retornados brancos tirassem partido do seu corpo. Temia que lhe tocassem com a vista e horrorizava-se com a eventualidade de que roncassem de prazer à custa da sua carne. Da carne, só da carne, porque a alma nunca lha possuiriam. A alma e o amor sincero, pungente almejava oferecer, mas ao rapaz branco do tumulto de Tambuco e da atabalhoada chegada ao puto, em Lisboa. A esse sim, queria oferecer os seus ósculos, os seus dedos, os seus braços, tudo o que ele procurasse nela, sobretudo desejava parte do corpo dele nas suas entranhas. Não só queria o moço dentro de si como partilhar tudo o que cada um comportasse de genuíno, nobre e intrínseco, ou seja, a alma de ambos num só sentimento, num só sussurro de prazer, loucura, exaltação, luxuria, mansidão, bravura osmótica e idiossincrática.

Estava Berta entregue a um tão grande exercício de memória e de exacerbação mental, tentando afugentar maus presságios e libertar-se de fatídicas lembranças, perfumando o seu mundo com recordações boas, positivas, quando, de repente, sentiu alguém introduzir a chave na fechadura da porta de entrada. Assustou-se, nem pensou em ladrões, nem na cassandra vizinha Júlia, ocorreu-lhe logo que seria Zé Maria. Estremeceu, teve medo e ganas de se atirar janela-fora. Sabia que daquele terceiro andar cairia morta no asfalto, hesitou, tentando acalmar-se, como quando os bombardeiros arrasaram o seu kimbo, varrendo tudo e todos, nomeadamente a sua mãe que morreu queimada a cozinhar o seu funje… Aproximou-se da entrada. Verificou que o invasor não conseguia introduzir a chave no canhão da fechadura por via da sua chave no interior. Acalmou-se, mais segura e confiante, na esperança de que o meliante desistisse e se retirasse, no dia seguinte tentaria pensar em qualquer situação. Entretanto, começou por escutar a voz de Afonso, sussurrante, depois mais grave até que quase gritava por ela:

 

- Berta, Berta, abre a porta… Berta, estás a ouvir? Abre essa merda!

Como autómato, robô programado, retirou a sua chave e, vorás, Afonso meteu a sua no canhão, rodou com destreza e, num pulo, plantou-se à sua frente.

- Menino, desculpe, não me avisaram, fechei a porta por dentro. Assim como a senhora me ensinou…

- Pois, vim só para ver se precisas alguma coisa, se está tudo bem. Se calhar, queres alguma coisa de mim, não queres?

- Não, menino, o menino Zé Maria já me deu dinheiro para comprar tudo o que é necessário, por enquanto. Já posso lavar as roupas que me trouxerem. Engomo e dobro também. Não preciso mais nada, bem-haja.

Berta, tentando terminar o diálogo, rodou meia volta, dirigindo-se para a cozinha. Afonso atrás, nem lhe permitiu acionar o botão da luz: fincou-lhe as manápulas nas ancas. A menina preta do Congo, feita garota crescida, esbelta de membros atléticos, pele macia e carnes maciças e turgidas, saltou longe como gazela na savana, fora do alcance do algoz. Afonso que nem hiena traiçoeira, grunhiu de raiva, saltando sobre a menina encurralada que nem um cão mabeco, mandibulas de crocodilo.

- Não, não, menino, não quero, por favor, não me viole, não quero, sou virgem, não, não…

- Virgem… Tu ainda estás virgem? Mas isso é bom, é isso que eu queria mesmo. Vou fazer-te uma festa, vou brindar-te com a melhor defloração do universo. Caramba, já merecia isto. – Enquanto ia disparatando, esbaforido que nem touro na lezíria, agarrava com força bruta a menina que esperneava e clamava por perdão.

Afonso viera com o intento de praticar sexo com Berta. Aliás, era uma ideia fixa que tinha logo que entrou naquela casa, acompanhada da mãe. Enquanto Alzira morou em Lisboa, Afonso não teve oportunidade de se ver a sós com a criada, quando regressou da Suíça, já residiam ambas em Meruge.

Tinha vindo do seu estágio onde conseguira o equivalente a grau de licenciatura em Ciências Políticas e Comunicação, com aquela ideia pregada na tola: “desta vez não me escapas…”. Entretanto, Madalena conseguira livra-se dele, pressionando Valdemar, o qual o conduziu para uma relação com Micas Pinto Soares, filha solteirona, encalhada de um dos seus colegas mandantes de partido. Ora, Micas Pinto Soares aproveitou a deixa, sem perder tempo, carregou com Afonso para o seu belíssimo apartamento de Oeiras e ali passaram a residir “amancebados”.

O telefonema de Zé Maria, dando-lhe conta de que a menina do Congo se encontrava, de novo, na Avenida da Igreja, sozinha, pôs Afonso doido naquela fixação e deitou-se logo a caminho. Acelerando o Renault da amásia, pela estrada marginal até Alcântara, subindo a Infante Santo, Jardim da Estrela, Álvares Cabral, Largo do Rato, Braamcamp Freire, Rotunda do Parque Eduardo XVII, sempre em frente até ao Saldanha e daí, pelo Arco Cego, Praça de Londres, entrando na Avenida de Roma e eis que, num instante, postou-se à porta do apartamento familiar.

Naquela vontade desmedida, nem pensou em estratégias para levar Berta a ceder ao seu capricho. Julgava que tudo se passaria à moda do seu pai na roça de Carmona, era só pô-las a jeito e introduzir o pénis a seu belo prazer e satisfazer-se da forma que melhor lhe aprouvesse. Aliás, desde pequeno que espreitava o pai naqueles trejeitos. Todavia, Berta não estava pelos ajustes e foi resistindo como e enquanto pôde. Fez-se muito barulho, a vizinhança alvoroçou-se e, do lado e no andar inferior, bateram nos muros contíguos, demonstrando incómodo com a gritaria. Júlia telefonou para Zé Maria e disse:

- Boa noite, menino, desculpe incomodar a esta hora…

- Boa noite, dona Júlia, passa-se alguma coisa com a criada, aí?

- Não, não sei, menino, mas é que vai para ali uma ladainha, acho que é a voz do menino Afonso.

- Pronto, pronto, já sei, obrigado, muito obrigado, dona Júlia, vou já!

Zé Maria despiu o roupão, o pijama e começa por enfiar umas calças, uma camisa, um casaco à pressa, ia já para sair, voltou atrás para calçar uns sapatos e a sua Bety, sul-africana que só falava a língua inglesa, perguntava e queria saber o que se passava, mas Zé Maria, monologou em português: “não se passa nada eu já volto, i´ts oky, oky”.

Zé Maria, no seu BMW, arrancou de Alfragide a toda a velocidade. Àquela hora de trânsito escasso, curvas em duas rodas, cego perante os semáforos, patorra direita no acelerador, mãos firmes ao volante, depressa estacionou na Avenida da Igreja. Esbarrou na porta do prédio, lembrou-se então que não tinha chaves. Tocou para a vizinha Júlia, nem seria preciso, ela estava à coca. Galgou as escadas de duas a duas, de três a três e eis no patamar onde Júlia o aguardava, curiosa, coscuvilheira.

- Então, dona Júlia, ainda lá está?

- Sim, menino, e chave?

- Pois, não tenho…

Por momentos ambos emudeceram, circunspectos. Zé Maria encostou a orelha esquerda à porta, virou-se e encostou o ouvido direito e nada, lá dentro persistia o silêncio. Mais atento pareceu-lhe que alguém espreitava através da mira, o buraquinho colocado na porta precisamente para que se pudesse espreitar cá para as escadas e patamar. Mais atento conseguiu ouvir o sibilar do irmão para a criada, ordenando-lhe silêncio, “chiuiuiu”. Pouco depois de dentro vieram sons audíveis na escada que se supunha de agarres, luta e gestos bruscos, seguindo-se um ai, ai de boca vedada. Zé Maria explodiu:

- Afonso, Afonso: abre a porta, abre a porta, já! Sei que estás aí, senão deito isto abaixo ou chamo já os bombeiros!

Zé Maria ainda fez mais espalhafate, de modo que os vizinhos se acercaram. Curiosos, fingindo-se preocupados, perguntavam se tinha havido algum acidente com o gás ou assim. Lá dentro o silêncio e cá fora alguém alvitrava:

- Oh meu deus, estão mortos, estão mortos, é melhor telefonar aos sapadores bombeiros, a esta hora, só os sapadores.

Após um bom bocado sem sinais do interior, a chave de dentro rodou, cautelosamente, a porta ia abrir-se. Zé Maria empurrou com força e foi lá para dentro que nem uma flecha. Para fora, detrás da porta, saltou Afonso esbaforido, atropelou vizinhos e corria escadas abaixo quando Zé Maria lhe caiu em cima que nem um tropeço. Zé Maria, perseguindo o irmão lançou-se, voando sobre Afonso. Ambos caíram flagelados nas escadas de encontro aos duros degraus de mármore. O sangue corria de ambos, tingindo de vermelho o mármore e o estuque, o corrimão de argamassa e o capacho do segundo andar. Era sangue da mesma proveniência, dos mesmos progenitores colonos que no Uíge tinham feito aqueles dois filhos. Era sangue derramado do fruto fecundado no mesmo ventre, o de Alzira, a retornada, que, em Meruge, contente, preparava a sua viagem de núpcias com Benjamim para Chipre, paraíso turístico. Sem saber da luta dos seus dois filhos machos, iria gozar o sol, a praia e todo o conforto na unidade hoteleira das suas filhas. Hotéis de luxo no Mediterrânio adquiridos com os proventos da roça de Carmona. Por isso também os considerava seus, na qualidade de herdeira, viúva, cabeça de casal, espoliada.

A retornada com o empresário programou uma viagem supostamente inolvidável. Compraram uma viagem de avião do Porto para Nicósia. Aí, no complexo turístico das filhas dela, gozariam duas semanas. Posto esse período partiriam num cruzeiro, escalando em vários portos do Mediterrâneo, entre Sul da Europa e Norte de África, nomeadamente Sicília, Ilhas Baleares, Marrocos, Tunísia, Malta e Sul de França. É certo que o emigrante tinha efectuado cruzeiros semelhantes com Rominieva. No entanto, Alzira estrear-se-ia numa aventura daquela natureza. Para o efeito, muniram-se de passaporte e vistos consolares em nome de: Benjamim Floriano Antunes da Silveira; Alzira da Purificação Amado. O empresário preveniu-se do seu cartão de crédito dourado. A retornada estrear-se-ia numa viagem sem aia, ou seja, criada preta. Para ela, Berta muito jeito lhe faria face à sua preguiça granjeada na roça, mas Benjamim, na qualidade de empresário luso-germânico, rejeitava serviçais à moda antiga, para ele impunham-se regras contratuais e nada de promiscuidades familiares com funcionários.

Assim, Alzira descartou Berta, entregando-a a Zé Maria, mas na ideia de, eventualmente, a encaixar ao serviço das filhas, em Chipre. Iria visitar Fernanda e Susana, conhecer os genros e o neto, sem descorar de um futuro para a sua preta do Congo.

A retornada de Meruge andava eufórica, encantada com a sua nova vida de preguiça e de laréu. Não era mandona ngana da roça do Negage, nem viajava para Luanda, Malange, Huambo, Benguela, Lobito, nem Baia Farta, mas via mundo por Portugal inteiro, mesmo Açores, Madeira, Desertas e Berlengas.

Ora, se as visitas ao arquipélago dos Açores e às ilhas da Madeira e do Porto Santo tinham decorrido a contento, de avião, regalada de traseiro fofo, ao lado do seu Benjamim, as travessias marítimas às Desertas e às Berlengas traumatizaram Alzira. Era isso que a preocupa em relação ao aprazado cruzeiro mediterrânico, o receio de vomitar perante ondas em mar encapelado, apesar de Benjamim lhe afiançar que o mar Mediterrânico, era chão, era uma pasmaceira, um sossego.

As Berlengas são um pequeno arquipélago situado a cerca de 10 km ao largo de Peniche, que engloba a ilha da Berlenga Grande e recifes associados, os Farilhões-Forcadas e as Estelas, constituindo um pequeno paraíso rodeado de águas claras e calmas, óptimas para mergulho. A ilha de maiores dimensões é de absoluta beleza, com formações rochosas e chocantes e cavernas abertas e a única que pôde visitar, observando o antigo lar de um mosteiro, mas que apenas servia de habitação a milhares de aves marinhas nidificantes. Através de um caminho estreito, sinuoso e algo arrepiante para os espíritos mais sensíveis, mirou o Forte de São João Baptista, do século XVII.

As Ilhas Selvagens, fazem parte da freguesia da Sé, concelho do Funchal, Região Autónoma da Madeira. Situam-se a 165 quilómetros a norte do arquipélago das Ilhas Canárias, a 250 quilómetros ao sul da cidade do Funchal, a cerca de 250 quilómetros a oeste da costa africana. O mar alteroso deitou Alzira por terra de tão enjoada, nem teve oportunidade de tirar partido das paisagens, ficou de cama dois dias. Pior só aquando da sua viajam primeira para Angola, no navio Vera Cruz.

Entretanto, Berta, sozinha na casa da Avenida da Igreja, fechou a porta e, da janela, viu chegar e partir uma ambulância dos bombeiros socorrista com Afonso e Zé Maria feridos, buzinando de sirena. Atónita, infeliz, humilhada deitou-se na cama que fora de Fernanda e de Susana. Quis dormir, mas a borrasca daquela noite deixou-a sem sono, sem tino, sem horizonte, pelo que pasmou deitada até que adormeceu, acordou atormentada e voltou a adormecer dorida e ferida em todo o seu ser existencial.

Na manhã seguinte não tinha vontade, nem alento para se levantar dos lençóis amarrotado e sujos por uma luta havida. As roupas, os móveis, as paredes e os objectos naquela casa tinham testemunhado uma batalha tremenda entre dois indivíduos, porém, aos olhos dela, permaneciam como se nada se tivesse passado, iguais, inertes, indiferentes ao seu desespero.

Nenhum vizinho veio a seu auxílio, nem quiseram saber do seu estado, a campainha não tocou mais desde que os gladiadores se confrontaram escadas abaixo. Recolheram-se desde que a ambulância os levou amachucados. Ela também estava a sangrar de alma rasgada. Já não vertia uma lágrima dos seus olhos cansados, já não sentia ânimo, nem forças, mas sabia que teria de prosseguir. Por isso ergueu-se, sem fazer caso dos lençóis amarrotados, das cadeiras e outros apetrechos desalinhados. Um nó no estômago não lhe permitia comer e uma dor imensa no coração não a deixava sonhar.

Na casa de banho, recusou olhar o seu próprio corpo, apenas se espreito pelo espelho, achando que já não era a mesma, o mesmo rosto, os mesmos lábios, nem os mesmos cabelos encarapinhados e os olhos pareceram-lhe sem brilho, baços, sem vivacidade. Recusou saber se tinha ou não sido desflorada, a dor que sentia vinha-lhe de dentro.

Calçou-se e vestiu-se de qualquer maneira, só sabia que não estava nua e saiu, descendo as escadas, sem pressa, sem agilidade, nem destino. Cá fora o sol incomodou-a, cerrou os olhos por momentos, soergueu-os novamente e caminhou avenida a adiante, até a um banco de pedra no largo, defronte da igreja São João de Brito e sentou-se, devagar. Até ali chegar não tinha reparado em ninguém, nem em nada. O seu apurado olfacto não lhe tinha dado sinal do frango no especto. Devagar foi se refazendo, só então reparou, que a seu lado, no banco de jardim, alguém tinha largado um jornal. Fixou a vista no título do jornal dobrado e leu: “O Diário Fim-de-semana”. Não lhe interessava o dia da semana, o mês do ano, nem a época datada. Berta já nem em Angola pensava, nem no guerrilheiro improvável das matas de Mbanz Congo. Só sentia desalento, frustração e desprimor por Portugal, os pulas que a tinham arrancado do seu torrão natal e feito prisioneira das suas próprias inabilidades, ao ponto de ter acreditado em Alzira. A criada preta do Congo, afinal era apenas, no seu julgamento, na análise do seu processo de vida e de relações, uma incauta solitária, imensamente só e indefesa mulher africana na selva branca de Lisboa intercultural e mestiça.

Voltou a pousar a vista no jornal, pensando – pelo menos, graças aos pulas aprendi a ler. Pegou no jornal, folheando de folha em folha. Parou no suplemento, reparou em diferentes artigos relativos a Angola, pôs-se a ler, soletrando, baixinho, lábios de menina magoada, quase cerrados, lindos, carnudos: “MEMÓRIA DE ANGOLA – Emanuel Teixeira

 (…) A mulher portuguesa na colonização de Angola

Predominante machista, a sociedade portuguesa e seus escribas, pouco ou nada escreveram acerca da mulher portuguesa e do seu papel nas colónias.

No período compreendido entre 1575 e 1592, estima-se que tenham desembarcado em Angola, cerca de 2340 portugueses. Destes, 300 permaneceram em Luanda em 1592, outros 450 faleceram vítimas de guerras e enfermidades diversas, já que o europeu não estava acostumado ao clima africano e as doenças causavam muitas mortes, e os restantes fixaram-se no interior do território.

A crónica falta de mulheres brancas na colónia, descrita como bastante significativa, levava muitos homens brancos a relacionamentos com mulheres negras, que dificilmente eram oficializados na igreja, e a rigidez da legislação portuguesa também não facilitava, o que resultava em concubinatos, alguns passageiros, outros duradouros.

Facto é que ao longo do século XVIII, Luanda, Benguela e Massangano eram regiões de grande mestiçagem, com uma considerável população euro-africana. E sendo reduzida quantidade de mulheres europeias, deu origem, por esse motivo e largos anos, ao conhecido “amasiamento” que o homem europeu fazia com a mulher africana, e desejado pelas autoridades da Metrópole, que sentiam necessidade de verem povoados os territórios ocupados. Com a mestiçagem, nova elite formou-se, de indivíduos que gozavam de alguma relevância no panorama económico e cultural angolano. Certo é que Portugal durante muitos anos não teve interesse em colonizar o território, mas sim encontrar riquezas minerais, de que é referencia, as minas de prata de Cambambe e as minas de cobre do Sumbe Ambela, e mais tarde ainda, interessados na exportação de mão-de-obra escrava para São Tomé, Europa e Brasil.

De quando em quando eram enviadas para Angola grupos de jovens mulheres, chamadas de Órfãs d’el Rei, protegidas por este e que pertenciam ao Recolhimento das Órfãs Honradas da Cidade de Lisboa, instituição fundada por D. João III em 1543. O objetivo era contraírem matrimonio e com isso disseminarem a raça branca. Jovens sem vontade própria, manipuladas pela família, que iam ao encontro do desconhecido, para ficarem com aquele que seria o companheiro para o resto dos seus dias, sem opção de escolha.

Na década dos anos 30, Luanda ainda não tinha uma Maternidade, serviço essencial para apoio às mulheres parturientes, que preferiam dar à luz em casa, do que no hospital Maria Pia. Ainda na década de 40 os partos domiciliares eram em maior número que os hospitalares. Data do ano 1947 a inauguração do edifício que receberia o nome de Maternidade Maria do Carmo Vieira Machado. Ainda assim por largos anos, preferiam dar à luz em casa, contratando uma mulher parteira que chegava carregando consigo a habilidade das mãos, precisando somente de água quente, panos limpos e tesoura para cortar o cordão umbilical.

Ainda na década de 40 e finda a II guerra mundial, ainda era muito usado o casamento por procuração, ajustados pelas famílias, pelo casal que já se conhecia, ou por anúncios nos jornais da Metrópole. Finda a cerimónia do casamento, onde o noivo ausente se fazia representar, por um amigo ou familiar, com a procuração em mãos, a noiva embarcava em um dos navios da Companhia Nacional ou Colonial de Navegação, acerca das quais, muitas histórias se contavam em Luanda naqueles dias, algumas verídicas, outras não, de se envolverem durante a viagem com algum tripulante ou passageiro ou da decepção que tiveram ao desembarcar, vendo que a foto do indivíduo com quem tinham casado, nada tinha a ver com o individuo que se apresentava.

Nas décadas de 50 e 60, com o aumento da emigração portuguesa para Angola esta reflectiu-se também no aumento de mulheres, que noticiavam de maior amplitude no sul do território. Por esses dias dizia-se que funcionários públicos solteiros solicitavam transferência para Moçâmedes, porque ali a população feminina era maior que a masculina. Contudo a chegada dos militares vindos da Metrópole o quadro piorou, pois passou a haver competitividade entre os civis solteiros e os militares que, nos primeiros anos, eram preferidos pelas meninas, quadro que demorou a reverter-se.

Importa referir que, em 14 de Fevereiro de 1884, o Governo Civil de Braga, fez publicar um Edital em que o Governo português comunicava uma migração para o sul de Angola, em que se responsabilizava por todas as despesas de viagem, fornecimento de alfaias, terras, etc. O destino seria o Distrito de Moçâmedes, mas poucos interessados apareceram, sendo solucionado no Distrito do Funchal com 200 inscritos e vários clandestinos esquálidos e famintos, homens, mulheres e crianças, embarcados no vapor (Índia) que a 19 de Novembro de 1884 fundeia na Baía de Moçâmedes desembarcando (A primeira Colonia de Madeirenses).

Meses mais tarde, a 19 de Junho de 1885, o barco de guerra “África” desembarca na mesma baía outra leva de 336 emigrantes, em maior número de mulheres, todos provenientes da Madeira, dando origem à “Segunda Colónia de Madeirenses, que vieram a instalar-se na região da Humpata /Huila.

Houve também a participação de mulheres degredadas no processo de colonização. Outras acompanharam os maridos militares, deslocados para regiões inóspitas com poucos recursos. Ainda outras, como muitos de nós conhecemos nas andanças pelo interior, distantes das povoações, dando apoio aos maridos, dedicados ao comércio junto de aldeias indígenas.

A mulher portuguesa mostrou ainda abnegação, coragem e valentia no Norte da Angola no alvorecer de 15 de Março de 1961, e seguintes, quando a violência irrompeu de modo bárbaro, promovendo o massacre ou orgia de sangue de populações brancas e negras, no que se chamou Zona Sublevada do Norte, que ultrapassou em ferocidade tudo quanto é lícito supor. Colunas armadas foram montadas para socorrer e resgatar populações civis, mas mulheres sobreviventes, muitas delas, recusaram-se a serem evacuadas preferindo ficar ao lado dos maridos, querendo também pegar em armas.

Mais uma vez a mulher portuguesa (da estirpe de Maria da Fonte) aparece neste cenário inóspito da colonização de Angola onde, enfrentando muitas dificuldades ao lado dos seus, deu a sua contribuição no engrandecimento do território tanto no litoral como no interior, onde, anteriormente se fez referência, o europeu não estava acostumado ao clima africano e as doenças causavam muitas mortes.”

 

“LUANDA ENQUANTO LUGAR DE MEMÓRIA

(uma volta pela cidade alta dos anos 50)

Se diz que a Cidade Alta fazia parte do morro, a partir da Fortaleza de S. Miguel, pela Praia do Bispo até às Sambas, grande e pequena, e de outros morros, que se alongavam por Belas, na direcção do Quanza e que a crista do morro é plana, com excepção do trecho da Calçada de S. Miguel, que apresenta um pequeno declive no sentido da Esplanada do mesmo nome.

Assim sendo, saindo do Hospital D. Maria Pia (1865-1883) onde antes havia existido o Convento de S. José (1604), de frente para a Avenida Álvaro Ferreira, entrava-se a esquerda na Rua da Misericórdia, e do mesmo lado víamos o Quartel-general que, em meados dos anos 50 ainda detinha a sentinela indígena de guarda e com o tradicional barrete vermelho em forma de cone, chamado cofió.

Desde este Quartel, atravessando duas ruas havia o prédio da Mocidade Portuguesa junto à Avenida Álvaro Ferreira. O terreno livre anexo ao prédio serviu de palco a muitas concentrações da MP masculina e feminina. Dependendo do evento compareciam a Mocidade Portuguesa, Polícia de Segurança Pública e Militares acompanhados também pelo toque dos tambores, corneteiros, estandartes e militares desfilando numa cadência impecável. As procissões anuais do corpo de Deus eram emocionantes e a presença de civis de todas as raças era marcante.

Continuando a nossa esquerda, no sentido do Palácio do Governo, passava-se ao lado da casa do poeta e escritor Tomaz Vieira da Cruz, onde muitas vezes era visto sentado perto da janela, escrevendo. Mais uns passos e do lado direito, o Miradouro, que nos permitia ver o Parque Heróis de Chaves local de encontro de namorados e de lazer de famílias, acompanhados dos filhos, principalmente aos Domingos.

No quarteirão compreendido entre o Miradouro e o Asilo D. Pedro V, do lado direito, as casas eram de construção mais moderna com quintais bem tratados e ajardinados, em contraste com os prédios antigos do lado esquerdo que não tinham quintais e as fachadas implantadas no limite interno do passeio. Chegados ao Asilo D. Pedro V, lugar de órfãos, entregues aos cuidados desta Instituição gerido por religiosas, era normal, aos Domingos, as alunas internas do Asilo, acompanhadas pelas religiosas passearem pela Cidade Alta de modo ordenado, onde por vezes, uma ou outra, eram acompanhadas pelo pretendente, sempre debaixo do olhar vigilante das madres. Lateralmente ao Asilo, um largo dava acesso à Escola José Anchieta de um lado, e do outro, a instalações militares onde funcionava a Companhia de Comandos e Serviços e local de acesso à Rua do Casuno e Rua do Sol.

Ainda na Rua da Misericórdia passava-se em frente à Igreja do mesmo nome (1576) até ao Largo de Salvador Correia, com a estátua defronte da Igreja dos Jesuítas (1593), Torre do relógio, Palácio Episcopal, anexo ao Palácio do Governo Geral e ao lado, o Jardim da Cidade Alta, bastante frequentado nos finais de semana, arborizado e agradável, com um coreto onde de vez em quando se escutava uma banda tocar.

O Jardim da Cidade Alta, criado na sequência da demolição do Hospício de Santo António (1768) abrangia o Largo do Palácio e envolvente e o miradouro do lado direito proporcionava excelente vista para a Baía, Coqueiros e Fortaleza de S. Miguel. Aqui se concentravam os “borlistas”, não só no Miradouro descrito, como no terreno da encosta adjacente, nas extensas barrocas na zona do Estádio dos Coqueiros, para assistirem aos jogos de futebol, ou sessões de Luta Livre promovidas pelo Lobo da Costa, sem nada pagarem.

Do Palácio do Governo, entrava-se na Rua Diogo Cão, sentido Fortaleza, e do lado esquerdo passava-se pela Escola de Quadros Militares, que funcionou ao lado do Palácio, onde havia grande concentração de sobrados antigos, que nos transportavam possivelmente para o século XVIII. Adiante descortinava-se a torre do Observatório Meteorológico João Capelo, que era da antiga Igreja de Nº Sr.ª da Conceição ou Sé Velha que desabou em 1818. Depois o Consulado americano, onde se conseguiam revistas muito ilustradas sobre os Estados Unidos. Depois do Beco do Balão, a Calçada Baltazar de Aragão onde, anos mais tarde, em 1957, para evitar e reprimir movimentos de oposição ao regime, se instala a PIDE (posterior DGS), via em declive que desemboca na Rua Ferreira de Almeida que passava ao lado do Estádio Municipal. Mais adiante a pequena ponte sobre a Rua de D. Francisco de Sover que dava acesso, da Rua de Duarte Lopes à Praia do Bispo. A Rua de Diogo Cão termina na ponte dando início à Calçada de S. Miguel em declive. Do lado esquerdo, após a ponte havia apenas casas térreas antigas com cobertura de telhas de cerâmica, tipo colonial, e finalmente chegávamos a Fortaleza de S. Miguel e a Esplanada de São Miguel. O acesso ao interior desta fazia-se por porta fortificada, em arco de volta perfeita, sobre pilastras, e encimado por espaldar de cantaria com brasão de Portugal. Um arruamento contornava toda a edificação e desfruta-se ampla vista sobre a cidade e a ilha de Luanda. Ao longo do arruamento a iluminação era feita por antigos postes de ferro fundido. A história refere que a 15 de Setembro de 1876, data a portaria que criava o Depósito de Degredados de Angola, e que o mesmo se estabelece na fortaleza, mas somente em 1881 começa a funcionar, ali se edificando um edifício de dois pisos. No século XX, com a extinção do Depósito de Degredados, por Portaria de 8 de Setembro de 1938 a Fortaleza é classificada como Monumento Nacional e nesta se instala o Museu de Angola. Em 1961 o acervo do museu é retirado por completo e a fortaleza volta a assumir funções militares, nela ficado sediado o Comando-Chefe das Forças Militares Portuguesas. Fiquemos por aqui.

“Obrigatório Ler”

“Cristina Roldão é socióloga e organizadora. Nossa história é cheia de lacunas e silêncios, diz ela. Se você cresceu negro aqui, terá crescido procurando maneiras de preencher os espaços. Estamos constantemente tendo que reconstruir essas histórias porque o trabalho das gerações anteriores foi sistematicamente apagado e silenciado. Precisamos de âncoras.

O novo memorial não é apenas uma denúncia dos crimes do passado, mas também aponta um esforço para reconhecer e homenagear aqueles que o viveram - uma história que tem sido muito negligenciada.

Não devemos nos permitir cair na amnésia histórica, diz Kia Henda. Além do tráfico de milhões de escravos da África para as Américas através da Passagem Média do Oceano Atlântico, menos atenção tem sido dada aos milhares de africanos que foram levados para a Europa e lá permaneceram, forjando uma sociedade muito mais diversa do que costuma ser reconhecido.

Chegando do Togo há seis anos, Naky Gaglo ficou surpreso com o pouco reconhecimento público do papel de Portugal no comércio de escravos - especialmente devido ao impacto que ele sabia que teve em países como sua própria terra-natal. Simplesmente não é discutido no mainstream. Há um grande problema aqui com a forma como a história é ensinada nos livros escolares. Resolvi então fazer minha própria pesquisa e acabei criando um tour a pé. É uma forma de lembrar que esta história dos portugueses em relação aos africanos não pode ser apagada.

Atendendo a turistas estrangeiros - principalmente brasileiros, norte-americanos e europeus - o passeio de Gaglo começa no centro da Praça do Comércio de Lisboa, o principal porto de Portugal dos séculos 15 ao 19, agora uma armadilha turística icónica.

No limite da praça, o Lisbon Story Centre, com a sua sala que aqui simula o terramoto de 1755, e o museu da história do bacalhau do Bacalhau - nenhum dos quais faz referência ao tráfico de escravos - estão ambos desertos. Gaglo está de costas para o rio, o portal para as fabulosas riquezas que a era da exploração trouxe; entre eles ouro, especiarias, açúcar e gente, muitos apenas crianças.

A partir daqui, no seu percurso, começa a caminhar-nos em direcção ao centro da cidade, recordando: Nos anos 1400, os portugueses viajaram para África e começaram a traficar escravos. Como Lisboa se tornou o epicentro do tráfico de escravos, muitos africanos acabaram morando e trabalhando aqui, na cidade, a maioria no trabalho doméstico nas casas das elites e outros na agricultura.

Em meados do século 16, os africanos faziam parte de quase todas as áreas da vida portuguesa e cerca de 10.000 africanos viviam em Lisboa, representando 10 por cento da população. Foi a primeira cidade europeia com grande concentração de negros, explica Gaglo, passeando pelo ainda resplandecente centro de Lisboa. Principalmente a vida na cidade para os africanos era trabalho, trabalho, trabalho.

Eram empregadas domésticas, cuidavam de crianças na cidade, forneciam água para as casas, os homens trabalhavam descarregando navios, na construção.

Aos escravos foi negada uma vida familiar, porque na maioria homens e mulheres pertenceriam a donos diferentes, que não os deixaram sair para se casar.

Nem toda a população africana de Lisboa foi escravizada, aponta Gaglo. Havia também uma área chamada Mocambo onde havia vários homens e mulheres libertos ou condicionalmente livres, que tinham uma vida muito diferente - embora ainda assim não fosse fácil, acrescenta. Rua a rua, Gaglo relembra as durezas e nuances da vida negra em Portugal ao longo de vários séculos: Ao caminhar um pouco nas suas pegadas, lembramo-nos do seu sofrimento e da vida que levaram.

Irmandades católicas

A cidade que Gaglo retrata em suas viagens não existe mais; foi quase totalmente destruída no terremoto de 1755 que custou cerca de 50.000 vidas. Seis anos depois, em 1761, Portugal aboliu a escravidão no continente. Existem poucos vestígios da presença negra que antecederam essas bacias hidrográficas históricas de Lisboa, e muitos arquivos cruciais foram perdidos na época. No entanto, Gaglo acredita que “ainda há muito a ser descoberto” pelos historiadores - incluindo ele mesmo.

Qual é o papel do memorial nisso? Para Gaglo: É apenas um passo... Precisamos chegar a um ponto em que possamos falar sobre a história da escravidão sem medo, mas isso ainda é difícil. O currículo, a forma como falamos do passado aqui e o entendemos - todo o discurso sobre a história portuguesa - tem de mudar.

Às portas da igreja de São Domingos, Gaglo invoca as memórias das irmandades católicas negras que desempenharam um papel complexo e até subversivo na sociedade portuguesa escravizada do século XVI.

 

As igrejas católicas em todo o país tinham cultos cujos membros eram uma mistura de homens e mulheres escravos e livres, devotados ao culto de santos específicos como Nossa Senhora do Rosário.

A conversão dos africanos ao catolicismo foi um pilar da escravidão, e a Igreja incentivou o surgimento dessas irmandades - sem saber que, sob o pretexto de símbolos e rituais católicos, outros deuses continuaram a ser adorados, como também acontecia em outras sociedades de escravos como Brasil e Cuba.

Crucialmente, no entanto, essas irmandades também ofereciam uma vida social e apoio aos que eram marginalizados da sociedade em quase todas as outras formas. A fraternidade pode-te ajudar financeiramente, com problemas de saúde, com assistência jurídica... Eram espaços que ofereciam proteções e certos privilégios aos negros, explica Gaglo, mas não podemos esquecer que eles também buscavam reforçar a dominação e subjugação dos Africanos.

Eles também se tornaram uma forma de resistir.

As irmandades estavam entre os primeiros agitadores organizados contra a escravidão e frequentemente arrecadavam fundos entre si para comprar a liberdade dos membros escravizados.

A saga de Mendonça

A história dessas irmandades também é central para o trabalho de José Lingna Nafafé, antropólogo e historiador da Universidade de Bristol, no Reino Unido. Nafafé traça a história de um abolicionista angolano do século XVII que atendia pelo nome português de Lourenço da Silva Mendonça. Príncipe do Reino do Congo do Ndongo (na atual Angola), Lourenço foi exilado do Ndongo por declarar guerra aos invasores portugueses e enviado ao Brasil em 1671.

Como exilado político da coroa portuguesa, Mendonça viveu uma vida relativamente privilegiada na Bahia, o estado nordestino do Brasil onde os portugueses introduziram as plantações de cana-de-açúcar e trouxeram um grande número de escravos africanos para trabalhar nelas. Mas enquanto ele estava lá, de acordo com Lingna Nafafé, os portugueses temiam que Mendonça pudesse fugir para o Quilombo (cidade livre) de Palmares, uma enorme comunidade quilombola de pessoas que escaparam da escravidão, criada pelo lendário Zumbi dos Palmares, um homem que havia escapado da escravidão anos antes. Foi dirigido de acordo com as suas próprias leis e normas culturais e levantou resistência armada contra os portugueses que os tentaram recapturar.

As autoridades temiam que Mendonça fugisse e se juntasse a Palmares, diz Nafafé, um animado contador de histórias - mesmo com Zoom - em suas paredes cobertas de fotos de seu próximo livro sobre Mendonça. Então, eles mandaram ele e sua família embora novamente, desta vez para Portugal em 1673.

Se o movimento pretendia subjugar as atividades antiportuguesas de Mendonça, ele falhou. Foi na Europa que Mendonça deixaria sua marca como abolicionista - uma trajectória que Nafafé construiu meticulosamente a partir de documentos encontrados em arquivos empoeirados de todo o continente.

Após vários anos de estudo em um mosteiro em Portugal, Mendoça foi nomeado defensor das Irmandades Negras. É então, segundo Nafafé, que os registros mostram que ele havia começado a trabalhar em uma petição contra a escravidão. Usando sua posição, ele conseguiu o apoio das Irmandades Negras em toda a Península Ibérica, que pressionaram o Vaticano escrevendo cartas que instavam o Papa Inocêncio XI a abolir a escravidão no Atlântico. O papa Inocêncio XI, que deteve o título de 1676 a 1689, de fato condenou o comércio de escravos. Com o poder na Europa dividido na época entre a Coroa e a Igreja, o Vaticano tinha enorme poder e influência sobre o destino dos escravos.

Nunca foi estabelecido pelos historiadores que Mendonça era um africano, o que é realmente incrível - que nos anos 1600 você tinha esse africano que viajou por toda a Europa para mobilizar um movimento ativista pela libertação não só dos negros africanos, mas também dos povos indígenas nas Américas, diz Nafafé.

Em 1684, Mendonça foi ao Vaticano, onde acusou as nações envolvidas no tráfico transatlântico de escravos de crimes contra a humanidade. O que descobri é que não se tratava apenas de uma petição, mas de um processo judicial, conduzido por negros africanos e apoiado por uma solidariedade internacional altamente organizada, explica Nafafé. As pessoas sempre pensam que o movimento abolicionista legal começou na Grã-Bretanha, no final do século 18, mas Mendonça realmente nos obriga a rever nossas posições sobre isso.

Protagonistas de suas próprias histórias

Originário da ex-colônia portuguesa da Guiné-Bissau e um dos poucos estudiosos africanos trabalhando no início da história moderna, as descobertas de Nafafé parecem reforçar os apelos para descolonizar a história e para que novas perspectivas sejam reveladas em velhas histórias.

Gosto de pensar que as futuras gerações de jovens de 16 anos, que procuram a biblioteca para conhecer a sua história, possam encontrar algumas referências positivas, diz Cristina Roldão, que também sente que há muito trabalho a fazer na forma como os africanos e afrodescendentes têm sido retratados na história portuguesa. Não apenas que eles possam ser descendentes de escravos, de pessoas que foram colonizadas, ou histórias sobre pessoas que vivem em bairros pobres - mas que eles podem encontrar um tipo diferente de narrativa, em que os negros são os protagonistas de suas próprias histórias, onde falamos sobre como eles viveram e resistiram. Isso é importante para a população negra hoje - mas é tão importante para todos em Portugal que a verdade e a complexidade desta história sejam restauradas.

A própria Roldão começou recentemente a pesquisar as histórias das mulheres negras em Portugal desde o século XVI: Senti-me atraída por estas histórias, afirma. Queria saber como era a vida dessas mulheres; quem eram eles? Adoro imaginar onde eles se conheceram, sobre o que conversaram... Quero descobrir uma história que está envolta em silêncio.

 

A pesquisa de Roldão tece os fios entre as vidas de lavadeiras e vendedoras de comida de rua, até as “Rainhas do Kongo” - uma posição cerimonial dentro das irmandades católicas negras, nomeada e coroada todos os anos durante as festividades.

Havia toda uma complexidade da vida das mulheres dentro da sociedade escravista da qual nunca se fala, diz ela. Por volta de 1700, por exemplo, há uma carta escrita por mulheres negras vendedoras ambulantes que vendiam suas mercadorias na escadaria de um hospital, reclamando de serem maltratadas pela polícia local, e elas dizem que têm o direito de estar lá porque é lá que ela sempre foi, desde tempos imemoriais. Ver esse documento pessoalmente, para mim, como uma criança pós-colonial, é simplesmente... Incrível. Ou, por exemplo, quando você começa a procurar as rainhas cerimoniais do Kongo, por exemplo, você as encontra no Brasil e em outros países latino-americanos também, na diáspora [africana]. Essa busca, pela história negra no feminino, não é apenas interessante, é...deliciosa.

Questões desafiadoras param Portugal hoje. Roldão trabalhou na educação; Lecciona numa universidade e, no passado, liderou investigações que mostram que os alunos de origem africana em Portugal têm maior probabilidade de reprovação nos anos lectivos, de abandono escolar e são mais frequentemente encaminhados para cursos profissionais do que para o ensino superior.

Ela também é uma participante vociferante da campanha para fazer com que o Estado português colete dados sobre raça e etnia - o que é ilegal, nos termos da atual Constituição portuguesa.

Destinada a remediar o racismo explícito da ditadura colonial portuguesa derrubada em 1974, esta cláusula da constituição tornou-se um grande obstáculo para os movimentos antirracistas em Portugal porque significa que não há informações sobre o número de população de minorias étnicas em Portugal. A ausência de dados tornou difícil para os ativistas defenderem mais investimentos em serviços públicos para afrodescendentes e outras comunidades racializadas, ou para provar a existência de preconceito racial e desigualdade estrutural, para os quais há muitas evidências anedóticas.”

PEQUENO DICIONARIO QUIMBUNDO/PORTUGUES

Se utiliza a grafia da Planta Topográfica de parte da Cidade de S. Paulo de Assumpção, chamada a Praya, pertencente á Freg.ª de N. S.ª dos Remédios, de 1755.

Bungo - a palavra significaria primitivamente o lugar onde se faziam os despejos da cidade.

Cassimas – covas a que chamam cassimas

Embondeiro – “quimb. Mbondo (…) der. De –bonda matar‟, em alusão à preferência dos feiticeiros por esta árvore nos seus trabalhos macabros”

Kafaku – lugar arenoso, antigo bairro na cidade de Luanda (na Engombota)

Kakibándu – pequeno balaio ou peneira. Joeira

Kakusu – perca

Kalemba – violenta agitação do mar, marulho, tempestade, alterosas vagas que, com estrondo, se vão quebrar à praia.

Kansandama – Morro que fica a NE da cidade de Luanda, vulgarmente chamado das lagostas, onde se encontra edificada a fortaleza de S. Pedro da Barra.

Kapaxi – sujeito ao sofrimento. Angustiado, oprimido.

Kapónda – cinta estreita e curta. Antigo bairro da cidade de Luanda, onde é hoje o mercado municipal

Káputu – govêrno ou autoridade portuguesa. Português. De Portugal.

Kasekele – arenoso, povoação em Quifangondo (rio Bengo)

Kásoso- Argueiro. Centelha, fagulha.

Katari, nome indígena que significa Lugar de suplício; pelourinho, lugar de suplício, antigo bairro

Katomba – charneca, antigo bairro, depois Largo de Cadornega

Kibándu –cicatriz, bairro onde está o cine-teatro

Kikongo- língua do Congo; Planta fam. das sinteráceas, de madeira olerosa e propriedades medicinais, sândalo

Kinanga- Largo; Praça; fig. Mercado; Feira

Kipáka- redil, curral. Trincheira. Barreira. Tapume

Kisibu, actualmente Kixibu, daí o aportuguesamento cacimbo, estação do ano em que não chove e baixa a temperatura

Kinaxixe- Tremendal; pântano; charco. Poça formada de água das chuvas

Kixima, ixima- poço, poços

Kurimba – confusão, complicação

Maculusso- Kimbundização da palavra portuguesa cruzes, que significa cruzes em kimbundo

Makulusu – cruzes, local em que se enterravam os mortos.

Massangano ou Massanganu, palavra Mbundu, que significa junção, confluência,  lugar onde dois rios se juntam num só, província de Luanda compreendida na língua de terra formada pelos rios Lucala e Quanza, na margem direita deste rio o primeiro presídio (1583) fundado por Paulo Dias de Novais a 40 léguas de Luanda.

Mazuika – antigo bairro, traseiro à Igreja do Carmo

Mbánze - Tempo de Verão. Estio. Fig. Calor

Mbungu-(…) antigo bairro da cidade de Luanda (na Engombota); Planta gramínea exótica fam. das bambusáceas, cuja haste é uma cana alta e grossa. Bambú

Miânga- candeias; luzes

Mulundu- serra, montanha, morro, (…) penedo; rocha

Múseke- areia grossa; terra saibrosa

Musseque -originalmente, quer dizer, em Kimbundo, areia vermelha, mais tarde, significa bairros de cubatas para onde é escorraçada a população africana na periferia da cidade.

Mutamba- cação, peixe, tamarindeiro, antigo bairro e mercado ao fundo da Igreja do Carmo. Mutamba em Kimbundo  significa tb árvore.

Muxiluanda- que deixa de pagar imposto, aduana, tributo. Nome dado ao natural de qualquer das ilhas adjacentes à cidade de Luanda. Foi dado após a cessão da ilha então pertença do Ngola, ao rei do Congo socorrido pelos portugueses capitaneados por Francisco de Gouveia em 1570, da invasão e ocupação que durante 12 anos sofrera dos ngolas, que o indígena deixou de pagar o imposto aduaneiro pela exportação de njimbu, por ele pescado, para aquele reino, onde circulava como moeda (dinheiro).

Muxima- coração; íntimo; consciência; fig. Regaço, colo.

Ndânji- espaço ocupado por uma corrente de água, córrego, leito do rio; rio seco.

Ndânji ia loza - rua larga e arenosa.

Rua N‟ Dange ia Rosa –  Em quimbundo significa rua larga e arenosa.

Ndongo- antiga residência do Ngola (D. João Hari) vencido em 1671 por Luís Lopes de Sequeira

Ngôla – nome do rei do Dongo, dado ao território que compreende a mais vasta e rica província de Angola

Ngombota- lugar onde se acoitavam os escravos foragidos, moradia ou refúgio de gente má. Bairro da cidade de Luanda, na encosta fronteiriça à Igreja do Carmo.

Nguengue - Ave conirostra de plumagem vistosa e rabo comprido. Cardial. Fig. Pessoa de boas maneiras, boa alma. Pessoa magnânima, de grande influência. Magnate.

Pombeiro – cruzamento do quimb. pombe «mensageiro» com o quimb. pombo «espião» já que o indivíduo se embrenhava pelo interior de África para trazer informações ou pessoas ao traficante de escravos

Púmbu – Pousada

Pumbo – Feira

Samba – charneca, savana

Samgamdombe – sang‟a-ndombe – antigo bairro nas traseiras do edifício das obras públicas e onde se fabricavam bilhas de barro preto (masanga ma ndombe)

Sanzala – povoado

 

“(…) Quando pensamos em grandes inventores, geralmente os primeiros nomes que nos vêm à mente são de pessoas brancas. Lembramos de inventores como Thomas Edison, o criador da lâmpada elétrica incandescente; Alexander Graham Bell, protagonista dos primeiros passos da implantação do telefone como meio de comunicação de massas; Alberto Santos Dumont, pioneiro da aviação, entre outros.

O que muitas pessoas não sabem (ou pelo menos não lembram com frequência) é que inventores negros, incluindo escravizados, criaram ou aprimoraram muitas coisas que facilitaram a nossa vida, apesar de terem sido ignorados nos livros de história pelo mundo.

O afro-americano Benjamin Montgomery, nascido na escravidão em 1819, inventou uma hélice de barco a vapor projetada para águas rasas. Esta foi uma invenção valiosa, pois facilitou a entrega de alimentos e itens críticos. Montgomery tentou solicitar uma patente. O pedido foi rejeitado devido ao seu status de escravo. O sistema de patentes, que começou oficialmente em 1787 nos Estados Unidos, não estava aberto aos afro-americanos nascidos de escravos, pois não eram considerados cidadãos.

Essa barreira não impediu que os afro-americanos inventassem e que suas patentes fossem exploradas. De acordo com uma pesquisa feita por Shontavia Johnson, advogada e professora de Direito de Propriedade Intelectual da Drake University, os proprietários muitas vezes tomavam crédito por invenções escravas.

 

A própria lâmpada foi inventada por Thomas Edison, mas a inovação usada para criar lâmpadas mais duradouras com um filamento de carbono veio do inventor afro-americano Lewis Latimer. Latimer, filho de escravizados fugitivos, começou a trabalhar em um escritório de advocacia depois de servir nas forças armadas da União durante a Guerra Civil. Ele foi reconhecido por seu talento na elaboração de patentes e foi promovido a chefe de desenhista, tendo participado da invenção de um banheiro aprimorado para trens ferroviários.

O uso de elevadores na vida cotidiana impede as pessoas de se comprometerem com longas e cansativas subidas de vários lances de escada. Antes das portas automáticas, as pessoas tinham que fechar manualmente as portas do poço e do elevador antes de andar. Quando a filha do inventor afro-americano Alexander Miles caiu quase fatalmente no poço, ele decidiu desenvolver uma solução. Em 1887, ele patenteou um mecanismo que abre e fecha automaticamente as portas do poço do elevador e seus projetos são amplamente refletidos nos elevadores usados hoje.

Filho de um escravizado e com apenas o ensino fundamental, o inventor negro Garrett Morgan foi responsável por várias invenções importantes, incluindo uma máquina de costura aprimorada e a máscara de gás. No entanto, uma das invenções mais influentes de Morgan foi o semáforo aprimorado. Sem sua inovação, os motoristas de todo o país seriam direcionados por um sistema de duas luzes.

Frederick McKinley Jones registrou mais de 60 patentes ao longo de sua vida, incluindo uma patente para o sistema de refrigeração montado no teto usado para refrigerar mercadorias em caminhões durante o transporte prolongado em meados da década de 1930. Ele recebeu uma patente por sua invenção em 1940 e foi cofundador da Thermo Control Company dos EUA, mais tarde conhecida como Thermo King. A empresa foi muito importante durante a Segunda Guerra Mundial, ajudando a preservar sangue, alimentos e suprimentos durante a guerra. Graças a Jones, os produtos congelados ficaram mais acessíveis e são consumidos no mundo todo.

Além desses, muitos outros itens do nosso cotidiano tiveram a participação de inventores negros, incluindo um dos uísques mais vendidos do mundo.”

 

Berta, absorta na leitura, nem deu pelo tempo passar. Terminou alguns textos, voltou à primeira página do jornal, agradada pelo que tinha lido. Nunca tinha visto, nunca tinha ouvido nada acerca daquele título “O Diário”. Intrigava-a, as referências à sua terra, ao seu novel país naquele jornal eram diferentes. Até então tudo o que lia, ouvia ou via na televisão era de grau pejorativo, de desagrado, desaprovação para com Angola no contexto da sua História, cultura e povos. Sentindo-se animada, respirou fundo e lembrou-se do quarto de frago do dia anterior. Olhou em volta, reparou que ninguém reclamava o jornal abandonado no banco do jardim, dobrou-o e carregou, debaixo do braço, de regresso a casa a fim de comer as sobras do jantar do dia anterior e continuar a leitura acerca do seu país e de outras coisas que lhe interessavam e lhe diziam respeito.

Afinal, como bem no fundo do seu muxima persentia, preto não é sinónimo de matumba. Aliás, obtusos eram sobretudo os pulas fugidos de Angola que apenas mostravam ódio, rancor e ingratidão para com uma terra que os tinham acolhido, fugindo da fome em Portugal. Muitas vezes dava consigo a pensar: “ estes brancos, esta brancada são difíceis de entender – são miseráveis com mania da importância…”

Lembrou-se do Afonso com a mania da esconder na varanda e impedir de utilizar os sanitários do apartamento, mas forçou-a a fazer sexo com ele, neste caso já não tinha prurido, nem pejo, nem nojo de lhe enfiar o membro nas suas intimidades. Doido acirrado, testosterona incontrolável caiu sobre ela que nem mabeco esfomeado. Zé Maria outro que tal, a mirá-la como se fosse um objecto. Ela tinha direito a dar-se a quem lhe aprouvesse, a quem a merecesse. Não tinha preferência por homem preto, mulato ou branco, mas queria um com quem quisesse partilhar e receber. Pensava no rapaz guerrilheiro e ou das moedas no aeroporto que, por acaso era branco. Quer dizer, branco, branco não sabia porque quando pensava nele nunca o recordava segundo esse prisma. Ela gostou dele nem sabia por que razão, só sabia que o desejava, que o amava, mesmo, e julgava-se correspondida, era uma certeza que lhe vinha de dentro, do âmago, muxima…

Mesmo depois da tragédia com Afonso, pensou novamente no seu júnior cavaleiro do MPLA, como donzela imaculada porque ninguém a possuiria sem que ela se desse. Isso não faria com Afonso, Zé Maria ou outro qualquer, nem que a esquartejassem, que as desventrassem, lhe rasgassem a vagina, o ânus ou qualquer outro orifício. Pensou no seu júnior cavaleiro a quem se entregaria totalmente e de quem desejava todos os fulgores, prazeres, abraços, beijos e sussurros...

Foi à janela, demorando-se na observação dos transeuntes, indiferentes e ignotos do drama de Berta na terra de pulas, sozinhas na floresta de casas de cimento armado, ruas pejadas de pessoas solitárias, cada qual nos seus mambos, pensou…

Não soube mais de Afonso, nem de Zé Maria, nem de Alzira que julgou a leste do confronto de ambos, por ela, a preta do Congo, serviçal em Portugal, como se ainda estivesse no Uíge colonizado. A ideia de largar por ruas e vielas de Lisboa, até ancorar em qualquer abrigo tentava-a, mas pressentia agruras e mais desenganos naquele labirinto metropolitano. Cada vez mais se dedicava a rememorar episódios da sua vida em Angola, as imagens da infância aproximavam-na da sua gente, do seu espaço psicológico e criavam-lhe ilusão de esperança e de felicidade no horizonte. Cada vez que caia no desespero, sempre algo lhe surgia de novo, como luz ao fundo do túnel. Ao pôr de novo o olhar sobre o jornal que trouxera da rua, ali sobre a mesa da sala, sentiu algum proveito na epopeia, acompanhando os portugueses alvoroçados. Se na fuga não descortinava lógica, nem razão, já o facto de ter aprendido a ler sim, fê-la sentir melhor, mais rica, embora, na grande parte das palavras, frases e períodos lidos não entendesse significado. O que a professora Alcina de Meruge lhe ensinara tinha sido rudimentar, literal, muito redutor face às interrogações das suas cogitações. Contudo, mesmo assim, tinha sido uma janela para a vida, uma luz na análise da sociedade colonial no Norte da sua pátria, Angola. Começava a compreender a mentalidade do colono. Em Meruge pôde observar a outra face do português, aquele que não tinha ido a África, aquele que tinha regressado do trauma da guerra colonial, as dificuldades inerentes a cada um na luta pela sobrevivência, os costumes e tradições e sobretudo a rudeza de carácter, educação, cultura, a par de uma outra simplicidade e adaptabilidade ao meio, distintas do que demonstravam os colonos em Angola, ignorantes arvorados em inteligentes, assim que ela passou a caracterizar os retornados. Berta aprendeu a gostar dos portugueses no seu meio rural, originais, fraternos e solidários, depois de um primeiro impacto de rejeição, porventura, resultante de ideias, e preconceitos inculcados por doutrinas repetidamente marteladas nas suas cabeças. Lembrou-se do seminarista António, embasbacado e baralhado face à sua presença feminina. Mais adiante começava a analisar situações concretas no espaço por si vivido em Angola: brancos a fornicar pretas, brancos amantes de mulatas, brancos maridos de brancas. Colonos masculinos a perfilhar os seus filhos com as mestiças, a ignorar os filhos de comum com as pretas e a assumir legítimos os filhos com as colonas. Afinal, tudo resultava de ideias e atitudes emanadas por directrizes políticas e religiosas das instituições superiores. Berta, nas suas lucubrações noturnas, na cama, na solidão das suas noites longas e manhãs preguiçosas, solidificava a sua ideia de que os portugueses que ditavam leis e mandavam em Angola, faziam-no na sua total ignorância da cultura e da realidade do território. Ao contrário do que pensavam os retornados e muitos dos portugueses, Angola não era, nem nunca tinha sido Portugal, nem Europa.

Sentou-se e pôs-se a folhear o suplemento fim-de-semana do jornal, “O Diário”, procurando algo mais de África, de Angola e encontrou:

“Imagens de Angola da década de quarenta

Negra/Branca

Na obra literária Imagens de Angola (1949), de José d’Almeida, há um relato intitulado Negra Branca que me permitiu prognosticar uma complexa montagem narrativa assente num drama que envolve, no mínimo, explícitas questões de género, classe, raça. A negra branca é Catarina, filha de uma lavadeira que trabalhava para um funcionário da administração Pública de Angola, que na colónia estava entre outros, heroicamente, a estabelecer obra de ocupação pacífica: “verdadeiros escravos do dever... De ontem e de hoje." A história concentra o drama dos dois mundos – negro e branco –, pelo qual passará Catarina e o filho do funcionário público. Ligados desde a infância, sentiam-se violentados diante da separação obrigatória por causa de demandas do trabalho do pai: “Com epidermes de cores opostas, mas ambos portugueses, sentiam-se ligados por nós de amizade, que o ambiente e a convivência aturada sabem dar” - Catarina, você quer acompanhar o menino? (perguntou-lhe a sua mãe) Catarina, receosa, não sabendo, pelos seus diminutos anos, avaliar uma partida, deixa a sua mãe preta que dava bolas de “pirão”, mas a desviava quando não tinha comida para oferecer, hesitou por segundos. Depois, parando de chorar, com os olhos húmidos e injectados, olhou para o seu amigo branco que, contagiado, também chorava. E a sua resposta, simples, bem compreensível, resumiu-se em ir enlaçar, com as suas próprias mãos pretas, o seu amigo branco. A mãe da “negrita” terá confiado aos patrões a sua filha, com a promessa de que um dia a restituíssem. Cumpriram-se as necessárias formalidades, e a rapariga foi viver para Luanda. Uma vez ali, lá iam os dois todas as manhãs à escola, colher ensinamentos que são o esteio do futuro de cada indivíduo. Ambos aprenderam juntos, e juntos cresceram, nessa doce convivência, a continuar um meio, onde não se distinguiam raças, e não aparece equação, o eterno problema da cor.

Esta história deixa ver os esforços dos portugueses em construir uma imagem de aproximação e reinventar relações marcadas pela escravidão, racismo, opressão. Para a economia política e cultural da época, era imprescindível que o poder de Portugal parecesse um elemento fundamental para o desenvolvimento de Angola; uma presença que fosse um símbolo de promoção da educação e civilização. Assim, com a acção do tempo, “dez anos depois, Catarina era uma linda moçoila, com a delicadeza de maneiras que a educação, paulatinamente, descobre” Ela também já era uma mulher e não poderia mais conviver na mesma casa junto ao rapaz que a viu crescer, já que estavam na idade em que “a febre do amor chega a altas temperaturas”. E a moçoila, compreendendo a situação, mas segura de bons princípios, educada, vestida e calçada como as brancas, regressou, de visita a sua família, que vivia num meio diferente, onde as casas e os jardins são substituídos por palhotas primitivas e árvores a deitar para o ar olores resinosos. Uma vez chegada, apanhou em cheio a lufada morna dum meio de civilização incipiente, contrastando brutalmente com a vida elevada da cidade, onde a transportaram, quando a sua razão começava a ter lugar na existência humana. O tempo vivido com os brancos fizera de Catarina uma estranha junto ao seu povo. Tornara-se quase portuguesa, negra-branca e já não suportaria a “regressão” ao processo civilizador a que teve acesso. O tempo que passara com os brancos parecia fazer dela mais valiosa que as outras moças do seu povo, por isso, os seus pais já lhe tinham arranjado casamento com um soba local, dono de centenas de cabeças de gado. Catarina pensava no regresso, “a sua existência estava, afinal, presa aos brancos e nada de ancestral a atraía àquele meio selvagem” Quando chega o dia do “grande batuque”, que antecederia o seu casamento, Catarina permanecia alheia, “deixava correr os acontecimentos à feição do tempo”.

José D’ Almeida narra o acontecimento:

Em meados do século XX, os portugueses começam a resinificar a exploração e violência colonial sob a luz de outras estratégias discursivas. Esta discussão será melhor esmiuçada ao longo deste capítulo, sem deixar de destacar elementos etnográficos que, de facto, ele se propunha fazer. Nas primeiras páginas do livro, um pequeno dicionário de “termos gentílicos ou de caráter gentílico” assessoraria o leitor.

Dos “sobados” próximos, rapazes e raparigas, ataviados para a dança, faziam o caminho entre cantares e o bater de palmas. Eles de peito ao léu e mantas nos braços, e elas de bustos nus, untados de “gunde” com “tacula” e com o “tchikuani”, enfeitado de missangas de variegadas cores, seguiam radiantes para a festa. [...] O ar está impregnado de perfumes da selva, húmida de “cacimbo”, onde se mistura o cheiro do suor dos pretos com o “gunde” das pretas. Os corpos, de tanto dançar, são bocados de achas das fogueiras que as circundam, escaldantes, ávidos de gozos misteriosos da vida, que ali se abandonam por horas... O “batuque” não pára, os músculos não cansam, os nervos não relaxam. Tudo vibra durante a noite e ninguém desiste de cantar e dançar. Por vezes, os sons dos “gon’mas” e “puhitas” enfraquecem, para logo redobrarem de intensidade. Gritos e assobios ferem o espaço, de vez em quando, os dançarinos deliram sob uma febre violenta, que contagia tudo e todos. Tudo é prazer e vida. Tudo é fogo a escaldar corações batendo apressados. A lua, cansada de assistir à mesma cena, desaparece lentamente, porque os arrebóis da aurora, lançando uma luz mais límpida, vão, mais uma vez, purificar a natureza. As vozes enfraquecem... e tudo para, como se a vida dependesse agora daquela luz clara do nascente... Feita pelo Criador.

É neste instante de transição da noite para o dia – que também parece ser o da paisagem obscura ritual para a “luz clara do Criador” –, que Catarina se lança na imensidão da selva. De vigília toda a noite, aguardava o momento ideal para voltar para Luanda, “para ir ter com o seu companheiro de infância, porque se sente ligada a esse branco, que representa tudo pra ela..., fugindo assim da ligação com o “soba”, preto” E, deste modo, assinalar “o triunfo da obra civilizadora”. O desfecho da negra branca Catarina é centrado na ideia de irreversibilidade da civilização, que foi descrita pelo autor como “gotas de chuva fresca, que caem no chão quente que as traga” Uma vez absorvida, o sujeito era outro, e escolher a terra seca e infértil da selvageria era inconcebível nos quadros da obra Imagens de Angola.

"A ideia da aurora como representação do mundo do branco desejado é poeticamente exercitada no soneto “Aurora”, de Costa Alegre, de São Tomé e Príncipe: “Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,/Tu és o dia, eu sou a noite espessa, / Onde eu acabo é que o teu amor começa. Não amas!... Flor, que esta minha alma adora./ És a luz, eu a sombra pavorosa,/ Eu sou a tua antítese frisante,/ Mas não estranhes que te aspire formosa,/ Do carvão sai o brilho do diamante"

A sensação de não-pertencer ao mundo preto, depois do contacto com o branco foi também o encaminhar dramático para a história de José, o “morador excêntrico” de um sobado no interior de Angola, no conto Destino (…)”

Demorou a descodificar palavras e afirmações, todavia, sentiu que sim, era tema que lhe dizia respeito e pensou que o guerrilheirinho e as duas kwanhamas é que a poderiam auxiliar na análise daqueles enigmas. Voltou à leitura do texto e releu ainda mais duas vezes. Ela podia encarnar a personagem de Catarina no cenário descrito pelo autor. No entanto, a metáfora de eventualmente se sentir uma estranha no seio do seu próprio povo, da sua comunidade, considerou que não faria sentido. Mais à frente aventou que se isso concorresse para o seu caso concreto, também seria certo de que ela, Berta Kalemba (que o patrão Silva a cognominou de Berta Bumba) nunca deixaria de se sentir uma estranha entre a comunidade branca europeia, portuguesa ou de qualquer outra parte do planeta. Porventura a sua gesta tê-la-ia feito estrangeira no exterior e estranha na sua própria pátria. A eventualidade da sua relação com o homem branco não a deslocaria da sua origem africana. Antes, sentia imperativa o seu sentido telúrico cujo resultado amante com o branco se fundiria na formulação de tese, antítese e síntese. Síntese seria o filho que ela parisse dessa relação com o branco, a mestiçagem. Porém também percebia que a mestiçagem também é cultural, ou melhor intercultural, no plano horizontal. Isso tinha percebido que o encontro de povos e culturas era como uma feira de trocas. Cada uma dá de si e recebe do outro.

A leitura permitia uma abstração que as imagens sonegam, pelo que Berta lendo sentia um prazer inolvidável. Ainda na sua povoação de Tambuco julgava-se eterna. O mundo era aquele lugar, o conceito de tempo não existia e todas as coisas eram duradouras e perenes. Só mais tarde empreendeu o seu método de análise mediante os factos. Para a compreensão desses factos sentiu necessidade de sequenciá-los num processo ao qual catalogou de tempo. Então a sequência das suas ocorrências passaram a ser o seu processo de vida, ou seja, a sua história. Por isso entendia que o passado já não era o presente e o seu presente não seria certamente o seu futuro. Ali na sala da patroa Alzira bem sabia que para o seu futuro todas as acções passadas tinham concorrido para aquele momento e que o seu futuro dependeria das medidas que empreendesse nesse sentido. Por isso é que já não voltaria a viver o que por ela tinha sido vivenciado e se voltasse ao Negage transportaria consigo o que tinha vivido, sem olvidar a sua origem familiar, o meio físico e humano. A personagem Catariana, a preta/branca do texto apenas se caracterizaria como mera representação. Berta considerava-se preta, não almejava alvura epidérmica, nem renegava as origens, só lamentava os erros cometidos. Contudo, compreendia que isso apenas lhe servia para melhor decidir nas suas atitudes e decisões com vista à construção do seu futuro.

Na sala dos retornados adquirida com proventos granjeados ou usurpados na sua terra, Berta espreitava pela janela, enigmática, quase descrente da sua própria capacidade de construir uma vida promissora. Tinha adquirido consciência de que era mulher, falível, desfavorecida económica e socialmente. A viagem para Portugal, o convívio com outras pessoas, em contextos distintos aos das suas gentes trouxeram-lhe conhecimento. Não queria nem podia despojar-se dessas aprendizagens, desses apetrechos, isso seria renegar à vida, só possível com a morte. A morte que ela passou a entender como o términus de uma caminhada mediante a sequência de factos, sucedânea de ocorrências, vincadas na memória e no corpo. Levando-se da cadeira de onde mirava a Avenida e o fervelhar de transeuntes, dirigiu-se ao espelho da casa de banho. Olhando-se bem de frente e de perfil certificando-se mesmo que não era a mesma menina deambulante de Maquela do Zombo, nem a juvenil criada preta do Negage, nem a preta matumba arrastada por Alzira, nem tão pouco a preta da Alzira em Meruge, mas era a mesma pessoa a preta do Congo em Lisboa. Adulta, porventura fértil, moldada pela sequência e pelo modo da sua própria existência. Pela primeira vez terá compreendido o que representaria para si o envelhecimento, mais aparentando o efémero percurso de uma bananeira do que a longevidade de um embondeiro. Embora a preguiça de estar ali apenas na incumbência de lavar e de engomar roupa de brancos, lhe proporcionasse viver de modo tão cómodo e livre como nunca tinha usufruído, algo a inquietava quanto ao se futuro, na qualidade de mulher e ser humano.

Alzira da Purificação e Benjamim Floriano em Chipre folgavam, como que vingando-se de um amor roubado no passado. É certo que o casamento de Alzira com Adelino Silva se consumara mais por conveniência do que por amor, mas também não tinha sido martírio. Aliás, até emprenhar de Adelino, pela primeira vez, no Negage, gostava de dormir e do quotidiano com o marido em África, mesmo ainda sem abastanças. Benjamim apaixonara-se por Alzira desde criança, tão imberbe que nem sabia a partir de que momento, nem de que idade. Contudo, o destino ou seja lá o que fosse, ali estavam ambos a gozar rendimentos, no Outono das suas vidas.

Alzira na companhia de Benjamim descobria novos mundos e outras ideias. O empresário luso-germânico acumulou experiência, adquirindo uma outra forma de investir dinheiros, olhar o mundo empresarial e humano. Silva da roça do Negage apenas amontoava lucros, suprimia gastos e enviava riquezas para África do Sul. Sugava da roça como se adivinhasse o fim da mama a breve trecho. Benjamim julgava que multiplicando lucros em participações financeiras conquistaria o mundo e ainda gozaria dos maiores prazer da vida. Alzira com Adelino Silva tinha sido a senhora da pretalhada, coscuvilheira entre a brancada, anfitriã de abades, oficiais militares, colonos ricos e remediados e oficiais do regime, bem-fazente dos indigentes: “fazer o bem sem olhar a quem”, beata arredia das homílias, sermões, confissões, procissões e novenas. Com Benjamim era a mulher, de braço dado, ao lado do condutor, na mesa e na cama de empresário bem-sucedido.

Susana e Fernanda eram as mulheres de dois empresários improváveis fugidos da Revolução de 25 de Abril de 1974, em Portugal, dadas as ligações ao regime deposto e enriquecidos, milagrosamente, na África do Sul do Apartheid.

Alzira e Benjamim foram alojados por umas semanas às expensas dos empresários turísticos, genros do falecido monopolista da roça de Carmona. O empresário luso-germânico não acreditava naquele género de gestão cujos investidores denotavam total desconhecimento pelos meandros do negócio, desabafava para a companheira que aquilo era gerido à laia de mercearia, à maneira salazarista, sem visão de expansão. Alzira começou por se incomodar com as alusões de Benjamim, menosprezando a metodologia salazarista. Salazar era para Alzira o expoente máximo da inteligência, da bondade, da caridade e o fiel cordeiro de deus na terra. Mas, condescendia nas críticas aos genros, até porque bem sabia que se tinham tornado proprietários de resort em Chipre, por conta dos bens que o seu marido tinha traficado para África do Sul, a partir de Carmona.

O telefone tocou, a recepcionista, em inglês, atendeu e encaminhou a chamada para Fernanda e esta chamou Alzira. Ela surpreendida, quem a poderia procurar em Nicósia no hotel das suas filhas…

- Estou, quem fala?

- Ah és tu meu filho. – Virou a cara para o lado e disse, “é o Afonso”.

- Olha, cá estamos, isto é muito bonito, meu filho, vem cá visitar as irmãs.

- Mesmo, queres vir para cá de vez? Fico muito contente, mas desististe da política, meu filho?

- Ora, graças a deus, Nossa senhora do Rosário ouviu as minhas preces. Tanto pedi para te tirar da cabeça a ideia de seres deputado.

- Olha o Delfim está aqui a dizer que podes vir já, vou-te passar o telefone, meu filho, beijinhos e abraços de todos, meu filho, deus seja louvado…

Entretanto, na Avenida da Igreja nada se passava de novo no apartamento dos retornados. Dona Júlia bem espreitava pelas janelas, bem se punha à coca de eventual barulhinho, porém, era como se ninguém habitasse a casa. Não enxergando rasto de Berta, morta por novidades bateu à porta com os punhos, ignorando a campainha. Berta espreitou pelo forame e não respondeu. Júlia regressou ao seu apartamento, encolhendo os ombros, esticando os beiços e balançando braços, intrigada. Desceu as escadas e voltou a subir, queria comentar com os vizinhos acerca da ausência de gente naquele apartamento. Teria decorrido porventura meia hora voltou à porta dos retornados, colou o ouvido e não escutando ruído nenhum, premiu a campainha, demoradamente, em força. A preta do Congo, vendo que não se desobrigaria da bisbilhoteira, abriu a porta, encarando-a de frente, cara a cara, tete à tete como costumava dizer Alzira.

- Ah, estavas cá rapariga, e porque não respondes? Desenvergonhada…

- O que quer, senhora Júlia, diga lá se faz favor…

- Não quero nada, só se estavas viva, depois da pouca-vergonha que se passou aqui com o teu patrão, até pensei que tivesses desaparecido.

- Eu não fiz mal para ter vergonha e muito menos desaparecer, senhora Júlia.

- Pois, pois, pensas que não sei da vossa arte de pecadoras insolentes? Olha, passa bem, se for preciso alguma coisa estou aqui ao lado. Olha lá, se aparecer por aí o menino Zé Maria ou a senhora dona Alzira que me batam à porta, ouviste?

- Sim, senhora, ouvi…

Zé Maria vexado com o espectáculo ofertado aos vizinhos da Avenida da Igreja, pressupondo que seria alvo de críticas e chacota, retardou o retorno àquele lugar. A sua Bety não cozinhava, não limpava a casa e não lavava nem engomava roupa. Na África do Sul branca da sua igualha era sinónimo de vida fútil, só para mandar na criadagem e ser mandada pelo marido, espreguiçar, passear, coscuvilhar, até empresária e funcionária, menos doméstica. Não sabia, nem fazia intenção de aprender a língua portuguesa. Afirmava: “quem fala o inglês não tem que aprender outras línguas, o inglês é a língua da civilização, não temos necessidade de baixar de nível”. Zé Maria contratara empregada externa para cozinhar e limpar a casa de Carnaxide, a roupa habitualmente utilizava os serviços de lavandaria, com Berta na Avenida da Igreja, seria ela a desempenhar a função de lavadeira à moda das pretas em Carmona. Mais económico e funcional seria encarregar Berta de todo o serviço, inclusivamente do fogão, mas como? Não podia introduzir uma preta na casa onde morava com a sua branca do Apartheid.

Após uns dias de convalescença, de recuperação de arranhões, negras e de mais mazelas resultantes dos socos, bofetadas, pontapés, arranhões de Afonso, bem como das mocadas nas paredes das escadas de mármore, solicitou a um dos seus empregados de confiança na empresa de importação e exportação a tarefa de ir entregar roupa suja à Avenida da Igreja. Num pequeno envelope com morada inscrita meteu umas notas, levando a faixa de cola aos beiços, colou e disse:

- Germano, faz-me um favor, vais a minha casa que a minha mulher te entrega uns sacos para levares a essa morada. Tenho lá uma empregada. Passas-lhe os volumes e vens-te embora.

- Com certeza, patrão, e está lá alguém?

- Sim, está, já confirmei pelo telefone: vá, ela está à espera. Ah, não percas o envelope, dá-lho, sem falta.

Germano deslocou-se a casa do patrão, atendeu Bety, arengando em inglês, na certeza de que não se fazia entender. Fez-lhe sinal para apanhar quatro sacos grandes de plástico, depositados na cozinha. Na mão Bety tinha um pequeno manuscrito que também entregou a Germano. Ele fixou o pequeno apontamento, sem perceber nada perguntou:

- Este papel também é para entregar à empregada, minha senhora?

- Yes of course!

Germano carregou os sacos e disse para si próprio, ao entrar para o automóvel: “a mula não fala português mas percebe, encabava-a bem, a ver se não dizia ai, ai, tão bom, tão bom, mais, mais, bruto, bruto, nãooo (…) ”.

Berta com trabalho por sua conta, abriu o pequeno envelope, retirando o dinheiro que logo guardou na cabeceira da cama onde dormia. Mentalmente programou a aquisição de produtos para levar a efeito um calulu, a sério. Através das suas andanças pela cidade já tinha descoberto o local onde podia comprar todos os condimentos necessários: quatro postas de peixe corvina; trezentos gramas de quiabo; duas beringelas; uma cebola média picada; três dentes de alho; uma folha de louro; dois pacotes de espinafres; meio decilitro de óleo de palma; um tomate médio; farinha de mandioca.

Claro que se fosse no Negage ou noutro sítio da sua pátria os ingredientes seriam diferentes e de acordo com a tradição, em Portugal, pelo que tinha observado e auscultado, seria o mais parecido possível.

Assim, pensou que começaria: descamar o peixe (caso não lho descamassem na praça); esmagar os três dentes de alho e temperar todo o peixe; retirar as pontas dos quiabos; descascar as beringelas, cortando-as aos quadrados e colocar ambos num recipiente com água; retirar a pele da cebola e ralá-la; cortar o tomate; lavar os espinafres com bastante água, reservando-os tal como os outros ingredientes até a preparação do peixe; num tacho largo começar por colocar uma parte da cebola ralada, uma parte do tomate picado, as postas de peixes, os espinafres, a folha de louro, a beringela aos quadrados, o restante da cebola, o tomate e por cima o óleo de palma; levar ao fogo médio para que todos os ingredientes se cozinhassem lentamente; após trinta minutos adicionar os quiabos; deixar cozinhar por volta de quarenta minutos sempre tendo atenção a fim do peixe não se desmanchar; engrossar o molho do calulu com farinha de mandioca; desfazer em água, uma colher de sopa de farinha e misturar ao cozido; deixar no fogo por mais dois minutinhos; pronto! Comer!

Bom, mas uma especialidade gastronómica daquela natureza não teria sentido se não fosse à mesa com patrícios ou, pelo menos, assimilados…

Lembrou-se das pessoas de Meruge e concluiu que nem uma gostaria do seu calulu. Só a patroa Alzira, mas essa andaria no bem-bom com Benjamim. Os filhos de Alzira não e resmungou: “sukuama (exclamação, pejorativo/puta que os pariu) ”. A dona Júlia, a ngueta (senhora de baixa estirpe) talvez apreciasse, porém, quase sibilou: “tugi (merda) ”. Quem ela queria mesmo à mesa, comendo consigo um calulu, seriam as duas kwanhamas e o branco guerrilheiro de Bbanz Congo, mas, onde andariam eles… Na sua terra era tradição a mulher preparar um bom calulu para o seu marido, em ocasiões especiais. Imaginou-se a cozinhar o seu calulu para o rapaz que lhe tinha oferecido as moedas no aeroporto de Lisboa. De repente lembrou-se do papelito que lhe trouxera o empregado do Zé Maria, junto do envelope do dinheiro e os sacos de roupa suja. Foi ver novamente – que raio, nem uma palavra decifrava, como se ainda fosse analfabeta. Mirou, mirou e cismou: “francês, alemão do Benjamim ou inglês do Zé Maria… Ah, já sei a mulher do Zé Maria…”. Lembrou-se da Paula, uma estudante que conheceu, por acaso, no mercado trinta e um de Janeiro. Uma mestiça vistosa, bonitona, cabelos de ondas largas, esbelta e muito bem trajada. A Paula tinha-lhe perguntado: “és angolana? Sou”, lembrou-se então que lhe tinha mostrado onde estudava, na Faculdade de Farmácia, Avenida das Forças Armadas, perto de entre Campos. Decidiu ir à sua procura, tão simpática, conterrânea, certamente seria boa companhia com quem partilhar a sua comida. Talvez soubesse inglês, já que estudava medicamentos, farmácia…

Berta, cuidadosa, inspecionou toda a roupa suja, peça por peça, ao pormenor. Separou por cores e verificou as nódoas. Lençóis foram para a máquina, programa a sessenta graus, detergente e amaciador nos recipientes próprios. Roupas interiores, delicadas de Bety para o omo, água fria, assim como lãs. Separadamente um monte de roupa clara e outra escura para posterior lavagem em separado, evitando indesejáveis tingimentos. Tudo em andamento, desceu as escadas deitou-se a caminho da Faculdade de Farmácia. Pelo percurso lembrou-se que Paula lhe afiançara que só queria tirar o curso e voltar para Angola onde pretendia contribuir para o desenvolvimento do país. Isso é que seria uma oportunidade de ela própria voltar também, solicitando ajuda a Paula que lhe pareceu menina engajada nos poderes de decisão da nova Angola, gente preta e mulata, com certeza, nada de brancada antiga, essa tinha migrado para Portugal, África do Sul (como o Zé Maria), Estados Unidos da América e para outros países da Europa. Não foi difícil dar com o edifício, valeu-lhe saber ler, graças aos ensinamentos da professora Alcina de Meruge. Na portaria perguntou por alunos angolanos e logo lhe indicaram a sala e, por incrível coincidência, encontrou Paula num corredor conversando com um colega mulato, angolano o qual lhe foi apresentado, de imediato, o Gervásio Kahungo Simões, do Lobito, filho de gente do governo de Angola e descendente de mestiça da Catumbela e pula colono de Chaves. Foi Kahungo que traduziu o texto do inglês para português, literal: roupa fina, querer lavar eficiente. Estragar paga.

Berta, fez um muxuxo palatal com a língua nos dentes e sussurrou: “ngueta”; Paula corroborou e atirou: “puta!”. Kahungo sorriu. Jandira, estudante cabo-verdiana, que, entretanto, se tinha juntado ao grupo rui-se alto e gracejou: “mondroga, catchorra dôs pé (branca, cadela ordinária) ”.

Zé Maria levou a séria a desfeita que o irmão lhe fez, ou seja, desrespeitou-o ao usurpar-lhe a presa que era Berta, apesar do aviso que lhe tinha feito pelo telefone para não lhe tocar. Telefonou para Chipre e perguntou à Susana:

- A mãe já chegou?

- Então diz-lhe que o Afonso não vê mais um tostão.

Os negócios de Zé Maria, teoricamente, compreendiam a exportação de peças de maquinaria e géneros alimentícios não perecíveis para Angola. Contudo, iam bem além disso. Aliás, essa era o disfarce para a transacção de mercadoria clandestina e recebimentos em matérias preciosas. A sua estadia na África do Sul abriu-lhe caminho para o acesso a individualidades da UNITA, estacionadas na Jamba e, por outro lado, a experiência do tráfego do pai em diamantes ensinara-lhe o “modus facientis”. Dos portos marítimos do Sul de Espanha partia matéria pesada até para oficiais do exército das FAPLAS e para a Suíça o pagamento gordo em moeda cotada.

Antes de uma viagem a Cadiz com Bety, Zé Maria foi à Avenida da Igreja, recolheu a roupa lavada e engomada e ordenou:

- Menina, tem cuidado, vou estar duas semanas fora, não quero cá ninguém, ouviste? O Afonso não põe aqui mais os pés!

Se Zé Maria estaria quinze dias fora, eis o intervalo ideal para Berta adquirir, convidar e cozinhar. Assim procedeu, foi ao encontro de Paula que logo tratou de aceitar o convite para si, o Gervásio e outra pessoa, surpresa. Berta no sábado aprazado aprontou o manjar. Por volta das treze horas e trinta minutos (angolano não madruga assim do nada, mangonha de fim-de-semana é irresistível) a campainha tocou. Paula na mão com o saco de fruta, mamão e mangas, Gervásio mãos a abanar e sorriso estampado, Roberto carregado de cerveja. Que belíssimo almoço e cerveja à vontade, Berta não bebia cerveja, vinho, nem nada alcoólico, só água da torneira. Assistiu à morte de patrícios na roça do Silva derivado ao consumo da zurrapa bangassumo, importado de Portugal e ela própria quase se tinha desfeito em diarreias, por via do maruvo palmito fermentado das palmeiras, em Tambuco. Por isso, jurou: “bebidas alcoólicas, zero. Dizer a angolano: “deixa de beber, para, mais cerveja não, chega…”. Nada, não resulta.

 Os construtores civis em Portugal que se lançaram na expansão do cimento armado em Lisboa foram, em grande parte, oriundos da região de Tomar. Foram homens que singraram na vida a pulso, investindo, mediante empréstimos a particulares, como uma sociedade mutualista e corporativa, à maneira maçónica, ou seja, grupo fechado, secreto e conduta pré-definida. Ganharam concursos na administração pública e impuseram estilos arquitectónicos, materiais e criaram regras do mercado imobiliário. Como organização corporativa também optimizaram construções lucrativas e aparentemente funcionais, à maneira da corrente francesa de Le Corbusier. Avançou-se na leveza, funcionalidade e na segurança dos edifícios, mas também se encurtaram as espessuras nos muros e nas placas de cobertura, pelo que os vizinhos passaram a escutarem-se reciprocamente.

Ora, angolano no convívio tem que arranjar bebida, comida, música, dança e sensualidade. Concorreram para o facto antigos discos vinil de Afonso – merengue, semba e coisas à toa. O disco dos Jovens do Prenda foi até não dar mais, riscado… Júlia, alvoroçada, tocou à campainha e atirou lá para dentro:

- Deixa estar, sua galderia desenvergonhada que te dou o baile, vou já telefonar ao menino Zé Maria.

António, o seminarista, na mercearia ouviu tio que falava com um conterrâneo:

- Não me digas que a viúva retornada largou a terra?

- Bem, se calhar, volta, mas, pelo que ouvi, anda a passear pelo mundo com o Benjamim a gozar os rendimentos.

- Benjamim, o quê o emigrante?

- Sim, veio rico, que julgas…

- Então e a preta, a criadita?

-Despachou-a cá para Lisboa, parece que está lá para Alvalade…

António petrificou, avivaram-lhe a memória acerca de Berta. Teve vontade de saber mais, sobretudo onde morava em Alvalade. Quase que abria a boca, porém, a timidez mais uma vez tomou conta de si e emudeceu. Ficou para ali a matutar na maneira de encontra a miúda pela qual se apaixonara tanto que o fez largar a formação clerical. A conversa entre o tio e o conterrâneo mudou de tema. António ainda escreveu ao irmão tentado saber da senhora Alzira. Formulou mesmo a pergunta, “onde é a casa dela aqui em Lisboa?”. A resposta do irmão ainda o confundiu mais porque lhe dava conta de que a retornada não morava em Lisboa, mas que tinha ido com o senhor Benjamim para a Alemanha. Claro que António não queria saber de Alzira, mas não tinha coragem de perguntar abertamente por Berta, a criada preta. Parecia simples e natural, só que não conseguia. Antes disso punha-se à alerta assim que o tio falava das pessoas de Meruge, da quinta do Vale de Cabra, e até de Oliveira do Hospital, tentando apanhar, nem que fosse uma pequenina referência a Berta, mas o tempo decorria e nada mais. Numa tarde à saída da mercearia, tarde como de costume, pois enquanto houvesse freguês não se fechava a loja, ganhou coragem e perguntou:

- Tio, sempre é verdade que a senhora Alzira voltou para cá?

- Parece que foi com o Benjamim para a Alemanha, pá.

- Com a criada e tudo, tio?

- Qual quê pá, despachou a preta prá África!

Aterrado com a ideia de Berta ter regressado à origem, António perdeu o chão, à beirinha de desfalecer, quase cambaleou, segurou-se só para que o tio ignorasse o seu pânico. Nessa noite não pregou olho, às cinco horas matinais levantou-se, sentando-se na cama à espera que os tios despertassem. Tanto magicara na forma de reencontrar Berta e tudo se desvanecia num ápice. Amaldiçoou aqueles que acabaram com a guerra no ultramar porque, nesse caso, iria voluntário atrás do cheiro da pretinha, até a fararia a quilómetros de distância. Depois, serenou um pouco e concluiu que se a guerra colonial perdurasse, Alzira não teria regressado e portanto não teria conhecido a criada, a menina preta. Se Berta não tivesse surgido na sua vida, porventura não saborearia nunca uma paixão avassaladora que o arrancou da tenebrosa ilusão sacerdotal. Com essa ideia aterradora de jamais alcançar o desejo de beijar a amada africana, apaziguou-o o facto de se ter livrado do assédio sexual perpetrado pelo confessor. O profundo crer Berta animara-o para a vida. O desaparecimento dela ofuscava-o de novo. Teria de buscar novas quimeras para viver e banir os fantasmas tenebrosos dos assédios clericais. Perante todas as incertezas do paradeiro de Berta, António queria acreditar no reencontro. Voltou às orações, às Ave-Marias, aos Padre-Nossos. Devotou-se a Nossa Senhora do Rosário de Meruge só suplicando por consolação e milagrosa aparição da sua virgem negra. Pedia encarecidamente que São Miguel da capelinha de Meruge lhe mostrasse o rasto da sua amada e a todos os anjos que lhe iluminassem o caminho até ela. As divindades não lhe abonavam sinal e ele, mais uma vez, desfalecia, desacreditando, outra e outra vez, ao ponto de praguejar à maneira do maior herege, profanador e iconoclasta. Saía da mercearia e vagueava por Lisboa noctura, buscando rostos negros nas transeuntes. Corria para elas quando lhe pareciam Berta. Prostrava-se, frustrado, assim que se certificava do engano. Calcorreava todos os milímetros das calçadas de Entre Campos à Ameixoeira, pelo Lumiar. Subia e descia a Avenida de Roma, percorrendo, incessantemente, avenidas, ruas, ruelas, praças e pracetas de Alvalade e sempre voltava para a cama sozinho, desolado, para no dia seguinte prosseguir buscando a menina preta que lhe mostraram, pela primeira vez, na quinta do Vale de Cabra, ajudando nas tarefas da consoada. Berta, sem imaginar, continuava na Avenida da Igreja na qualidade de lavadeira e subordinada aos caprichos de Zé Maria.

O coração de Berta não clamava por António, mesmo que se cruzassem solitários numa desértica ou pejada artéria lisboeta, os destinos não se fundiriam numa qualquer solução química. Os misteriosos entes Kiandas e católicos apostólicos romanos não se alinhariam só porque António queria Berta. Kiandas são "espíritos das águas" e uma das entidades reguladoras do mar, dos lagos, dos rios, dos peixes, das marés e da pesca. Estão ligadas ainda à fecundidade feminina e às crianças, sendo a elas atribuído o nascimento de gémeos. Apresentam-se envoltas por um clarão de águas ou de ar. São mistérios arredios dos entendimentos de noblato monge celibatário, incauto aprendiz de confessor católico, austero monoteísta romano inquisidor. Se porventura Berta avistasse António, nada mais lhe poderia oferecer do que um cumprimento gentil de graciosa menina virgem negra, inacessível a infeliz lampinho. Mesmo que Berta, por qualquer motivo, acedesse ao fervor amoroso ilustrado pelo presumível gesto pasmo, tímido incurável, boquiaberto de olhos esbugalhados de António, como entenderia ele que aquela menina negra alva celeste tinha sido coagida a práticas sexuais? Pior, como aceitaria o aprendiz de padre que a almejada virgem celestial se tivesse desenvencilhado de lençóis amarotados, após noites de movimentos contorcionista de corpos interlaçados?

António depois muito estonar em busca de Berta, serões deambulando por Lisboa nocturna e manhãs de vigília, desassossegado, serenou e empreendeu novo rumo, conformando-se.

A cliente Hortense não se esfalfava de lhe pôr à frente a sua filha Miquelina, o tio também se empenhava no enleio e António anuiu, pronto: para quê correr atrás de quem não se alcança e assim se fez um casamento consumado sem canseiras de amores e desamores – tudo tratado à maneira antiga. Efectuou-se a cerimónia católica na Igreja de Nossa Senhor do Rosário, banquete na quinta do Vale de Cabra com direito a baile de concertina.

O jovem marçano foi descorando gradualmente a paixão pela lírica camoniana, fazendo tábua rasa dos ensinamentos nas hostes da eclésia, mergulhando na literatura mundana. A prosa poética de Virgílio Ferreira viciava-o ao ponto de devorar toda a obra do autor, apesar da amargura que lhe provocara a leitura de “Manhã Submersa”.

De facto, o existencialismo do estilo literário de Virgílio Ferreira, seduzia António no plano da sensibilidade espiritual, religiosa, social e telúrica. António encarava Virgílio Ferreira como o beirão erudito da Beira rústica, emigrado na cidade cosmopolita e multicultural dos outros. Porém, “Manhã Submersa” era, para si, a incursão pelas peripécias do seminário, na qualidade de mero aprendiz dos dogmas formatadores. Os traumas, a rigidez e a impotência de lhes fazer frente avivaram a memória prodigiosa de António. Lembrança que ele queria olvidar mas o romance esporeava-o. Além de Aquilino Ribeiro com o seu “Quando os Lobos Uivam”, também Miguel Torga, Carlos de Oliveira, Rodrigues Migueis e Luiz Pacheco o fascinaram. Contudo, a grande revelação foi Manuel Fonseca. Logo que se embrenhou no “Fogo e as Cinzas”, “Cerromaior”, “Tempo de Solidão”. Em Manuel da Fonseca descobriu o vagar do dizer e o discorrer das personagens. António da Beira aprendia forma do viver à alentejana de Santiago do Cacém. Desvendava com esta escrita dita neorrealista o emprego da perifrástica e do gerúndio, coisas que na sua vivência de seminarista não lho permitiam. Nos momentos de relembranças e de inquietações passou a socorrer-se de Gil Vicente e rematava: “pró inferno com a barca, antes burro que me leve do que cavalo que me derrube”.

Berta quis prodigalizar fuga da Avenida da Igreja, sujeitando-se a ser novamente estuprada. Zé Maria herdara do pai mais do que bens pecuniários, também vícios e metodologias apanágio do progenitor. Receou arremessar-se na cidade, sem tutor, abrigo, conhecimentos. Conjecturou e recuou na ideia de bater à porta de terceiros solicitando auxílio, numa pátria que não era a sua. Ainda indagou junto de catanhós eventual trabalho de limpezas, sem resultados concretos, ou seja, sem garantias de ocupação, nem de alojamento. De facto, através das incursões que ia fazendo pelos diferentes bairros de Lisboa, não detectava outra ocupação nas pretas que não fosse serviços de limpeza. Até poderia oferecer-se para ajudante ou porventura cozinheira numa qualquer taverna, mesmo assim temeu falta de oportunidade, dado que só poderia residir naquela casa se admitisse os aferros dos donos. À noite percorreu os lugares de vida noctura da cidade onde não topava mais do que solidão, marginalidade e prostituição nos bares de alterne ou prostíbulos degradantes. Rendeu-se e ficou, lavando e engomando e o que mais desse na veneta a Zé Maria. Alzira sumiu-se, assim, sem mais nem menos, evaporou-se com o seu Benjamim Floriano.

Zé Maria antes de a molestar, demorava-se na casa da Avenida da Igreja. Sentava-se a ver televisão, observa-a no tanque na tábua de engomar, mandava-a às compras e esperava que ela regressasse, depois saía, assobiando. Uma tarde, de partida disse:

- Miúda, não te quero prenha, hein. Tens alguma coisa para tomares?

- Hum, hum, menino…- Balbuciou Berta, perturbada.

Durante duas semanas Zé Maria ausentou-se, Berta distendeu. Queixou-se a Paula e a uma angolana que, entretanto, conhecera no mercando, a Domingas quitandeira da fruta, amiga da Patrícia varina. A estudante aconselhou-a a resistir, sem lhe prestar qualquer apoio supletivo, a vendedora desvalorizou o assunto, rindo-se, dando a entender que seria bom aquiescer.

Zé Maria voltou sem o habitual embrulho de roupa suja. Bem-disposto, com dichotes e cortesias inusitadas. Sentando-se numa das cadeiras adstritas à mesa da cozinha, enquanto Berta inventava trabalho, esfregando, secando, molhando e escorrendo peças, sem necessidade – só a fazer tempo até que ele abalasse.  Quis saber da saúde da pretinha do Congo, se alguma vez teria ido ao médico e para que efeito. O que fazia durante o tempo todo de sobra. Por onde passeava, o que ouvia, conhecia, mirava e pensava. Ao pormenor indagou da sua dieta alimentar. Ofereceu-se para lhe proporcionar conforto. Inquiriu-a quanto aos gostos e precisões em matéria de indumentária. Por fim, retirou da algibeira do casaco uma caixinha de aspirinas e um conjunto de comprimidos pequenos brancos, avulso, dentro de um frasco que tinha sido de xarope e ordenou, delicadamente:

- Ora, muito bem, aqui tens estas aspirinas para tomares no caso de alguma dor de cabeça e estas pastilhas pequenas para tomares todos os dias, sem falta, que te farão bem, mas tens que tomá-las todos os dias e logo de manhã, capito, percebeu a menina, hein? – Eram pílulas, surripiadas à mulher. Deduzindo que se Bety nunca tinha engravidado por via daqueles milagrosos comprimidos, supunha, também Berta não emprenharia.

Zé Maria partiu, solícito, batendo a porta suavemente e Berta pegou nos medicamento e arrumou na gaveta dos panos de cozinha. A ideia era mostrá-los a Paula. No dia seguinte dirigiu-se à Faculdade de Farmácia. Porém na conversa com a estudante acabou por esquecer as aspirinas e as pílulas, ante o entusiasmo de novo jantar na Avenida da Igreja, na sexta-feira daquela semana. Logo combinaram o menu: muamba de galinha com quiabos, óleo de palma, funje e tudo, como ditam as regras de uma boa muambada à angolana.

Desta vez Berta teve o cuidado de alertar Paula para o facto de não meter música, nem confusão, por via de Júlia e dos restantes vizinhos. Porque se Zé Maria tomasse conhecimento seria o caos. Receosa que, por qualquer eventualidade, o patrão aparecesse, mas ansiosa por conviver com patrícios e comungar de hábitos e de tradições, arriscou, com entusiasmo. Às vinte e uma horas na casa dos retornados a muamba com galinha do campo exalava, perfumando toda a casa e até o patamar exterior com aquele perfume intenso do dendê. Paula bateu com os nós dos dedos na porta, Berta logo abriu e eis os restantes: Jandira, Gervásio, Roberto e Ernesto, três para três, incluindo Berta e Paula.

A preta do Congo, menina feita mulher através dos sinuosos caminhos de órfã colonizada, arrastada por meios e para lugares improváveis das verosimilhanças de uma criança do mato, estava feliz entre africanos em Lisboa. Tinha vindo ao mundo depois da abolição da escravatura, mas tinha sido usada como se ainda imperasse tal domínio, tinha nascido depois de abolido o estatuto de assimilado, mas fora-o como tal. Tinha cartão de cidadã angolana residente em Portugal, mas era como se fosse clandestina, porque não vislumbrava quem a livrasse da condição de subjugada à contumácia de terceiros. Com os jovens africanos sentia-se feliz, porém não passou de indivíduo utilizado, capaz de proporcionar serviços e prazer, sem reciprocidade. A muamba deliciosa e camas excelentes para regozijo dos estudantes e uma réstia, uns míseros e efémeros momentos de prazer, para Berta na cama de Susana e de Fernanda com o atlético espadaúdo Ernesto, em antagonismo com esquálido Afonso.

Os estudantes foram escasseando mais as visitas à Avenida da Igreja, até por temor à vizinhança e ao presumível embate com Zé Maria que, entretanto, se assenhoreou do corpo e destino de Berta. Zé Maria tinha o que lhe proporcionava prazer em contrapartida com a sua Bety, distante, assexuada e insípida. Berta desleixava-se, ia perdendo o sentido da sua vida. Entregava-se a um qualquer destino, só não queria pensar em felicidade, nem nos seus mambos. Os momentos de sexo exultantes não eram seus, apenas e só de Zé Maria, para ela apenas os minutos exasperados. Nunca mais tocou nas pílulas, mas também não engravidava, descansou, sofismando: “ainda bem que sou maninha, ainda bem que não emprenho, senão…”.

Berta gostava de ler, mas coisas simples, vocabulário corrente do quotidiano dos bairros populares e ainda dos resquícios da ruralidade de Meruge. Ia ao mercado, deliciando-se com os pregões das varinas e entretendo-se com a azáfama de mercadores e clientes. Da parte da tarde descobriu uma livraria em Entre Campos onde se podia sentar e ler, tomar um galão, por vezes, também uma torrada pão de forma com pouca manteiga. Procurava nos escaparates qualquer tema relacionado com Angola. Chegou a comprar um romance de Pepetela, mas teve dificuldade na interpretação da trama romanesca. Descobriu um de Luandino Vieira e esse sim, falava do seu mundo real, concreto. Andou de volta de poemas de Viriato da Cruz, António Jacinto e de Agostinho Neto, porém deparava-se com o problema das metáforas, para ela a linguagem da roça era muito restrita e directa. Olhou, por acaso, para um pequeno livrinho: “Trinta e três Poemas Inteiros”. Fixou-se naquele título, sem saber bem o porquê. Retirou-o do mostruário e, numa mesa, com a torrada e o café com leite, começou a folhear. Percebeu: trinta e três porque correspondem ao número exacto dos poemas publicados naquele pequeno volume. Na contracapa passando os olhos pela curta biografia do autor, sem fotografia retratada, pensou: “até parece que sei quem é… Não, se calhar é um pula qualquer…”. Terminou a torrada e o galão, limpou os dedos a um guardanapo de papel, repetindo o gesto nos seus lábio túrgidos de menina preta, enigmática, solitária e decidiu-se pela leitura.

“ (…) Miro-te ainda à distância/No ontem que agora mesmo resgatei/E para mim…/É o hoje, intemporal/Para lá do corrosivo/O corpo ancorado/E a alma teimosamente néscia/Pueril…

Vejo-te ainda e só/Sob as bátegas inundantes/Repentinas/Nesga entre nuvens inesperadas/Como se Deus, incontinente,/Escondendo-se do Sol/Mijasse sobre a Terra,/E Luanda submergisse

Detritos dos musseques/Fedorentos imbecis/ Colonizadores…

Títeres e lacaios e cipaios e beija-mãos/Dengosos da podridão/Submissão!

Ah… mas tu?/Tu não!/As gotas em catadupa/Encheram-te o diáfano vestido branco/Duas rolinhas de biquinhos apontados/Eu, impotente,/Obsceno e louco/Derreto-me embasbacado/Perante o esplêndido descerramento/A metamorfose do opaco/O emergir do transparente/Deleitoso surgimento de todo o teu corpo”

Leu e voltou a ler e a reler e sussurrou, imperceptível a terceiros: “não é pula não, não é pula, não é pula, pula não é assim – Muxima. Muxima… Até podia ser eu, o meu corpo à chuva no Uíge…

Mais adiante de página em página: “tudo Angola, mas, Cafofa de Benguela… Mussulo… Bumba? Bumba? Mas quê? Bumba chamou-me o patrão Silva e a ngana Alzira…”

“ Ai se pudesse, o que faria por ti…/Será que não poderia mesmo?/Quando se quer, sempre se pode./Meu Deus, como te sinto em mim…/Fosse eu ousado, capaz, corajoso/Porém, para isso, seria o que [afinal não sou] / Merecias que fosse o que deveria ser/Sim, és mesmo mulher!/Porventura, nem te cheguei a desiludir/Tal a insignificância…/Ainda me terás fixado/Nem perdeste tempo, mas talvez devesses/Se me estendesses a mão, poderia ser o que deveria/Se ao menos soubesses como lamento…

Vagueio pelas ruas à tua procura/Busco na ausência a esperança do reencontro, mas…/Em cada rosto de negra em cada [carapinha entrançada julgo ver-te] /Não, regresso vazio, inane…/Oh preta, preta, mais negra de todas as negras/Luz mais luz de todas as luzes/Subtil, linda, resplandecente…/Pomba azeviche, alva etérea, éter eterato,/ [eternal bem supremo] /Nem ao menos um sinal, um esgar, um muxuxo…/Uma coisa qualquer/Excepto este silêncio que me consome, sem saber de ti [e tu presente sempre em mim…”

Berta acabou a leitura, soletrando, petrificada. Memorou “este é o meu rapaz do MPLA, o meu turra, o meu turrinha, agora sei que vou encontrá-lo, é um aviso de Kiandas. Estão me a informar…”

Ia para se levantar, mas virando mais umas páginas fixou-se em “Resistência” e pôs-se a ler, devagar, silaba a silaba: “Do Negage à Portela/Pérola Quicongo à beira do Tejo/Bairro da lata do Areeiro/Musseque dos espoliados em Lisboa

Negra sozinha na noite/embrenhada no escuro dos escorraçados/Avenida abaixo, calçada arriba/Olhos tristes, paisagem do desconforto

Como quem persegue a luz/Borboleta africana, perseverante/Paciente e desesperada, luta, desarmada/Na garganta um nó/Mas, ainda assim, sorri…/Mostra os dentes…/Da boca carnuda, belíssima…/Negra esbelta, triste/E contente/só porque está viva/E seduz…

Que linda que ela vai/Anda prenha a negra do Congo/Veio de tão longe parir em Lisboa/Um filho da noite no musseque do Areeiro.”

Estupefacta com o poema acabado de ler quis erguer-se da cadeira, mas sentiu fugir-lhe o solo sob os calcanhares.  Fechou os olhos, concentrando-se e pensou: “sim esta sou mesmo eu, será que estou grávida mesmo… o período não vem há muito e sinto que sim, prenha, eu a preta do Congo, quicongo e tudo… Areeiro é onde mora a Patrícia a quitandeira, varina angolana do mercado, mas esta sou eu, Berta…”

Dirigindo-se ao balcão da livraria:

- Quero este livro, por favor…

Até à Avenida da Igreja percorreu ruas ao acaso, finalmente introduziu a chave na fechadura, abriu e deixou-se cair no sofá da sala dos retornados. Só após um bom bocado de pasmo reparou que o livrinho continuava colado ao peito sob pressão da sua mão esquerda. Estendeu-o ao seu olhar e não quis ler mais. Levantou-se e foi guardá-lo no fundo da maleta onde ocultava as coisas mais íntimas, só suas, longe das vistas de outrem. Ao colocar o livrinho de poemas, reparou no jornal “O Diário Fim-de-Semana”. Demasiadas páginas de assuntos diversos que perdiam actualidade. Pôs-se a ler e decidiu que assuntos datados e de natureza múltipla, não os queria a tomar espaço. Começou por excluir tudo menos os relacionados com Angola mesmo esses só lhe interessavam os de cariz histórico, etnográfico, social e cultural. Foi retirando até que encontrou outros artigos nos quais não tinha reparado e pô-los de parte para posterior análise. Deixou as páginas excluídas para oportunamente forrar o caixote do lixo e sentou-se na cozinha examinar dois artigos:

“KIMUEZO FIGURA LENDARIA (de portugueses e angolanos)

Ficou conhecido por José ou Zé do Telhado um dos mais famosos salteadores do período pós guerra civil, um conflito que colocou absolutistas e liberais em campos opostos na primeira metade do século XIX. Liderava uma quadrilha que distribuía parte do saque pelos pobres, um gesto que lhe granjeou reconhecimento popular.

José Teixeira da Silva (1818-1875) nasceu na aldeia do Telhado, em Penafiel. De origens humildes, aos 14 anos foi viver com um tio, para aprender o ofício de tratador de animais e castrador. Em 1845 Casou-se com a prima Ana Lentina de Campos, com a qual teve cinco filhos.

Nos Lanceiros da Rainha de Lisboa iniciada no quartel de Cavalaria 2, começou a carreira militar, Combateu contra os “Setembristas” em defesa da restauração da Carta Constitucional, em Julho de 1837 Posteriormente envolve-se- no complicado processo da guerra civil que opôs liberais a absolutistas, e acabou por sair do país após a derrota da sua facção, refugiando-se em Espanha.

Ao regressar, grassava a revolta contra o governo anticlerical de Costa Cabral. Quando estala a Revolução da Maria da Fonte, Março de 1846, vê-se envolvido como um dos líderes da insurreição. Coloca-se às ordens do General Sá da Bandeira, que também tinha aderido. Assume o posto de sargento e distingue-se de tal forma na bravura e qualidades militares que, na expedição a Valpaços, recebe a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, a mais alta condecoração que ainda hoje vigora em Portugal. Mas entra em desgraça, amontoa dívidas de impostos que não consegue pagar e é expulso das forças armadas.

Foi após o exílio de D. Miguel que José Teixeira da Silva regressou a casa, assumindo a liderança de uma quadrilha responsável por vários assaltos no norte do país, durante um período muito conturbado que coincidiu com a fase de maior resistência de D. Miguel, no exílio com o seu governo: os partidários miguelistas tentavam formar grupos de guerrilha em todo o país e começa a ser conhecido como “Zé do Telhado”. Durante uma dessas surtidas o seu grupo mata um criado e o bando passa a ser procurado com mais insistência pelas autoridades. Acossado, tenta escapar, mas é preso em 1859 a bordo do navio no qual pretendia chegar ao Brasil. Conta-se que devido à traição do seu lugar-tenente, José Pequeno.

Da prisão para o degredo em Angola

Preso na Cadeia da Relação, conhece Camilo Castelo Branco, que se lhe refere no livro "Memórias do Cárcere" e que tinha sido detido por adultério, o que acaba por lhe salvar a vida. É o advogado-escritor que o vai defender em tribunal e, contra todas a expectativas, não é condenado à morte. Em 9 de Dezembro de 1859 é julgado e condenado a degredo perpétuo na África Ocidental Portuguesa, pena que haveria em 1863, de ser comutada para 15 anos de degredo em Angola, país onde viria a reconstituir a sua vida.

Viveu em Malanje, negociando borracha, cera e marfim. Casou-se com uma angolana, Conceição, de quem teve três filhos. Conhecido entre os locais como o "kimuezo" - homem de barbas grandes, viveu desafogadamente. Faleceu aos 57 anos, vítima de varíola, sendo sepultado na aldeia de Xissa, município de Mucari, a meia centena de quilómetros de Malanje, sendo-lhe erguido um mausoléu, que se tornou num local de romagens.”

Berta quedou-se um pouco, digerindo o que tinha acabado de ler. Concluiu que gostava daquela personagem de branco assimilado, associado a estatuto dos mais velhos, quiçá, Príncipe Mbaza Congo na hierarquia dos kiandas misteriosos.

Voltou-se para o novo texto, “bem, este é diferente, História de Luanda, vou ver a surpresa…” E deu-se à leitura, silenciosa, feliz por ter aprendido a ler e a escrever algumas coisas, grata à professora Alcina de Meruge:

“25 DE JANEIRO - DIA DA FUNDAÇÃO DA CIDADE DE LUANDA, LOANDA ou (SÃO PAULO DE ASSUNÇÃO DE LOANDA)

LUANDA 25 de Janeiro 1575

A cidade ganha o nome através da sua ilha (Ilha de Luanda), local onde os primeiros colonos portugueses se radicaram. O topónimo Luanda provém do étimo lu-ndandu. O prefixo lu, primitivamente uma das formas do plural nas línguas bantu, é comum nos nomes de zonas do litoral, de bacias de rios ou de regiões alagadas (exemplos: Luena, Lucala, Lobito) e, neste caso, refere-se à restinga rodeada pelo mar. Ndandu significa valor ou objecto de comércio e alude à exploração dos pequenos búzios colhidos na ilha de Luanda e que constituíam a moeda corrente no antigo Reino do Kongo e em grande parte da costa ocidental africana, conhecidos por zimbo ou njimbo.

Como os povos ambundos moldavam a pronúncia da toponímia das várias regiões ao seu modo de falar, eliminando alguns sons quando estes não alteravam o significado do vocábulo, de Lu-ndandu passou-se a Lu-andu. O vocábulo, no processo de aportuguesamento, passou a ser feminino, uma vez que se referia a uma ilha, e resultou em Luanda.

A cidade de Luanda foi fundada por Paulo Dias de Novais, na sequência da chegada à região de uma armada de Lisboa, que transportava várias centenas de homens, entre soldados, mercadores e missionários.

Paulo Dias de Novais era um fidalgo da Casa Real, neto de Bartolomeu Dias, que tinha anteriormente sido incumbido de liderar uma embaixada ao reino de Angola. Conhecia, portanto, o terreno e os cenários politico e social da região.

A armada chegou à ilha de Luanda em fevereiro de 1575 e Paulo Dias de Novais, após reconhecimento do terreno, decidiu criar um núcleo permanente, a que deu o nome de S. Paulo de Luanda, não na ilha mas em terra firme devido às boas condições de defesa e, sobretudo, do porto abrigado.

Paulo Dias de Novais morreu em 1589, no decorrer de uma dessas expedições. Seja como for, Luanda passou a ser o centro da presença e da influência portuguesa em toda região durante os séculos seguintes, exceptuando um breve período, entre 1641 e 1648, durante o qual a cidade esteve sob o poder dos holandeses.”

No final resolveu juntá-los como relíquias aos outros considerados do mesmo modo, no fundo da sua maleta, como se fosse o seu cofre.

 

Zé Maria andava arredio das visitas a Berta, os negócios de transacções impunham-lhe deslocações, cuidadosas e secretos contactos. Pela ligação a influentes decisores na diplomacia portuguesa com angolanos, havia que empreender viagens à Suíça, França e sobretudo ao Sul de Espanha. A instabilidade política em Angola, bem como a acção continuada de guerra interna, tinham depauperado toda a produção no território angolano, de Cabinda ao Cunene. Ora, nesse caso, abriam-se crescentemente oportunidades de negócio, quer de primeira necessidade, quer em matéria de bens de sumptuosidade das elites. As transferências de verbas para os paraísos fiscais internacionais e o tráfego de bens, via clandestina, passaram a ser bens mais lucrativas do que o meio século de exploração da roça do seu pai no Uíge. Não obstante o progenitor Silva já mexer com a exportação de pedras preciosas, através de subterfúgios e à revelia das autoridades administrativas coloniais, nada se assemelhava aos montantes que Zé Maria passou a movimentar.

Regressou de uns dias entre La Valeta, Rabat e Marselha, com uma escapadela a Nicósia Ocidental só para ver a mãe, dado que com os cunhados arrastava-se o litígio por via das alegadas roubalheiras de diamantes na África do Sul. Furtando-se ao encontro com as manas, cruzou-se ainda, por acaso, com Afonso, mas ambos enfiaram o focinho no chão, ignorando-se.

Ao regressar à Avenida da Igreja, assobiando, sequioso dos prazeres roubados à menina preta. Bem sabia que o consolo não era dela, nem nunca fora recíproco, mas nada disso importava a quem já se tinha habituado a mulher desenxabida como a sua Bety. A sua escola paterna ensinava-lhe que a preto não se perguntava se queria, concordava ou não aceitava – perpetrava-se e pronto, zás, toma, já está, aguenta. Nada de cedências, molezas, comiserações. Se deres a mão ao preto, ele toma-te o braço. Se o branco desejava a preta só tinha que a mandar vir, estuprá-la, mais nada. “Era o que faltava, proporcionar gozo, líbido, orgasmo à escaruma,” pensou…

Encontrou o apartamento às escuras, não havia luz eléctrica. Chamou para dentro:

- Berta, Berta! Que brincadeira é esta, já estás com o focinho na palha? A esta hora…

- Estou aqui, menino, não há luz…

- Porra! Fô….. Cará… Esqueci-me de pagar a factura. Não tens uma puta duma vela?

- Não, menino, há dois dias que a luz não vem.

- Não veio a luz, mas venho-me eu, anda cá sua gazela macaca. Não, desculpa, sua rainha ngola, boa como o milho, estou cheio de saudades.

- Não, não, não, não quero, não posso, menino, estou grávida…

- O quê, repete lá isso! Será que ouvi bem, malvada! Pensaste que me agarravas com essa merda, esse truque? Vais já abortar, mas é já! Ouviste? Obrigas-me a gastar um dinheirão. Se repetes vou-te aos cornos, toma nota!

- Não menino, não quero isso, o filho é meu, só meu…

- Querem lá ver que estamos perante o milagre da virgem, da santíssima trindade. Olha, se calhar, emprenhaste pela graça do espirito santo. Eu sei que sou o teu deus, mas daí a emprenhar-te à distância, por telepatia, sei lá… Tu pensavas que tinhas aqui tença para o resto dos teus dias, não és nada burra. Comigo milongos não pegam…

- Não, menino, deixe-me ir.

- Mas… Não me digas que me puseste os cornos…

-Não, menino, só quero o meu filho, deixe-me ir.

- Até me farias cá um jeitaço, mas para aonde? Prenha…

- Não sei, não sei, mas quero ir…

- Amanhã venho cá tratar do assunto, depois de ir à companhia pagar e pedir para restabelecerem a energia.

Berta, logo naquela noite fatídica, em que o patrão Zé Maria ficou sabendo da sua gravidez, foi ao bairro da lata do Areeiro, ao aglomerado de barracas distendidas ao longo da linha do caminho-de-ferro. Conversou com a sua conterrânea quitandeira, aquilatando da possibilidade de se acolher ali.

- Vem já, está uma barraca à venda, com luz de puxada e tudo, cinquenta contos. – Instruiu-a Patrícia.

No dia seguinte, Zé Maria surgiu, após a hora do almoço, com cara de poucos amigos, carrancudo, de trombas.

- Então, princesa, tens para aonde ir?

- Sim, menino, mas preciso comprar uma barraca, são cinquenta contos…

- Cinquenta contos, julgas que assalto bancos?

- Para a rua não posso ir, assim…

- Bom, quero lá saber, que se lixo, pelo menos livro-me de ti. Não me apareças mais à frente, ouviste? Não sou o pai de ninguém, toma atenção!

- Sim menino, só quero ir…

Zé Maria bateu com a porta, saindo escadas abaixo. Meia hora depois voltou com notas num envelope pardo.

- Tens vinte e quatro horas para me desamparares a loja. Tens aqui duzentos e cinquenta notas de conto, mais do que te vales. Acabou-se, não te quero pôr mais a vista em cima, estamos entendidos? Ai de ti se deres com a língua nos dentes. Amanhã mesmo mando mudar a chave da porta, escusas de ter armar em espertinha. Adeus, passa bem, foi bom enquanto durou.

Berta sozinha, sob o denso e pesaroso silêncio ensurdecedor, pensou: “estou só”. Quase a entrar no desespero, fez-se luz na mente que julgava inane: “ os sonhos não morrem, apenas adormecem a nossa alma.”

Foi-se à luta, a preta do Congo, perseverante, olhos tristes do desengano, paciente e desesperada, borboleta africana, embrenhada no escuro dos escorraçados, como quem perseguia a luz, ainda assim, sorrindo, só porque estava viva e seduzia, andava prenha, tendo vindo de tão longe parir em Lisboa, um filho da noite no musseque do Areeiro.

Lá se foram as manhãs preguiçosas, os desmesurados vagares de contemplação, as esperas de quem tanto queria distância, cujas contingências a subjugavam como rês caminhando para o açougue. De caixote à cabeça logo nas gélidas manhãs, fazendo de quitandeira de canastra de qualquer mercadoria de refugo, batendo à porta dos também desafortunados fregueses. A cada dia de labuta o corpo mais lhe pesava, não apenas em virtude do crescente amadurecimento do fruto que no ventre carregava, mas sobretudo dada a mágoa de que no seu espírito se ofuscava. Os finos, delgados e belíssimos tornozelos, pareciam que copiavam a elefantíase. Da esbelta silhueta feminina, compridos e atléticos membros apenas sobressaía, e não muito, a pança prenha. De resto, inchada, só se fossem os grandes lábios vaginais, porque as maminhas rezingavam pequeninas, não querendo desabrochar de menina pretinha de Tambuco.

A colega, conterrânea e amiga Patrícia alcovitava:

- Berta, quase não tens barriga, as tuas mamas não crescem, não vais ter leite, vais ter um bebé pequenino, não pode, tens que comer…

- Mais? Olha só, a minha mãe era assim. A minha irmã teve um filho dum branco e também não tinha quase barriga…

- Filho de preto ou de pula, a barriga e as mamas da mulher crescem sempre.

Nem tudo era nefasto no bairro da lata do Areeiro, como nos musseques de Luanda, a comunidade partilhava meios e conhecimentos. Berta foi encaminhada para a segurança social, através de técnicas habilitadas. Foi apresentada à directora da Associação o Ninho onde recebeu apoio, afectividade e esclarecimentos convenientes para que a sua gravidez fosse conduzida com os meios necessário e adequados ao seu caso de mãe solteira, imigrante e desempregada.

A noite do parto chegou quando ainda não se esperava, antes mesmo de madrugar para a sua habitual deslocação à lota do peixe onde buscava produto vendível naquele dia amanhecente. Não foi sozinha para a maternidade, Patrícia, a confidente, estava convidada para madrinha e a directora de O Ninho tinha-se voluntariado para todas as diligências junto das instâncias da assistência social. Afinal a menina nasceu grande e foi difícil de parir. Os mamilos brotaram colostro, mesmo que pequeninos. Berta, ainda dorida, logo quis mirar o seu bebé. Tinha-o imaginado como um raio de luz, resplandecente, a sair das suas entranhas. Imaginara-a a menina enviada pelos espíritos dos mais velhos, aquela que lhe traria o consolo, o sal, o conforto à sua vida insonsa. O poema que a anunciara era o seu anjo São Gabriel, o mensageiro enviado pelo seu Deus branco, o rapaz guerrilheiro nas matas de Mbanza Congo. O seu espírito protector que a arrancara dos escombros de Tambuco, que se lhe mostrou no aeroporto, enfiando-lhe moedas nas suas próprias mãos. Que lhe enviava sinais de esperança e lhe injectava forças e tino na perseverança da sua caminhada. No entanto, ali à vista, um ser frágil, apenas, que nem um cachorrinho, sem graça, apagadinho, à mercê de qualquer papa-crias, na selva dos vorazes predadores, citadinos…

No momento do registar oficialmente uma nova cidadã ao mundo dos mortais, Patrícia, a madrinha encomendada, ditou:

Nome – Patrícia Domingas Kalemba Duarte.

Nome do pai: Manuel Luís Sousa Duarte.

Nome da mãe: Berta Kalemba.

O pai assina? Não, ausente no estrangeiro. Mãe, presente.

A directora, humanista, amorosa, sensível, reparou no desapontamento, quiçá, frustração de Berta, afagando-lhe o rosto, confortou-a:

- Menina, ânimo - não exijamos dos outros qualidades que ainda não possuem; a felicidade não entra em portas trancadas.

Uma mãe sozinha na selva dos edifícios de cimento, argamassa, austera, vertical, ferro, tijolo, ruas pejadas de apressados, frustrados, obtusos, alegres, contentes, inteligentes, humanistas e vis hipócritas, todos numa amálgama de transeuntes indiferentes aos gritos mudos, insuportavelmente pesarosos, aflige-se, exaspera-se, mesmo que, apenas, querendo sobreviver.

A preta do Congo, do Negage à Portela, pérola quicongo à beira do Tejo, bairro da lata do Areeiro, musseque dos espoliados em Lisboa, negra sozinha na noite, embrenhada no escuro dos escorraçados, avenida abaixo, calçada arriba, olhos tristes, paisagem do desconforto, como quem persegue a luz, borboleta africana, perseverante, paciente e desesperada, luta, desarmada, nó na garganta, mas, ainda assim, sorri… Mostra os dentes, da boca carnuda, belíssima, negra esbelta, triste e contente, só porque está viva e seduz…

Que linda que ela é a negra do Congo que veio de tão longe parir em Lisboa. Tem uma filha da noite, brincando no musseque do Areeiro a quem precisa de dar comida. Os mamilos pequeninos, hirtos, sublimes, secaram nas agruras.

Berta subia e descia escadas, ia a patamares de elevador, percorria a cidade a pé, de autocarro, de eléctrico e até de comboio aos arrabaldes. Entrava e saía de qualquer habitação urbana na senda de sustento. A lavar, a engomar, a esfregar, cozinhando comida para os outros como se ainda morasse na roça do patrão Silva, às ordens da ngana Alzira. As novas patroas, umas educadas e instruídas, outras convencidas vilãs promovidas que mais aparentavam nguetas tipo Júlia racista, ignorante e coscuvilheira branca da Avenida da Igreja.

No seu bairro da lata do Areeiro também residiam: manjaco, papel, mandinga, badiu, sampajuda catanhó, beirão, indiano, paquistanês, transmontano, alentejano, algarvio, minhoto, campino, alfacinha, tripeiro, cigano, kuicongo, quimbundo, lunda-quioco, umbundo, ganguela, lunhaneca, luncumbi, kwanhama, xindonga e herero. Mas não só, abundava a brancada e a mestiçada dos quatro cantos da Geo planetária, os espoliados da sorte e da sociedade da procura e da oferta mercantil à Colbert. Os portugueses que tinham demandado ao estrangeiro, os retornados que, entretanto, granjearam manhas do desenrascanço nas ex-colónias estavam ausentes dali, bem como a elite económica e uma crescente classe média, ignorando os bairros da lata: Areeiro, Casal Ventoso, Meia Laranja, Trafaria, Quinta da Cabrinha, Chelas, Zambujal, Tojal, 1º de Maio, Charneca do Lumiar, Camarate, Ameixoeira, Portela, Jamor, Algés, Bela Vista, Porcalhota, Damaia, etc.

Berta deixava a sua filha Patrícia aos cuidados dos outros meninos no bairro da lata como se fosse num qualquer meio rural tal como tinham sido as aldeias portuguesas, Meruges, dos tempos salazaristas e marcelistas. Como se residisse numa qualquer latitude nos aglomerados dos excluídos: Rebera Bote; Monte Sossego; Bairro Operário de São Paulo de Luanda, Rangel, Mota, Cazenga, Prenda, Cuca…

 Lugares onde não apenas se adicionavam novos moradores pobres, mas também ratazanas, gatos, gatas, cachorros, cachorras, cães e cadelas grandes, médios e canitos, cabras, bodes, galinhas, galos, porcos e porcas. As grandes diferenças em relação a Rebera Bote de São Vicente? Talvez o facto de em Portugal proliferar a diversidade étnica, cultural, física e psicológica nos humanos e a raça bisara ao invés da negra suína africana. As cabras deambulantes dos bairros da lata de Portugal davam mais leite do que as de Rebera Bote porque tinham mato, erva e mais restos para devorarem, enquanto aquelas se restringiam a esporádicos ramos ressequidos de acácias ou papéis esvoaçando ao vento agreste a partir do Monte Sossego onde também havia prostíbulos como os do Cais do Sodré, Bairro Alto e Intendente.

No bairro da lata do Areeiro, como noutros, pontificavam os duplamente usados, ou seja, os que tinham sido carne para canhão na colonização e na Guerra Colonial e fugiram de lá farejando os donos como animais amestrados. Muitos pretos dos bairros da lata agiam como antigos escravos comendo à mão dos esclavagistas, nem saberiam viver sem a sobra do patrão. Cá já não destonavam minas antipessoal e antianimogue nas picadas, à frente das tropas tugas, mas davam o corpo ao manifesto nas obras e naquilo que a brancalhada rejeitava. As pretas e mulatas também teriam que se prostituir e trabalhar nos restos. Os meninos e meninas, como Patrícia, filhos dos submetidos, pelo facto de nascerem no chão pátrio do pula, não deixavam de ser igualmente estrangeiros tal como os seus pais.

Os párias em Portugal, oriundos das antigas províncias ultramarinas, não faziam jus à reivindicação independentista de muitos dos seus antecessores ao longo de mais de duzentas e cinquenta gerações. Assim, até parecia que os deuses kiandas os ignoravam.

Na democracia pós colonialismo, a Constituição da República estipula educação, saúde, habitação e trabalho para todos. Porém os mandantes não eram os aparentes. Esses figuravam por detrás da cortina, como no colonialismo, não eram os do tipo roça Silva de Carmona, esses eram peões privilegiados, tal como os deputados à assembleia da República. Os verdadeiramente mandantes possuíam monopólios e empórios de riquezas cujos lucros davam para comprarem serviços e servidores.

Nos bairros da lata também havia supermercados, os da droga, e também não eram dos traficantes no terreno. Os barões da droga não iam aos bairros degradados. Residiam em mansões como os da quinta da Marinha. Ocupavam apartamentos luxuosos, no cetro da cidade, de onde tinham expulsados os antigos moradores dos bairros populares. Aos bairros da lata assolavam consumidores em Porches, BMW e até de Limusines, mas quem morria de overdose eram os viciados e traficantes da ralé, que para manterem os hábitos esvaziavam a casa dos pais e hipotecavam o próprio futuro.

Não eram os políticos, nem os mandantes que culpavam em público os pretos e os ciganos de todos os males, mas compravam e instruíam quem o espalhasse. Para lavar a cara à cidade e parecer melhor à luz das instituições internacionais, mandou-se arrasar os bairros da lata, espetando com os espoliados em caixotes de cimento barato, na vertical, plantados nos descampados como cogumelos. Os retornados e os refugiados, como qualquer viajante, transmitiram e receberam influências. Os íncolas portugueses adotaram expressões novas, trazidas sobretudo pelos mestiços, enriquecendo o vocabulário com novos termos como bue, madie, catota, kota, meu, iá e um sem número de expressões fácies, como muitos dos anglicismos. Contudo, se adotaram o significante, não o obedeceram no significado. Por exemplo, um kota africano, porventura umbundo, representava, em África, pessoa veneranda, sapiente, elemento aglutinador da comunidade, no novo Portugal significava, um velho caduco, descartável, à maneira das sociedades neoliberais, um peso morto na equação da lei da oferta e da procura.

Berta, por vezes, quase desfalecia, por pouco, só por uma unha negra não negava a sua crença no seu anjo da guarda e no poder dos espíritos dos mais velhos, dos seus kiandas. Contudo, endireitava-se sempre na manhã seguinte e voltava à luta, procurando manter o rosto limpo, olhos abertos, grandes, e o sorriso de menina preta do Congo.

Como aprendera em Meruge, por vezes, quando a necessidade obriga, dá-se o corpo ao manifesto. Na linguagem futeboleira dizia-se, põe-se toda a carne no assador. Em Meruge aprendeu até a usar a sachola. Em Lisboa, o seu corpo teria mesmo de fazer de enxada e era se queria dar comida a Patrícia. No final de sábado outonal de morno Outubro foi, como se dizia, eufemisticamente, fazer serviço ao domicílio lá para a zona da Praça das Flores.  Ela e Cristina, esta mais conformada com os serviços ao domicílio, sem se importar a quem, se velho, se novo, se pobre, se rico, se limpo, se porco, se solitário ou devasso. No fundo das escadas do prédio na morada combinada, Berta recuou, teve receio, teve pena, muita pena de si própria e não foi capaz naquele dia. Cristina subiu indiferente, parecia contente da vida e foi, enquanto Berta a aguardaria sentada num banco de jardim.

Cristina partiu contente e regressou eufórica, parecia ébria. Mesmo antes de se abeirar da colega, mostrando notas entre os seus dedos da mão destra:

- Olha, olha, querias? Querias mufete para amanhã? Vai lavar escadas!

Troçava e voltava a troçar de Berta, esta triste, enigmática. Cristina adiantou mais:

- Não quiseste, melhor para mim, aviei os dois pulas. Agora vamos ali à rua do Poço dos Negros apanhar o vinte e oito, se calhar, ainda vou fazer mais, esta noite.

- Preciso muito, mas não tive forças, não fui capaz… - Retorquiu Berta, preocupada.

- Olha, espera, anda, vamos beber uma cerveja e comer uma bifana aqui no Meia-Noite, pago eu. – Ditou, resoluta, Cristina, ao chegar ao fundo da Calçada do Combro, nas imediações do liceu Passos Manuel.

Ambas penetraram na cervejaria. No interior, a clientela de sexta-feira à noite, sobretudo estudante do Passos Manuel do ensino nocturno, no final das aulas, tagarelavam que nem gralhas notívagas. As duas, especadas, percorreram com a vista todas as mesas e lá descortinaram uma vaga, de quatro lugares. Sentaram-se sem pedir autorização ao empregado de mesa. Ele chegou, disse:

- São só as duas? É que se chegar mais alguém tem que se sentar também.

Berta não respondeu, mas Cristina, fazendo orelhas moucas, pediu:

- Uma cerveja, uma garrafinha de água e caracóis.

- Cerveja fresca não tenho, pode ser imperial?

- Pode!

Berta não consumia álcool. Nem sentia fome, estava apreensiva, ia bebendo uns pequenos goles de água engarrafada, enquanto Cristina sorvia cerveja e chupava caracóis, abstendo-se das preocupações da colega.

Manuel, estudante trabalhador do décimo segundo ano nocturno do Liceu Passos Manuel, assomou-se à porta do Meia-Noite, a exemplo do que costumava à sexta-feira, pós o términus da última aula. Não vendo lugares vagos e não lhe interessando a companhia de colegas, por via da sua intenção em passar uma vista de olhos, sossegado, sobre os apontamentos, gozando do barulho como se fosse música de fundo, óptimo meio de concentração, decidiu-se por se dirigir à mesa das duas africanas.

- Dão-me licença? – Perguntou, virado par Cristina, julgado que a outra figura, de costas para a plateia, de carapinha, extensões alongadas, à músico jamaicano, fosse companhia masculina dada a razia de peitos, sem ainda lhe ter enxergado o rosto.

- Senta-te e paga-me uma cerveja. – Atirou Cristina, autoritária e indiferente.

- Está bem, peço já! – Respondeu o rapaz, sorrindo face ao descaramento da preta obesa, desajeitada. – E para sss… - Ia para perguntar a Berta se também queria, mas ficou-se pela tentativa face ao deparar com a expressão aberta, enigmática daquela moça que lhe pareciam olhos, faces e boca familiares.

- Para mim, nada, obrigado, ainda tenho aqui água, não bebo bebidas alcoólicas.

- Tá bem, ofereço um sumo ou outra coisa qualquer.

Aproximou-se o empregado e indagou para Manuel:

- E prá aí, um fino e o prego da ordem?

- Sim, Miguel, obrigado. Ah, e mais um fino para esta senhora e, já agora, dois pregos.

Manuel, totalmente alheada da presença de Cristina, nem tomou nota da proposta dela:

- Vamos lá, queres ir comigo pró quarto, filho?

Só reparou no ar reprovador, de gestos desaprovativos e zangados, perante a tirada da colega.

- Ah, é isso, não, não leve a mal, mas…

Ia para prosseguir com qualquer desculpa para Cristina, sem querer melindrar, nem aquiescer, quando Miguel chegou com os finos e os dois pregos, cortados a meio, cada qual em seu pratinho. Cristina, nem ligou mais importância, esticou a manápula a um dos pregos, segurando num dos finos e sorveu, e comeu sofregamente. Manuel voltou a sorrir, encarando com Berta de olhos em si, familiar como que irmanados uma vida inteira. Serenamente, sem perceber bem o motivo, sem fazer menção de pegar nos apontamentos, dentro da pasta, sobre o seu colo, adiantou:

- Geralmente, venho aqui todas as sextas-feiras, depois das aulas. Peço um prego e um fino, por isso é que ele me perguntou se era o do costume. Gosto disto porque revejo os meus apontamentos da semana inteira.  Amanhã é sábado não trabalho, posso dormir até mais tarde, descansado. Moro sozinho, ali no largo do Miradouro de Santa Catarina e trabalho no banco, mesmo em frente, no Calhariz, por isso…

Cristina já se preparava para largar, ao mesmo tempo que Manuel tomava meio prego para si e arrastava delicadamente a outra metade para Berta. Atrapalhou-se com os repentinos de Cristina e o receio que Berta também abalasse.  Esta quase ensaiou movimentos de se levantar da cadeira, mas ficou, sem pestanejar, serena, só a vista dirigiu para a colega que saiu decidida porta-fora e logo, em frente, tomou um táxi.

- Tiveste medo que fosse com ela? – Serenamente, com candura, em voz suave, silabas batidas, palavras redondas, perguntou Berta a Manuel.

- Sim, tive… Gosto de ti, tenho a sensação de que nos conhecemos e bem…

- Manuel Luís Sousa Duarte… - Soletrou Berta pausadamente, como se murmurasse par si ou falasse durante a noite velando.

- Si, isso, eu próprio, como sabes? Linda menina. Julgo que és… Não pode ser. Mas és mesmo igual, não pode ser, ser capturado por andar à tua procura e agora encontrar-te em Portugal…

- Foste preso em Maquela do Zombo? Sou eu mesmo a Berta que salvaste em Tambuco e me deixaste, sozinha, em Maquela, do Zombo, ainda me dói teres-me deixado assim. Porque não me levaste convosco? Tiveste medo que vos denunciasse?

- Não, não tive medo de ti, só amor, solidariedade, mas não podia, tínhamos regras, ordens superiores. Depois fui à povoação, sem autorização, nem precauções, os paraquedistas capturaram-me.

- Fizeram-te mal?

- Não, nem me tocaram, o tenente, o alferes, o sargento e os soldados trataram-me bem. Mandaram-me de helicóptero para Benguela. Estive algum tempo preso e depois, meteram-me num navio no Lobito, sob prisão e aqui estou, livre, sem cadastro, graças ao 25 de Abril de 1974. Tenho andado a pensar em voltar a Mbanza Congo, à tua procura, só queria saber se te tinhas desenrascado e se estarias feliz…

- Feliz estou, agora, contigo aqui, mas não tenho estado, quase desacreditava em te descobrir outra vez. Vi-te no aeroporto quando cheguei cá, em 1975. Não me viste e não reparei que eras tu, por isso não fui atrás. Sei o teu nome porque tenho o teu livro de poemas, Trinta e Três Poemas Inteiros, e sei que alguns poemas eram para mim. Como descobriste que estava grávida se não sabias nada de mim?

- Eu não sabia onde andavas, nunca te imaginaria em Portugal. Não te vi grávida, apenas o meu subconsciente, a minha intuição poética, nem sei como te explicar…

- Não expliques, não é preciso, Posso ir contigo?

- Se podes, podes e deves, eu quero.

- Então vamos, até pagava eu mas não tenho mesmo dinheiro, pagas a conta?

- Claro que pago, o que for meu será teu, sempre, anda. Moro sozinho, como te disse, a minha família vive no Cartaxo, não tenho namorada, mas comprei uma casa mais ou menos confortável. Como trabalho no banco, tive oportunidade de resgatar uma hipoteca a uma família incumpridora, a juros beneficiados, tudo legal, nada de candongas. De lá telefonas à tua gente, a dizer que hoje não vais. Não te faço mal, não estupro, embora sinta uma vontade incomensurável de te beijar e abraçar.

- Não tenho que ligar a ninguém, a minha filha está entregue a uma amiga e mais família não tenho, nem nunca tive desde aquela que sepultaste alguns restos, lembras-te, amor? – Ao pronunciar a palavra amor, duas lágrimas grossas brotaram dos olhos, descendo rosto abaixo, Manuel aparou de lábios comprimidos contra as faces da menina preta do Congo.

Na rua, depois de saírem da cervejaria, Meia-Noite, quedaram-se mudos de tanto quererem dizer um ao outro. Emudeceram por carência de vocabulário que descrevesse tantos sentimentos, tantas coisas que pretendiam partilhar. Até que Berta, mulher portentosa, corajosa e dotada de categorias inauditas de que só elas são capazes, perante Manuel, homem frágil e titubeante como os outros machos descidos à sua condição de género garboso, mas mortal, à mercê da fêmea deleitosa, perguntou, terna:

- Lembras-te como te despediste de mim em Maquela do Zombo?

- Então não, claro. Queres que te exemplifique?

- Quero, estou à espera há tanto tempo… - Ao responder assim, franqueou-lhe a sua face e Manuel, solicito, repetiu como naquele dia o beijo suave e a carícia meiga na outra face, como os mesmos olhos embaciados, retesos de lágrimas de dor, coração palpitante, sentido de impotência perante tamanha empresa, a de vencer os monstros das injustiças, mas determinado, quiçá, quebrar os cornos a toda e qualquer desgraça, por maior que fosse a avalanche. Berta outra vez uniu os lábios aos de Manuel que cobriu de beijos os olhos, as faces e lhe aparou mais duas grossas lágrimas, como se canta-se: “Mãe-Negra, desce com ela... Nem buganvílias vermelhas, nem vestidinhos de folhos, nem brincadeiras de guizos, nas suas mãos apertadas. Só duas lágrimas grossas, em duas faces cansadas. Mãe-Negra tem voz de vento, voz de silêncio batendo nas folhas do cajueiro... Tem voz de noite, descendo, de mansinho, pela estrada...”

De mãos dadas subiam a calçada e o rapaz branco que quis ser herói de metralhadora em punho, porém imberbe, incauto, impreparado manso, tão manso que nem uma kissonde seria capaz de espremer quanto mais mabecos pulas e mancebos serviçais, cantava, calado, feliz e assustado, a canção:

“ Naquela roça grande não tem chuva é o suor do meu rosto que rega as plantações; naquela roça grande tem café maduro e aquele vermelho-cereja são gotas do meu sangue feitas seiva. O café vai ser torrado pisado, torturado, vai ficar negro, negro da cor do contratado. Negro da cor do contratado! Perguntem às aves que cantam, aos regatos de alegre serpentear e ao vento forte do sertão: quem se levanta cedo? Quem vai à tonga? Quem traz pela estrada longa a tipoia ou o cacho de dendém? Quem capina e em paga recebe desdém, fuba podre, peixe podre, panos ruins, cinquenta angolares “porrada se refilares”? Quem? Quem faz o milho crescer e os laranjais florescer? – Quem? Quem dá dinheiro para o patrão comprar máquinas, carros, senhoras e cabeças de pretos para os motores? Quem faz o branco prosperar, ter barriga grande – ter dinheiro? – Quem? E as aves que cantam, os regatos de alegre serpentear e o vento forte do sertão responderão: “Monangambééé…”Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras. Deixem-me beber maruvo e esquecer diluído nas minhas bebedeiras.”

Berta não ouvia a canção mas sentia o coração de Manuel palpitando com tanta força que temia que lhe fugisse como cavalo veloz a trote adejante. Por isso apertava-lhe a mão, caminhando tão juntinha que nem espaço permitiria que uma faúlha entrasse entre ambos, já que as almas há muito eram inseparáveis. Manuel, o guerrilheiro improvável, coração manteiga, seguia, lábios cerrados, memórias esvoaçantes, cantando a Berta mais uma canção:

“Porque os outros se mascaram, mas tu não. Porque os outros usam a virtude para comprar o que não tem perdão. Porque os outros têm medo mas tu não. Porque os outros são os túmulos caiados, onde germina calada a podridão. Porque os outros se calam, mas tu não. Porque os outros se compram e se vendem e os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não. Porque os outros vão à sombra dos abrigos e tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas eles não.”

Subindo juntinhos a calçada, cinco meliantes ou toscos desventurados, porventura ébrios do álcool desnaturado, meteram-se com Manuel, rapaz guerrilheiro desarmado, de coração agrilhoado à preta do Congo. Hesitou, quis ripostar à laia de cavaleiro medieval de peito feito contra castelos de ventos. Porém, Berta mulher de experiência feita, tomou ela as rédeas de defesa da fortaleza, ordenando-lhe, seciando, palavras mansas de amor e de confiança:

- Anda, caminha comigo, não se responde a cobardes. Homens valentes, lindos e corajosos como tu não descem tão baixo.

- Mas eles ofenderam-nos, humilharam-me. Sinto-me um merdas. Se calhar, pensas mal de mim. Porra! – Reagiu Manuel a tremer de raiva, impotente.

- Só nos ofende quem para isso tiver categoria bastante. Nós, muito menos tu, não lhe conferimos esse poder.

- Fico triste quando alguém me ofende, mas, com certeza, eu ficaria mais triste se fosse eu o ofensor... Magoar alguém é terrível!

Chegados à porta de entrada da casa de Manuel, ela sem saber, parou quando ele se pôs a remexer na algibeira das calças de ganga, com a mão livre. A outra sempre presa à dela, atrelada como arreata, segurando potra esquiva. Escusado, ela era mansa. Até poderia escoicinhar, mas não naquele cavaleiro. Ela mesmo queria ser montada por ele desde o inesperado encontro após o brutal bombardeamento tuga, em Tambuco.

- É aqui, desculpa, estou tão nervoso que nem encontrava as chaves. Cá estão, esta é do correio, esta da porta de cima e esta daqui. Não temos comunicador lá de cima, moramos no terceiro esquerdo. Já te dou um conjunto que lá temos de reserva.

- Esses nós, nós moramos, nós temos…

- Pensei que quisesses fazer parte do conjunto a dois. Não, perdão, a três: eu, tu, ela, a Patrícia, pequenina…

- Quase me aliviaste da dor que trago no peito, desde do momento que me disseste aquilo em Maquela do Zombo. É que se te referisses a ti e a outra qualquer, antes me tivesses matado com uma das granadas que trazias. Sabias mesmo lançar aquilo?

- Acho que não seria capaz de lançar contra ninguém, nem mesmo a mabeco ou a hiena, em legítima defesa. Já deves ter percebido que não sou lá grande espingarda em desavenças e pelejas desavindas, a harmonia é muito mais confortante. Se fosse mesmo um combatente a sério, como alguns do Zaire, ter-me-ia atirado àqueles infelizes, há pouco, nem que isso me custasse a vida. Num ápice, tiveste o poder de me transmitir essa tua enorme serenidade, essa incrível sensatez que mais me parecem dez mil anos de siso. Por isso, acobardei-me, mesmo correndo o risco de me considerares um reles e medíocre cavalheiro. Mas como já não somos selvagens medievais, cometi-me à mulemba e esplêndida protecção feminina da rainha Ginga, menina belíssima, preta do Mbanza Congo e aqui estou, cobarde mas inteiro. Quanto ao que te afirmei naquela fatídica, ou talvez não, tarde em Maquela do Zombo, acho que ainda me doeu mais a mim: ordens são ordens, guerra sem disciplina nas hostes está perdida de batalha em batalha, eis alguns ensinamento que lá assimilei de sábios, que julgas? Vai lá, agora tenta encontrar ajuda, mas é segredo, não fales a ninguém em nós, não digas que nos viste, a ninguém, mesmo ninguém, qualquer dia voltaremos para saber de ti: jura! Foi isto que disse?

- Exactamente, guardei mesmo esse segredo, só que demoraste muito e eu já estava cansada, muito cansada, a dor já não cabia no peito, podia estoirar a qualquer momento. Acho que só não caí por causa da Patrícia a quem tinha de alimentar. Percebes mesmo?

- Se percebo, ninguém melhor me poderia explicar, pelo menos tão cruelmente verdadeiro, profundo, sereno, metaforicamente poético, brutalmente cru, literal…

- Bem, o emprego de tantas palavras não estão ao meu alcance, a minha formação está muito abaixo da tua, não sei se entendeste…

- Não, não entendo assim, não se trata de habilitações literárias nem de teses académicas. Tão só de sensibilidade, inteligência, saber, saber verdadeiro e aí, menina, levas-me dianteira e que avanço, mas consigo ir atrás. Ajuda-me… Por mim, por nós, julgo que me darás alento, força e determinação para mergulhar no ponto mais profundo dos oceanos em busca do teu kianda, mesmo que seja o mais renitente, escondido no maior esconso dos refúgios…

- E eu que posso dar em troca?

- Nada, tudo, tudo o que só tu me podes dar, nem sei se há outra forma de expressar amor como este, singular, nada de fútil, nem pindérico, nem gasto, nem roto pelo mau uso…

Berta e Manuel tinham alcançado o patamar cimeiro, ele, imensamente excitado, comovido, exultante como se declamasse o mais sentido dos poemas de amor, sorvido pela multidão da maior das plateias, da qual só enxergava Berta de olhos retesos, beijando os seus lábios sequiosos por supremo desejo. Berta, grávida de amor, ansiedade e desejo arrebatador, porém, serena, segura, hirta, capaz de derrubar a mais feroz das tempestades, como fera inquebrantável na defesa de Manuel, nem que para tal tivesse de enfrentar o maior dos dragões incandescente do universo, como mãe protegendo, defendendo para lá dos limites o que é seu, intrinsecamente. Só aí, nesse momento, prestes a penetrarem no interior do espaço dos seus domínios onde firmariam o maior dos segredos, sem peias, em desvelos, Berta libertou a sua mão de Manuel, mas foi só para melhor encostar os seus lábios túmidos de menina pueril aos dele que não se cansavam de lho clamar, através do olhar suplicante. Com as duas mãos soltas pôde melhor selar as carícias mansas, acutilantes que nem espadas afiladas, capazes arrancar do íntimo dos íntimos a fístula que carregavam por tão delongada ausência. Na manobra suave de contorções labiais, fundas e sentidas profusões tácteis e olfativas, Berta, por sua vez, sussurrando vagidos, ciciando gritos alarmantes de socorro ao ouvido de Manuel, como ósculos prazerosos:

- Ajuda-me, ama-me muito que eu quero-te muito, muito. Preciso de ti…

O primeiro ocupante, só por isso guia habilitado a mostrar e descrever o espaço sagrado de ambos, o novo altar iniciático de todos os rituais, consolo e refúgio, o Manuel, passou à descrição:

- Isto foi uma casa velha, totalmente recuperada pelo antigo senhorio e posta em venda horizontal. Um casal comprou-a sob hipoteca, mas não tendo capacidade financeira cedeu-a coercivamente ao credor, a entendida onde trabalho. Na qualidade de funcionário, adquiri o imóvel a um preço satisfatório e juros perfeitamente compatíveis com o meu salario mensal e aqui estamos.

- Isso foi quando?

- Há pouco mais de seis meses. Como vez está carecido de mobiliário. Aqui este bengaleiro, chapeleiro, cabide ou seja lá o que for, herdei-o já tal como o vês. Penduremos os nossos casacos e a tua carteira, se quiseres. Esta sapateira também já cá estava, deixemos, pois os sapatos e cada um os seus chinelos, para ti estes grandes, quarenta e dois em pezinhos lindos, maneirinhos de quê, trinta e seis?

- Mais os trinta e sete…

- Bem, esta sala só a estante dos meus, nossos livros, o sofá, a televisão e aquela mezinha de apoio, tudo parco e singelo. Como vês, aquelas portadas, sem cortinas, pedem gosto e mãos femininas o que só agora surgiram.

- Trinta e Três Poemas, estão ali?

- Sim, queres verificar?

- Não, deixa estar, os que me dizem respeito, julgo, sei-os de memória.

- Avancemos, cozinha assim, como vês, de ponta a ponta, bastante bom, janela par o Miradouro Santa Catarina e daquela banda, chaminé, armários, frigorífico, máquinas e fogão eléctrico, esquentador a gás canalizado, tudo preso e incrustado, adquiridos ao casal a quem comprei o apartamento. A mesa e essas cadeiras comprei-as, se não gostares, trocamo-las. Aqui despensa quase vazia, aqui uns detergentes e uns produtos de limpeza, apenas. Não troces das minhas inabilidades. Casa de banho, aqui está, jeitosa, tudo também já estava montado e pregado. Não tem banheira, ali a cabine até me parece melhor e funcional, armários, lavatório, bidé, sanita e tudo, até os cabides pregados.

- Eu quero tomar um banho, demorado, se fosse na banheira até seria de imersão.

- Calma, vamos já tratar do assunto. Que tens tu de alijar se te enxergo tão lavada, limpa, alva pura, azeviche rainha ngola?

- A alma sim, mas o corpo só quero que mo possuas tão esfregado e perfumado como lençóis brancos corados ao sol.

- Ai o outro é que é poeta… Compondo tu assim um soneto…

Prosseguindo, dois quartos, três seria melhor, mas é o que é. Este, praticamente, desmobilado só o armário, guarda-fatos embutido. Este, por último, que deveria ser o primeiro, a cama e toda a mobília associada. Comprei, não sei se te agrada, mas… Não repares na desarrumação, senão envergonhas-me. Vou já tratar de mudar lençóis, adicionar uma almofada. Pronto, vamos então ao banho?

- Primeiro, nestes lençóis, nesta cama assim, dormiste com alguém?

- Não, nunca, serás a primeira e a única, espero… Sabes uma coisa, linda menina, podemos morar numa casa mais ou menos, numa rua mais ou menos, numa terra mais ou menos. Podemos dormir numa cama mais ou menos, comer mais ou menos, termos transporte mais ou menos, e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro. Podemos olhar em volta e sentir que tudo está mais ou menos. O que não podemos, mesmo, nunca, de maneira nenhuma, é amar mais ou menos, sonhar mais ou menos, ser amigo mais ou menos, namorar mais ou menos, acreditar mais ou menos. Senão, corremos o risco de nos tornarmos pessoas mais ou menos.

- Então, eu também não quero fazer amor contigo mais ou menos, não mudes os lençóis, gosto de sentir o teu odor, trago-o comigo desde o mato do Uíge. Depois trato disso, deixa comigo.

- Encantado, como eu inalo até a tua respiração, menina. Quantas noites dormimos, lado a lado, no Mbanzo Congo, quatro, cinco…

- Nada, seis, seis!

- Bem, primeiro… E o segundo ponto?

- Deixa-me tomar banho, sozinha, deita-te à minha espera, por favor… Só quero saber se também há sabão azul…

- Azul, azul, não há, mas temos clarim, lava mais branco, toca a lavar!

Berta entrou no poliban, Manuel entregando-lhe gel duche, champô, brincando e cuidando de tudo. Um lençol de banho, novo, um tapete à saída da cabine duche, uma escova de dentes a estrear e um frasco de elixir aprontou à sua companheira. Ela que já esfregava clarim por todo o corpo como se arrancasse sarna, tal a ensaboadela, quedou-se a ver os movimentos e os cuidados dele para conforto dela, até então ninguém lhe tinha prestado cuidados, muito menos mimos daquela natureza. Ia para se emocionar perante o gesto de Manuel, ao recolher cuidadosamente cada peça de roupa largadas por ela, mas recompôs-se, como marinheiro agarrado ao mastro, firme na sua já aparente serenidade. Ainda permaneceu pasmada enquanto o mirou dobrando as suas cuecas, a blusinha e a minissaia, com especial carinho que mais parecia cuidando de mantos sagrados. Logo que se saiu com as suas vestes coladas ao peito, premidas com a mão esquerda e acenando-lhe com a direita, sorrindo, Berta retomou a barrela, ensaboando e deixado água escorrer abundante sobre todo o corpo, alto a baixo, de fora para dentro nas partes genitais, esperando pelo retorno ao exterior e introduzindo mais, utilizado toda a pressão do chuveiro.

Manuel, ansioso, quase tremelicando de pernas, mas mesmo assim hirto e fervoroso, ajeitando ligeiramente os mantos da cama, colocou mais uma almofada, fronha nova. Acendeu apenas um dos candeeiros de cabeceira, iluminação a meia-luz. Voltou à casa de banho pedindo autorização a Berta que já se ensaboava de gel, aromatizando o espaço. Com parcimónia, solicitou nova autorização para que na sua presença pudesse expelir a sua necessidade mictar, sentando-se na sanita, bem como proceder à escovagem de dentes. Berta notou a fineza de movimentos, sem trejeitos de mesurice, porém civilizados, sóbrios e determinados. Nunca tinha visto nada daquilo. Os homens que a tinham rondeado eram brutos, toscos ou falsos delicados e urinavam em pé, sacudindo o membro excrescente como animais do chiqueiro, por tudo isso e por tudo mais, repugnavam-na. Abominava-os ao ponto de duvidar de alguma vez sentir o estro. Temia não possuir atributos femininos que lhe permitissem alguma vez atingir o mínimo prazer sexual, quanto mais orgasmos. No entanto, Manuel excitava-a, toldava-a, roborizava-a desde o primeiro momento em Tambuco. A ternura que recebia dele e a que ela própria lhe desejava ardentemente retribuir afastavam de si, todos esses idos fantasmas. Por isso serenou, sorrindo à saída dele daquele compartimento. Prosseguindo os seus cuidados higiénicos, como se preparasse o seu grande ritual iniciático. Imaginava-o deitado à sua espera e depois logo saberia coordenar e ser conduzida. Manuel contava, ansioso, cada décimo de segundo de espera. Despiu-se e depositou as suas roupas sob as da companheira, em cima da única cadeira do quarto. Pensou qual seria o lugar da cama mais aprazível para Berta. Deu-lhe o suposto de comando. Às mulheres o seu estatuto, condicente com o portentoso saber de receber e de partilhar. Para ele, o do canto, retaguarda, secundário. No Mbanza Congo tinha sido o contrário. Porém, nesses tempos e nesse lugar e nas condições de então, as incumbências protectoras cabiam-lhe a ele. Manuel não sendo já o miúdo juvenil de Mbanza Congo, em matéria de acasalamentos, a sua experiência resumia-se a quase nada. No entanto, nem mesmo os outros seres, mesmo os considerados irracionais, sempre se desenvencilham nos rituais de copulação, quanto mais ele, andarilho, vivenciando muito para além do que outros numa vida longa. Deitou-se para o lado esquerdo, membros flectidos, olhos abertos e coração palpitando que nem cavalo a galope. Não querendo desvirtuar o ambiente acolhedor, romântico, cobriu-se, só com o lençol, até aos ombros. Não queria parecer rapazote púdico, mas, desbragado, também não. Pensou que gestos e atitudes grosseiras e rudes matariam todo o encanto num momento ardente, sublime, como o que estava a viver, à espera de Berta.

A preta do Congo, menina feita mulher, ao aproximar-se do quarto, logo à entrada, pronta para a cerimónia, toalha de banho, atada acima do peito, escondendo desde as maminhas pequenas e firmes, até às canelas, gostou do que encontrou. Não carecia de espalhafates, nem de mostrar traquejo, apenas seguir a sua intuição feminina. Só precisava de ser igual a si própria, amar finalmente o seu companheiro. Discreta, aproximando-se, como que afagando a almofada, destinada ao seu conforto de cabeça, meteu sob a dita uma toalhinha precavida. Não fez perguntas nem objecções, há momentos em que qualquer palavra é inoportuna. Berta podia, simplesmente, deitar-se ao lado de Manuel, de toalha vestida ou desnudada. Mas, serenamente, olhos semicerrados, boca entreaberta, narinas escancaradas, inalando, contornando a cama pelos fundos, quedou-se junto dele. O lençol de banho deslizou-lhe pelo corpo, à medida que se debruçava, suavemente. E ela não se ralou com isso. Tinha chegado o momento de entregar a batuta, o mestre da cerimónia, aquele que comandaria a orquestra, o afinador de instrumentos, o jóquer da cavalgada, o condutor dos passos de dança na valsa celestial, o impulsionador dos arrojados, adejantes, voluptuosos requebros do tango luso-quicongo, estava ali, deitado à sua espera, aparentemente, timorato, mas firme, garboso, forte e reteso. Ela fêmea, finalmente em pleno estro, só tinha que mostrar a sua deliciosa submissão de leoa transbordando de cio não ciar. Só tinha que se acomodar, estimulando o macho eleito, como o vencedor absoluto que, gladiador, do alto do seu trono de branco rei Mbaza Congo a sua rainha Ginga tinha submetido, completamente, rendida aos seus atributos e encantos. Ela dava-lhe sinais de que ele podia e devia baixar a juba de penas pavónicas e lançar-se na maravilhosa empresa de explorador de todos os caminhos africanos que representava o seu corpo de preta do Congo. Ela a pauta, a lira dos mais belos e harmoniosos acordes, cooperaria, contorcendo-se, quanto mais fossem os pontos sensíveis que o seu leão tacteasse, mordiscasse, até poderia morder fundo, se necessário para melhor se equilibrar na montada, aquela sublime, esplêndida égua de corrida toda se mobilizava, retesando todos os músculos, capaz de galgar sobre todos os obstáculos, pronta para a desabrida correria. Nem Berta, nem Manuel necessitavam de luz artificial, de olhos cerrados viam mais fundo a luz que os iluminava. Ela mais avisada estendeu o braço negro e harmonizou o ambiente, ao apagar a luz, vertida do candeeiro. Manuel, ciente de que o ritual de exibição aos olhos e aos sentidos da fêmea já não bastavam, tinha aportado na fase de copulação ambicionada, ela cedera, na totalidade. O mastro era dele e, desse modo, teria de conduzir o navio, ao leme, sulcando mares revoltos e mansos, à sua mercê. Teria de ser capaz de penetrar nos grandes rios, lança içada, no âmago da sua africana azeviche quicongo rainha ngola Mbanza Congo.

Berta, sensual como só naquele momento descobria ser dotada, com apenas dois dedos da sua mão direita de preta, desnudou suavemente o amante branco, até à cintura, deixando-lhe ainda os genitais encantos sob o, imaginariamente, diáfano pano. Podia lançar-se repentina para o seu lugar reservado no leito nupcial, odorificamente envolto no denso manto luxuriante. Todavia, morosa extasiante, fêmea totalmente segura dos seus dotes intrínsecos, sem necessidades de recursos a milongos, deixou-se deslizar sobre o corpo de Manuel que virado de frente para si tomava posse da função que lhe cabia, tacitamente. Entrelaçados nos mogimos de tese, antítese, a alquimia laboratorial trabalhava na miscibilidade do branco com o preto e a preta com o branco fundiam-se em síntese café com leite. A desmesurável homogeneidade física e espiritual da aquosa transmutação osmótica impossibilitava já qualquer regressão. Em plenos poderes de maestro explorador, Manuel, afoito içado, não tinha que se apressar, quanto mais demorada fosse a expedição, mais o explorador gozaria e mais prazer provocaria à sua companheira de viagem. Por isso procurava, tacteando, beijando, lambendo e até chupar todos os milímetros do aveludado e retinto corpo de mulher, buscando as maiores sensibilidades que tocassem as campainhas alarmantes e incandescessem todos os poros. A assumpção simbiótica evidenciava-se afincadamente. Já lá iam os balanços da valsa. Porém ainda não era o momento de subir na pauta as notas altas, negligenciando ainda o só, o lá, o si e o fá, murmurou, ciciando, ao ouvido de Berta, beijando sussurro em mi menor:

- Cheiras tão bem, querida, que bom…

Se todas as secreções de líbidos exponentes epidérmicos se aglutinavam num único rio de alegre serpentear, a partir daquela voz de comando do cavaleiro, a montada arrancou naquela correria louca, desabrida, puxando para si o jóquer, já bem firme no dorso, mas, ambos gradativamente mais se fundiam numa unidade inquebrantável. Berta, agora mulher adulta, absorvente e venturosa, combatente animada, ombreando com Manuel, como um corpo só aceleravam na pista ascendente, sem vacilar nas curvas, descolando da pista que nem bombardeiro em direcção à maior estrela cósmica a fim de explodir com estrondo todos os orgasmos contidos num só grito ensurdecedor de ambos os amantes.

Manuel, o descobridor dos maiores sinais de prazer no corpo de Berta, mesmo os dos minuciosos coitos recônditos, não se deixou cair do alto, desamparado. Mesmo se o fervor lhe faltasse, Berta já tinha reassumido a categoria de veladora. Por isso ambos se relaxavam pousando de paraquedas na mansidão, só possível pela total ausência de ventos soprando desenganos, a caminho do solo firme e regenerador a comuns mortais, depois daquela viagem endiabrada, inolvidável voo espacial. Berta era a fortificação personificada, apesar do seu franzino aspecto, fragilidades aparentes, na verdade, frondosa mulemba cujos ramos abrigavam Manuel. Este, gozando o prazer da sombra, protegido da canícula, inalando aromas da sua árvore, Berta, a menina preta, ancoradouro e objecto de todos as suas volições.

Se o guerreiro, precoce ex-combatente, generoso e incauto imberbe descansava no epílogo da vitoriosa batalha, Berta relaxava, gozado ainda mais agrilhoada finalmente ao seu idolatrado companheiro, no encalço do qual tanto tinha penado. Apesar da abrasadora junção de corpos, ambos se aconchegavam ainda mais. Saciados nas endiabradas contorções, porém sequiosos do consolo mútuo, a paz. Por isso Manuel dormia, resgatando o sono de todos as noites de insónias. A simbiose perfeita dos dois corpos, fundidos na alquimia síntese café com leite, levou-os a emaranhado aconchego. Pernas, coxas, braços, antebraços, pés, troncos e até cabelos finos do branco e encarapinhados grossos de preta se uniam, repousando, um no outro. A cabeça de Manuel pendia para o peito de Berta que parecia capaz de lhe fornecer a seiva para todos os alentos. Berta velando de olhos fechados ia passeando os seus dedos de preta aveludada sobre os cabelos, as faces, os olhos de pálpebras cerradas e os lábios entreabertos de Manuel, na impossibilidade de, naquela posição, beijar com os seus. Nem um nem outro arfavam, antes respiravam de mansinho e Berta gozava divinal sentimento. Deixou-se ir, esquecida de todas as incumbências, adormeceu também no onírico repouso de todas as preocupações.

Sem saber bem como, na madrugada seguinte, Berta acordou devagar, tranquila, virada par o seu lado esquerdo, com uma réstia de claridade anunciando-lhe novo dia: o primeiro dia do resto das suas vidas. Aconchegada, sentido o corpo de Manuel, em concha nas suas costas, ficou-se, assim, encaixada. A serena respiração, a saliva que os lábios entreabertos humedeciam o seu ombro preto desnudado, a mão direita espalmada no seu ventre, abandonada, mostravam-lhe o seu ainda sono, tranquilo. Aos poucos, foi ganhando coragem, descerrando as pálpebras para o alvorecer. Bastou um pequeno e quase imperceptível movimento para que Manuel acordasse também. Antes mesmo de qualquer outro sinal, Manuel beijou três vezes o ombro de Berta, murmurando:

- Querida…

Berta estremeceu como se não fosse experimentada, subtil, voltou-se para ele e beijou-o de manso, respondendo:

- Sim, bom dia, obrigada…

Os caminhos das descobertas marítimas estavam mapeados na memória do explorador e África já se tinham rendido ao invasor. Não apenas o mar, mas os rios, as estradas, os caminhos e as veredas, à mercê, apontavam o âmago mais íntimo da rainha do Congo. Naquela manhã do novo dia, os corpos deslizavam na simbiose osmótica, livres, soltos, seguros nas voltas idiossincráticas, sem necessidade de grandes introduções, pelo que nem o branco nem a preta perderiam o comboio sobre carris, imparável, até à estação derradeira, naquela manhã.

Ambos refrescaram os corpos em água-tépida, duche ligeiro, para que totalmente enxergassem a luz da clara manhã outonal, primavera das suas vidas. Já Berta se dirigia para a cozinha em busca de sustento que robustecesse e reabastecesse o corpo, só com a alma içada a combustão não engrenaria. O telefone tocou. Ela ciente de que ninguém saberia do seu paradeiro na casa de Manuel. Por isso, apenas abrandou a marcha e escutou, aparentemente, desinteressada: “Sim, bom dia!… Não faz mal, para ti estou sempre disponível… - Berta estacou, silenciou o movimento de bater ovos mexidos, expectante. – Claro que posso, só tens que me dizer e a que horas tos levo… às duas e meia… Certo, e então o teu marido não se importa de vir contigo ao sábado? Ah vens ao trabalho… Mas não é costume, pois não? – Berta desceu à terra, serenou, retomando a tarefa do matabicho em preparação, mas sem perder o interesse na conversa de Manuel com alguém, do outro lado. – Ai isso é excepção, logo vi… Tendes falta de funcionários aí no infantário, em que sector?… No refeitório, nas limpezas e auxiliares… Bom, não leves mal, mas tenho uma pessoa para esse serviço, muito interessada mesmo e, tenho a certeza, mesmo, mesmo adequada. Claro que sabe cozinhar e fazer tudo à maneira, como deve ser. Posso-te garantir, de confiança absoluta e perto, perto do local de serviço, ainda mais do que eu relativamente ao banco… - Berta, matabicho pronto, não resistiu, percebeu que o companheiro se referia a ela. Aproximou-se dele, postando-se bem perto, a olhar com os seus olhos grandes de menina a pedir rebuçados. – Ainda não falei, mas vou já conversar com ela… Oh, é minha companheira, mora comigo… - Percebeu-se silêncio do lado de lá da linha… - Sim, sim, temos uma menina, mas só agora decidimos viver juntos… Não sabias, também nunca me perguntaste… Não é segredo, pelo contrário… Quê, ela também pode meter aí a menina, hê pá, hê pá, isso é que seria, ouro sobre azul… Bom, então combinado às duas e meia acertaremos melhor. Queres que te leve os apontamentos da semana toda, fotocopiados? Ah, fazes aí as cópias, está certo, até logo, obrigado… De nada, até já…

- Berta, desculpa adiantar-me assim nos assuntos que te dizem respeito, não resisti. Era a Augusta, minha colega no Passos Manuel, a pedir-me uns apontamentos das aulas às quais faltou. Pelos visto têm muita falta de funcionários no infantário, quando ela me disse isso, o resto já sabes… Não levas a mal?

- És tonto ou quê? Estás farto de saber que agora é mesmo disso que preciso! Combina lá, com calma não te precipites, eu quero, quero mesmo, mas tem cuidado os portugueses são esquisitos… Tens de arranjar maneira de lhe dizer que sou preta, preta mesmo, percebes?

- Para quê… Achas que…

- Sim, sim, já sofri muito com isso. À primeira vista parece que encaram com o diabo, depois até gostam de mim, mas não é fácil lidar com tugas, bem sabes. Lá por seres branco preto ou mestiço ou sei lá. Realmente, há para aí seis anos que te conheço e te amo e nunca tinha pensado que és branco… És branco mesmo, deixa ver bem, nada, és mais preto do que os pretos mesmo, preto branco Mbaza Congo do mato: turra, o turra, mais doido e lindo da Europa!

- Turra, combatente do nada, sem saber dar um tiro, quanto mais uma morteirada, mas doido e irresponsável sim. Mais doido ainda que me deixei capturar por ir à tua procura, estúuuupido….

- À tua procura andava eu desde que nasci ou, se calhar, antes, mas tenho que ir, é tarde, estou preocupada, tenho uma filha que julgas… Não a posso deixar sozinha, a esta hora já anda por lá à minha procura, a chorar, aflita…

- Sim, claro que sim, vamos!

- Nada, ficas cá. Vou sozinha. Não te esqueças, vai lá tratar do meu emprego com a ngana…

- Mas, assim, não me deixas ir contigo…

- Deixo, deixo, sempre, agora espera. Pareces menino, já cresceste… Volto lá para as seis horas… sete… mais ou menos… Deixa dar-te um beijo…

- Estás a ver, esquecia-me, a chave, espera. Estão aqui, mas porta-chaves, só este, olha, este verdinho do Sporting, queres?

- Dá-me esse, dá cá gosto do Sporting, que pensas, já lá fui algumas vezes ver andebol, basquete, sou sportinguista de verdade…

- Porra, é demais, agora é que foi, agora é que me deixaste mesmo doido, sportinguista como eu… Leva o número de telefone se for preciso alguma coisa. Ah, dinheiro, aqui na gaveta, vês? Temos sempre aqui para qualquer eventualidade.

- Sim, escreve num papel. Não faças nada, eu trato de tudo depois, vai almoçar fora, já não tenho tempo para cozinhar. Dinheiro… Vim estragar a tua vida, mas amanhã falamos, vou mostrar-te as minhas contas, o que recebo de abono de mãe solteira e… Mais nada. Preciso mesmo do emprego da tua amiga. Mas hoje, não, tenho uns trocos para o metro e, lá em casa, no kimbo, tenho assim guardado, como tu, para aí dois contos setecentos e cinquenta escudos.

- Bom, a partir de agora, a gestora serás tu, o que houver é para aquilo que achares mais conveniente. Tenho uma pequena poupança, mas segunda-feira vou encerrá-la porque é preciso mobilar esta casa e, naturalmente, haverá outras necessidades com a menina, contigo e sei lá, até onde der, desde que não tapemos a cabeça, descobrindo os pés. Olha, só se for ali ao Príncipe do Calhariz e trago também um frango para levares, é rápido, posso? – Berta paralisou, entristeceu, enigmática como que o nublado lhe toldasse toda a jovialidade, Manuel olhou-a novamente fundo, vendo claramente a sua mágoa como na noite anterior na cervejaria, atarantado, sem saber o que dizer, ciente que a tianha ferido, mas sem saber reagir, paralisou também. Berta recuperou, sensível, inteligente, perspicaz, retomando rapidamente o sorriso e abraçou-o como que pedindo desculpa por qualquer mal-entendido e disse, naquela voz doce, palavras redondas, vogais aberta:

- Lembrei-me de uma coisa triste na minha vida, sem importância, logo lembra-me que te vou contar, desculpa, não te preocupes, vi-te tão atrapalhado que até me doeu, até logo, vá!

Da varanda Manuel mirou ainda Berta, cá em baixo, a dobrar a esquina, mas, sem antes se virar para trás e lhe acenar, sorrindo, antagonizando a despedida de ambos em Maquela do Zombo.

Manuel em casa novamente só, parou para reorganizar o pensamento, retomar as lides de rotina. Em poucas horas a sua vida tinha-se transformado totalmente. Precisava de se reprogramar. Estudar, ler e pasmar o nada naquele sábado estava fora de qualquer cogitação. Rapidamente, mentalmente, estabeleceu prioridades: organizar os apontamentos a emprestar à Augusta, era importante, ainda mais com a eventualidade de empregar Berta e ainda admitir a miúda na creche. Em segundo lugar a fascina habitual dos sábados, pelo facto de previsivelmente receber uma companheira de todos os dias e especialmente todas as noite, não abandonaria as suas obrigações, de patrões estaria Berta farta, pensou. Ora, fazer duas máquinas de roupa, lençóis, toalhas e tudo. Atascar uma primeira de roupa clara, colocar a secar no estendal e fazer rolar para a seguinte. Entretanto, aspirar a casa toda, passar a esfregona casa de banho (antes lavar poliban, lavatório, bidé e sanita), cozinha, esfregona nos azulejos do chão, paredes, deixar estar assim. Terceiro ir almoçar ao Calhariz, “que diabo foi aquilo do frango”, intrigou-se. Quarto fazer umas compras de jeito na mercearia, as prioritárias para Berta e para a menina. “Para a menina”, interrogou-se: “Giro, engraçado” concluiu, por fim.

Berta a caminho do bairro da lata do Areeiro, pelo Loreto, Chiado, rua Garrett, rua Nova do Almada ao Rossio tomar o metropolitano quis cantar, mas evitava que a tomassem por louca, por isso imitou Manuel, cantando a sua cantiga, por dentro, para si e para os espíritos dos mais velhos, porque esses ouviam o que ela pensava: “Muxima ue ue, muxima ue ue, muxima. Muxima ue ue, muxima ue ue, muxima. Se uamgambé uamga uami. Gaungui beke muá Santana. Muxima ue ue, muxima ue ue, muxima. Muxima ue ue, muxima ue ue, muxima. Se dizes que sou feiticeira. Leva-me então a Santana… Muxima ue ue, muxima ue ue, muxima. Muxima ue ue, muxima ue ue, muxima. Se uamgambé uamga uami Gaungui beke muá Santana. Se dizes que eu sou feiticeira Leva-me, então, à Nossa Senhora. Kuato dilagi mugibê. Kuato dilagi mugibê. Kuato dilagi mugibê. Lagi ni lagi kazókaua. Kuato dilagi mugibê. Kuato dilagi mugibê. Kuato dilagi mugibê. Lagi ni lagi kazókaua”.

Manuel com a máquina de lavar roupa a rodar, programa a quarenta graus, detergente e amaciador para ficar roupa limpa e cheirosa, pôs-se a aspirar, fazendo de contas que o zunido era a sua orquestra, sozinho, cantou alto, desafinado: “ Antigamente a velha chica vendia cola e gengibre e lá pela tarde ela lavava a roupa do patrão importante; e nós os miúdos lá da escola perguntávamos à vóvó Chica qual era a razão daquela pobreza, daquele nosso sofrimento. Xé menino, não fala política, não fala política, não fala política. Mas a velha Chica embrulhada nos pensamentos, ela sabia, mas não dizia a razão daquele sofrimento. Xé menino, não fala política, não fala política, não fala política, não fala política, não fala política. E o tempo passou e a velha Chica, só mais velha ficou. Ela somente fez uma kubata com tecto de zinco, com tecto de zinco. Xé menino, não fala política, não fala política. Mas quem vê agora o rosto daquela senhora, daquela senhora,  vê as rugas do sofrimento, do sofrimento, do sofrimento! E ela agora só diz:

- Xé menino, já posso morrer,  já vi Angola independente. Xé menino, fala política, fala política, fala política.”

A máquina de lavar roupa terminou o seu programa, Manuel deu por finda a aspiradela, o chão passado a esfregona, o equipamento do WC limpo, novas toalhas nos seus toalheiros e a cama feitinha de novo, porventura, com os lençóis lavados e não engomados. Isso eram habilidades muito para além das suas capacidades, o de engomador. Por mais que quisesse, nunca tinha sido capaz, resultava tudo numa miserável engomadela. As capacidades de cada um são assim, limitadas. Por isso é que se aglutinam forças e vontades, no sentido de se obter a harmonização das partes na vida de todos nós, pensou: “Que raio, por que razão o homem contém em si a noção do perfeito e, em vez de caminhar em direcção de tal desiderato, roga a um deus qualquer que o alcance por e para si? Demite-se cobardemente de lutar pelos seus objectivos. Talvez lhe falte alento ou então tenha a noção exacta das suas incapacidades no confronto, tal como eu tive perante aqueles gajos, ontem. Agora também chegou a minha vez de alijar carga e pedir auxílio à minha demiurga, druida, kianda, feiticeira, Afrodite, Diana preta do Congo, rainha Ginga do Zaire. Aquela feiticeira, aquela cativa que me tem cativo e porque somos livres quer que eu viva. Realmente o indivíduo no mundo está só, absolutamente só, apenas o amor e a solidariedade o pode salvar. A interioridade é a relação do indivíduo consigo mesmo perante os seus fantasmas. O seu estádio supremo evolutivo é talvez o ético, corrompendo as lucubrações, os mambos de Kierkegaard. Coitado do pensador nórdico, só desvalorizaria a categoria do estético porque, se calhar, não conhecia, não vivera nem sentira o fervor de um ritual iniciático. Ele concebia o religioso como um estádio exterior, sabia lá como se pode ser religioso intrinsecamente. Naquele gelo lá dos picos da Europa, como é que poderia vivenciar o colorido, a ebulição africana austral… Ao menos os tuguitas da treta embarcaram no papel de conquistadores e foram assimilados, por mais que o neguem, tristes, mas, afinal, maiores e mais fortes espiritualmente do que esses quejandos germano-anglicanos e até franco-transalpinos. Eu que o diga, aqui um descendente celto-romano, castreja-lusitano, concheiro-caçador, viking-nómada africano, afro-asiático, afro-indiano, mestiço filho da preta e do reles conquistador, bravo velejador, sei lá do de quê mais, ou se de outra descendência qualquer ou da nada mesmo, porventura, obra materializado da real fecundação miraculosa e improvável graça do espirito santo lendário, sim, que o diga mesmo como me apaixonei pelos encantos, absolutamente, arrebatadores de uma preta, mais alva, a mais bela e encantadora mulher Mbanza Congo na África, na Europa, no planeta e em todo o universo cósmico. Berta, a virgem negra que concebeu por minha vontade uma filha à luz dos nossos desejos, na senda dos poderes druidas e kiandas superiores e não brados nem ovates no altar das florestas, sob o esplêndido aroma do arbusto viscos, dos altíssimos ciprestes, dos vetustos e sapientes carvalhos à mulemba das encantadoras, sublime mangueiras…

A hora do almoço despedia-se, avançando o dia de Outono, no morno entardecer. Manuel de apinhado só o cérebro, de pensamentos; pejado, a alma; cheio, transbordante, dilatado apenas de coração. Porque o estômago vazio clamava alimento, comida. Os músculos cansados já não tinham onde buscar combustível. Por isso, saiu e foi ao restaurante Príncipe do Calhariz, almoçar, de preferência um prato de carne, excepto galináceos por causa do que a sua referência tinha provocado em Berta. Se algum bicho dessa espécie molestara a sua rainha Mbanza Congo, não se alimentaria dele.

À mesa já devorando o seu bife com arroz branco e salada a acompanhar, o seu professor de Geografia, acompanhado da respectiva esposa qui fazer-lhe companhia. Manuel anuiu com agrado e quase que lhe falava de Berta, tal a intensidade com vivia o momento. No entanto, teve o bom senso de não avançar nesse sentido. Porque, de repente, lhe ocorreu inarrável tamanha história de amor. Há situações únicas, restritas, incompreensíveis à compreensão de terceiros. A sua gesta com Berta era demasiado singular. Como toda História da humanidade para ser escrita e assimilada terá de fazer o seu caminho, amadurecendo e depois sim, contá-la, porque há páginas da vida humana que não devem ser apagadas, a bem do desenvolvimento e do aperfeiçoamento espiritual. Pois, nem todas as almas terrenas escutam os ensinamentos dos mais velhos.

Foi à mercearia do senhor Marcelino da Calçada da Bica, comprou muito mais e variado do que o habitual. A exemplo daquele instinto de mulher alcoviteira, a senhora Olinda, mulher do merceeiro, tentou descobrir os motivos que levaram Manuel a tais aquisições, fazendo-lhe perguntinhas e inusitadas insinuações a terceiros, tudo na tentativa de descobria algo, mas Manuel defendeu-se refugiando-se no seu mutismo, sorrindo. Às dezoito horas pôs-se à espera de Berta, quase tão ansioso como quando esperava por ela, deitado no leito, sobre o qual tinha embarcado em tão inolvidável barca de amor e luxúria desmedida. O encontro com Augusta tinha decorrido a contento, pelo que aguçava ainda mais o desejo do reencontro com a companheira. E queria ver mesmo Patrícia. Queria verificar se a descrição que tinha feito da menina correspondia à efectiva aparência física. Augusta, metediça e curiosa em demasia, obrigou-o a satisfazer perguntas e mais perguntas. Se não soubesse que Augusta era mulher casada e mãe de filho, até tinha pensado que estava enamorada por ele. Em defesa de Berta não lhe convinha criar nenhum atrito, por isso tentou responder a todo o questionário com urbanidade e objectividade.

Entardecia, foram-se as dezoito, as dezoito e trinta e as dezanove e as dezanove e trinta. A partir daí começou a contar minuto a minuto e depois ia já nas décimas de segundo, quando, pelas dezanove e cinquenta, Berta abriu a porta com a à-vontade e absoluta elegância de senhora distinta, sorrindo para ele, sem pedir desculpa pela demora. Chegava linda e carregada com um saco de compras em cada mão. Sozinha, sem bagagem, nem filha. Manuel esperava-a com Patrícia a tiracolo e malas ao funda da escada. Ela como era seu timbre, intuitiva e perspicaz, senhora de todas e quaisquer estados de alma de Manuel, para o sossegar disse, meiga e sensual:

- Eh, já te levo comigo, não tenhas medo. Vim só buscar-te e trazer tudo para amanhã te fazer o mufete.

O mufete era o presente, a honra que a mulher da Ilha de Luanda faria ao marido, pelo menos uma vez por semana. Berta era do Uíge/ Zaire, mas também fazia o seu mufete em honra do enviado, aquele que ela esperava há muito, muito tempo, tanto que não o queria perder no resto da sua vida, nem terrena, nem celestial. Por isso foi buscá-lo para o levar a dormir consigo na sua cama do bairro da lata do Areeiro.

Manuel, encantado, ambos beijando-se e abraçando-se como se aquele momento fosse mesmo o do reencontro, o culminar de infinita espera. Mais uma vez qualquer pronúncio silábico seria alheio ao assombroso e recíproco estado de alma. Este era o momento do apaziguamento, nada de exultação lasciva ou sucoso êxtase sexual. Ambos gozavam de uma extraordinária sensação de paz, traduzida na capacidade divina de se olharem por dentro, mutuamente, sem caridade, parcimónia, nem sanção, nem clemência, nem raiva, nem explicações, nem euforias, nem exacerbo. Não tinham pressa, nem relaxamento letárgico, afastaram os corpos sem qualquer possibilidade de desapego emocional, apenas compreendiam que o caminho seria longo, o mais longo possível na maratona das suas vidas. Não necessitavam de aconselhamentos relativamente aos escolhos, às barreiras que teriam de transpor. Ambos cientes de que nem sempre encarariam tudo do mesmo modo, mas ambos sabiam claramente que só aportariam em bom porto se remassem na mesma direcção, coordenando forças e vontades. Berta tratava já de organizar os apetrechos e os produtos de cozinha. Não que sentisse o dever de servir, na qualidade da sua vida de empregada quase escrava, por vezes serva mesmo, para todo serviço dos retornados ou de qualquer outra entidade que lhe tinha ditado serventia. Organizava a casa, usando das suas aptidões e saberes de experiência feita. Manuel fazia de sombra de Berta, contemplando-a e pronto a cumprir ordens e demandos, juntos, cúmplices. Manuel mirava a companheira como o protótipo do conhecimento absolutamente independente da experiência, proveniente unicamente do pensamento, saído da razão e condição da experiência. Por isso, ela, tal como nos instantes de separação física, em Maquela do Zombo, sentiu os olhos, o pensamento, a alma cravados em todo o seu ser e observou, sem necessidade de lhe retribuir de frente com o seu olhar, também:

- Manuel Luís, não me adores assim que te posso desiludir. Ajuda-me a fazer um jantar simples, não temos a noite toda para contemplações, há mais que fazer.

- Sim, mas, se isso for vero, eu não viverei, porque vivo em ti…

- Oh, nãooo. Diz-me só essas coisas quando viajarmos nas nuvens, agora precisamos dos pés firmes no chão. Derreto-me com os teus galanteios. Fazes-me bem, fazes-me sentir mulher e eu, que não sabia o que isso era, gosto tanto. Até sou capaz de te imitar nos teus devaneios poéticos: estremeço de líbido aquoso, mas, por ora, dá-me lá um tachinho, uma panelinha, por favor…

- Este?

- Não, o outro, esse, mais pequeno, só para hoje. Bem sei que precisas de recuperar forças, nada de estragações desnecessárias. Vou ensinar-te. Uma cebola, alhos, tomate, azeite, nada de margarinas, nem óleos, só se for dendê. Aprendi em Meruge. Ensinaram-me muita coisa. Gostei deles.

- Sim, e mais? Gostei de te ouvir isso. Não há nada nem ninguém, cem por cento mau, Nem o contrário.

- Aí, aí não sei se é mesmo assim, é capaz de haver os cem por cento maus… Agora, então, refogado, depois de cebola e alho dourados, o tomate assim cortado. Vá, lava lá essa medida aí de arroz e escorre bem. Sabes que já vi como se descasca o arroz, até parecem as fábricas do café. Aprendi até a semear, a mondar, colher, sei lá, tanta coisa interessante, muito melhor gente do que aqui em Lisboa. Isto já está, mede três medidas dessas de água, mais um pouquinho, para ficar a escorrer, não quero arroz do quartel dos portugueses.

- Mas, estiveste no quartel deles?

- Já te conto. A água a ferver mete-se assim o arroz e mexe-se bem. Sal já tem, deixa ver. Ah, esperto, tens curcuma, gindungo e louro. Um pouco disto, uma folha e uma semente. Daqui a pouco mistura-se o atum e está pronto! Ah, a tropa dos portugueses em Maquela. Foi o meu primeiro susto, a minha primeira humilhação de verdade. Sabes, deixaste-me lá e fiquei à vossa espera. Bem sabia que tu não irias…

- Porquê… Até fui depois sozinho, sem autorização superior…

- Por isso mesmo, se fosses à minha procuram, prendiam-te. Viam logo que eras do MPLA, branco, miúdo, eram certinhas. Pensei que fosse alguém disfarçado de trabalhador, preto andrajoso. Era assim que o MPLA fazia. Ninguém aparecia, dormi no mercado, com mais medo do que sozinha em Tambuco, um cão parecia que tinha tino de gente, adotou-me, se calhar, achou-me desgraçada e perdida como ele.

- Solidariedade de que muitos humanos não são capazes.

- Sim, isso. Agora diz-me tu, porque não tiveste pena de mim, nem nojo quando me tiraste do buraco no bombardeamento? Onde é que arranjaste coragem para catares do chão, espalhados, os restos mortais da minha mãe e dos outros, se eu não fui capaz? Quando me encontraste eu já nem pensava em nada, nem chamava pela minha mãe, estava só à espera da minha vez de ser devora pelas aves e hienas, se aparecessem também. Estava assim perdida sem farol como ontem quando me foste buscar à cervejaria. Estava tão perdida que até me tinha esquecida que tinha uma filha para cuidar. Bem, mas não respondas agora, isso é muita coisa para me explicares tão breve. Põe lá dois pratos, toma dois garfos e duas facas, mas tira lá a tampa às latas de atum, depressa! Isso, ah, tens uma chave própria. Também combatente sem arma…

- Era isso mesmo combatente pela liberdade sem preparação, nem saberes suficientes. Por isso, falhei, fui capturado.

- Não, não, nada. A culpada fui eu que te chamei sempre, desesperada. Pronto, vamos começar a comer. Ah mas no quartel fui pedir esmola como os outros. Só nos davam restos de arroz e massa que parecia cimento pegado, restos, estragados. Um infeliz pula, soldado, tentou violar-me. Tive medo, mas consegui fugir dele, daquela vez…

- Daquela vez, quer dizer que te perseguiu o triste…

- Não aquele nunca mais vi porque o patrão Silva me levou na carrinha para o Negage. O que me violou, o que me magoou fundo na minha alma, o que quase me fazia crer na minha desistência por ti, foi outro, em Lisboa, tem a ver com o frango no espeto. Tu aguentas? Tens a certeza que pedrou-as? Bem agora também já não há nada a fazer, tenho mesmo de te contar.

- Não sou juiz, nem demiurgo para perdoar as falhas dos outros. O que posso fazer, neste momento, apenas lamber as tuas feridas, já que tu me sarar as minhas.

- A patroa Alzira arranjou outro marido e entregou-me aos filhos, na avenida da Igreja. Pensei que seria uma empregada só para lavar e engomar roupa e fazer limpeza, sozinha na casa, à-vontade para fazer o que me apetecesse, até passear por Lisboa. Deram-me dinheiro para a minha mão e fui fazer compras, de regresso comprei um frango inteirinho, só para mim e jantei, sozinha, três quartos de frango assado, guardei um quarto para o dia seguinte. Sentei-me pela primeira vez no sofá dos pulas retornados. Liguei pela primeira vez a televisão dos pulas, só para mim. E fiquei assim, acho que estava triste mesmo, julgando-me, como se diz…

- Alforriada?

- Sim, isso mesmo. Lembro-me que chamei por ti, aflita, nem sei porquê. Já agora vou dizer como chamava por ti, uma oração só minha, segredo só meu, até este momento: meu amor, querido, vem buscar-me… Depois outras palavras conforme a situação.

- Não chores assim, agora não, por favor. Tu conseguiste apanhar os restos mortais e ainda eras um menino, que idade tinhas?

- Quinze, desculpa…

- Um dos filhos retornados chegou, abriu a porta e já não sei o que aconteceu, sei que lhe implorei para não me fazer mal, mas não quis saber. Nem sei bem o que me fez. Só sei que me doeu muito mas cá dentro, no coração, abriu-me uma ferida tão funda que só ontem ma arrancaste quando me deitei contigo e tu me amaste e deixas-te amar daquela maneira, já sabes: à sétima noite de amor que dormimos juntos, fomos ao céu sete vezes… Ah já te ris, né… Ainda bem porque já não sinto essa dor. Vamos lavar esta loiça.

- A menina com quem ficou?

- A Patrícia ficou com a madrinha, amanhã já ta apresento. Está descansado que já sabe de nós. Que horas são, ah, já a deitou na minha cama, quando chegarmos, dormimos os três. É isso que quero. Quero sentir-me, quando acordar, como esta manhã, aliviada da minha dor. Contigo encostado nas minhas costas, abraçado ao meu ventre. Quero meter a mãozinha dela na tua e pôr a minha por cima. Não faremos sexo, mas só amor, de outra maneira, abraçados, toda a noite. Não te perguntei se aceitas porque sei, sinto que me compreendes e também queres fazer isso… Depois voltamos aqui com a Patrícia, vamos ver se a tua amiga Augusta nos ajuda, sim, Estás conte?

- Sim, muito, querida….

Ambos se aprontaram para a viagem ao bairro da lata do Areeiro, Manuel não conhecia, nem precisava, a guia orientava. No Calhariz ele olhava nos dois sentidos na busca de táxi, Berta, puxando-lhe pela mãe:

- Anda, de metro, deixa lá o táxi.

- É mais rápido, o metro nunca mais lá chega, a esta hora é mais escasso e no fim-de-semana ainda há menos transportes. Ainda para mais, a esta hora, de certeza, que o metro vai cheio, há jogo, daqui a pouco em Alvalade.

- É da maneira que viajamos de verde, esperançados…

Desceram na Estação do Areeiro onde parecia que a cidade acabava e o descampado de estendia pelas sombras de construções, arbustos, caminho-de-ferro e o escuro, sem electrificação, em frente.

- Não tenhas medo, sei o caminho, mesmo de noite passei por aqui muitas vezes, com medo, mas agora não. Com um combatente…

- Um combatente de papel é que foi, agora continuo-o, mas com outras armas, não baixei guarda que julgas?

- Julgo que não desistes até ao fim, como também não desistimos um do outro este tempo todo.

Desceram o morro, por carreiros e atalhos ínvios até uma casa de madeira, bem no sopé, a poucos metros da linha férrea.

- É esta, comprei-a por cinquenta contos e vai ser demolida. Vão alojar todos os moradores em Chelas, sabes onde é?

- Sei, penso que é mau.

- Não, não é mau, é horrível. Era o meu destino, se me aguentasse até lá. A assistência social inscreveu-me. Por causa do estatuto de mãe solteira fui aceite. Já ouviste falar numa senhora da Associação o Ninho?

- Não só ouvi como conheço a senhora, a responsável, queres que te diga o nome?

- Diz lá então.

- Aquela fonte mais o diminutivo.

- É, ajudou-me muito…

- Mas podemos falar com ela. Não vais para lá, mas pode ser que recebas alguma compensação. Não que seja oportunista, mas parece-me legítimo, que pensas disso?

- Acho bem, até que já me fizeram uma proposta nesse sentido. Não pude aceitar porque com o que me ofereciam não daria para arranjar uma casa minimamente decente. Se fosse sozinha, agora com a Patrícia não podia ir para qualquer lugar. Xiuiu, já está a dormir. – Ciciou, mostrando-lhe a menina, ferradinha no sono, inocente, quase à beira da cama logo atrás da porta da barraca.

- Não a acordes, até se vê aqui dentro com a luz de fora, com a porta entreaberta.

- Não, xiuuu. Temos um candeeiro que já deixei no chão, de propósito, para não a incomodar, bem, mesmo que acendesse a luz de cima, se calhar, não acordava. Queres uma camisolinha minha para dormires? Põe a tua roupa em cima dessas caixas, são coisas que arrumei para levarmos.

- Sim, empresta-me essa camisolinha, durmo com isso e cuecas.

- Deita-te aqui.

- É linda, mulatinha, posso dar-lhe um beijinho?

- Sim, querido, já chega, senão ela acorda mesmo e depois não há quem a ature com brincadeiras. É mulata e tu não és branco? E eu não sou preta? Leite com café dá o quê? Não me chamaste virgem negra, preta do Congo, Mbaza Congo, então, engravidas-te me por milagre, através de tanta vontade que tínhamos de fazer amor. De nos deitarmos assim juntinhos, como no Zaire. Às vezes destapava-me só par que me cobrisses. Ainda tenho aquela sensação boa, de conforto, eram como beijos. Ouvia-te respirar a dormir e eu ficava acordada o mais que aguentassem. Tu é que tinhas ordem para cuidares de mim, mas acho que tu querias é que eu te protegesse e isso era tão bom, tão bom e só agora te posso confessar isso. Tinha tanto medo de morrer sem te dizer.

- Xé menino já posso morrer, já vi Angola independente…

- Xiuuu, queres mesmo acordá-la, mas depois és tu que a terás de adormecer, estou a avisar. Beija-me e abraça-me assim, mas não faças barulho e fica quieto, não podemos fazer brincadeiras agora com ela a dormir. Eu disse-te que só queria dormir assim abraçados, sinto-me muito bem, melhor do que de qualquer outra forma.

- Onde está a mãozinha dela?

- Aqui, espera, assim, não lha apertes, pronto, assim é bom, bom…

Manuel adormeceu e acordou assustado, sonhava que estava ainda na mata e que alguém lhe arrancava Berta, aflito quase gritava: “Não, não eu é que sou o responsável por ela, quero-a aqui”. Berta ainda velava afagou-o, beijou-o nos lábios e murmurou baixinhos: “ estou aqui, amor, já ninguém me pode levar e não deixo que te tirem de mim, eu é que cuido de ti, querido, isso dorme, amor…”

Como em qualquer musseque colonial, logo pela manhã a miudagem saltava na rua, entravam e saíam das tabancas. Dos três na cama de Berta, só Patrícia ainda dormia, Berta e Manuel saboreavam, quietinhos, o prazer da companhia. Entraram, por ali dentro três ou quatro petizes, iam buscar Patrícia, como se fossem à procura de uma boneca para as suas brincadeiras. Ao verificarem que na Cama de mãe e filha, dormia um rapaz, um homem, saíram. Cá fora segredaram:

- A tia tem marido branco…

- É arto…

- Hum, hum, é nada arto, não chega co pé no fundo da cama…

Manuel quis rir e Berta sorriu antes e beijou-lhe a boca do namorado branco com os seus lábios sensuais, túrgidos, belíssimos de menina preta do Congo, feita mulher…

 

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