Luís de Sousa Peixeira
Preta do Congo
Preta do Congo
-Adelino, Adelino! Adeliiiinooo!
-Senhora, Senhora! O patrão está
morto…
- Quê? Que conversa é essa? Sua
doida…
Foi assim que D. Alzira soube da
morte do marido, inesperadamente, mês de Novembro, de 1975. Ela notara que o
seu homem, o fazendeiro Silva, tinha ido ao barracão do algodão e do café, mas
demorava-se para o almoço. Por isso o chamava dado que a criada Berta também
tardava na demanda do patrão.
De facto, o fazendeiro-mor das roças
de Carmona (Negage) jazia ali, estendido, de olhos fechados, como se dormisse,
tranquilamente.
Alzira, completamente perdida, sem
saber o que fazer, apanhada numa situação que nunca tinha imaginado, parecia
tresloucada. Berta postou-se, ali, atrás da senhora. Os criados, os pretos,
como o Silva designava, já não ligavam: uns tinham abalado da fazenda há uns
dias e no próprio 11 de Novembro, dia da Declaração da Independência de Angola,
outros andavam por um lado ou por outro, sem ligar patavina ao patrão. Até as
vacas tinham ficado no mato no dia anterior, ao deus dará.
Entretanto, sem se perceber muito
bem, o padre Alberto apareceu para as exéquias do patrão Silva. Como se isso
não bastasse assomaram colonos do Negage e de roças das proximidades. Ora, nem
a Berta, preta do Congo, assim que a tratava o Silva, nem a patroa Alzira
entendiam o por quê do surgimento dos vizinhos colonos e até uns quadros
dirigentes da FNLA. Foi isso que enlouqueceu Alzira. Gritava:
- Que fizeram ao meu homem? Quem o
matou? – Ninguém respondeu…
O funeral foi feito mesmo naquele
dia, até o esquife parecia que tinha sido encomendado de véspera. Foi sepultado
no seu quintal junto da mangueira onde, em vida, Silva se sentava
habitualmente, bem perto do tanque de lavar roupa, local acoitado, parecia que
alguém sabia que era o esconderijo preferido do patrão para copular Domingas, a
lavadeira. No início ela não aquiescia, mas, por coação, lá cedeu e o patrão
Silva adquiriu aquele fetiche. Alzira não queria saber, há muito que não lhe
interessava sexo. De vez enquanto, mirava o tronco musculado do seu cozinheiro
Pedro, o preto que tinha trazido de Benguela, ainda menino e ali ficou e se fez
um matulão. De resto, Alzira preocupava-se sobretudo com os dois filhos e as
duas filhas que residiam em Lisboa. Ela quis e pressionou o marido para que
mandasse a prole estudar na Metrópole. As raparigas e o filho mais novo tiveram
consentimento imediato do Silva, porém o seu filho José não: Silva queria-o ali
no fito de lhe passar a pasta. No entanto, a mulher não se calava e exigiu pelo
que, em Novembro de 1975, ali estava o casal rodeado de pretalhada e dos eus
quatro casais empregados, naturais de Oliveira do Hospital, terra da qual todos
eram oriundos.
No dia seguinte, Novembro de 1975,
logo manhã cedo, um camião se aprontou para levar Alzira e as famílias dos
empregados do puto. Numa carrinha de escolta surgiu o padre Alberto, o Osvaldo,
um mestiço da FNLA, o Albarrã, colono transmontano e chegado aos da UPA, e uns
quantos soldados.
Ordenaram a Alzira e aos súbitos:
- Está na hora de voltarem à metrópole,
vão no camião até ao Caxito lá vai aparecer alguém que vos acompanhará ao
aeroporto internacional. Seguem na ponte aérea para Lisboa.
Todos atarefados em recolher bens
pessoais, sem saberem o que levar e o que deixar para trás, o padre Alberto
disse:
- Levem só o extremamente necessário,
pouca bagagem. O resto fica cá. Ninguém aqui vai tocar naquilo que é vosso e
não tarda que volteis e para fazerdes desta terra uma grande terra, a Angola
potência e pérola de África.
Berta estava ali especada, pasmada,
Alzira, antes de trepar para o camião puxou pela criada, a sua preta do Congo,
e disse, intrépida, para o padre Alberto ouvir:
- Ela vai comigo! Anda rapariga, vais
connosco pró puto…
Berta foi, assim, conforme estava,
sem bagagem. Bem, também a não tinha…
Supostamente, o conluio da retirada
daqueles colonos tinha sido patrocinado pela FNLA com a colaboração do padre
Alberto, homem bem quisto e de confiança em ambas as hostes. Quanto à morte do
senhor Silva era mistério. Era isso que pairava nas cabeças dos brancos em
fuga, em cima da camioneta grande. Iam desconfortáveis com as nádegas a bater,
a bater devido ao asfalto em mau estado de conservação. Há muito tempo que
deveria ter sido reparado. Contudo, devido às últimas chuvadas na província do
Uíge e à barafunda causada pela hecatombe em angola, resultante da queda do
regime colonial em Lisboa, aquele macadame encontrava-se numa verdadeira
lástima, deplorável.
Alzira e Cecília, esposa do empregado
Amâncio, seguiam na cabine, junto do motorista António, antigo criado do senhor
Silva, antes de aquele ter desertado da fazenda, juntando-se à guerrilha da
UPA, em plena guerra colonial. Aliás, era o António o elo de ligação dos da
FNLA e com o colono Silva. Secretamente, esporadicamente, António regressava ao
território do antigo patrão para recolher viveres que Silva ofertava, até para
se sentir seguro. Claro que os militares do exército colonial nem imaginavam.
Silva mantinha a dupla ligação: com os guerrilheiros, por um lado e, por outro,
com os oficiais portugueses. Na casa do senhor Silva havia sempre umas garrafas
de uísque traficado para o aspirante Antunes, o segundo sargente Raimundo e,
sobretudo, para o comandante Teixeira. O capitão Amaral também aparecia, de vez
em quando, todavia, era uma presença incómoda para o senhor Silva, dada uma
conversa azeda que ambos tinham tido, com o Amaral a afirmar ao Silva que o
tinha debaixo de olho porque desconfiava que era um dos apoios dos turras,
mesmo nas barbas daqueles que davam o corpo às balas, ou seja, os militares
portugueses.
O padre Alberto, o Osvaldo da FNLA e
o trasmontano tinham ficado na fazenda, aparentemente, na qualidade de
guardiães e zeladores do vasto património construído e fundiário da família
Silva, tal como ostentava uma placa azulejar na sua casa, azulejos mandados
fazer expressamente pelo fazendeiro na fábrica Viúva Lamego, sedeada na Quinta
das Laranjeiras, Palma de Baixo, junto do Futebol Clube o Palmense, em Lisboa.
Cecília perguntou, a medo, a António:
- Senhor António, que tempo vai
demorar até ao aeroporto? – António soltou uma sarcástica gargalhada, com
aqueles dentes fortes e brancos, intimidando mais cecília a seu lado na cabine.
Ela bem se chegava para a patroa Alzira que já se estreitava contra a porta da
camioneta, mas António evidenciava-se a meter e tirar mudanças e a roçar a sua
pernona direita na esquerda de Cecília. António calou-se e voltou a rir, agora
mais comedido e respondeu:
- As horas, os dias, as semanas ou os
meses que forem precisos param chegarmos no Caxito. Depois, até ao aeroporto,
já não é connosco, os portugueses que vos levem, dona Cecília… E sorriu
novamente, prosseguindo, agora colocando a sua manápula castanha na perna
esquerda de Cecília e atirou:
- Ah, agora me trata por senhor
António, antes era António anda cá, vai lá, seu matumba… Mas se a Cecililha
quer saber eu informo: vamos apanhar a estrada ao Uíge, depois tomamos a
direcção de Quitexe, zona de Quibaxe, Úcua. A ideia é a de circular por estrada
boa, mas fugir dos gajos do MPLA… Bacongo não quer comunistas em Angola!
Os Bacongo, cuja língua é o quicongo,
ocupavam o vale do rio Congo em meados do século XIII e formaram o Reino do
Congo, que, até à chegada dos portugueses, no fim do século XV, era forte e
unificado. A capital, Mabanza Congo, ficava na província do Zaire. Durante a
luta pela independência de Angola, apoiada pelos EUA, muitos Bacongo fugiram
para o Zaire, levando a uma considerável diminuição da presença dessa etnia em
solo angolano. Cerca de uma dúzia de línguas, de Cabinda ao Cunene e do oceano
ao leste, porventura, seis dezenas de sublinguais regionais cobriam o
território. Se o MPLA, apoiado pela URSS, países do Norte da Europa e uma
grande parte dos membros das Nações Unidas, ostentava um cariz nacional e multicultural,
a UNITA emergia a partir dum cunho regionalista rural, a coberto dum secreto
tratado com a política portuguesa colonial.
Assim, a camioneta da família do
falecido fazendeiro Silva, radicado há mais de quarenta anos em Angola, não pôde
abeirar-se da localidade do Caxito. Os militares da FNLA que escoltavam os
colonos em fuga iam efectuando avanços e recuos de reconhecimento, no sentido
de serem evitados confrontos com o inimigo, ou seja, os tropas do MPLA.
Circulavam na espectativa de se cruzarem com os do exército português. Contudo,
cedo perceberam que os antigos militares coloniais tinham abandonado todas as
posições no terreno, porventura antes do dia 11 de Novembro.
Ainda distantes de Quibaxe, avistaram manobras
de tropas e ouviram rebentamentos de fogo através do emprego de armas pesadas,
nomeadamente morteiros 81. Guindaram para fora da estrada, estacionando,
camuflados pela farta vegetação. Os portugueses primeiro receberam ordens para
permanecerem na camioneta, depois foram apeados e incumbidos de montarem um
género de piquenique, estendendo no chão todos os alimentos que levavam nos
farnéis. O motorista António e os companheiros militares falaram, falaram,
sempre em quicongo e afastados de Berta, evitando, desse modo, que alguém
decifrasse as suas intenções, no momento. Por fim, todos comeram e arrecadaram os
sobrantes na cabine da camioneta.
Os portugueses inquietos, perturbados
com toda aquela movimentação, mas quedos e mudos face à, entretanto,
animosidade dos acompanhantes bacongos, aguardaram até que António os chamou,
num português fluente, para a orla de um caminho no sentido Leste, um trilho
estreito, um carreirito, quiçá, feito e utilizado pelos guerrilheiros ou pelas
tropas de ocupação no decorrer da guerra de libertação.
Aí, António explicou, parcamente, que
o avanço por Quibaxe se encontrava impedido face à presença do inimigo russo,
pelo que tinham alterado os planos, isto é, já não iriam ao Caxito, mas, antes,
a Camabatela de onde os portugueses os fariam chegar a Luanda e embarcar todos
em segurança para a metrópole. Berta esboçou um esgar em sinal de desconforto,
de espanto, como que sabendo do logramento. Todavia, os da FNLA não deixaram
margem para hesitações, nem queixumes. De pronto, ordenaram aos portugueses que
seguissem o trilho, sempre em frente, sem desvios, nem delongas que brevemente
chegariam à povoação de Camabatela e aí receberiam os seus pertences e a
almejada escolta dos tropas portugueses. Um dos da FNLA intimou em quicongo
Berta no sentido dela abandonar os pulas. Berta preparava-se para se raspar com
os patrícios angolanos, só que Alzira agarrou-se à criada com todas as forças e
os militares partiram, deixando a preta do Congo à sua sorte juntos dos
desgraçados de Oliveira de Hospital embrenhados na mata, mais distante da
localidade de Camabatela do que de Oliveira do Hospital ao Peso da Régua.
À medida que avançavam pelo carreiro,
mais dificuldade de caminhar, dado o quase apagamento do trilho até que se
acharam praticamente no mato fechado. Se o caminho fora utilizado há muito que
o tinha deixado de ser. Berta, mais familiarizado com a tipologia e a orografia
da região, descortinou uma zona cuja vegetação tinha sido queimada há largos
meses. Os arbusto e as ervas já quase tapavam os vestígios de tudo o que tinha
sido arrasado pelo fogo. Mesmo assim, caminharam em direcção ao local. Mais de
perto ainda se notavam paredes de adobe, pequenas parcelas de assentamento de
construções e uns restos de paus de vedações e de, eventualmente, casas. Berta
disse, mas os de Oliveira do Hospital não acreditaram: “foi quimbo queimado pelos
bombardeiros dos tugas…”.
Aflitos, já a tarde se alongava e o
medo do anoitecer apavorava o grupo, decidiram regressar ao ponto de partida, à
estrada. Valeu novamente Berta pelo sentido referencial, orientando o grupo até
à estrada do Uíge – Caxito.
Cansados, famintos e apavorados
sentaram-se no asfalto e não tardou que chegasse um conjunto de automóveis,
carrinhas e camionetas na direcção de Quitexe. O grupo praticamente cobriu a
estrada, acenando, desesperados, menos Berta que permaneceu na berma, aguardando
o desfecho. A caravana parou. Informou que vinham de Ambriz cuja vontade era a de
ter continuado pela orla marítima, por Catacanha, até Luanda. Contudo,
depararam-se com combates entre o MPLA e a FNLA e tinham decidido tomar a via
da Bela Vista com o objectivo de alcançarem Malanje onde sabiam funcionar um
evacuamento para Lisboa. Num momento de tanto desespero imperou o bom senso e
não faltou solidariedade entre os colonos que lá acomodaram os da família do
falecido Silva. Alzira agarrou Berta e não a largou até se empoleirarem todos
numa carrinha de caixa aberta, entre tralhas e cobertores.
Sem grandes sobressaltos, entraram em
Malanje. Uma noite tranquila, a cidade dormia, apenas canídeos circulavam e as
luzes iluminavam as ruas, os jardins e os edifícios, sem vivalma. Berta e
companheiros da extenuante viagem, recheada de peripécias, aguardaram pelo
amanhecer, junto do aeroporto. Malanje continuava a funcionar - comércio e tudo
o mais. Os rostos da maioria dos colonos andavam mais fechados, sinónimo de
apreensão, receando pela segurança e reservas quanto ao seu futuro. Os transeuntes
africanos de origem calcavam os pisos mais seguros e esperançados, de sorriso
no olhar. Não estava previsto a extensão da ponte aérea a partir de Malanje,
pelo que os de Oliveira do Hospital, antigos empregados da fazenda Silva e a
sua mulher, com a criada preta atrelada a si, lá se incorporaram numa vasta
caravana de automobilistas para Huambo, na época, Nova Lisboa. Dizia-se, em
surdina, entre os pretendentes à fuga para a metrópole, que Nova Lisboa tinha
mais unitas, amigos dos pulas.
De facto, os aviões levantavam voo do
Huambo para os aeroportos de Lisboa e do Porto, alguns até para Faro. Alzira,
Berta e os seus empregados foram autorizados a embarcar no avião para Lisboa,
Ela própria fez a relação deles, por escrito. À entrada da sala de embarque, um
dos fiscais barrou Berta, interrogando-a:
- Onde vais tu? – Calada, inerte,
esperou que alguém explicasse a situação e logo Alzira acorreu:
- Desculpe, está na lista que lhe
dei, é a Berta!
- Berta quê? Onde?
- Aqui está – Berta Bumba… Está
connosco, é portuguesa…
- Então mostre a identificação. É
assimilada? Tem bilhete de identidade?
- Sim, mas como lhes contámos,
roubaram-nos tudo, não vê que nenhum de nós tem bagagem? Há três dias que
andamos com a mesma roupa e mal matabichamos… Ela está connosco desde criança e
é como fosse da família, não podemos ir sem ela. E para ficar, como pode ela
voltar a Carmona? Por favor, por amor de Deus, deixe a rapariga comigo que eu me
encarrego dela…
- Bem, passa e rápido, antes que dê
maca…
Entraram no aparelho da TAP,
amontoados, sem lugar marcado. A bagagem de alguns tinha ido para o sector de
carga, outra despachada para que fosse embarcada noutra ocasião e havia sacos e
maletas espalhadas pelos regaços, pés e corredores. Os da roça Silva sentiam-se
fragilizados, famintos, andrajosos e mal cheirosos, mas aliviados face ao
sucedido. Berta Bumba, ao lado da patroa Alzira, junto à janela do avião,
continuava serena, expectante. Nunca tinha visto um avião assim de perto, só os
Heli canhões, helicópteros e bombardeiros dos tropas do puto, mas à distância.
Aliás, ela tinha sido levada para Negage pelo fazendeiro Silva que a apanhara na
rua da localidade de Maquela do Zombo, devido a um bombardeamento do qual Berta
fugiu, deixando para trás a sua família morta e a sua cubata queimada, em
Tambuco. Berta escapou ao bombardeamento porque não estava recolhida, tinha ido
ao mato, buscar lenha para que a sua mãe cozinhasse fuba. Ali estava a criada,
a preta do congo, sentada junto da senhora branca. Entreteve-se a mirar a
confusão daqueles brancos, jamais imaginara pulas, assim, atrapalhados,
aflitos, empurrando-se uns aos outros que nem mabecos disputando carcaças de
pacaça, nem um mestiço, nem um preto a não ser ela própria. Lembrou-se do rapaz
branco que a tinha recolhido no seu quimbo, um dia depois do massacre
perpetrado pelos bombardeiros da tropa colonial.
De facto, nos momentos de solidão, de
dificuldade sempre se lembrava daquele rapazote vestido de uniforme do exército
português. Aquilo tinha sido um mistério ter surgido um rapaz, mais ou menos da
sua idade, inesperadamente, sem que ela notasse a sua aproximação. Militar
português não poderia ser por causa da idade – os tropas pulas eram homens
feitos, com mais de vinte anos, aquele nem aparentava quinze. Da FNLA também
não porque não tinham brancos, nem mulatos nas suas fileiras. Só se o rapazote
fosse do MPLA onde havia de tudo: pretos, mestiços, brancos, angolanos,
estrangeiros, mulheres, raparigas, rapazes, velhos, velhas, mancos, atletas,
cegos, surdos…
Berta só ficou a saber que um rapaz
branco a resgatou e, com a ajuda de duas senhoras kwanhamas, a tinha deixado em
Maquela do Zombo. As senhoras ainda novas, pele bem menos escura da dela que
bem sabia serem das etnias do Sul; ambas lá lhe referiram que eram kwanhamas e
amigas; tinham calças e camisas diferentes, embora do género militar e, tal
como o rapaz, botas do tipo das dos portugueses, bonés de pala, iguais. Ele com
umas granadas à cintura e elas cada qual com a sua arma ligeira, mas pequenas
face ao que tinha visto, quer aos da FNLA, quer aos portugueses. Berta bem
percebeu que havia mais pessoas por perto, quer no acampamento onde
pernoitaram, quer à ilharga dos trilhos que pisaram, mas não viu mais ninguém,
directamente, por precaução, naturalmente teriam receio de serem denunciados à
tropa portuguesa. Andaram na mata, por vários locais, dormiu na companhia dos
três e comeu carne salgada e bebeu água deles. O rapaz só falava português e
elas outras línguas sobretudo o quimbundo que entendia, parcialmente. Numa
tarde, ao lusco-fusco, abeiram-se da referida localidade, as mulheres
abraçaram-na e beijaram-na, o rapaz dizendo-lhe, ao mesmo tempo que lhe afagava
uma face e lhe beijava a outra, com os olhos humedecido e, igualmente, as
senhoras mulatas se emocionavam:
- Vai lá, agora tenta encontrar ajuda,
mas é segredo, não fales a ninguém em nós, não digas que nos viste, a ninguém,
mesmo ninguém, qualquer dia voltaremos para saber de ti: jura! Os três tinham
ficado ali a olhar para ela que bem os sentiu e conferiu mais à frente, quando
se virou e lhes acenou, mais com os olhos e com o coração do que com a mão, a
qual mal conseguiu erguer…
Em Maquela do Zombo deambulou e comeu
o que alguns patrícios quiseram partilhar com ela, até que o patrão Silva parou
a sua carrinha izuzu de caixa aberta e lhe disse:
- Sobe para ali, vais comigo…
O avião iniciou o descolamento,
levantando voo que nem um passarão ruidoso. Berta estremeceu, amedrontou-se
deveras, tal lhe tinha acontecido ao assistir a um filme, apresentado pela
tropa portuguesa, em Maquela do Zombo, ao ar livre, quando a tela mostrou um
genérico de um comboio de frente em crescendo que lhe pareceu sair do ecrã para
o terreiro e esmagar ali a pretalhada, impiedosamente. Em poucos minutos o
monstro voador ganhou altura e Berta perdeu de vista as espantosas imagens da
terra cá em baixo, olhava, olhava e só mirava o vazio sobre o cinzento das
nuvens. Berta sabia lá o que era aquela coisa cinzenta que nem fumo frio,
fechou os olhos, concentrou-se, evitando a sensação de mal-estar provocada pelo
sobe e desce do aparelho em plenos poços de ar atmosféricos. Ia para vomitar de
estomago vazio mas não vomitou. A plateia da brancalhada de pulas calou-se, a
preta do Congo tentou reabrir os seus olhos grandes de menina do mato, mas
sentiu a cabeça à roda, voltou a cerrá-los e aguardar, serenamente.
Adormeceu, dormitou, acordou e voltou
a acordar e voltou a dormitar. Tinha fome, porém isso não era nenhuma sensação
estranha, antes, era uma das muitas vezes em que não tinha nada para comer e
dormitava, dormitava, inconscientemente, no sentido de poupar energias, no
limbo entre o desfalecimento e a sobrevivência.
Porém, os colonos de primeira, segunda,
terceira e até de quarta geração não estavam acostumados à carência alimentar,
barafustavam com a tripulação, reclamando - exigiam refeição quente abordo. Tratava-se
de voos de recurso, de emergência. Assim, já perto da abordagem do território
europeu, quase com a Biscaia à vista, foi distribuído o que havia de reserva
abordo: sumo e bolachas, mais não havia e, desse modo, os pulas em fuga,
acalmaram-se, mais por via da notícia de chegada eminente do que por fome
saciada.
Entretanto, antes do desembarque, a
tripulação distribuiu a cada passageiro um boletim informativo onde se ditava:
O Instituto de Apoio ao Retorno de
Nacionais (IARN), é um organismo criado em Portugal com o intuito de prestar
apoio às pessoas que regressam ou fogem das colónias portuguesas.
Ao Decreto-Lei n.º 169/75 de 31 de
Março cria o IARN, Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais, compete "
estudar e propor superiormente as medidas necessárias para a integração na vida nacional de todos os cidadãos portugueses e encarregar-se dos
assuntos que superiormente lhe forem cometidos e que dentro da sua esfera de acção possam estar directa ou
indirectamente ligados ao processo de descolonização e ao possível retorno de
emigrantes.
Assim, roga-se que, individualmente,
preencham o questionário em apenso e o entreguem na porta de desembarque no
aeroporto respectivo.
Alzira preencheu o seu e o da criada
do seguinte modo:
Nome: Berta Bumba.
Filha de: Domingas; pai incógnito.
Idade: 15 anos.
Natural: Carmona.
Estado Civil: Solteira.
Habilitações Literárias: Não sabe ler
nem escrever.
Profissão: Criada doméstica.
Tem residência em Portugal: Sim.
Se disse sim, indique a morada:
Avenida da Igreja, 18, 3º, Lisboa.
Motivo de retorno: acompanhante da
sua patroa Alzira da Purificação Amado da Silva.
Que tipo de apoio requer (logístico;
monetário; outro): Monetário.
No aeroporto, mediante a apresentação
do bilhete de desembarque, cada passageiro adulto teve direito a receber cinco
mil escudos. Alzira quis receber o seu e o pertencente a Berta. Todavia, a
criada era menor, como constava da ficha de inscrição, e, por outro lado, só se
apresentasse documento legal de tutora ou de familiar directa. Saiu esbaforida,
porta-fora, gritando e insultando, à toa, Berta segui-a como cachorrinho, atrás
do dono.
Alguns passageiros, acabados de
chegar, amontoavam-se na paragem dos autocarros destinados às carreiras do
centro da cidade, levavam indicação dos hotéis, hospedarias e pensões aderentes
ao processo de alojamento contratado pelo IARN, outros tomavam táxis para os
diferentes lugares da cidade e do país, os ex-funcionários de D. Alzira, só com
a roupa e calçado trazido no corpo, desde Negage, já com o dinheiro distribuído
pelo IARN, abandonaram a patroa, fretando, logo ali, táxis directamente para
Oliveira do Hospital. Alzira entrou numa cabine telefónica, na ideia de
telefonar aos filhos para casa da Avenida da Igreja. Não tinha moedas, teve o
impulso de mandar Berta trocar uma nota de cem escudos, mas recuou,
apercebendo-se da inoperacionalidade da menina preta do mato. Dirigiu-se a
várias pessoas, todas lhe acenavam, negativamente, até porque ela cheirava mal,
tanto tempo sem se lavar, nem trocar de roupa, Berta atrás, andrajosa. Um
rapaz, sem se deter, sacou umas moedas do bolso das suas calças de ganga e
entregou-as a Berta, nem sequer foi a Alzira. A miúda negra, a única preta ali,
recebeu as moedas da mão do moço, em andamento, sentiu um arrepio epidérmico,
afectuoso, como se uma carícia de alguém conhecido e meigo. Estacou,
boquiaberta, mas ele prosseguiu sem se deter, aparentemente, absorto. Alzira
ripou, rudemente, as moedas da mão da criada e voltou à cabine. Berta ficou da
parte de fora, observando a patroa na sua atrapalhação, nervosa. Ela, de
auscultador em mãos, quedou-se uns instantes, tentado lembrar-se do número do
telefone fixo da sus casa de Lisboa onde os filhos tinham sido colocados, a
expensas do pai que todos os meses enviava o dinheiro solicitado, através do
Banco Português do Atlântico. Alzira marcava o número incluindo o indicativo da
metrópole (351), como se estivesse a ligar do Negage, em vez de marcar o 21 e
seguintes. Esteve ali, cada vez mais irritada, até que saiu, frustrada e
transtornada. Gritou para Berta:
- Anda, lesma, que fazes aí especada?
Quis tomar um táxi, mas não encontrava.
Acenou a alguns que já transportavam passageiros, até que surgiu um que parara
à sua beira e lhe perguntou?
- Para aonde é a corrida?
- Leve-me, depressa para a Avenida da
Igreja!
- Então vá à pata! Ou julgas que
estás a dar ordens a pretos… Arrancou, deixando-as ali especadas.
Alzira, sempre com Berta atrás,
deitou-se a caminho, direita à Rotunda do Relógio, mas não tardou que avistasse
um outro taxista, em sentido contrário. Parou e acenou-lhe largo. O motorista
viu o chamamento, fez-lhe sinal para aguardar por si, deu a volta junto à praça
de chegada do aeroporto, inverteu a marcha e, rapidamente, parou junto delas. A
corrida foi breve e sem conversa, apenas o indispensável (destino, quantia a
pagar, nem boa tarde, nem obrigado; saíram do banco traseiro e nem a porta
fecharam – Berta porque não sabia dessas diligências e Alzira,
propositadamente, por grosseria).
Tudo isso no decorrer da tarde do dia
29 de Novembro de 1975, em Lisboa onde no dia 25 tinha sortido efeito um golpe
militar que depôs o governo provisória de então. Alzira não tinha conhecimento
do sucedido, nem entendia patavina da actividade política económica e social,
quer em Portugal, quer em Angola, quer no planeta inteiro. Para ela era a roça,
a criadagem doméstica, notícias dos filhos e os mexericos entre as damas
esposas dos colonos e empregadas brancas deles. De geografia conhecia Negage,
Uíge, caminho para Luanda de carrinha caixa aberta, cinema Mira-mar, Mutamba,
Vila Alice, Alvalade, São Paulo, alguma coisa das zonas de Viana e do Cacuaco
e, naturalmente, a sua terra, Oliveira do Hospital. De História de Portugal e
do mundo, não sabia absolutamente nada, porém considerava-se sabedora, opinava
sempre acerca de tudo, a partir das citações bíblicas refentes a Adão e Eva,
nem do missal e do catecismo se lembrava já, dada ausência de rezas e das
homilias. Fazia orelhas moucas aos apelos do padre Alberto no sentido de
frequentar as missas em Carmona. Todavia, fazia finca-pé na presença do dito
sacerdote à mesa do almoço domingueiro, lá na roça, ao qual não se cansava de
relatar o rol de boas acções para com os pobres, nomeadamente, aos mendigos e
desvalidos, mesmo que pretos, quiçá, turras, “faz o bem e não olhes a quem”,
repetia sempre.
De facto, alguns membros da Comissão
Permanente do PS, no seguimento de um plano contrarrevolucionário previamente
estabelecido, saíram, clandestinamente, de Lisboa, na tarde do dia 25, seguindo
para o Porto, onde se apresentaram no Quartel da Região Militar Norte, através
dum General piloto-aviador.
O Presidente da República decretou o
estado de sítio na área da Região Militar de Lisboa, tendo um papel determinante
na contenção dos extremos. Um Tenente-coronel, adjunto, iludiu pressões dos
militares da extrema-direita que o incitavam a mandar bombardear unidades. Diversos
Oficiais ditos moderados estavam então conotados com o PS (com o qual
conspiraram na preparação do plano e das operações que desembocaram no 25 de
Novembro de 1975) e o PPD.
Posteriormente, o "Grupo dos
Nove", vanguarda de todas as forças políticas e militares do Centro e da
Direita (parlamentar e extraparlamentar) e os seus aliados, alcançaram o
controlo da situação.
Na Avenida da Igreja, Alzira teve
dificuldade em reconhecer o local, valeu-lhe o número de porta que sabia de memória.
Subiram a escada, mas não foi capaz de distinguir entre o andar direito, o
frente e o esquerdo. Premiu uma campainha ao acaso, atendeu a d. Júlia, da
frente:
- Sim, quem é?
- Sou a mãe, abre, minha filha…
- A mãe? Oh minha nossa senhora, não
sabia que os anjos do outro mundo falam com os vivos na terra…
Júlia, a vizinha do andar frente,
abriu a sua porta e encarou com Alzira e Berta. À primeira vista, assim de
repente, julgou estar na presença de duas pedintes, uma preta, pelo que logo
atirou:
- Não tenho nada, vão se embora. Era
o que faltava e ainda pra mais uma preta, vai lá prá tua terra!
- Não senhora, sou a mãe da Fernanda
e da Susana, não estão em casa?
- Mas… É a dona Alzira? Credo que nem
a conhecia, também agora já não há ninguém que mude as lâmpadas das escadas.
Agora que façam os donos, quem manda são os empregados. Mas olhe que a sua casa
é aqui a do lado. Parece-me que não está ninguém. Ouvi dizer que o Zé Maria, a
Fernanda e a Susana fugiram para a África do Sul, e o Afonso anda na política…
Entre, entre… E essa aí, quem é? Que fazes aí especada? Não foste prá tua
terra, a Guiné ó lá que é?
- Ah, desculpe dona Júlia, é a minha
crida que trouxe comigo. Olhe esta desgraça, há não sei quanto tempo ando
assim, com a mesma roupa no corpo: que desgraça, mas que desgraça nos havia de
acontecer. Então, se não se importar fico na sua casa à espera que chegue o meu
filho…
- Entre, entre, dona Alzira, vou
dar-lhe um chazinho de camomila… A criada pode ficar aí na escada que ninguém a
leva.
Alzira, pela primeira vez, desde que
abalara da roça, teve de separar-se de Berta. Ainda pensou em qualquer maneira
de evitar tal separação, com receio que ela fugisse. O problema de Alzira era a
falta que lhe faria Berta na gestão das lides domésticas. Cozinheiro já não
tinha, ficou lá, se a preta faltasse como seria a lavagem da roupa, a limpeza
da casa e todo o mais que necessitasse para o seu conforto…
- Berta, ficas aí sentada, não
demoro, não saias daí, ouviste? Já venho! – Determinou Alzira, imediatamente antes
de penetrar na casa da vizinha, intransigente para com os pretos, pelos vistos…
A escada de pedra mármore até nem
desagradou à angolana, pelo menos descansou sentada na pedra fria, fora do alcance
da patroa enervada e da Júlia racista, de uma maneira avassaladora, nem em
Angola se lembrava de tamanha hostilidade. Por duas vezes Alzira foi espreitar
através da porta, só uma nesga desencostada da umbral, às escondidas de Júlia,
fazendo sinal a Berta para aguentar ali.
Escuro denso nas escadas, preta do Congo
embrenhada, Afonso voltou, assobiando, contente da vida, bateu a porta e foi
trepando de degrau a degrau, isqueiro aceso, no intento de evitar tropeções.
Deu de frente com uns olhos e dentes brancos, sobressaindo do invisível.
- Quê, um gato? Ssssssss! – Foi a
reação, imediata, do filho mais novo de Alzira.
- Menino, sou eu. - Reagiu Berta.
De pronto, a porta do apartamento da
vizinha Júlia se abriu, escancarada, luz interior acesa a iluminar o patamar,
Alzira e Júlia em frente.
- Ai meu filho. – Alzira lançou-se de
braços abertos a Afonso e este, atónito, ainda sem capacidade de resposta
perante o inesperado reencontro, respondeu:
- Mãe?
- Meu menininho, meu menino que
estamos desgraçados.
- Que aconteceu, onde está o pai?
- Foi uma desgraça, meu filho, o teu
pai morreu naquela maldita terra, mataram-no, mataram-no! Ninguém me tira isso
da cabeça!
- Mas como? Se ainda há quinze dias
mandou o Zé Maria, a Susana, a Fernanda e o Delfim para a África do Sul…
- Eu não soube de nada, meu filho, o
teu pai não me disse nada disso. Quem é esse Delfim?
-É o namorada da Fernanda, foi da
secretaria de estado do governo do professor Marcelo Caetano e estava à rasca
com o Copcon e com os comunistas, mas já lá vai tudo, estamos de volta à
legalidade: os militares salvaram a situação com o golpe de 25 de Novembro e
acabaram com os abrilistas, cubanos e russos.
O Movimento Democrático de Libertação
de Portugal (MDLP), formalmente constituído em 5 de maio de 1975, contra a
crescente influência do Partido Comunista Português e dos vários grupos de
esquerda, influência essa que se fazia sentir à margem da ainda frágil
democracia. Foi criado após a Intentona de 11 de Março de 1975.
O MDLP foi liderado, a partir do
Brasil, pelo General António de Spínola, mas toda a sua estrutura encontrava-se
sediada em Madrid. Essa estrutura assentava num Gabinete Político, que
assegurava a liderança política do movimento, dirigido por Fernando Pacheco de
Amorim reportando directamente ao General António de Spínola e integrado, entre
outros, por António Marques Bessa, Diogo Velez Mouta Pacheco de Amorim, José
Miguel Júdice e Luís Sá Cunha. A estrutura militar era liderada pelo Coronel
Dias de Lima, Chefe do Estado-Maior, também ele reportando directamente ao
General António de Spínola e subdividia-se em dois braços, a RAI - Rede de
Acção Interna, liderada por Alexandre Negrão e as FAE - Forças de Acção
Externa, estas lideradas por Alpoim Calvão. Ambos, Alexandre Negrão e Alpoim
Calvão, reportavam directamente a Dias de Lima. O MDLP terá tido um papel
relevante na preparação do campo para o êxito do 25 de Novembro nos anos
quentes que se seguiram à Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal.
Afonso introduziu a chave na
fechadura, rodando-a à direita. Abriu a porta. Franqueou entrada à mãe, em
primeiro lugar, seguindo-a. Tanto Alzira como Afonso ignoraram Berta e Júlia.
Esta ficou ali a escutar e a presenciar o episódio do reencontro entre mãe e
filho e aquela acabou por entrar também, atrás dos patrões, mas não fechou a
respectiva porta, talvez julgando que em Lisboa se mantinham os hábitos da
roça, ou seja, porta aberta. Já na sala naquele incessante pergunta e resposta
entre Afonso e Alzira, Berta em pé, à espera de ordens, passeando os seus olhos
grandes de menina enjeitada e triste, circunspecta, Júlia foi notada a
espreitar. Alzira encerrou a entrada e resmungou para a pretinha:
- Nem ao menos serves para fechar uma
porta, sua matumba. Estás em Portugal, ou pensas que ainda estamos em Carmona?
Aqui não há turras, mas ladrões é o que por aí deve haver mais.
Alzira tinha fome e desconforto,
convidou o filho para a cozinha, dando-lhe conta da sua viagem de fome,
desencontros, aventuras, frustrações, viagem e desembarque, saltando muitas
peripécias, no momento, consideradas desnecessárias. Afonso mostrou tudo o que
possuía em casa em matéria de alimentação pronta a comer, quer na dispensa,
quer no frigorífico. De imediato encheu um copo de leite fresco, retirado da
prateleira da porta da geladeira, como se dizia no Negage. Bebeu um copo, bebeu
outro e ainda escorreu o restante que pôs aos queixos, sofregamente. Não havia
pão em casa, cortou um pedaço de salpicão e pôs-se a roê-lo. Sempre em conversa
com o filho, trocando novidades e opiniões acerca de muita coisa, atabalhoadamente.
Berta a olhar esbugalhadamente para a senhora que devorava comida, ignorando a
fome da criada. Afonso mirava Berta, apenas, nem um comentário, nem qualquer
gesto, nada, como se fosse só e apenas um qualquer móvel doméstico. Os dois
comportavam-se como estivessem sós, Berta nem a atenção de gato merecia, como
se ela não tivesse fome, como se não tivesse necessidades fisiológicas, até
que, não podendo mais, deixou escorrer urina pernas abaixo, empoçando-se sobre
os azulejos da cozinha. Aí a patroa reagiu:
- Que estás a fazer rapariga? Anda cá
comigo à retrete.
- Mãe, mande-a fazer num balde, na
casa de banho não que está limpa.
De volta à sala, Alzira, depois de
ter deixado Berta na cozinha entretida com um pedaço de entremeada salgada, mirou
tudo, detendo-se na observação de uma grande bandeira colada a uma das paredes:
- Quê meu filho, que pano é esse –
mê, dê,lê, pê – não é o partido dos turras?
- Não, mãe – eme, dê, éle, pê – é o
nosso grande movimento patriótico, de salvação nacional. O dos gajos de lá é –
MPLA. Não se lembra dos tipos que foram comigo e com o Zé Maria de Luanda a
Carmona e até comeram e dormiram na nossa casa?
- Então não, claro que sim, meu
filho… Eram bem simpáticos e pareciam inteligentes, gente fina, tenho ideia que,
pelo menos, um era cabrito, não era?
- Finos? Até de mais! Já eram todos
do MPLA, e nós sem sonharmos.
- Como soubeste isso, meu filho?
- Tenho as minhas fontes, agora tudo
se sabe…
- Olha, meu filho, ainda não me
disseste por que ficaste cá e não foste com os teus irmãos, foi o teu pai que
assim determinou?
- Bem, o pai tinha dito ao Zé Maria
para fugirmos todos, mas eu não quis. Sabe, tenho cá a minha namorada. Trabalho
para um partido novo e, se Deus quiser, agora com o golpe de estado do dia 25
de Novembro, haverá eleições e, seguramente, serei candidato às eleições
constituintes e aí….
- Mas, meu filho, tu queres ser
político?
- É o meu futuro, mãe, os tempos são
outros. Para Angola já não voltaremos tão de pressa, sabe-se lá?
- E a roça e tudo o que deixámos em Carmona?
- Mãe, as colónias estão perdidas. Só
nos interessa que consigamos pôr lá um partido amigo. Quanto eu sei, o único
com algumas garantias é a UNITA.
- Mas, ouvi dizer que são só gente do
manto, umbundos, matumbas…
- É, mas temos lá uns brancos a
trabalhar: um médico, uma empresária e, de resto, o Malheiro Savimbi foi
mandado para a Suíça fazer um curso. Vamos ver…
- Então, e o padre Alberto, o
Osvaldo… Sempre ouvi dizer que eram contra os comunistas…
- Esses são pelos americanos, jogam com
um pau de dois bicos, fingem-se amigos…
- E nós, meu filho, que vai ser de
nós, o nosso dinheirinho ficou lá no banco em Angola?
- Mãe, nem um tusto! Pensas que
andamos a dormir? Maior parte foi transferido para Pretória, na África do sul,
outro, algum, está cá. Não contávamos com a morte do pai, agora temos que pedir
ao Zé Maria, senão como seria a nossa vida aqui?
- E se vendêssemos esta casa e voltássemos
para Oliveira do Hospital temos lá a nossa casinha que o teu pai mandou compor…
- Não, eu não vou, o meu futuro é
aqui, em Lisboa e vou ser deputado, vai ver. O meu futuro sogro, agora que os
comunistas foram corridos e o copcon liquidado, vai voltar a ter poder.
Podíamos ir para a África do Sul e quem me diz que os pretos não tomam conta
daquilo também?
- Só estou aqui ralada a pensar como
o teu pai determinou tudo sem me dizer uma palavra que fosse…
- E não foi sempre assim, minha mãe?
- Olha, a conversa já vai longa,
estou muito cansada. Vamos dormir todos e amanhã decidimos como nos ajeitar
nesta casa.
- E ela, onde a vai pôr?
- Na varanda.
- É, amanhã é capaz de estar dura que
nem um carapau, aqui as noites já são frias.
- Então, já sei.
Alzira pegou nas duas almofadas do
sofá da sala, perguntou por dois cobertores. Levou tudo para a cozinha. Atirou
para cima dos azulejos e ordenou:
- Vá, sua posta de carne, faz a tua
cama aí.
- A minha cama está feita, meu filho?
- Tal e qual como a Fernanda a deixou.
Até amanhã mãe.
- Dorme com Deus, meu filho.
O facto de Alzira ter sido ignorada
pelo marido no concernente à transferência de montantes de dinheiro para os
bancos da África do Sul e com a agravante de conjecturar tudo com o filho mais
velho melindrou-a muito. Estava habituada ao quotidiano alheamento do seu
Adelino Silva no que dizia respeito aos negócios da roça. Não tinha memória de
gestos de afecto, nem manifestações de carinho e de apreço. Tinha perdido
referência ao último acto sexual entre ambos. Desde que engravidou a última vez
nunca mais partilharam o leito, mesmo nesse momento tinha sido, por acaso, na
sala, durante uma sesta que, de repente, se abeirou da mulher, deitada,
puxando-lhe as cuecas abaixo e se despachou, ejaculou, num instante, e logo
saiu porta fora, sem uma palavra.
Assim, em Lisboa, não queria saber do
marido sepultado em Angola, nada se importava mais com as memórias dele ao
longo de uma vida de matrimónio. As saudades apertavam-na mas as relacionadas
com a vida de largueza, de preguiça, de poder sobre a criadagem doméstica, dos
mexericos com as outras colonas, em fim, tinha pena de ter perdido aquela
sensação de domínio sobre os nativos. Em Lisboa só Berta a tratava por SENHORA,
de resto era dona Alzira, senhora Alzira, você isto, você aquilo.
Afonso cada vez mais se ausentava de
casa de sua mãe. A política era o seu modo de vida: o partido, a namorada, o
seu futuro sogro, o seu objectivo de deputado parlamentar de extrema-direita, o
seu ajuste de contas com as autoridades dos novos governos das ex-províncias
ultramarinas ocupavam todo seu espaço mental.
No entanto, uma inquietação
permanente o assolava à qual não queria dar importância, ou seja, as reservas
de dinheiro e de diamantes que o seu pai tinha transferido para África do Sul.
É certo que ele nunca tinha sido inserido nesses meandros de transferências de
capitais e de pedras preciosas forjadas em branqueamentos. Todavia, através de
certos dislates do Zé Maria, dos telefonemas e cartinhas do seu pai para o seu
irmão mais velho acreditava que algo lhe escapava e que com a morte do
progenitor, Zé Maria seria o único na posse de toda a informação e habilitado
aos bens transferidos para aquele país. Ouviu o irmão e o pai, ao telefone,
referirem-se ao cofre cujo acesso estava codificado no banco. A conta
depositada em Portugal dava-lhe acesso. Contudo, era a única forma de
sobrevivência dele e da mãe. Após a queda do regime colonial o pai cessou os
depósitos para o continente e tudo teria trilhado o destino da África do Sul,
regime racista no qual Adelino Silva confiava e asseverava política de futuro
do branco, capaz de colocar os negros a quilómetros do poder político e
financeiro.
Alzira sempre sobre o comando da vida
e dos movimentos da sua criada, mandou mudar mobília para um lado e para o
outro. Foi à arrecadação, lá nas águas-furtadas do prédio, e instalou Berta. Não
havia água, nem sanita, mas tinha luz eléctrica e espaço suficiente para
comportar uma caminha, uma caixa para alguma roupa e um balde para as
necessidades fisiológica da miúda. Os gastos da casa deixaram de ser de
abastança como eram no Negage. Lá o marido só perguntava, “Quanto é preciso?”,
ela atirava um número e ele botava a mão ao bolso das calças, da camisa e ali
aparecia o dinheiro em notas de escudos angolares. Se, por acaso, não houvesse
nos alforges, retorquia: “amanhã cá o terá!”. Em Lisboa o filho também lhe
fazia chegar as notas de escudos do banco de Portugal, mas com parcimónia, até
porque o filho lhe ia repetindo, frequentemente, e de cada vez que ela se
lamentava das limitações financeiras e da carestias dos bens:
- Não sei como vai ser a nossa vida,
minha mãe, o Zé Maria não diz nada e a conta qualquer dia está a zeros…
- Oh meu filho, ando cá a magicar com
os meus botões, E se eu fosse para a aldeia? Temos lá a casinha, os bocadinhos
que herdei dos meus pais…
- Faça como quiser, eu não vou para
lá, aliás, há uma coisa…
- Diz, meu filho, que coisa é essa?
- Vai haver eleições para a Assembleia
Constituinte, para o próximo ano. Se não conseguir aprovar uma moção que me
permita entrar no lote dos candidatos do partido, quando se realizarem eleições
parlamentares, certamente terei mais hipótese numa lista do distrito de
Coimbra. Em Lisboa há muita concorrência e nem o meu sogro terá força para me
impor em detrimento de certos marmanjos…
- Mas, meu filho, sabes que não
entendo dessas políticas, Coimbra vai também ser independente? Valha me nossa
senhora que está tudo doido…
- Não, nada disso, cada distrito
elegerá os seus deputados ao parlamento nacional, por isso, se a mãe for, até
me dá jeito para saber como é aquilo por lá…
- Ah mas eu vou, levo a Berta, e
meto-me lá em Meruge, se calhar nem a Oliveira irei, só ao mercado, ao médico e
à farmácia, não julgues que vou lá para Coimbra cheirar: quero é largueza, como
em Carmona – ponho horta, crio galinhas, coelhos e faço a minha vida, que
pensas? Se me mandares uma tenção todos os meses, vou já preparar tudo, a
Cecelinha mandou-me dizer que se está lá muito bem…
- Quanto a isso fique descansada,
falo com o Zé Maria e ele próprio lhe remete uma verba mensal. Também quero
saber das contas do pai, pois não sei de nada: quanto há, quanto é a nossa
herança, nada, só ele sabe de tudo. Se acontece alguma coisa como é?
- Credo, meu filho, às vezes tens
umas ideias. Não te esqueças que as irmãs estão lá com ele.
- É, as irmãs… Até parece que não
sabe como é o Zé Maria…
- Como o vosso pai: faz tudo sem dar
cavaco a ninguém…
- Ora, vê como sabe… Além disso é
melhor mesmo não dar conhecimento à Fernanda, senão logo vai dar com a língua
nos dentes para o Delfim. Esse gajo, esse lorpa, é capaz de nos passar a perna
a todos…
- Bem, bem, olha, meu filho, que
nossa senhora do Carmelo nos acuda e nos livre dos caloteiros…
Alzira habituada à roça, rainha dos
prazeres ociosos, idiota obscurantista, atrevida e ignorante que tudo conhece,
tudo podia menos enfrentar o despotismo, machismo e indiferença do marido. Em
Lisboa, sentia-se encurralada entre gente alheia, ruas pejadas de transeuntes
indiferentes ao seu inconformismo, a viver a esperança da nova sociedade liberta
das peias fascistas. Não aguentou, decidindo partir, de regresso à sua aldeia,
Meruge, mais de quatro décadas após a fuga para a África das patacas. Regressa
em definitivo, acabrunhada sem o fausto, a bazófia e o convencimento que
ostentara noutras ocasiões de vacances
de colona, dona de fazendas e mandona de negrada na província de Angola. Pôs
Berta a meter pertences nas malas que em tempos trouxera de Luanda e um taleigo
dos trapitos da criada, num táxi chamado pelo telefone – ala que se fazia tarde
em direcção ao Campo das Cebolas, a fim de aí tomar a camioneta para o seu
berço, Meruge. Na carteira levava quinze notas de mil, quinze contos de reis.
Ia também com a promessa de que, mensalmente, por volta do dia trinta, nos
correios de Oliveira do Hospital, lá estaria uma certa quantia para que pudesse
viver tranquilamente na sua aldeia. A garantia tinha sido dada pelo seu filho
mais novo, o Afonso, irascível político da era pós colonial.
Berta (cafofa, menina tonta), mais
uma vez, acompanhava a sua patroa, sem que fosse consultada, nem paga pelos
serviços prestados. A menina preta do Congo com as suas parcas imbambas
(tralhas), não sabia ler nem escrever e também não sabia o que era ter dinheiro
em mãos, nunca ninguém lho tinha dado a troco de qualquer pretexto. Em Angola
não era usual, nem prática no seu mundo de menina do mato. Desde que a levaram
para a roça do patrão Silva lá andava pelo anexo onde dormia, o alpendre onde
comia e os espaços interiores da casa da senhora que lhe mandava varrer, limpar
e lavar. Era empregada sem contrato, nem salário. Também não era escrava
vinculada, só sabia que a senhora a comandava e sustentava, mais nada…
Por outro lado, a saída da Avenida da
Igreja agradava-lhe. Sentia-se muito só e discriminada, Alzira (Ngana, senhora
branca) só lhe administrava ordens e desdém; a vizinha Júlia (Cassandra, branca
ordinária), quando a encarava, descompunha-a e dizia-lhe para voltar para a
Guiné, que diabo, nem sabia o que era isso da Guiné, porventura, algum lugar em
Angola, não entendia. Afonso não lhe dirigia uma única palavra, mas mirava-a
concupiscente, ela bem sentia os olhos dele pregados no seu corpo juvenil, do
jeito do Silva nas trabalhadoras da roça, as quais ordenava buscar para
fornicar no armazém, apesar da resistência delas. Afonso parecia ter nojo da
menina preta porque não a queria na sua casa de banho, não queria que lhe
pegasse nos seus pertences, mas cobiçava-lhe as pernas, as ancas e os pequenos
mamilos com os olhares libidinosos. Num jantar que Alzira tinha oferecido à
família de Madalena, namorada de Afonso, fecharam-na na varanda até altas
horas, como uma cadela, ao frio. Desconhecia aquele mundo da cidade de Lisboa
cuja população maioritariamente caucasiana muito diferia da do Negage onde
predominava o negroide bacongo. Os mestiços e pretos até constituíam uma
significativa percentagem, sobretudo em determinados lugares da cidade por onde
tinha passeado, acompanhando Alzira, mas reparava que pensavam e agiam de
maneira diversa e diferente dos de Angola. Os pulas em Angola eram quase todos contra
a independência, em Lisboa eram maioritariamente adeptos. Manifestavam-se nas
ruas a favor da independência das colónias, contra o colonialismo. As criadas
em Lisboa eram sobretudo cabo-verdianas, catanhós (lambe botas dos colonos),
como os angolanos as apelidavam, pejorativamente. O seu desagrado para com as
catanhós acentuou-se com a alcunha com que uma cabo-verdiana a contemplou, na
Avenida de Roma: cabungueira (pessoa que despeja matéria fecal nas lixeiras, na
cidade da Praia, Cabo Verde). A ideia de ser levada para o campo, no dizer da
patroa, lembrava-a a eventualidade de voltar à vida livre do kimbo, podendo
desfrutar das mulembas (árvores frondosas), quiçá, com as suas massuicas
(trempe, sobre as pedras das fogueiras), os seus mambos (assuntos), numa
agradável mangonha (preguiça), escutando pírulas (pássaros de Luanda) e larar
(defecar) livremente no mato. Vociferou ao vento: Tuji (merda)! – Saturada de
Lisboa, dos pulas e dos catanhós.
Afonso embrenhou-se na luta pela contrarrevolução
logo que o golpe militar de 25 de Abril de 1974 vingara. Descorou o estudo na
Faculdade de Direito. Todavia, depois de encaixado no seu partido, na rampa de
lançamento para lugares de direcção, quiçá, de candidato a deputado, verificou
que necessitava de um diploma de licenciatura. Não teria futuro político se não
fosse publicamente tratado por senhor doutor Afonso Amado da Silva. Tentou
voltar às aulas, metendo amoeda ao prometido sogro, mas na faculdade imperava a
influência das associações académicas esquerdistas do PCP e do MRPP. Os do
MRPP, com o ódio que ostentavam perante os do PCP, porventura, até anuiriam,
porém o conselho de reitores da universidade também primava pela tendência
comunista e socialista, o que inviabilizaria eventual habilidade de alcançar o
grau de licenciado, sem a devida prestação de provas, além da normal frequência
das aulas em falta. Ter-lhe-á sido dito que se fosse aluno devidamente
matriculado surgiria uma mãozinha para o empanar, mas de outro modo não se
arranjaria maneira: teria de se voltar a matricular, cumprindo os dois anos que
lhe faltavam, as ajudas estavam mais ou menos garantidas com a sub-reptícia dos
professores ultraconservadores que se moviam dissimulados pelos meandros da
faculdade. Não querendo voltar à faculdade, nenhum gabinete de advogados amigos
lhe poderia facultar o estágio, mesmo que fictício. Alternativa, só aguardando
pelo desenrolar do almejado processo de recuperação do poder político da antiga
ordem conservadora na condução das universidades públicas ou, ainda mais
arrojado, esperar que se implementasse em Portugal uma rede de universidades
privadas, patrocinadas pelo Estado, concorrentes com o ensino público, a
exemplo das designadas democracias ocidentais, nomeadamente da Europa e EUA.
Quando parecia que o trilho de sucesso na ascensão política era evidente,
Afonso começava a tropeçar nos escolhos, nas lutas internas, em obstáculos
inesperados para incauto da sua natureza. Uma coisa era quando precisavam da
sua energia, da sua voluntariedade, outra coisa verificava-se nos momentos de
colher frutos, contemplar com atribuições e benesses…
Por outro lado, sentia-se desconfortável,
sabendo que a única âncora ao sistema político e partidário dependia da sua
ligação amorosa com Madalena. Se rompesse o namoro esfumar-se-ia a promissora
carreira política. Por ele, o casamento não falharia, nem que tivesse de rastejar
sob demandas do prometido sogro, homem do antigo regime, influente e parte
interessado em múltiplos negócios de seguros, comércio, serviços e imobiliário.
Contudo, sentia Madalena num processo de mudança de atitudes e de
personalidade. Notava-lhe um certo esvair de beatitude, de futilidades e
sobretudo um crescente interesse pelos meandros dos negócios e questiúnculas
sociais relacionadas com o mundo do trabalho. Percebera a insubordinação dela
ao ideário dele. Madalena passou do sim, sim, embasbacada, para uma postura de
interrogação frequente, notou que a sua namorada também tinha dúvidas e buscava
determinadas respostas. Madalena, gradativamente, ia despindo a roupagem de
sujeito passivo, receptáculo, adotando, paulatinamente, nova postura, ou seja,
sujeito activo, interveniente, perscrutador. As revistas de coscuvilhice,
romances plangentes e fantasmagóricos, rendas e bordados, maquilhagens, modas
femininas e de aconselhamentos domésticos deixaram de espelhar nos sofás e
mesas de apoio, recambiadas para qualquer canto, esquecidas. Madalena já se
atrevia a sair à rua sem batom, sem rímel, sem os cremes de rosto, nem sapatos
de salto. Soltou-se pelas ruas, travessas, vielas no encalço de uma conversa de
amigas, de eventuais momentos musicais, de qualquer galhofa descomprometida, em
detrimento das aborrecidas e monótonas sessões da catequese que vinha
administrando a crianças desatentas. Em casa, alheava-se das obsessões musicais
dos irmãos que nunca se saturavam de ouvir e discutir roque norte-americano.
Abandonava o namorado e o pai quando, na sala, se punham a conversalhar sobre o
Sport Lisboa e Benfica, não queria saber do nome dos jogadores, dos golos
marcados e dos sofridos e muito menos das picardias da arbitragem. Encerrava-se
no seu quarto só para não os ouvir gritar goloolooo! Do Benfica!
Por vezes, passou a surpreender o pai
e o namorado com interpolações e observações. A mais inesperada foi no dia em
que Alzira presenteou a família da sua putativa nora em sua casa da Avenida da
Igreja com uma majestosa Muamba de galinha, manjar, de todo, desconhecido dos
convidados alfacinhas. Ora, estando todo aquele comensal a decorrer em aparente
sintonia, Madalena, pediu a Alzira para que retirasse a desgraçada criada da
varanda porque fazia frio e considerava uma atitude desumana. Alzira pasmou,
perplexa, olhou para o filho e para os restantes convidados, indecisa,
surpreendida pela descoberta de Madalena, pois convencera-se que só Afonso sabia
dessa diligência. O pai de Madalena ainda tentou disfarçar, trazendo à liça a
sua participação na companhia de seguros, em vias de restituição, mas Madalena
insistiu:
- Eu vou lá abrir-lhe a porta,
coitada, se calhar tem fome e com este frio…
- Não, deixa que me encarrego disso.
– Adiantou-se Afonso.
O filho caçula de Alzira pediu
licença para se ausentar da mesa, dirigiu-se à varanda, sussurrando na cozinha.
Levou Berta à saída para o exterior, batendo novamente a porta e regressou,
sorridente, ao seu lugar de comensal. Madalena, inquieta, interrogou o
namorado:
- Que lhe fizeste? Onde a arrumaste?
- Então menina, que propósitos são
esses? Interveio, imperial, o pai dela.
A conversa naquele dia ficou por ali,
no entanto, Madalena, posteriormente, quis saber do ocorrido, censurando
severamente Afonso e Alzira pela atitude racista e desumana, ao ponto de ter
dito a Afonso:
- Não me admira nada que os africanos
tenham expulsado os portugueses, pelo que vejo das vossas práticas…
Afonso aprendera com o pai no Negage
no concernente à condução da vida familiar, isto é, quem ditava era o homem, à
mulher cabia a gestão doméstica e o cuidar dos filhos. Silva usava
habitualmente a expressão “ no poleiro canta o galo e esgravata, cacarejando a
galinha”, “ (…) cada benfiquista, cada bom chefe de família…”. Ora, ele,
Afonso, o seu pai, Adelino Silva, e o seu putativo sogro, homem influente no
partido e no mundo dos negócios, se eram fervorosos benfiquistas, também teriam
que corresponder na qualidade de chefes de família. No entanto, Zé Maria que
era sportinguista é que era o predilecto do pai. Depois da morte deste era
precisamente o seu irmão primogénito a ter na mão a faca e o queijo. Na África
do Sul, na posse da herança, não sendo benfiquista, nem chefe de família, Zé
Maria faria o que lhe aprouvesse, o galo a cantar seria ele. Se Madalena lhe
prestava cada vez menos atenção, teria de se aproximar ainda mais do prometido
sogro, o doutor Valdemar. Era mesmo por causa do exemplo de Valdemar que
decidiu empreender esforços no sentido de obter o grau de licenciado em
Direito. Não queria que alguém descobrisse e o retratasse na praça pública como
falso doutor. Valdemar tinha feito o antigo curso comercial – uma verdadeira
licenciatura nas palavras dele. Era o estatuto de personagem influente nos meios
empresariais, sociais e políticos que lhe valiam a distinção. Todavia, ele,
Afonso teria de cavalgar muito para atingir esse patamar e, de qualquer modo, a
ascensão política e social de Valdemar advinha do tempo colonial e ditatorial,
totalmente distinto do Portugal pós 25 de Abril de 1974.
Em todos os momentos possíveis,
Afonso procurava impressionar Valdemar, umas vezes prorrogando as suas
observações, opiniões e atitudes, outras fazendo-lhe ver as suas próprias
retóricas, através de trechos decorados dos manuais greco-romanos, dos
clássicos como ele fazia questão de frisar.
Estando ambos sentados na sala de
estar, no intervalo do jogo FCP-SLB, Afonso dissertou: “O direito natural é o
que a razão universal reconhece como tal. O direito positivo é a regra tal como
existe de facto nos códigos e nas leis escritas. Sendo o elemento fundamental
do Estado o poder, podemos constatar que o Estado actual, não só pode criar o
direito, como tem ainda o seu monopólio. Para além de criar o direito, o Estado
é o garante da sua realização, já que detém o poder. Deste modo, uma das finalidades
do Estado é garantir o respeito pelas normas jurídicas através de órgãos
específicos e impô-los aos cidadãos quando necessário”…
- O direito faz-se a nosso jeito e
segundo a nossa conveniência! - Rematou Valdemar, sentenciando a conversa.
- Não poderia estar mais de acordo
com o senhor: o Estado cria o direito. Dentro da forma política que este tem
num momento histórico, certos homens ou grupos de homens, através dos
mecanismos estabelecidos nessa forma política, ditam normas de conduta
obrigatórias que são atribuídas ao Estado como entidade permanente. Isto faz
com que a vigência destas normas seja também permanente, não no sentido de que
não podem mudar, mas sim no sentido de que a mudança dos homens que as ditaram
ou forma política em cujo âmbito nasceram não arrasta o seu desaparecimento.
Essa mudança só pode ter lugar por uma nova decisão dos homens que constituem
os órgãos habilitados para legislar em cada momento.
- É uma pena que ainda não tenhas o
canudo na mão, rapaz, deixa que havemos de tratar disso. E não te quero lá na
faculdade a aturar comunas, eu trato disso, ai se trato… Olha, lá está, a
segunda parte do glorioso, vamos ouvir. Muda lá para a rádio Renascença, estou
fartos destes locutores da Emissora Nacional, dantes é que era, agora é só
comunistas, lagartos e tripeiros….
Afonso, seguindo as instruções de
Valdemar, tentava sintonizar o aparelho, manualmente, na Rádio Renascença,
rodando para a direita e para a esquerda, sem êxito, até que captou um posto qualquer
de onde provinha a voz do radialista, “gooooolooo, é do Portooooo!”.
- Mais um? Desliga lá isso, vamos
jantar! – Arremessou Valdemar, aborrecido.
Em pleno repasto, sentados à mesa, na
majestosa sala de jantar, Matilde, a criada interna para todo o serviço, depois
de levantar os pratos da sopa de grão-de-bico, triturados, e folhas, dispersas,
de espinafre, acabou de colocar na mesa, com esplêndida aparência e aroma
agradabilíssimo, uma avantajada travessa de peru assado no forno com batatas
coradas, uma travessa de loiça chinesa com arroz branco, a graciosa molheira do
conjunto chinês e ainda a preciosa saladeira, dito proveniente de uma antiga
colecção de Changai, século XVII. O vinho mantinha-se em garrafa própria,
proveniente das adegas de Vila Nova de Gaia. Valdemar queria assim, vinho da
região demarcada do Douro, servido à mesa e vertido para os copos directamente
da garrafa, nada de jarros nem jarretas.
A senhora da casa perscrutava Matilde
no sentido de se certificar se o serviço se afigurava em conformidade, na outra
ponta da mesa, Valdemar concentrava-se no peru, depois de ter vertido vinho no
seu copo e ordenado que Matilde fizesse o mesmo no de Afonso. Madalena não
bebia vinho e já tinha, previamente, o seu copo de água atestado, a exemplo da
mãe. Se Valdemar parecia absorto e focado no jantar, Afonso dava mostras de
desconforto, como corpo estranho, desacolhido. Madalena, a seu lado, parecia
não dar pela sua presença, servia-se com parcimónia, denotando pressa de largar
dali. Madalena estava mesmo diferente, reparou Afonso. Desceu para o jantar de
trajes banais, tal como tinha chegado da rua, de calças, blusa, soquetes e
ténis. Sentou-se à mesa sem esperar que o namorado lhe puxasse a cadeira.
Naquele dia de vitória do Futebol do Porto sobre o Spor Lisboa e Benfica,
certamente não se remataria o repasto com um cálice de Porto, vinho fino como
referia sempre Valdemar, só para nem lembrar o epíteto. O silêncio adensava-se,
dando demasiada importância à ausência dos rapazes que tinham solicitado
autorização para comerem no quarto, hambúrgueres e coca-cola, ao som do roque,
barulho metálico, ensurdecedor.
Afonso, mentalmente, buscava algo que
tornasse notada a sua presença ali, mas embargava-se-lhe a voz. O peru
delicioso mal descia, apesar de regar as goelas com o áspero tinto que, naquele
dia, até sabia a zurrapa do Carregado.
De repente, Valdemar pôs termo ao
monótono ambiente do roçar pratos, copos e talhares, atirando, de chofre:
- Rapaz, já sei o que vais fazer –
vais publicar um livro!
Sim, não olheis espantados. Caramba,
nem sei porque não me ocorreu isso há mais tempo: vais publicar um livro de
teoria política. Até já tem título: Não há Liberdade Política, sem Liberdade
Económica.
Afonso, colhido de surpreso, ia para
esgar qualquer coisa, em esforço, mas o putativo sogro logo lhe fez o gesto de
esperar, sossegado, adiantado:
- Não precisas de te preocupares com
o texto, eu trato de tudo, já tenho quem escreva, um professor, um grande professor,
uma grade inteligência de direita que não é capaz de falar em público, mas
escreve bem, muito bem. Tu só emprestas o nome e ele vai ganhar o que nunca
conseguiria de mero assistente.
A mulher sorriu, imaginando o quão de
chique seria poder gabar-se nas conversinhas de chá e de salão de cabeleireiro.
Que distinto seria falar do seu pretendente a genro, famoso, político e autor
de teoria política, um iluminado, uma figura do futuro da Nação. Madalena,
boquiaberta, abanou a cabecita em sinal negativo, de espanto, porventura,
desolada. Ia para intervir, mas emudeceu, evitando, mais uma vez, enfurecer o
pai. Em relação ao namorado, ignorou a sua reacção, na certeza de que
aquiesceria, jubilando.
Afonso recuperou do inesperado e
balbuciou:
- Assim até me posso apresentar com
melhor curriculum nas futuras eleições…
- Cada coisa a seu tempo: primeiro
publica-se a obra e depois veremos. – Rematou Valdemar.
À mesa voltou o ambiente denso,
Matilde serviu a sobremesa – pudim à sua moda, com ovos caseiros da quinta de Cernache
do Bom Jardim. Quando se preparava para voltar à cozinha, Valdemar pediu:
- Matilde, traz lá o maldito vinho
fino!
Quanto a ti, Afonso, pensei mandar-te
à Suíça, resolver isso do canudo. Em Geneve há quem trate do tema…
- Em direito administrativo? –
Interveio Madalena, quebrando o seu mutismo, com um certo jeito de desdém, face
a à proposta do pai.
- Qual direito, qual carapuça, isso
requer estágios e exigências da ordem dos advogados: licenciatura em ciências
políticas, é que é: tiro e queda, limpinho, limpinho. - Rematou o patriarca,
sem margem para dúvidas.
- Desculpem se me engano, mas julgo
que foi essa licenciatura que o Savimbi lá tirou. – Adiantou Afonso,
confortável com a ideia de Valdemar o qual sentenciou:
- Bom, vamos adiantar a ida para a Suíça,
até antes do lançamento do livro, faz de contas que é produto das investigações
e lucubrações do retiro helvético. A partir desta conversa, o assunto morre
aqui, nem uma palavra, das démarches trato eu com quem de direito.
Na camioneta do campo das Cebola, em
Lisboa, para Oliveira do Hospital, Alzira de bilhetes em punho, depois de
acondicionadas as malas e os sacos na bagageira pelo motorista sob observação
dela, verificando a abundância de lugares vagos, sentou-se no banco
imediatamente atrás do chofer, ordenando a Berta que fosse lá mais para a
traseira, pretendia gozar a paisagem a seu belo prazer, sem empecilhos e também
queria aproveitar a viagem para sonhar, pôr em ordem algumas ideias a
implementar no seu regresso à terra natal.
Já ficava para trás Santa Apolónia, Braço
de Prata, Santa Iria, pela estrada do Norte, quase a abeirarem-se da zona de
Alhandra, Alzira virou-se para a traseira no sentido de se certificar de Berta.
Mirou, mirou, espreitou, voltou a espreitar e não descobria a criada preta. No
“machimbombo” iam duas ou três pretas e um preto, entre a brancada, dispersa
pelos assentos. Alzira, sobressaltada, imaginando que a sua fiel Berta, menina
do mato, se teria raspado, em Lisboa. Levantou-se, andou pelo corredor da
camioneta, até ao outro extremo, desequilibrando-se aqui e ali face ao
andamento da viatura, com o motorista a olhar pelo espelho, ao mesmo tempo que
lhe ordenava o retorno ao seu lugar, em voz alta, receoso que eventualmente
fosse interpolado pelas autoridades de trânsito rodoviário. Alzira voltou ao
lugar dianteiro, aflita, chamou mesmo Berta dentro da camioneta e os restantes
passageiros olharam, alguns resmungaram, incomodados. Alzira não se conformava,
falou para o motorista e informou os companheiros de viagem do sucedido, tinha
perdido a sua criada. Algumas pessoas sorriam, gozando a aflição de Alzira,
outros condoeram-se e um, sarcástico atirou:
- Aqui acabaram-se as mordomias, a
senhora tem que pôr as mãozinhas no fogão, os bracinhos no tanque e o corpinho
ao manifesto…
A algazarra, a chuva de comentários e
a discórdia instauraram-se na viatura pelo que o motorista, incomodado,
estacionou logo na primeira zona de paragem junto de uma estação de serviço.
Sem sair do autocarro tentou serenar ânimos, apelando à moderação de linguagem
e de atitudes. Alzira carpia, culpando-se a si e à maldita revolução que lhe
tinha provocado a viuvez e a fuga daquela terra onde fora feliz. Esconjurava os
negros, os africanos, os comunistas e os russos, todos nomeados por si
causadores de todas as suas desgraças. Sem fim á vista, o motorista abriu a
porta traseira da camioneta e solicitou a saída de todos aqueles que, por
momentos, quisessem arejar um pouco, antes de se retomar viagem. Alguns
passageiros tomaram a oportunidade, outros permaneceram no interior, mas quase
todos abandonando a discussão, excepto Alzira, inconsolável, lamentando-se,
procurando a comiseração geral, sem, no entanto, o conseguir, pelo contrário, a
reprovação agudizava-se à medida que mais balbuciava. O motorista parou o
motor, saiu do seu posto de comando e no exterior deu umas passadas, magicando
numa solução que pusesse cobro à barafunda. Entretanto, dirigiu-se ao
porta-bagens, de chave em riste, e abriu uma das portas: de espanto, encarou com
Berta encolhida no meio de malas e sacos de viagem, no porão da viatura.
Estupefacto, falou:
- Estás aí, diacho, só comigo, como
isto me foi acontecer…
Berta saiu imediatamente de entre a
bagagem e passageiros logo rodearam o cenário, admirados, incrédulos e
expectantes. Alguém gritou lá para dentro da viatura:
- Apareceu, estava na bagageira!
Alzira saltou cá para fora como uma
gazela, como se fosse ainda moça, quase caindo mas reequilibrou-se em solo,
esbaforida, quis saber tudo de uma vez, sem tempo para que a menina respondesse
à catadupa de interrogações. Por fim, conclui-se que Berta, seguindo exemplo de
outros passageiros, tinha saído da camioneta, ainda no Campo das Cebolas, sem
conhecimento, nem vislumbre de Alzira e, distraindo-se, quando tentou regressar
ao interior do “machimbombo”, o motorista tinha fechado a porta pela qual ela
tinha saído. Atrapalhada, Berta enfiou-se na bagageira, no meio da panóplia de
volumes. O motorista, como habitualmente, antes de empreender viagem, olhou
pelos retrovisores e fechou as portas automáticas da bagageira, encerrando, sem
saber, Berta que lá ia caladinha, acocorada, no escuro, como se fosse apenas um
saquito de viagem.
Em Meruge Berta não encontrou os
espaços abertos, nem a flora que esperava e muito menos a paz almejada. Ali
tudo era apertadinho, até os quintais onde se semeavam e plantavam espécies
desconhecidas para si, nomeadamente fruteiras e leguminosas, eram áreas
delimitadas e pequenas, subdivididas e pertencentes a vizinhos. A comunidade
vivia segundos preceitos consuetudinários e individualistas, em contraste com
os seus ancestrais africanos, mais atreitos às regras e normas naturais e
concernentes com os ciclos da natureza, o habitat, as idiossincrasias e a vida
animal. No seu quimbo aprendia-se conhecer as plantas e raízes comestíveis e a
resguardar-se de animais mortíferos e selvagens, bem como a sobreviver sob o
domínio político e administrativo dos pulas brancos. Em Meruge o mais difícil
era lidar com os costumes dos vizinhos, sobretudo preconceitos e tradições.
Berta, em Meruge para aonde fosse, era notada e observada como uma coisa
invulgar, uma espécie de ave rara. Nos primeiros dias a miudagem aglomerava-se
à porta da casa de Alzira só para mirar a miúda preta. Se saísse à rua
seguiam-na, sem perder de vista. A garotada corria no seu encalço, berrando:
“olha a preta, vamos ver a preta…”. As mulheres idosas comentavam e
persignavam-se à sua passagem. Os animais domésticos particularmente os cães e
gatos deambulantes receberam-na bem, muito bem, não estabeleciam qualquer
diferença, abeiravam-se dela como de outro qualquer, não cheiravam, nem
observavam qualquer resquício epidérmico, certamente não contêm base de
formação preconceitos rácicos.
Foi à missa domingueira e traduziu-se
num alvoroço dos transeuntes e, durante a homilia, ninguém ligou patavina ao
discurso do abade, o alvo de todos os olhar e comentários foi Berta, a menina
preta, a criada que Alzira tinha trazido de África. Não lhe tocavam, só a
devoravam com o olhar perscrutador. Os rapazes e as raparigas autóctones manifestavam
entre si curiosidade em saber como seria Berta, a preta do Congo, nas suas
partes intimas. Estava certo dia Berta a lavar umas roupas da patroa no
lavadouro da aldeia e jovens logo tentaram espreitar as suas coxas de menina,
na tentativa de descobrirem ali alguma originalidade rácica, quiçá, aparentada
com a de qualquer animal doméstico ou até bravio das serras beirãs. Mamas,
Berta não ostentava, apenas uns pequeníssimos mamilos soltos sob as blusitas,
nem sutiã pediam, logo isso era uma característica face a outras raparigas, já espigadotes
de maminhas arredondadas e atrevidas cujos biquinhos formavam saliências nos
trajes de garotas de província, aspirantes a modernas, frescas e excêntricas
citadinas.
As mulheres do campo, camponesas
contemporâneas da juventude de Alzira consideravam que Berta seria útil na
lavoura e nas lides domésticas, menos no que tocasse à confeção de refeições,
isso não. Uma preta a partir a broa, a fazer estrugidos, a cortar a salada, a
temperar as comidas, a provar a sopa e o conduto de sal e de azeite: credo,
abrenuncia. Todavia, nem todos alinhavam pelo mesmo diapasão, os homens
miravam-na com outros olhos, os de cobiça, sobretudo o Armando, o Peliça, o
Jesus da senhora Arminda, o Alfredo do Rogério, o Zé da Torta e o Rodolfo,
homens que tinham regressado da guerra no ultramar, a guerra colonial. Aliás o
que se falava ali em Meruge acerca de africanos pretos era o que relatavam
esses antigos militares, descrevendo-os como turras ardilosos e concubinas
sensuais.
Assim, Berta era ali encarada sob a
perspectiva masculina como menina sensual, afrodisíaca, objecto de prazer
extravagante, segundo o prisma feminina, uma concorrente desabrida, cativadora
de apetites sexuais inigualáveis, fonte de prazeres e peçonha luxuriante. As
idosas designavam-na por pecadora, os homens velhotes condescendiam na
aceitação da preta do Congo, contra as vertigens das suas velhas companheiras.
Por isso, Berta agradava-se da companhia e das graçolas de alguns anciãos,
sobretudo do velho Luís da quinta do Vale de Cabra, sempre brincalhão e
sorridente desdentado para ela. Berta assemelhava-o a um velho leão já impotente,
mas de fisgar libidinoso.
Isso tudo, fruto da chegada a Meruge
de uma inesperada rapariga preta, bem preta, nada semelhante aos mestiços que
já se iam vendo por Oliveira do Hospital e outras vilas e cidades, até 1974,
quase virgens de moradores e visitantes de tez mais morena do que a queimada
pela canícula no estio. Foi impacto do primeiro encontro, por ventura, aproximado
ao embate do desembarque dos pioneiros brancos com os habitantes em terras de
África subsariana.
Contrariamente ao julgado por Berta,
a partir da recepção do merugenses no seu torrão natal, as aparentes
hostilidades recrudesceram, dando lugar a uma normal convivialidade. Berta
passou de objecto raro a jovem preta inclusa. As camponesas solicitavam a sua
actividade nas diferentes tarefas, quer campesinas, quer domésticas. Alzira,
gradualmente, humanizava-se, ao ponto de fazer Berta sentar-se à sua mesa.
Tornaram-se parceiras no amanho das hortas e no tratamento dos animais
domésticos, coisa impossível em Carmona onde patroa branca e serviçal negra
tinham funções e lugares distintos. A professora da aldeia, a dona Alcina, quis
alfabetizá-la. Alzira jubilou e anuiu, autorizando que Berta diariamente fosse
a casa de Alcina, depois de terminado o dia lectivo. Melhor acolhimento passou
a ter quando a professora Alcina a elogiou tanto na qualidade de aprendiza como
no comportamento, educação e humildade. Alzira, acossada por Alcina e pelo José
das finanças da repartição de Oliveira, foi a Coimbra com Berta no sentido de
obter a sua nacionalidade de cidadã portuguesa. Aí deparou-se com empecilhos,
burocracias e imperativos legais. Foi a Lisboa com ela, aproveitado alguns dias
para descansar na sua casa da Avenida da Igreja, na ausência do seu filho
Afonso que, entretanto, tinha ido para a Suíça a pretexto de concluir aí, numa
universidade internacional reconhecida, o grau de licenciado em ciências
políticas. Ainda bateu à porta do putativo sogro de Afonso, procurando a sua
influência, porém Berta era mesmo considerada cidadã angolana. No novel
departamento do corpo diplomático da República de Angola foi recebida e
deferido o seu estatuto de cidadã residente estrangeira em Portugal, com o
carimbo das autoridades portuguesas competentes. Alzira enraivecia-se só de
pensar que Angola se tinha tornado um país independente e reconhecida até pelo
governo de Portugal, mas não lhe serviu de nada, regressou a Meruge com Berta
na qualidade de cidadã angolana livre e autorizada a residir em território
português.
Alzira, em Meruge, não se conformava
com o facto das antigas províncias ultramarinas se terem oficialmente tornado
países independentes e soberanos e ainda por cima ter sido requerida a formular
um contrato de trabalho com Berta. Em Carmona não havia contratos de trabalho,
nem obrigações sociais com os empregados. O seu marido apenas respondia perante
obrigações morais, nunca contratuais. Teria de estipular um contrato e um
ordenado mensal a Berta, a criada que ela arrancara da tragédia de Uíge em
guerra e penúria, segundo o seu entender de colona retornada, era uma afronta
das autoridades do seu Portugal.
Foi à igreja desabafar com o padre da
paróquia, insistindo nas suas boas acções de auxílio e de comiseração para com
os pobres e os desvalidos da fortuna: “faz o bem não olhes a quem”. Relatou-lhe
enfadonhamente os domingueiros repastos ao padre Alberto. Repetiu vezes sem
conta as ofertas que fazia à igreja de Carmona e as obras custeadas pelo seu
marido, quer na igreja da paróquia, quer na acção missionária de Carmona.
Trouxe à liça o frequente acolhimento dos escuteiros na roça onde o seu marido colocava
à disposição comida e alojamento, mas o padre permaneceu quedo e quase mudo, só
um ligeiro assentamento de cabeça. Na aldeia praticamente nenhum vizinho dava
importância à sua revolta face ao imperativo de oficializar Berta como sua
empregada doméstica ou porventura trabalhadora rural, com contrato de trabalho
contemplando salário, subsídio de férias e ainda décimo terceiro mês, bem como
desconto obrigatório para a segurança social e sugerido seguro cobrindo
eventuais acidentes de trabalho.
Alzira apregoava aos quatro ventos,
para quem a quisesse ouvir: “Onde é que já se viu, ordenado, férias, dias de
descanso e seguro? Que país é este? Isto não é um país, é uma painça! Uma
vergonha, uma desgraça! Foi para isso que perdemos as nossas províncias
ultramarinas? Nós em Angola é que fizemos andar isto para a frente! Ah meu rico
Salazar, ah meu querido Salazar que fazes cá tanta falta… Isto só lá vai com um
novo Salazar! Com um não, com dois! Com muitos Salazares, muitos Salazares!”.
Alzira escreveu aos filhos para a
África do Sul, dando conta do sucedido face às exigências do Ministério do
Trabalho e do Instituto da Segurança Social. Queixou-se ao seu filho
primogénito, detentor do património herdado, que a vida estava cada vez mais
cara, que não poderia fazer um ordenado à criada, que não poderia pagar
qualquer quantia à segurança social e muito menos arcar com seguro de trabalho.
Ela só tinha a receita que ele, Zé Maria, enviava mensalmente através dos
correios para Oliveira do Hospital. Afonso desde que partira para a Suíça,
deixo de dar notícias. Na volta do correio, Zé Maria, lamentava-se das despesas
galopantes na África do Sul onde tinha que sobreviver e sustentar as irmãs, mas
nunca referia qualquer valor do património herdado. No mês seguinte, ao
levantar o seu cheque enviado de Pretória lá vinha um aumentozinho de trezentos
e cinquenta escudos e nada mais, nem um comentário.
Berta praticamente deixou de ter
obstruções na inclusão social em Meruge. Na sua terra natal, Angola, apenas
coexistia segundo o estatuto de serviçal na base da pirâmide social, sempre
subjugada, com os deveres todos segundo as vontades dos patrões brancos, sem
acesso as espaços partilhados pela elite colonial, ou seja, na sua terra não
tinha direitos, mas sim deveres, os deveres que os brancos lhe que quisessem exigir.
Em Portugal, no puto, vivia integrada na comunidade de Meruge como um dos
demais: ia à escola, trabalhava, comia à mesa e conversava num plano
horizontal, como se fosse natural daquela terra e se a sua cor de pele fosse exactamente
como a dos outros, excepto a patroa Alzira e dois ou três antigos colonos, por
sinal antigos empregados da roça do patrão Silva, em Negage. Contudo, Berta
tinha muitas saudades de Angola sobretudo na época do inverno. O frio beirão
causava-lhe dificuldades de movimentos físicos e psicológicos, não sabia viver
com temperaturas baixas, nem que vestisse meia dúzia de casacos, três calças,
duas botas e três pares de meias. Apesar de Alzira, de vez em quando, arranjar
uns quiabos, mandioca, papaias, mangas, mamão e uma ou outra iguaria tropical,
oriundas do Brasil, Berta tinha saudades da fuba, das suas frutas, do seu peixe
seco e, acima de tudo, da sua gente, dos seus, por melhor que os vizinhos a
tratassem em Meruge.
António do senhor Alcídio e da dona
Felismina do Carregal do Sal, residentes em Meruge, caseiros da quinta do Vale
de Cabra, andava a estudar para padre, no seminário de Viseu, depois de ter
sido iniciado no seminário maior de Lamego. Já rapazola adiantado nos dogmas
teológicos e na retórica romana e seminarista, foi passar as suas férias
natalícias em família na quinta do Vale de Cabra, de resto, como era habitual,
desde que tinha ingressado no aprendizado clerical. Foi a primeira vez que
encarou com uma preta, uma rapariga preta a sério. Em Viseu tinha visto um ou
outro mestiço, mas preto, mesmo preto, só os conhecia das fotografias,
sobretudo através das crónicas ilustradas das revistas missionárias, com destaque
para a revista “Além-Mar” comboniana. De facto, o seminarista António Lopes,
natural da vila do Carregal do Sal e, posteriormente, residente na quinta do Vale
de Cabra, concelho de Oliveira do Hospital, só tinha um grande ojectivo na vida
que era o de ser ordenado sacerdote na terra que o viu nascer e ser colocado,
pela diocese, pároco de vila ou aldeia provinciana, de cidade não, tinha horror
aos grandes aglomerados, em particular, Porto e Coimbra. Não queria saber das
ordens missionárias, nem dos feitos de evangelização além-mar. Para si a terra
era plana e a sua futura paróquia o centro do mundo. Pretendia, a exemplo do
padre de Tábua, Dimas Santos Carvalho, administrar as equipas de catequistas,
as comissões de festa, as homilias diárias, e dos dias santos, crismar, crismar
a garotada e confessar, confessar o máximo de paroquianos. De mulheres queria
alguma distância, elas perturbavam-no. Junto das raparigas sentia-se diminuído,
incapaz de vencer a sua tremenda timidez. Ainda na escola primária, em classes
separadas, de género, nunca invadia os recreios das meninas, preferia jogar ao
pateiro, à bandeira ou a qualquer outro jogo, desde que fosse só entre rapazes.
Algumas meninas marotas topavam-no e seguiam-no com picardias e dichotes para o
verem atrapalhado e corado de vergonha. Ele, enrascado, enfiava os olhos no
chão e esgueirava-se logo que pudesse. Depois, sozinho, afastado das meninas
atrevidas, enervava-se e revoltava-se com a sua incapacidade inata de
incomunicabilidade com o sexo feminino. De início adaptou-se relativamente bem
às regras seminaristas. Ia preparado para aceitar, sem objecções. Queria
cumprir o programa e, finalmente, exercer autonomamente numa paróquia de fiéis
humildes como ele e os seus. Acostumou-se às rezas, às privações de liberdade
pessoal, aos exercícios de memorização desmedida, enfim, a tudo o que o seu
confessor ordenava e fiscalizava. Logo na primeira noite na camarata aprendeu a
dormir em camisa de noite, do tipo batina branca até aos tornozelos, deitado de
barriga para cima, braços e mãos fora da roupa da cama – nada de mãozinhas a
tocar nas partes íntimas, quentinhas entre as entranhas, para que não houvesse
tentações de masturbação. Nas noites de insónias aprendeu a rezar, rezar até
adormecer, voltar a rezar se acordasse e levantar-se repentinamente ao primeiro
toque da chamada matinal. Aprendeu a anuir a todas as emanações superiores e a
abster-se de quezílias entre colegas. Na sua mente colocou sem reservas a sua
função de noblato à maneira dos frades eremitas beneditinos, franciscanos e
capuchos em que todas as tentações sensitivas eram emanações belzebunianas. Se
o corpo pedisse descanso, havia que castiga-lo com mais e mais trabalho; se
acordasse de erecção fálica, era tomar banho de água gélida; se os seus
pensamentos fugissem para quimérica amorosas, mesmo que platónicas, havia que
rezar, rezar sem cessar a Nossa Senhora do Rosário de Meruge, se bem que Nossa
Senhora, seja lá do que fosse, também o atormentava com aquele ar de estátua
fingida de púdica angelical inacabada. De facto, a imagem habitual nos lugares
de culto, atribuída a Senhora de Fátima, causava-lhe certa impressão – cabeça
inclinada, mãos inexpressivas, corpo sem formas humanas, nem celestes. Até lhe
parecia que eram obras escultóricas saídas das olarias ou dos gabinetes antes
do términus. O Deus implacável do velho testamento, o ditador impiedoso dos
Assírios, dos caldeus, da Babilónia e sobretudo o da Judeia é que o fascinava,
pela sua rudeza, voracidade e insensibilidade – esmagava-o tamanho poder e
obtusidade. Um Deus maior, maior do que o bispo diocesano e do que o próprio
papa de Roma, senhor da cristandade católica apostólica, infalível, omnisciente
e discípulo directo do criador e governador do mundo e de todas as coisas teria
que ser assim, todo-poderoso, ditador implacável, comandante pertinaz, brutal,
sem condescendências, parcimónias, hesitações, nem reconhecimentos dos súbitos,
nem piedade dos adversários. Foi assim que interiorizou as lições dos mestres
escolásticos e era assim que respeitava as autoridades clericais.
António chegou a Meruge pela estrada
do Barreiro onde um comerciante o tinha levado à boleia de Viseu e,
posteriormente, o deixou na quinta do Vale de Cabra. Era um antigo conhecido de
sua mãe que nuca passava por perto sem a visitar. Em casa, a meio da tarde,
estavam Alzira e a sua criada preta do Congo. Ambas ajudavam Felismina no
preparativo das iguarias e acepipes para a ceia de Natal. Berta batia farinha
com ovos para rabanadas, sonhos, filhós e Alzira fritava com mestria, Felismina
cirandava e abraçou efusivamente o filho à chegada deste, cumprimentando o comerciante
com afectividade, porventura, demasiada familiaridade que pôs Alzira de
sobreaviso. Alzira pelava-se por cusquice e mexericos, se lhe parecesse seria
capaz de inventar logo ali o romance adultera, entre o recoveiro e a caseira do
Vale de Cabra.
Berta sorriu mostrando a brancura dos
dentes e dos olhos de menina mansa, afectiva, candura inocente, mas vivaz no
brilho do olhar, introspectivo. António Lopes, o seminarista obstinado, sentiu
agrado e paz, muita paz e confiança face à presença inesperada daquela penina
preta, tão preta que nem reparou, apenas o brilho daquele olhar de moça, o
olfato adocicado e a candura de expressão bastaram para se sentir bem, como
nunca se sentira junto de ninguém, nem em lugar nenhum. A mãe reparou e disse:
- É a Berta que está com a dona
Alzira, meu filho. Tu não te lembras da senhora Alzira e do Senhor Adelino,
ainda eras muito pequenino quando cá estiveram de férias de África.
- Olha são os desígnios do Senhor,
meu filho, são as emanações do Senhor pela reminiscência dos pecados: que Deus
nos livre e guarde de todo o mal, amém. – Adiantou Alzira para o seminarista.
António Lopes não respondeu, nem
arredou pé, nem olhava, nem falavam para ninguém, apenas se deixou ficar na
companhia de todos e especialmente de Berta que também não abriu boca, mas
transmitiu muito, olhando e sorrindo para o rapaz acabado de regressar a casa
dos pais na quinta do Vale de Cabra. Berta agora sabia que um dos comensais
para a ceia de Natal e o repasto do dia 25 seria aquele rapazote, que sabia
estudante para padre. Na verdade, nem lhe parecia nada de beato, nem santo, nem
diabólico, nem pastor das ovelhas da serra, nem artesão da forja, nem cavador
das hortas, nem lavrador dos campos de milho. Também não o achou interessante,
não a fez estremecer, a exemplo do moço que a tinha salvado dos destroços
causados pelos bombardeamentos em Tambuco e a acariciou e beijou na face no
momento de despedida em Maquela do Zombo ou daquele rapaz que, no aeroporto de
Lisboa, lhe meteu umas moedas em mãos cujo tacto a abanaram como vara verde.
Esses ou esse sim, tinha bem gravado na mente. Esses ou esse porque sentia
tratar-se do mesmo individuo de que dela se despedira em Maquela do Zombo e a
encontrou em Lisboa, no desembarque em Portugal, dando-lhe a si, as moedas que
Alzira precisava para chegar à sua casa na Avenida da Igreja. Berta pensava
muito nisso, não tinha contado a ninguém, era uma coisa só dela, até porque a
considerariam louca se narrasse os episódios e alvitrasse que esse rapaz branco
guerrilheiro do MPLA em Angola seria o mesmo que lhe deu as moedas em Lisboa.
Era um sentimento e convicção pessoal, não teria que partilhar com ninguém,
muito menos em Meruge onde nem sequer podia pronunciar MPLA, nem guerrilheiro.
Em Meruge acolheram-na como gente depois do choque inicial, mas teria de pensar
e agir em conformidade, de Angola só portugueses bons que tinham sido expulsos
pelos turras matumbas e aliados dos comunistas russos e cubanos.
O rapazola filho do senhor Alcídio e
da senhora Felismina representava para si porventura comiseração. Persentia no
seminarista tristeza, frustração, amargura, insegurança. Berta nunca tinha
assistido a sessões de catequese como a professora Alcina recomendava, porém
intuía que António não carecia de pregações e sermões, apenas necessitava de
amor, estima, compreensão e fé, mas não na do Deus dos altares das igrejas, mas
sim, fé em sim e na capacidade humana, no amor fraternal e carnal de alguém que
o amasse, não ela que disso não seria capaz. Para ela, Berta, havia um eleito e
único e branco, o das matas, colega das duas kwanhamas e surgido
inesperadamente no aeroporto de Lisboa, para si, o mesmo e seu anjo da guarda
em vida e onírico enviado pelos deuses kiandas das profundezas do mar.
António Lopes como sempre não seria
capaz de entabular conversa com uma rapariga, no entanto, isso não se passaria
relativamente a Berta. A menina preta do Congo só lhe trazia paz e segurança,
nada de intimidações. Aproveitando a momentânea ausência de Felismina e de
Alzira, perguntou-lhe de onde era, se gostava de Meruge, do Natal, se iria à
missa do galo, se jantaria com eles na quinta do Vale de Cabra. Berta respondeu
e omitiu o que lhe pareceu numa voz meiga, de silabas bem batidas, vogais
aberta palavras redondas e frases completas. Ele ficou a saber que a menina era
do Negage (nunca tinha ouvido falar dessa terra, nem sabia onde ficava, mas não
teve coragem de confessar a imperdoável ignorância de seminarista); que não
cearia no Vale de Cabra, e talvez fosse à missa do galo.
À noite na grande ceia de Natal, a
consoada abençoada com a presença do futuro padre, orgulho e encanto da mãe
Felismina e consolo do pai tendo em conta a sua futura reputação na qualidade
de progenitor de padre, António comia e tagarelava como nunca o tinha feito. Os
irmãos e avós tiveram que ceder o estrelato ao seminarista cuja desenvoltura mais
parecia a de um lauto vivão. António perguntava muito por todos e por tudo,
sempre no caminho de se acrescentar algo a Alzira retornada. Quis saber quando
e como regressou a Meruge, família e tudo o mais, se costumava ir à missa, com
quem ia, mas sem pronunciar Berta, embora fosse mesmo esse o foco, o interesse
em Alzira. Até que a mãe disse:
- A criada da Alzira, faz tudo e bem,
nem parece uma preta, é desenrascada e tudo…
Foi isso, “nem parece uma preta”, que
o trouxe à razão, Berta era preta. António perdeu entusiasmo, brilho no olhar,
apetite e fechou-se no seu mundo sombrio de trevas e provações. Secundarizou-se
na convivialidade, ausentou-se dos assuntos, cobrindo-se com o manto diáfano da
insignificância.
Aproximava-se a hora da missa do galo
e mantinha a hesitação de alegar desculpa de modo a faltar à homilia, mas logo
concluiu que seria imperdoável faltar a um acontecimento daquela natureza na
qualidade de pretendente a sacerdote. Certamente seria intimado pelo padre João
à função de acolito nessa noite. Mas Berta?
Afinal era preta, quiçá, um demónio
em figura de rapariga; um mafarrico encarnado para o tirar das boas graças do
Senhor; um ente sobre o qual o Senhor o poria à prova; um engodo, a serpente
negra metaforizada em maçã do paraíso; as aberrações dos infernos puxando-o para
as trevas cavernosas da luxúria, do desengano e do pecado sem reminiscência. E
logo em figura de mulher preta, sinónimo de todos os infiéis gentios, pagãos,
peçonhas amaldiçoadas na caldeira do sexo e da devassidão desmedida, da
perdição amaldiçoada pela virgem santa, mãe de Jesus o qual se sacrificou por
amor ao Pai.
Foi à igreja, repescado logo para
acólito com honras de servo eleito pelo Senhor. Contemplado com indumentária
restrita àqueles que se despojam da matéria em prol da palavra do Divino.
Alcídio encheu o peito com ares de miragem superior, olhando de soslaio para os
pacóvios companheiros devotos. Felismina não cabia em si, só tinha ganas de
gritar para a plateia: “olhem, vêm? Aquele é o meu filho! O filho do meu
ventre, o filho que carreguei para escolhido do Senhor! Deus é o meu pastor e
eis aqui o sangue do meu sangue em honra do Pastor!”.
António do cimo do altar, ladeando o
padre consagrado e ungido com os santos óleos adstritos aos escolhidos e
mandatados para proferir a palavra e guiar o rebanho do Senhor, reparou na
única ovelha negra, Berta. Ela era a única preta entre os fiéis católicos
naquela noite de Natal. Até podia ser um dos reis magos da boa nova, anunciado
o nascimento do Menino.
De facto, concentrou-se na sua imagem
de menina dos gentios, na penumbra do espaço sagrado e não vislumbrou mais do que
uma criatura, belíssima, doce e ternurenta e pensou, mentalmente, pró inferno
com os maus presságio, ela é divina e bela como nenhuma outra Nossa Senhora,
ainda mais inebriante do que a figura de Nossa Senhora do Ó, exposta no Museu
Nacional de Lamego.
Logo que terminou a missa do galo,
António correu para casa, fugiu a eventuais encontros familiares e ocasionais,
frustrando os progenitores que tanto se queriam mostrar com o filho a seu lado.
Em casa esgueirou-se para o seu quarto, enfiando-se sob os lençóis e os pesados
cobertores de papa. Não rezou, nem deitou os braços fora da roupa. Pela
primeira vez desde que ingressara no seminário não hesitou em enroscar-se de
mãos nas virilhas, no peito e em todo o seu corpo, sentindo-se homem, humano e
carnal. Naquela noite não havia lugar a rezas ao Senhor, nem a qualquer Nossa
Senhora, veio-lhe à memória a trova camoniana e recitou, reparando que o seu
exaustivo exercício de memorização sortira efeito, pois o seu cérbero mais
parecia um computador, uma caixa registadora ou um disco rígido, tal a facilidade
com que as palavras saíam em catadupa: “Aquela cativa,/que me tem
cativo,/porque nela vivo/já não quer que viva./Eu nunca vi rosa/em suaves
molhos,/que para meus olhos/fosse mais fermosa. Nem no campo flores,/nem no céu
estrelas/me parecem belas/como os meus amores. Rosto singular,/olhos
sossegados,/pretos e cansados,/mas não de matar. Úa graça viva,/que neles lhe
mora./Pretos os cabelos,/onde o povo vão/perde opinião/que os louros são belos.
Pretidão de amor,/tão doce a figura,/que a neve lhe jura/que trocara a
cor./Leda mansidão/que o siso acompanha;/bem parece estranha,/mas bárbara não.
Presença serena/que a tormenta amansa;/nela, enfim, descansa/toda a minha
pena./Esta é a cativa/que me tem cativo;/e, pois nela vivo,/é força que viva.
António não se levantou no dia
seguinte, nem nos outros adiante, ficou de cama, assolado de paixão. Não
confessava a causa das maleitas, nem manifestava vontade de as espantar. Sorvia
umas canjas e cobria o rosto com as roupas da cama. Veio o dia do retorno ao
seminário e não quis retornar. Foi visto pelo médico, pelo padre, pelo
curandeiro, mas só a vidente afiançou:
- Deixem o moço que tem males de
amores, arde de paixão, sofre o coitado…
O tio materno antes de regressar à
capital, depois de uns dias de férias que tinham servido para matar saudades e
abraçar os familiares e amigos de infância, foi ver o sobrinho e disse à irmã
Felismina:
- Olha minha irmã, amanhã vou de
regresso a Lisboa. Estou contente por ter estado convosco e especialmente ter
ajudado na matança do porco. Ai que tão bem me souberam os teus torresmos. Mas
quero dizer-te uma coisa, não me leves a mal.
- Diz, diz lá homem, até parece que
já não somos irmãos com tantos rodeios…
- Então aí vai: o teu António já não
sai padre. Percebi isso hoje. Manda-mo lá para Lisboa que faço dele um homem na
mercearia…
Felismina amuou com a interjeição do
irmão, mas bem sabia quão certo ele estava. Durante uma semana não desabafou
com o marido, esperançada ainda na reviravolta da atitude do filho, irredutível
em relação ao seminário. Chocou cinco dias de cama e, abatido, levantou-se,
enfrentou a mãe com firmeza:
- Mãe, acabou-se, não voltarei ao
seminário, Deus não me predestinou ao sacerdócio.
- Então que vais fazer da tua vida, meu
filho? Queres ir prá lavoura onde nunca andaste, tão parco de forças?
- Posso ser pastor ou qualquer outra
coisa, minha mãe, mas padre não serei!
Capítulo encerrado, Alcídio e
Felismina não realizariam o sonho de ver um dos seus filhos padre. Se António
tinha desistido, o Alexandre era um maltês e o Luís indomável e irascível juvenil.
A Cristiana só tinha na cabeça namorados e mais rapazes e mais rapazes, a
Laurentina parece que vivia o sexo desde nascença, assim, não haveria lugar,
nem a padre, nem monges, nem freiras na família dos caseiros do Vale de Cabra.
A solução estava tomada e definitiva
– António seria enviado ao tio onde teria de trabalhar de marçano e fazer-se
homem, para saber o que custava a luta pela sobrevivência. Se quisesse ser
alguém na vida que alombasse, já que desperdiçava a vida de senhor padre,
costas direitas e veneração de paroquianos, mesa farta e outras mordomias que
bem sabiam de facto, mas inarráveis.
O casal acatou a decisão do filho,
fazendo fé nas suas alegações da falta de vocação. Nunca imaginando que na base
dessa desistência pairava a paixão avassaladora de António por Berta. A preta
do Congo se fosse considerada responsável pelo fracasso do seminarista na
caminhada clerical, seria até esquartejada como se fazia às reses no Vale de
Cabra. A menina trazida de Angola como uma coisa, um animal de companhia ou um
adorno qualquer, involuntariamente, tinha salvado o infeliz António do
calvário. Sim, da cruz que o seminarista carregava. Por muito que se aplicasse
na matéria leccionada, por melhores notas que conseguisse nas provas do latim,
do português da retórica teológica, mal suportava o assédio do seu confessor.
De facto, o seu tutor no seminário
começando por aproximações aparentemente meigas, carinhosas, trepava a traços
largos para uma relação de violência homossexual. António sentia-se incomodado,
constrangido, pressionado, violado no imo da sua alma. O confessor massacrava-o
com perguntas sobre as suas apetências íntimas, as suas reações à sua presença,
à de rapazes, à de raparigas, aos sonhos e sobretudo às caricias do confessor
nas pernas, no peito, no traseiro, no ventre e nos órgãos sexuais do noblato.
António procurava todos os meios para
fugir do tutor e este, tudo fazia para se acercar dele. Um certo dia o
confessor conseguiu levá-lo à sua cela a pretexto de lhe ensinar algo, mas ali
presenteou-o com bolos secos, licor de romã e carícias, às quais António
conseguiu escapar, fugindo, desabrido em soluços. De outra vez, na própria
camarata, o tutor, por trás do aluno, tentou pentear-lhe o cabelo,
passeando-lhe as mãos pela nuca, ao mesmo tempo que lhe encostava o seu
volumoso órgão sexual arrebitado debaixo da batina contra o ânus do jovem,
aflito que logo correu desabrido camarata fora, só parando em pleno claustro,
desesperado sem saber o que fazer e para aonde correr mais. O confessor/tutor,
dessa vez, aproximou-se de António, secretamente, e ameaçou-o se o denunciasse
sofreria consequências severas. António por algum tempo teve sossego, parecia
que o tutor pedófilo homossexual teria desistido de o apoquentar. Contudo, nas
vésperas da sua partida para as curtas férias natalícias para Vale de Cabra, o
tutor voltou à carga. Quis impedi-lo de usufruir do período de férias,
valendo-lhe o facto do próprio confessor se ter ausentado por ordens superiores
cujo motivo António desconhecia. António, desesperado, conjecturava no
suicídio, só ainda não tinha tentado por mera falta de meios para o executar.
Por isso, salvou-se das garras do pedófilo clérigo e caminhava desta vez
determinado para uma nova etapa da sua vida, ou seja, a de marçano, empregado
do tio no qual confiava e sabia amigo, heterossexual, casado e pai de filhos.
Berta era a sua musa, o seu amor supremo, platónico e sensitivo.
No dia aprazado tomou o seu lugar na
camioneta de passageiros que o levaria a Coimbra e, daqui, outra o
transportaria à capital pela estrada nacional através dos campos da beira
Litoral, da Estremadura e das lezírias ribatejanas, larguezas e prados que
António nunca tinha visto, mas sabia existirem por tanto estudar geografia,
orografia e História de Portugal, versão e visão do catolicismo ultramontano e
salazarista. A família despediu-se dele em Vale de Cabra onde um táxi o foi
buscar na incumbência de o deixar na estação de camionagem de Seia. Em
conformidade com o combinado, antecipadamente, o taxista passou por Meruge,
estacionando à porta de Alzira, a retornada, apitou e Berta apareceu com uma
caixa de papelão em mãos. O motorista logo fez sinal para que Berta a colocasse
na mala do carro, mas, entretanto, António abriu a porta do seu lado e Berta,
pousando-lhe a pequena caixa no regasse, de sorriso, pequena covinha na face e
ligeiras rugas de expressão na testa, disse numa voz mansa, suave, palavras
redondas, prenuncia característica de angolano, de vogais aberta:
- É para levar para casa do seu tio,
em Lisboa, a senhora júlia lá irá buscar. Boa viagem, adeus, obrigada.
António mais uma vez embasbacado,
enrascado, sem pronta resposta, emocionado, embebecido e atrapalhado face à
presença de Berta que até lhe roçou, naturalmente, as mãozinhas de menina preta
nas suas pernas ao largar aí a encomenda, limitou-se a seguir com o olhar a
garota que voltou costas, graciosa. António mirou-lhe amorosamente a elegância
da figura e nos trejeitos. Adicionou à memória as expressões delicadas e
simples de moça, emudecendo ao lado do senhor taxista Jerónimo que bem quis
conversa, mas sem correspondência do cliente até Seia onde se despediu com um
triste e quase imperceptível:
- Obrigado, senhor Jerónimo, Deus lhe
pague.
- Adeus, rapaz, o teu pai já me
pagou, se estivesse à espera dos trocos divinos, já tinha morrido de fome…
António teve sorte, o seu bilhete
marcado, dava-lhe acesso a ampla miragem campos-fora. Encostou a nunca à
cadeira, rodando para a direita, viu paisagens enquanto quis, depois, fechou os
olhos, sacando da memória e debitou, mentalmente: “Se de saudade/Morrerei ou
não,/Meus olhos dirão/De mim a verdade,/Por eles me atrevo/Alcançar as
águas/Que nesta alma levo.
As águas em vão/me fazem chorar,/Se elas são
do mar/Estas de amor são./Por elas relevo/Todas minhas mágoas;/que, se força de
águas/Me leva, eu as levo.
Todas me entristecem,/Todas são
salgadas;/Porém as choradas/Doces me parecem./Correi, doces águas,/Que, se em
vós me enlevo,/Não doem as mágoas/Que no peito levo.”
Madalena iam recebendo umas cartas,
uns postais de Afonso que, das terras helvéticas, lhe prometia fidelidade e
prosperidade. Ela às vezes dispensava-lhe uma olhadela, porém não respondia.
Lá, tempos a tempos, dava-se ao trabalho de lhe enviar um postalzito, só para
descargo de consciência e para evitar eventuais intermediações paternas.
Zé Maria informou Alzira,
telegraficamente, que chegaria em breve a Meruge. Alvoroçou-se a retornada.
Escreveu logo ao filho e às filhas uma carta individualizada para cada. Logo na
manhã seguinte, dia de mercado em Seia, tomou lugar na carreira de Meruge para
referida vila. Na carreira ocupou, como habitualmente, o assento imediatamente
atrás do motorista. Escanchou as pernas no sentido de evitar companhia no banco
de dois lugares. Berta acompanhava a patroa com um saco de compras ao tiracolo,
mas, entrando atrás de Alzira, vendo uma garota conhecida em Meruge, foi para
junto dela. Assim que chegaram a Seia, a retornada dirigiu-se à estação dos
correios onde comprou selos e enviou as três cartas aos filhos, na África do
Sul. Berta seguia a patroa como cachorro habituado ao dono, sem o perder de
vista, à distância de dez a quinze metros. A branca entrou e saiu da estação
dos correios de Portugal e a preta aguardou-a cá fora. Avançou uns passos,
voltou-se para a criada e resmungou:
- Anda, mexe-te! Que estás aí a fazer
especada?
Primeiro a retornada deu uma volta
completa pelos feirantes e lojas de alvenaria, mirando e consultando preços de
vários artigos, depois, parou, sentou-se num banco granítico, enfiou a mão
direita no sutiã da mama esquerda e retirou umas notas dobradas. Contou-as,
discretamente, levantou-se e retornou com as notas à mama canhota. Berta
continuava em pé, ora contemplando a patroa, ora deitando vistas pelos
feirantes e transeuntes. Alzira suspirou, de leve e ordenou à criada:
- Ficas aqui à minha espera que eu
tenho que ir ao banco. Não saias daqui, ouviste?
- Sim patroa, fico à espera.
Já lá ia mais à frente, lembrou-se de
qualquer detalhe e volto atrás, acenando a Berta para ir ao seu encontro.
- Rapariga, rapariga, chega aqui!
Olha uma coisa, sabes onde fica o talho do Justino?
- Sei, sim, senhora!
- Então olha lá o que te mando, vai
lá põe-te na fila e guarda a minha vez. Vou lá ter, quero chegar e ser logo
atendida…
- Senhora, e se demorar que faço à
sua vez, deixo passar à frente até a senhora chegar?
- Isso mesmo, vejo que estás menos
matumba…
Alzira foi à feira abastecer-se,
salvaguardando qualquer surpresa, ou seja, não queria que o filho aportasse em
Meruge e não dispusesse de mantimentos em quantidade e de qualidade. Sabia que
Zé Maria era exigente e alarve na carne grelhada, sôfrego na cerveja.
Claro que se lamentaria com a
carestia de vida em Portugal. Tudo faria para apanhar mais alguns rendimentos,
até porque ela era a herdeira-mor, a cabeça de casal, apesar do falecido marido
ter só confiança no filho Zé Maria, a quem em vida tratou de dar acesso a todo
o património. Não mostraria a sua conta bancária na caixa de Oliveira, nem lhe
faria resenha dos gastos e aforros, só se lamentaria, dos preços, da saúde e de
necessidades. Claro que não lhe faria referência aos trezentos e cinquenta
escudos do tal aumentozinho recente. Faria de contas que se tratava de gastos
com a criada, da empregada como a queriam a designar em Portugal. Nunca o filho
saberia que aqueles trezentos e cinquenta escudos mensais iam directamenta para
uma pequena conta de aforro que, entretanto, abrira num banco privado
concorrente.
Para Alzira, Berta não tinha que ver
a cor, nem sentir o cheiro do dinheiro, como dizia o seu marido em Carmona. O
seu Adelino não pagava salários, nem gorjetas, nem qualquer benesse em notas de
banco. Era um patrão experiente, batido no tratamento da pretalhada. Tudo o que
entendesse distribuir ou partilhar fá-lo-ia em géneros. Para tal tinha a
cantina onde os trabalhadores e não trabalhadores, os criados e não criados
dispunham de oferta considerada adequada e bastante face às necessidades
básicas de cada um e de cada família autóctone.
Os que trabalhassem para ele
dispunham de um determinado montante em géneros: fuba, óleo, arroz, farinha,
cerveja (cuca e nocal), vinho (bangassumo e vinul), peixe -seco, entremeada
salgada, roupa de fardo (proveniente das obras de caridade estrangeiras), tabaco
(negritas a avulso) calçado e panos garridos. Outras necessidades esporádicas fariam
o pedido e ele aquilataria do fornecimento. O lojista, gestor e empregado
branco de confiança, pula de preferência oriundo da região do patrão, faria a
entrega dos artigos e registaria, distribuindo por crédito mensal atribuído, de
modo a que os utentes nunca ficassem em dívida de maneira a evitar calotes e
eventuais prejuízos para o dono da roça. Se trabalhassem para outro patrão,
esse mesmo patrão estipularia os créditos e procederia aos devidos pagamentos.
Portanto, não havia notas nas mãos de serviçais. Para malteses, desvalidos,
velhos e outros desgraçados e vagabundos lá estava Alzira no seu papel de
caridosa, distribuindo umas esmolas: “faz o bem, não olhes a quem”. Na doença e
nos acidentes de trabalho o afectado que recorresse ao soba, ao feiticeiro, ao
curandeiro e, por vezes, ao posto médico público onde haveria alguns remédios e
serviços de primeiros socorros. Já quanto ao ensino, o patrão da roça,
sintonizando-se com as directrizes coloniais de Lisboa, secundadas pelas
autoridades coloniais de Luanda, tinha iniciado uma escolinha de mulemba.
Tratava-se de parcerias com a igreja
missionária que ministrava o ensino do saber ler e escrever a algumas crianças
indígenas à sombra das árvores ou num qualquer anexo de alvenaria ou de adobe.
Berta nunca chegou a frequentar a
escolinha de mulemba, mas foi bafejada com o sortilégio de ter tido a
professora Alcina de Meruge, cumprindo essa missão, se bem que já em tempos
descolonizados e numa aldeia portuguesa a caminho da desertificação
demográfica, por força da acentuada emigração das populações em idade fértil.
Uma emigração dos aldeãos para países europeus e cidades litorais do continente
portugueses, visto já não haver províncias ultramarinas e as ilhas insulares
nada absorver dessa matéria.
Nas últimas décadas de colonização (a
partir de 1961), as autoridades tinham concluído que a industrialização, a
modernização das empresas nos territórios colonizados só seria possível manter
e desenvolver com gente de origem local e escolarizada. A própria administração
colonial necessitava de pretos na qualidade de assimilados. Os mulatos não eram
bastantes e aos pretos analfabetos não podiam inculcar a doutrina e os
preceitos da cultura católica lusitana. Era preciso fazer circular livrinhos,
panfletos, jornais, revistas e outras formas de catequizar através de textos
escritos em português. Também a escrita constituía a grande arma de unificação
face à existência das línguas autóctones. Havia, pois, o imperativo de
assimilar os povos indígenas, por mais que isso custasse às finanças
administrativas e corresse o perigo de pôr as populações a pensar e a
desenvolver as mentes, forçadas a aceitar a sua condição de subordinação.
Berta em Meruge mal conhecia a cor e
pouco cheirava o dinheiro, mas já tinha bilhete de identidade de cidadã
angolana (sem alusão à cor da pele, raça nem etnia) e autorização de
permanência em território português. Bem sabia que em Angola do tempo dos seus
pais os que tinham cartão de assimilado acediam a muitas coisas as quais aos
não assimilados estavam completamente vedadas. Em Meruge não sentia o peso do
racismo exacerbado, mas tinha saudades e continuava um indivíduo em ambiente
estranho, em terra estrangeira, muito diversa dos seus hábitos e costumes.
Apesar da assombrosa paixão de António da qual Berta não tinha mais do que uma
certa desconfiança intuitiva, ela, na verdade uma menina solitária. Por mais
graciosa que se afigurasse aos olhos dos rapazes brancos, nenhum ousava
namorá-la, mais por receios da rejeição de terceiros do que por desagrado ou
preconceito rácico do próprio. Se aquela pretinha do Congo ostentasse epiderme
menos escura e cabelos menos encarapinhados, eventualmente seria melhor
acolhida no seio de qualquer família beirã, pejada de ideias feitas e
vulnerável à maledicência de vizinhos. Berta, inteligente e observadora, bem
sabia que numa cidade de média ou de grande dimensão, mesmo no Portugal
traumatizado com o regresso dos retornados, passaria praticamente incólume
entre a multidão. Não tinha dúvida que poderia passear em Lisboa sem que alguém
incomodasse. Quanto à integração no mundo laboral, isso seria mais difícil,
porque tinha reparado nas catanhós cabo-verdianas cuja função se cingia ao mercado
dos serviços de limpeza. Depois, no seu íntimo secreto, residia a esperança de
reencontrar o moço do aeroporto que lhe tinha enfiado as moedas nas suas mãos
como carícias. Para ela tratava-se do mesmo rapaz da guerrilha, no Uíge.
Alzira teve uma visita inesperada que
mudou a sua vida. O seu plano de voltar à terra que a viu nascer e aí regatar
os modos e o ritmo dos seus ascendentes deixou de fazer sentido com regresso do
emigrante Benjamim Floriano Antunes da Silveira. Floriano, como era tratado na
terra, tinha sido obsessivamente apaixonado por Alzira. Contudo ela rejeitou-o,
ele naquela época era pobre, filho de pai cavador que nem conseguia alimentar a
sua prol que mendigavam e rebuscava sustento. Na primeira janela que se abriu
para a emigração clandestina, após o final da segunda guerra na Europa,
Floriano esgueirou-se para França. Durante anos em Meruge não se soube de Benjamim
Floriano. Era analfabeto, filho de analfabetos, nunca escreveu, até que um
emigrante de Seia deu a notícia de que o Benjamim estava na Alemanha e bem,
muito bem mesmo. Tinha casado com uma moldava e até já era patrão de “batiman”
em França e construtor de pré-fabricados na Alemanha e na Suíça. A vida dá
voltas e reviravoltas, Benjamim teve uma filha com Rominieva Procova. A menina
cresceu, licenciou-se, saiu de casa, tornou-se quadro qualificado na RFA e
militante do partido conservador alemão. Rominieva trocou-o por outro e
Benjamim regressou a Meruge onde reencontro Alzira, a viúva retornada. A
retornada não tinha que rejeitar Floriano porque ele o que mais tinha era
dinheiro, tanto que lhe proporcionaria uma vida como nunca tinha tido, mesmo
que ngana pula em roça de café, algodão e de dona de cabeças de gado
incontáveis. Até o prazer sexual recuperou ao fazer amor com Benjamim que a
presenteava com belíssimos passeios de Mercedes Benz, dormidas em hotéis de
quatro e cinco estrelas, colchões ortopédicos, lençóis de seda, mata-bichos
fartos e requintados, almoços e jantares de categoria. Alzira já não precisava
de criada preta, nem ajuda nas lides do campo, Benjamim representava a sua
verdadeira independência, o virar de página. Enterrava assim a sua faceta de
viúva retornada que sobrevivia às expensas dos filhos usurpadores dos bens que
a ela pertenciam na qualidade de mãe e cabeça de casal. Berta teria que ser
despachada, eis a questão.
Zé Maria surgiu em Meruge relatou à mãe
episódio da estadia na África do Sul, a seu jeito. Acusou o cunhado Delfim de
ter usurpado dinheiro e pedras preciosas que Adelino Silva tinha transferido de
Luanda para Pretória. Acusou as irmãs de coniventes passivas e alegou que, com
o proveito da usura, geriam um complexo turístico próprio no Chipre Ocidental.
Informou a mãe de que, entretanto, residia em Lisboa, dirigindo um negócio
imobiliário e em parceria com o irmão Afonso tinha fundado um escritório de
importação e exportação vocacionado para o mercado dos novos países de
expressão portuguesa.
Alzira, com naturalidade, de certo
modo alívio, deu-se por satisfeita, pediu a Zé Maria:
- Filho, queres levar a rapariga
contigo lá para Lisboa? Já não preciso dela…
Zé Maria mirou, de soslaio, Berta.
Quedou-se na fixação dos membros inferiores e na esbelta figura de moça
crescida, mulher feita, apenas as maminhas se mantinham irrelevantes.
- Se quiser, levo-a comigo. Ao menos
sempre fico com alguma lembrança de Carmona. Queres ir para Lisboa, miúda?
- Sim, menino… - Respondeu Berta,
interessada na proposta, mas preocupada com o olhar concupiscente, libidinoso
de Zé Maria. De repente lhe pareceu o velho fazendeiro Silva salivado,
indecoroso, macho cobridor das fémeas negras no Negage.
Berta ganhou uma das maletas de
Alzira para levar os seus parcos haveres. A patroa ao lado de Benjamim não
necessitava de maletas usadas, nem da criada preta que os serviços sociais de
imigração exigiam integrar no mundo do trabalho com contrato legal. A preta do
Congo foi despachada para Lisboa, ou seja, foi entregue a Zé Maria, sem direito
a estorno.
Zé Maria, o primogénito de Adelino
Silva e de Alzira Amado, cidadão português nado e criado no Negage, batido na
boa-vida de Luanda, formado em negócios de enriquecimento rápido e obscuro na
África do Sul segregacionista, despediu-se da mãe; abriu a porta-bagagem do seu
BMW, fazendo sinal para que Berta lá colocasse a maleta ao lado do seu saco de
viagem. Depois de uma olhadela em redor, fez um ligeiro sinal de despedida à
progenitora e um ar de desprezo a Benjamim Floriano. Entrou no carro com a
chave de ignição em riste, acionou o motor que roncou acelerado e apressou a
menina do Uíge, entretanto, alvo de despedidas por parte de senhoras e jovens
Merugenses.
Berta acomodada no banco ao lado do
condutor que fumava, acelerava com pés de chumbo e mirava de soslaio as pernas
dela. A sua nova criada ia ali de saia curta, rodada de um castanho mais para o
avermelhado, blusinha branca e casaquito laranja, de malha vã, ponteada a
cruzamentos largos. Nos pés calçava uns sapatitos do tipo alpercata, oferecidos
por Benjamim no mercado de Seia. Ambos calados e Berta sem ganas de perguntar
seja lá o que fosse ao seu antigo/novo patrão. Olhava pelo vidro as paisagens
da região a qual aprendeu a apreciar. Aproveitava para passar em revista a sua
estadia em Meruge, as pessoas, a forma como tinha sido recebida e a evolução do
processo até àquele momento em que partia convicta que em definitivo. Gostou da
forma afectuosa de alguns na despedida, em contraponto com a inóspita recepção
a quando da sua chegada. Lembrou-se de António, o seminarista que também tinha
migrado para a capital, triste, enigmático, do qual nunca tinha tido notícias.
Imaginou-se em Lisboa, cidade da qual tinha uma ideia positiva, tendo em conta
a diversidade cultural, mesmo que proliferassem catanhós e nganas do género da
Júlia da Avenida da Igreja. Assolou-a a ideia de perguntar a Zé Maria se iam
residir na casa da mãe e do menino Afonso, mas desistiu, permanecendo no seu
mundo de mambos. Reparou que ele, repetitivamente, ferrava os olhos nas pernas
dela. Incomodou-se a menina quicongo, esticando, quanto pôde, a sua sainha com
ambas as mãos, repesa de não ter antes vestido umas calças, em Meruge, antes de
sair da casa da sua patroa.
Na verdade, ao lado do menino Zé
Maria, feito homem parecendo-lhe ter envelhecido muito desde o tempo em que ele
tinha estado de férias no Negage, sentiu-se traída, por Alzira. Então a patroa
que a arrastou da roça, não a largou no Huambo, atrelou-a a si no avião, nas
ruas de Lisboa, pô-la a dormir na arrecadação da sua casa da Avenida da Igreja,
puxou-a para a sua aldeia natal, Meruge, mostrou-a aos seus conterrâneos,
emparceirou-a nas lides do campo, sentou-a à sua mesa, franqueou-lhe uma cama
sob o mesmo tecto e, de repente, trocou-a por Benjamim, sem mais nem menos. Ali
estava ela sentada no carro veloz de Zé Maria, um homem praticamente
desconhecido, um pula daqueles que não inspiram confiança. À medida que o BMW a
distanciava de Meruge, mais apreensão lhe causava a inesperada separação de
Alzira. Fazia-lhe espécie ter sido descartada como um objecto ainda a usar. A
patroa branca nunca dera mostras de abrir mão da sua companhia até Benjamim a
resgatar de um amor de tempos idos. Em Meruge empenharam-se para que se
tornasse cidadã portuguesa. Alzira bateu a imensas portas, levou-a aos
departamentos oficiais. Quando compreendeu a impossibilidade de fazer da criada
cidadã luso-angolana, avançou mesmo para o processo de legalização de imigrante
angolana residente em Portugal, apesar da renitência em encarar Angola outra
coisa que não fosse uma mera província ultramarina, como tinha aprendido na
instrução primária e um paraíso de preguiça e boa-vida como no Uíge tinha
experienciado.
Em plena autoestrada Zé Maria começou
por espreitar as bermas e disse:
- Tenho ideia que havia por aqui um
posto de reabastecimento…
Berta não respondeu, nem era suposto
fazê-lo. Continuou a acelerar e o ponteiro do mostrador da velocidade a beijar
o traço do limite superior. A menina ia com certo receio, verificando que o
patrão conduzia a uma marcha estonteante que lhe parecia insegura. Ora guinava
para a esquerda, ora guinava para a direita, sem pejo em ultrapassar camiões,
camionetas, carros e carripanas. Sempre na frente numa correria louca,
desabrida, até que o endiabrado condutor fez pisca-pisca para a direita,
abrandou demasiado e quase derrapou para uma saída. As rodas do automóvel
rodaram sobre cascalho e estacaram mais à frente. Não havia ali nenhum posto de
abastecimento de combustível, nem nenhum café restaurante de beira da estrada.
Porém, mais adiante, existia um pequeno edifício de alvenaria de duas portas
onde Berta, graças aos ensinamentos da professora Alcina de Meruge, pôde ler
perfeitamente - Cavalheiros (ao lado um bonequinho de figura com calças), na
outra porta, ao lado – Senhoras (bonequinho desenhado de saias).
Zé Maria saiu do carro, deu dois
passos na direcção dos sanitários públicos, já com as mãos na braguilha,
virando ligeiramente a cabeça para trás, perguntou:
- Miúda, não queres mijar?
Berta permaneceu queda e muda, apenas
emitiu baixo um ligeiro muxoxo (estalido de língua), desagradada com a atitude
e a pergunta brejeira, indelicada, obscena. Zé Maria postou-se logo ali a
urinar com o líquido expelido a passar-lhe por baixo do pé direito como um
riacho, sob a ponte entre a sola e o salto do sapato. Ela, sem querer, ainda
lhe viu o gesto grotesco de sacudir o pénis com a sua própria mão, no regresso
ao BMW, só junto da porta é que terminou de correr o fecho ecler das calças de
sarja, cinzentas. Ao volante, antes de retomar a autoestrada ejectou a fita
magnética do suporte que, no gravador, transmitia sonoramente alto música
sul-africana em língua inglesa. Ligou o rádio numa estação de emissora de
anúncios e noticiários breves, destacando movimentações financeiras e cotações
nas principais bolsas de mercados nacionais e internacionais.
Mesmo a entrar na grelha de pagamento
de portagem manual, disse, em tom meramente informativo:
- Cá estamos em Lisboa: sê bem-vinda
à tua nova cidade. Se te portares bem, como eu quero, vais por cá ficar uns
tempinhos, uns tempinhos, mas é como eu mandar, à minha maneira…
Entregou um talão às mãos de uma moça
portageira, mulata, graciosa que lhe soletrou um valor numa voz mansa, suave,
aveludada. Zé Maria entregou a soma exacta, engatou o motor em primeira e
arrancou alvoroçado, fazendo chiar os travões, para, logo ali à frente, meter
uma segunda e, quase de simultâneo, uma terceira mudança de velocidade, ao
mesmo tempo que grunhia entre dentes:
- Puta de merda da cabrita, já
arranjou tachinho no Estado, havia de ser comigo, dava-lhe o emprego, ai se
dava: ia pra alterne render pra mim… - Falou assim, como se monologasse, como
se Berta não fosse ali sentada no banco do seu BMW, a seu lado.
Eis na Avenida do Aeroporto, ao
bordejar Campo Grande, Zé Maria, reduzindo velocidade, piscou com o BMW para a
esquerda, foi a ponto morto, parou no semáforo, perante o sinal vermelho,
inusitadamente disse:
- Vermelho é para parar, não é?
E tu, não andas com o chico, pois não?
Vê lá que eu não posso com o
encarnado. Nem comunas, nem lampiões, nem menstruações… Para mim é o verde, o
verde do Sporting. Ali à direita é o Estádio de José Alvalade, do Sporting, o
meu clube!
Berta ia para emitir novo muxuxo, mas
cerrou os dentes e nada disse. Ela conhecia aquele lugar, aquela ponte, a
Avenida das Linhas de Torres, o Estádio José Alvalade, o Jardim do Campo Grande
e muito mais daquela zona da cidade. Assim que acendeu luz verde Zé Maria
deixou descair o carro, afrouxando a patorra quarenta e quatro do travão,
suavemente, meteu uma primeira, depois uma segunda mudança. Guinou então à
esquerda, moderadamente, como se fosse um condutor ajuizado e seguiu em frente,
rente à portaria do Museu da Cidade, mais à frente, quase a chegar ao compus
universitário da Universidade de Lisboa, hesitou na marcha, mas seguiu em frente,
depois de ultrapassar o edifício da Biblioteca Nacional, recolhido no amplo
espaço, voltou à esquerda, subindo a Avenida Estados Unidos da América. Ia
quase a alcançar a Avenida de Roma desabafou:
- Foda-se, já me enganei outra vez…
Queria tomar a Avenida do Brasil e não consegui.
- Pode virar aqui à esquerda… -
Opinou Berta, serenamente.
- Xi, estás muito esperta, demasiado
esperta para o meu gosto, por esta não esperava, sim senhor, os meus parabéns.
E eu a pensar que levava aqui uma matumbeca de Carmona… - Foi a resposta dele, pasmado
com o sentido de orientação da menina preta do Congo em plenas ruas da cidade
de Lisboa.
Deixou a Avenida de Roma, pela faixa
direita da Avenida da Igreja, até à Igreja de São João de Brito, ainda entrou,
mas saiu de uma transversal, sem encontrar lugar de estacionamento. Novamente à
Avenida de Roma, contornando a estátua de Santo António, em busca de sítio onde
pudesse estacionar o seu BMW. Porém numa artéria assim tão movimentada e tão
pejada de transeuntes, lojas de comércio e de serviços, só conseguiu parar em
transgressão, frente ao edifício dos correios de Portugal, lugar reservado.
Desligou o motor, puxou o travão de mão, fechou o vidro da porta do automóvel,
ordenando:
- Vá, espertalhona, sai lá, traz as
malas. Não, deixa ficar o meu saco, trás só a tua maleta!
A porta do prédio estava escancarada,
entrou, seguido de Berta. Lá no patamar do apartamento, premiu a campainha da
vizinha Júlia. Ela atendeu de seguida, surpreendida por encarar Zé Maria com a
criada preta:
- Credo, senhor, para que traz essa
aí?
- Olhe, dona Júlia, venho pedir-lhe o
favor de me dar a chave, não trouxe a minha.
- Claro, sim senhor, vou já busca-la.
No interior, Zé Maria deu uma volta
pelas divisões: quartos, casa de banho, despensa, sala, cozinha e varanda.
Quedou-se frente à máquina de lavar roupa e perguntou:
- Olha lá oh rainha ginga, sabes
trabalhar bem com esta máquina?
- Sei sim, menino, eu é que fazia
isso sempre…
- E sabes selecionar bem os programas
e as cores? Não quero roupa tingida!
- Eu sei, alguma tem que ser lavada
ali naquele tanque, na varanda.
- Ah sim, é isso mesmo, aquele tanque
é bom. E tem ligação para o esgoto e até torneira: viva o luxo. Quem mandou
fazer esta obra?
- A senhora, a mãe do menino…
Bom, então vamos combinar uma coisa:
vais ficar a morar nesta casa, no quarto das minhas irmãs; lavas a roupa toda
que eu trouxer e mais a que o Afonso te entregar também; vais passa-la toda a
ferro; limpas a casa; cozinhas e comes aqui na cozinha. O fogão, como é, sabes
lidar com isto, sem fugas de gás?
- Sei, sim, menino, trabalha a
electricidade, só a água quente é que é a gás, canalizado, abre-se ali dentro
do armário.
- Bem, amanhã venho cá para ver isso
tudo e certificar-me se posso confiar em ti, agora tenho que ir, o carro está
mal estacionado.
Antes de sair, Zé Maria foi ao
telefone, marcou um número e falou: “Afonso, ouve lá, a criada fica aqui na
casa de Alvalade, trouxe-a de Meruge. A mãe não a quer lá. Vais trazer a tua
roupa para ela lavar e passar a ferro. Olha, manda fazer dois jogos de chaves,
um para mim, outro, se calhar, para entregar à dona Júlia. Ela fica com chave e
dinheiro para o que eu achar que precisa comprar. Toma atenção, meu rapaz, ela
é minha, não lhe vais tocar com um dedo, ouviste? Bom, adeus, tininho, ãh. Vê
lá se és como o pai que as comia a todas, primeiro…”
Lá fora buzinavam, foi à janela e viu
que alguém apitava reclamando pelo facto do seu BMW estar estacionado em lugar
cativo dos CTT. Correu para a saída, mas antes deu à mão de Berta alguma notas
em escudos, dizendo, sem se deter:
- Vai comprar alguma coisa para
comeres e para lavares a roupa.
Zé Maria bateu a porta e Berta ficou
especada no átrio de casa, a sua nova morada, sozinha. Por momentos sentiu-se
livre, sem mandantes à ilharga. Poderia fazer o que entendesse naquele espaço,
nem precisava de ir dormir à arrecadação, rente ao telhado do prédio, onde os
outros condóminos arrumavam tralhas, e outras coisas desnecessárias, monos que
era como se sentiu quando Alzira a colocou lá a dormir, urinar, defecar e
lavar-se. Seria a dona da casa: dormiria numa cama de casal, bom colchão, roupa
de cama; sanitários e banheira em condições, por sua conta; cozinha; sofá onde
nunca tinha sentado o traseiro – tudo à sua disposição e apenas teria de lavar roupa
no tanque e engomar, tudo a que estava acostumada. Até poderia lavar algumas
peças na máquina, por exemplo, os lençóis. Se não teria capatazes por perto e
se sabia manobrar o equipamento, nada a impediria.
Deu volta aos arrumos, às gavetas,
aos guarda-fatos, ligou o gás e o frigorífico. Contou o dinheiro que Zé Maria
lhe tinha entregado. Fez levantamento das necessidades imediatas. Foi ao quarto
de Afonso buscar um lápis de carvão e um caderno, do qual arrancou uma folha em
branco, sentando-se à mesa da cozinha começou a sua lista de compras, pela
primeira vez sem a observação de Alzira – sabão clarim, sabão azul, detergente
roupa máquina, detergente louça. Pronto, parou, aquilo seria a ferramenta de
trabalho, com ela venceria as dificuldades laborais. Pensou melhor, deu mais
uma olhadela às vassouras, ao aspirador, aos alguidares, bacias, panelas e
caixas. Acrescentou à lista uma escova para esfregar os colarinhos, tira-nódoas
para qualquer eventualidade, amaciador de roupa, lixivia e detergente lava-tudo
para o chão. Pensou que estraria melhor apetrechada com aquilo tudo. Contou
novamente o dinheiro e calculou eventualmente o preço de per si, somando tudo
no final. Considerou razoável, mesmo que Zé Maria não lhe acrescentasse a verba
nos dias seguintes. Só depois pensou na comida – teria de adquirir géneros para
cozinhar. Retirou outra folha em branco do caderno e escreveu – leite, pão,
fruta, farinha, peixe, sal, azeite e carne… Manteiga, açúcar, ovos, arroz,
esparguete e massa, cebolas, cenouras, alhos, tomate, batatas, hortaliça… Tudo
seria muito dinheiro, se faltasse, na mercearia, subtrairia algumas coisas a
rever. O merceeiro, senhor Joaquim, estava habituado a fiar-lhe por conta da
dona Alzira, não haveria problemas, pensou. Pegou no saco grande das compras
que normalmente usava para o mesmo efeito a mando de Alzira. Meteu as chaves
todas no bolso (entrada do prédio, caixa do correio e porta do apartamento, amarradas
por um cordel tosco) e saiu, descendo as escadas, quase tão feliz como era em
Tambuco, antes dos pulas lhes matarem a família e os companheiros do kimbo.
Cá em baixo, ao anoitecer de um dia
outonal, agradável, respirou e sorriu, percorreu a avenida, só depois entrou na
mercearia do senhor Joaquim.
- Menina, bons olhos a vejam, que vai
ser? – Comentou e interrogou o comerciante.
- Tenho aqui esta lista, senhor
Joaquim.
- Oh, esta letra não é da dona
Alzira… - Adiantou, o merceeiro, coscuvilheiro.
- É minha, fui eu que escrevi…
- Ei-la, ei-la, já sabes escrever,
como?
- Aprendi alguma coisa, na aldeia com
a professora, dona Alcina… Também já tenho bilhete de identidade e visto de
residência…
- Muito me contas, rapariga, temos
progressos, a dona Alzira é uma santa e ainda há quem diga mal dos retornados,
por mim não tenho razões de queixa, bem a não ser uns excomungados, mas
adiante, vamos lá aviar isto que é o que importa. E a senhora dona Alzira, está
boazinha de saúde, está?
- Sim, está boa…
Joaquim mandou Miguel, rapaz
empregado, reunir todos os produtos da lista elaborada a punho por Berta. Ela,
sempre atenta, mandou acrescentar ainda um pacote de omo para lavar tecidos,
manualmente, duas mandiocas, de fruta, pediu laranjas e maças, de peixe,
pescada e peixe vermelho, de carne, umas costeletas e carne de vaca para cozer.
Solicitou a soma total, pensou um pouco, deu mais uma olhadela pelas caixas
expostas e mandou acrescentar um pedaço de entremeada salgada, dois chouriços
de carne, uma porção de feijão manteiga avulso, três latas de atum, duas de
sardinha e feijão-frade enlatado e rematou:
- Pronto está tudo, quanto devo, se
faz favor?
- O merceeiro voltou a somar tudo de
novo e soletrou o valor total, pronto para assentar no livro de vendas a
crédito, à mão e a lápis. Lápis porque, antes de fechar a mercearia, lá iria,
como habitualmente, dar uma vista de olhos e, muitas vezes, de borracha nos
dedos, apagar o traço e o resultado final, somando outra parcela – diversos –
aí acrescentaria um valor a adicionar…
- Não é para assentar, pago agora. –
Avançou Berta de notas na ponta dos dedos.
- Vê lá, rapariga, é bastante, depois
a tua patroa cá virá fazer as continhas. Tomara eu que assim fossem todos de
boas contas como a senhora Alzirinha…
- Bem-haja, mas tenho aqui o
dinheiro.
Joaquim recebeu contrafeito, pois,
desse modo, perderia a parcela dos diversos, um dinheiro extra que lhe dava
muito jeito nos proventos finais. De saco das compras bastante pesado, porém,
quase a entrar no edifício, o bafo do frango assado tentou a menina preta do
Congo, feita senhora independente que até já escrevia e lia umas coisas. Parou
frente à montra da churrasqueira e olhou para o frango no espeto a rodar sobre
o calor do carvão. Numa banca ao lado, o funcionário esquartejava frangos
assados, douradinhos, tostadinhos, pincelava com gindungo e amontoava, em
espera de clientes que os adquirissem. Berta entrou na churrasqueira pediu um
frango, dois pacotes de batatas fritas, pagou e saiu. Subiu as escadas de dois
em dois degraus, de água na boca, com ideia de se banquetear com aquele frango
assado, um churrasco, só para si.
Sentada à mesa da cozinha comeu o seu
frango, reservando ¼ para a refeição do dia seguinte. Arrumou tudo nos devidos
lugares e pensou que, sozinha em casa, se o Zé Maria lhe desse verba
suficiente, haveria de comprar alguma roupa: cuecas, camisolas, calças, meias,
casaco e sobretudo compraria uns sapatos, na feira do relógio.
Por outro lado, haveria de cozinhar
comida da sua terra, matar saudades. Por exemplo, calulu de carne seca, muamba
de galinha, fuba, peixe seco e mufete (mufete é um prato típico da ilha de
Luanda constituído por peixe grelhado, carapau, peixe galo ou cacusso, feijão, óleo
de palma, mandioca, banana-pão, batata-doce e farinha musseque, acompanhado por
molho de cebola com vinagre, azeite doce, gindungo e uma pitada de sal), até
uma caldeirada de cabrito à angolana, tudo dependeria do orçamento e, quanto a
isso, só Zé Maria poderia proporcionar.
Ao lembrar-se de tal eventualidade,
ocorreu-lhe a ideia da contrapartida, isso atormentou-a deveras e era isso que
a apoquentava, ou seja, aquilo que Zé Maria pretenderia em troca. Se fosse
apenas lavar e engomar roupa, isso encantá-la-ia, mas a intuição dizia-lhe que
Zé Maria queria sexo, à maneira do patrão Silva no Negage. Teve vontade de
fugir dali, certamente que dificilmente a encontrariam na Lisboa metropolitana.
Se estivesse em Angola, em qualquer cidade, pequena ou grande, não teria
problemas, todos os caminhos dariam a Mbanza Congo, ao Zaire ou a outro sítio
qualquer onde acabaria por encontra refúgio e subsistência para si, agora no
puto, em Portugal, assustou-se e considerou que seria muito difícil, se calhar,
ninguém lhe deitaria a mão, ninguém a tiraria do buraco. Mais uma vez fixou-se
na memória da imagem recorrente – a do rapaz branco guerrilheiro do MPLA, em
Tambuco e nas companheiras kwanhamas que a retiraram dos escombros, conduziram
por dias e noites, pelas matas, dando-lhe das suas rações de combate furtadas à
tropa colonial, partilhando água dos seus cantis e deitando-se a seu lado nos
abrigos improvisados. Quedou-se a pensar nesses três companheiros que
caminhavam a coberto de outros que não lhe mostraram, por segurança. Não lhe
tinham feito perguntas, nem promessas. Não lhe disseram como se chamavam, nem o
que faziam, nem porque a salvaram. Só a conduziram por carreiros e trilhos, só
partilharam com ela os viveres que possuíam, só lhe mostraram atitudes de
compreensão e gestos de cumplicidade. No final quedou-se nas lucubrações da
despedida, comovente, junto de Maquela do Zombo. Como que ali na sala de Alzira,
em Lisboa, sentisse os beijos das kwanhamas e a carícia doce do moço na face.
Berta pronunciou devagarinho, sozinha, as palavras: “Vai lá, agora tenta
encontrar ajuda, mas é segredo, não fales a ninguém em nós, não digas que nos
viste, a ninguém, mesmo ninguém, qualquer dia voltaremos para saber de ti:
jura”. Sim, Berta não foi preciso jurar. Para si era um segredo que não
partilharia, fosse lá com quem fosse. Tal como o momento no aeroporto de Lisboa
em que o rapaz branco, sem se deter, lhe entregou as moedas na mão como se
fossem carícias, beijos cúmplices. Para ela, preta do Congo, sozinha num andar
de um prédio em Lisboa, o rapaz de Tambuco era o mesmo do aeroporto. Não é que
em Lisboa lhe olhasse os olhos, mas, por intuição, pela sensação epidérmica e
essencialmente pelo olfacto, as suas narinas inalaram aroma íntimo. Não tinha
dúvidas de que o moço do aeroporto cheirava a rapaz do MPLA. Os dedos que
pousaram na palma da sua mão, eram, para si, os mesmos que lhe tinham
acariciado a face em Maquela do Zombo. Berta até apostaria que era o portador
dos mesmos lábios que tão bem lhe tinham roçado na face em Maquela do Zombo.
Sozinha, dirigiu-se à sala,
sentando-se no sofá onde nunca o tinha feito, ligou a televisão que antes nunca
tinha ligado e pôs-se a ver e ouvir o que provinha do canal-um da RTP. A
primeira sensação de liberdade, pouca a pouco esvaia-se e invadia-a um pesado e
denso ostracismo. Não sabia se por hábito, solidão ou insegurança, sentia falta
de Alzira. Com a presença da patroa não temia a investida de Zé Maria, assim,
seria presa fácil para qualquer dos filhos machos dela. Sim, Berta queria
namorar, queria muito fazer amor, ser acariciada e acariciar, mas não um
daqueles marmanjos, feitos homens garanhões, cobridores de pretas do mato,
amantes inveterados de mulatas e maridos de brancas. Não queria que um daqueles
ressabiados e lascivos retornados brancos tirassem partido do seu corpo. Temia
que lhe tocassem com a vista e horrorizava-se com a eventualidade de que
roncassem de prazer à custa da sua carne. Da carne, só da carne, porque a alma
nunca lha possuiriam. A alma e o amor sincero, pungente almejava oferecer, mas
ao rapaz branco do tumulto de Tambuco e da atabalhoada chegada ao puto, em
Lisboa. A esse sim, queria oferecer os seus ósculos, os seus dedos, os seus
braços, tudo o que ele procurasse nela, sobretudo desejava parte do corpo dele
nas suas entranhas. Não só queria o moço dentro de si como partilhar tudo o que
cada um comportasse de genuíno, nobre e intrínseco, ou seja, a alma de ambos
num só sentimento, num só sussurro de prazer, loucura, exaltação, luxuria,
mansidão, bravura osmótica e idiossincrática.
Estava Berta entregue a um tão grande
exercício de memória e de exacerbação mental, tentando afugentar maus presságios
e libertar-se de fatídicas lembranças, perfumando o seu mundo com recordações
boas, positivas, quando, de repente, sentiu alguém introduzir a chave na
fechadura da porta de entrada. Assustou-se, nem pensou em ladrões, nem na
cassandra vizinha Júlia, ocorreu-lhe logo que seria Zé Maria. Estremeceu, teve
medo e ganas de se atirar janela-fora. Sabia que daquele terceiro andar cairia
morta no asfalto, hesitou, tentando acalmar-se, como quando os bombardeiros
arrasaram o seu kimbo, varrendo tudo e todos, nomeadamente a sua mãe que morreu
queimada a cozinhar o seu funje… Aproximou-se da entrada. Verificou que o
invasor não conseguia introduzir a chave no canhão da fechadura por via da sua
chave no interior. Acalmou-se, mais segura e confiante, na esperança de que o
meliante desistisse e se retirasse, no dia seguinte tentaria pensar em qualquer
situação. Entretanto, começou por escutar a voz de Afonso, sussurrante, depois
mais grave até que quase gritava por ela:
- Berta, Berta, abre a porta… Berta,
estás a ouvir? Abre essa merda!
Como autómato, robô programado,
retirou a sua chave e, vorás, Afonso meteu a sua no canhão, rodou com destreza
e, num pulo, plantou-se à sua frente.
- Menino, desculpe, não me avisaram,
fechei a porta por dentro. Assim como a senhora me ensinou…
- Pois, vim só para ver se precisas
alguma coisa, se está tudo bem. Se calhar, queres alguma coisa de mim, não
queres?
- Não, menino, o menino Zé Maria já
me deu dinheiro para comprar tudo o que é necessário, por enquanto. Já posso
lavar as roupas que me trouxerem. Engomo e dobro também. Não preciso mais nada,
bem-haja.
Berta, tentando terminar o diálogo,
rodou meia volta, dirigindo-se para a cozinha. Afonso atrás, nem lhe permitiu
acionar o botão da luz: fincou-lhe as manápulas nas ancas. A menina preta do
Congo, feita garota crescida, esbelta de membros atléticos, pele macia e carnes
maciças e turgidas, saltou longe como gazela na savana, fora do alcance do
algoz. Afonso que nem hiena traiçoeira, grunhiu de raiva, saltando sobre a
menina encurralada que nem um cão mabeco, mandibulas de crocodilo.
- Não, não, menino, não quero, por
favor, não me viole, não quero, sou virgem, não, não…
- Virgem… Tu ainda estás virgem? Mas
isso é bom, é isso que eu queria mesmo. Vou fazer-te uma festa, vou brindar-te
com a melhor defloração do universo. Caramba, já merecia isto. – Enquanto ia
disparatando, esbaforido que nem touro na lezíria, agarrava com força bruta a
menina que esperneava e clamava por perdão.
Afonso viera com o intento de
praticar sexo com Berta. Aliás, era uma ideia fixa que tinha logo que entrou
naquela casa, acompanhada da mãe. Enquanto Alzira morou em Lisboa, Afonso não
teve oportunidade de se ver a sós com a criada, quando regressou da Suíça, já
residiam ambas em Meruge.
Tinha vindo do seu estágio onde
conseguira o equivalente a grau de licenciatura em Ciências Políticas e
Comunicação, com aquela ideia pregada na tola: “desta vez não me escapas…”.
Entretanto, Madalena conseguira livra-se dele, pressionando Valdemar, o qual o
conduziu para uma relação com Micas Pinto Soares, filha solteirona, encalhada
de um dos seus colegas mandantes de partido. Ora, Micas Pinto Soares aproveitou
a deixa, sem perder tempo, carregou com Afonso para o seu belíssimo apartamento
de Oeiras e ali passaram a residir “amancebados”.
O telefonema de Zé Maria, dando-lhe
conta de que a menina do Congo se encontrava, de novo, na Avenida da Igreja,
sozinha, pôs Afonso doido naquela fixação e deitou-se logo a caminho. Acelerando
o Renault da amásia, pela estrada marginal até Alcântara, subindo a Infante
Santo, Jardim da Estrela, Álvares Cabral, Largo do Rato, Braamcamp Freire,
Rotunda do Parque Eduardo XVII, sempre em frente até ao Saldanha e daí, pelo
Arco Cego, Praça de Londres, entrando na Avenida de Roma e eis que, num
instante, postou-se à porta do apartamento familiar.
Naquela vontade desmedida, nem pensou
em estratégias para levar Berta a ceder ao seu capricho. Julgava que tudo se
passaria à moda do seu pai na roça de Carmona, era só pô-las a jeito e
introduzir o pénis a seu belo prazer e satisfazer-se da forma que melhor lhe
aprouvesse. Aliás, desde pequeno que espreitava o pai naqueles trejeitos.
Todavia, Berta não estava pelos ajustes e foi resistindo como e enquanto pôde.
Fez-se muito barulho, a vizinhança alvoroçou-se e, do lado e no andar inferior,
bateram nos muros contíguos, demonstrando incómodo com a gritaria. Júlia
telefonou para Zé Maria e disse:
- Boa noite, menino, desculpe incomodar
a esta hora…
- Boa noite, dona Júlia, passa-se
alguma coisa com a criada, aí?
- Não, não sei, menino, mas é que vai
para ali uma ladainha, acho que é a voz do menino Afonso.
- Pronto, pronto, já sei, obrigado,
muito obrigado, dona Júlia, vou já!
Zé Maria despiu o roupão, o pijama e
começa por enfiar umas calças, uma camisa, um casaco à pressa, ia já para sair,
voltou atrás para calçar uns sapatos e a sua Bety, sul-africana que só falava a
língua inglesa, perguntava e queria saber o que se passava, mas Zé Maria,
monologou em português: “não se passa nada eu já volto, i´ts oky, oky”.
Zé Maria, no seu BMW, arrancou de
Alfragide a toda a velocidade. Àquela hora de trânsito escasso, curvas em duas
rodas, cego perante os semáforos, patorra direita no acelerador, mãos firmes ao
volante, depressa estacionou na Avenida da Igreja. Esbarrou na porta do prédio,
lembrou-se então que não tinha chaves. Tocou para a vizinha Júlia, nem seria
preciso, ela estava à coca. Galgou as escadas de duas a duas, de três a três e eis
no patamar onde Júlia o aguardava, curiosa, coscuvilheira.
- Então, dona Júlia, ainda lá está?
- Sim, menino, e chave?
- Pois, não tenho…
Por momentos ambos emudeceram,
circunspectos. Zé Maria encostou a orelha esquerda à porta, virou-se e encostou
o ouvido direito e nada, lá dentro persistia o silêncio. Mais atento
pareceu-lhe que alguém espreitava através da mira, o buraquinho colocado na
porta precisamente para que se pudesse espreitar cá para as escadas e patamar.
Mais atento conseguiu ouvir o sibilar do irmão para a criada, ordenando-lhe
silêncio, “chiuiuiu”. Pouco depois de dentro vieram sons audíveis na escada que
se supunha de agarres, luta e gestos bruscos, seguindo-se um ai, ai de boca
vedada. Zé Maria explodiu:
- Afonso, Afonso: abre a porta, abre
a porta, já! Sei que estás aí, senão deito isto abaixo ou chamo já os
bombeiros!
Zé Maria ainda fez mais espalhafate,
de modo que os vizinhos se acercaram. Curiosos, fingindo-se preocupados,
perguntavam se tinha havido algum acidente com o gás ou assim. Lá dentro o
silêncio e cá fora alguém alvitrava:
- Oh meu deus, estão mortos, estão
mortos, é melhor telefonar aos sapadores bombeiros, a esta hora, só os
sapadores.
Após um bom bocado sem sinais do
interior, a chave de dentro rodou, cautelosamente, a porta ia abrir-se. Zé
Maria empurrou com força e foi lá para dentro que nem uma flecha. Para fora,
detrás da porta, saltou Afonso esbaforido, atropelou vizinhos e corria escadas
abaixo quando Zé Maria lhe caiu em cima que nem um tropeço. Zé Maria,
perseguindo o irmão lançou-se, voando sobre Afonso. Ambos caíram flagelados nas
escadas de encontro aos duros degraus de mármore. O sangue corria de ambos,
tingindo de vermelho o mármore e o estuque, o corrimão de argamassa e o capacho
do segundo andar. Era sangue da mesma proveniência, dos mesmos progenitores
colonos que no Uíge tinham feito aqueles dois filhos. Era sangue derramado do
fruto fecundado no mesmo ventre, o de Alzira, a retornada, que, em Meruge,
contente, preparava a sua viagem de núpcias com Benjamim para Chipre, paraíso
turístico. Sem saber da luta dos seus dois filhos machos, iria gozar o sol, a
praia e todo o conforto na unidade hoteleira das suas filhas. Hotéis de luxo no
Mediterrânio adquiridos com os proventos da roça de Carmona. Por isso também os
considerava seus, na qualidade de herdeira, viúva, cabeça de casal, espoliada.
A retornada com o empresário
programou uma viagem supostamente inolvidável. Compraram uma viagem de avião do
Porto para Nicósia. Aí, no complexo turístico das filhas dela, gozariam duas
semanas. Posto esse período partiriam num cruzeiro, escalando em vários portos
do Mediterrâneo, entre Sul da Europa e Norte de África, nomeadamente Sicília,
Ilhas Baleares, Marrocos, Tunísia, Malta e Sul de França. É certo que o
emigrante tinha efectuado cruzeiros semelhantes com Rominieva. No entanto,
Alzira estrear-se-ia numa aventura daquela natureza. Para o efeito, muniram-se
de passaporte e vistos consolares em nome de: Benjamim Floriano Antunes da
Silveira; Alzira da Purificação Amado. O empresário preveniu-se do seu cartão
de crédito dourado. A retornada estrear-se-ia numa viagem sem aia, ou seja,
criada preta. Para ela, Berta muito jeito lhe faria face à sua preguiça
granjeada na roça, mas Benjamim, na qualidade de empresário luso-germânico,
rejeitava serviçais à moda antiga, para ele impunham-se regras contratuais e
nada de promiscuidades familiares com funcionários.
Assim, Alzira descartou Berta,
entregando-a a Zé Maria, mas na ideia de, eventualmente, a encaixar ao serviço
das filhas, em Chipre. Iria visitar Fernanda e Susana, conhecer os genros e o
neto, sem descorar de um futuro para a sua preta do Congo.
A retornada de Meruge andava
eufórica, encantada com a sua nova vida de preguiça e de laréu. Não era mandona
ngana da roça do Negage, nem viajava para Luanda, Malange, Huambo, Benguela,
Lobito, nem Baia Farta, mas via mundo por Portugal inteiro, mesmo Açores,
Madeira, Desertas e Berlengas.
Ora, se as visitas ao arquipélago dos
Açores e às ilhas da Madeira e do Porto Santo tinham decorrido a contento, de
avião, regalada de traseiro fofo, ao lado do seu Benjamim, as travessias
marítimas às Desertas e às Berlengas traumatizaram Alzira. Era isso que a
preocupa em relação ao aprazado cruzeiro mediterrânico, o receio de vomitar
perante ondas em mar encapelado, apesar de Benjamim lhe afiançar que o mar
Mediterrânico, era chão, era uma pasmaceira, um sossego.
As Berlengas são um pequeno
arquipélago situado a cerca de 10 km ao largo de Peniche, que engloba a ilha da
Berlenga Grande e recifes associados, os Farilhões-Forcadas e as Estelas,
constituindo um pequeno paraíso rodeado de águas claras e calmas, óptimas para
mergulho. A ilha de maiores dimensões é de absoluta beleza, com formações
rochosas e chocantes e cavernas abertas e a única que pôde visitar, observando
o antigo lar de um mosteiro, mas que apenas servia de habitação a milhares de
aves marinhas nidificantes. Através de um caminho estreito, sinuoso e algo
arrepiante para os espíritos mais sensíveis, mirou o Forte de São João
Baptista, do século XVII.
As Ilhas Selvagens, fazem parte da
freguesia da Sé, concelho do Funchal, Região Autónoma da Madeira. Situam-se a
165 quilómetros a norte do arquipélago das Ilhas Canárias, a 250 quilómetros ao
sul da cidade do Funchal, a cerca de 250 quilómetros a oeste da costa africana.
O mar alteroso deitou Alzira por terra de tão enjoada, nem teve oportunidade de
tirar partido das paisagens, ficou de cama dois dias. Pior só aquando da sua
viajam primeira para Angola, no navio Vera Cruz.
Entretanto, Berta, sozinha na casa da
Avenida da Igreja, fechou a porta e, da janela, viu chegar e partir uma
ambulância dos bombeiros socorrista com Afonso e Zé Maria feridos, buzinando de
sirena. Atónita, infeliz, humilhada deitou-se na cama que fora de Fernanda e de
Susana. Quis dormir, mas a borrasca daquela noite deixou-a sem sono, sem tino,
sem horizonte, pelo que pasmou deitada até que adormeceu, acordou atormentada e
voltou a adormecer dorida e ferida em todo o seu ser existencial.
Na manhã seguinte não tinha vontade,
nem alento para se levantar dos lençóis amarrotado e sujos por uma luta havida.
As roupas, os móveis, as paredes e os objectos naquela casa tinham testemunhado
uma batalha tremenda entre dois indivíduos, porém, aos olhos dela, permaneciam
como se nada se tivesse passado, iguais, inertes, indiferentes ao seu
desespero.
Nenhum vizinho veio a seu auxílio,
nem quiseram saber do seu estado, a campainha não tocou mais desde que os gladiadores
se confrontaram escadas abaixo. Recolheram-se desde que a ambulância os levou
amachucados. Ela também estava a sangrar de alma rasgada. Já não vertia uma
lágrima dos seus olhos cansados, já não sentia ânimo, nem forças, mas sabia que
teria de prosseguir. Por isso ergueu-se, sem fazer caso dos lençóis
amarrotados, das cadeiras e outros apetrechos desalinhados. Um nó no estômago
não lhe permitia comer e uma dor imensa no coração não a deixava sonhar.
Na casa de banho, recusou olhar o seu
próprio corpo, apenas se espreito pelo espelho, achando que já não era a mesma,
o mesmo rosto, os mesmos lábios, nem os mesmos cabelos encarapinhados e os
olhos pareceram-lhe sem brilho, baços, sem vivacidade. Recusou saber se tinha
ou não sido desflorada, a dor que sentia vinha-lhe de dentro.
Calçou-se e vestiu-se de qualquer
maneira, só sabia que não estava nua e saiu, descendo as escadas, sem pressa,
sem agilidade, nem destino. Cá fora o sol incomodou-a, cerrou os olhos por
momentos, soergueu-os novamente e caminhou avenida a adiante, até a um banco de
pedra no largo, defronte da igreja São João de Brito e sentou-se, devagar. Até
ali chegar não tinha reparado em ninguém, nem em nada. O seu apurado olfacto
não lhe tinha dado sinal do frango no especto. Devagar foi se refazendo, só
então reparou, que a seu lado, no banco de jardim, alguém tinha largado um
jornal. Fixou a vista no título do jornal dobrado e leu: “O Diário
Fim-de-semana”. Não lhe interessava o dia da semana, o mês do ano, nem a época
datada. Berta já nem em Angola pensava, nem no guerrilheiro improvável das
matas de Mbanz Congo. Só sentia desalento, frustração e desprimor por Portugal,
os pulas que a tinham arrancado do seu torrão natal e feito prisioneira das
suas próprias inabilidades, ao ponto de ter acreditado em Alzira. A criada
preta do Congo, afinal era apenas, no seu julgamento, na análise do seu
processo de vida e de relações, uma incauta solitária, imensamente só e
indefesa mulher africana na selva branca de Lisboa intercultural e mestiça.
Voltou a pousar a vista no jornal,
pensando – pelo menos, graças aos pulas aprendi a ler. Pegou no jornal, folheando
de folha em folha. Parou no suplemento, reparou em diferentes artigos relativos
a Angola, pôs-se a ler, soletrando, baixinho, lábios de menina magoada, quase
cerrados, lindos, carnudos: “MEMÓRIA DE ANGOLA – Emanuel Teixeira
(…) A mulher portuguesa na colonização de
Angola
Predominante machista, a sociedade
portuguesa e seus escribas, pouco ou nada escreveram acerca da mulher
portuguesa e do seu papel nas colónias.
No período compreendido entre 1575 e
1592, estima-se que tenham desembarcado em Angola, cerca de 2340 portugueses.
Destes, 300 permaneceram em Luanda em 1592, outros 450 faleceram vítimas de
guerras e enfermidades diversas, já que o europeu não estava acostumado ao
clima africano e as doenças causavam muitas mortes, e os restantes fixaram-se
no interior do território.
A crónica falta de mulheres brancas
na colónia, descrita como bastante significativa, levava muitos homens brancos
a relacionamentos com mulheres negras, que dificilmente eram oficializados na
igreja, e a rigidez da legislação portuguesa também não facilitava, o que
resultava em concubinatos, alguns passageiros, outros duradouros.
Facto é que ao longo do século XVIII,
Luanda, Benguela e Massangano eram regiões de grande mestiçagem, com uma
considerável população euro-africana. E sendo reduzida quantidade de mulheres
europeias, deu origem, por esse motivo e largos anos, ao conhecido “amasiamento”
que o homem europeu fazia com a mulher africana, e desejado pelas autoridades
da Metrópole, que sentiam necessidade de verem povoados os territórios
ocupados. Com a mestiçagem, nova elite formou-se, de indivíduos que gozavam de
alguma relevância no panorama económico e cultural angolano. Certo é que
Portugal durante muitos anos não teve interesse em colonizar o território, mas
sim encontrar riquezas minerais, de que é referencia, as minas de prata de
Cambambe e as minas de cobre do Sumbe Ambela, e mais tarde ainda, interessados
na exportação de mão-de-obra escrava para São Tomé, Europa e Brasil.
De quando em quando eram enviadas
para Angola grupos de jovens mulheres, chamadas de Órfãs d’el Rei, protegidas
por este e que pertenciam ao Recolhimento das Órfãs Honradas da Cidade de
Lisboa, instituição fundada por D. João III em 1543. O objetivo era contraírem
matrimonio e com isso disseminarem a raça branca. Jovens sem vontade própria,
manipuladas pela família, que iam ao encontro do desconhecido, para ficarem com
aquele que seria o companheiro para o resto dos seus dias, sem opção de
escolha.
Na década dos anos 30, Luanda ainda
não tinha uma Maternidade, serviço essencial para apoio às mulheres
parturientes, que preferiam dar à luz em casa, do que no hospital Maria Pia.
Ainda na década de 40 os partos domiciliares eram em maior número que os
hospitalares. Data do ano 1947 a inauguração do edifício que receberia o nome
de Maternidade Maria do Carmo Vieira Machado. Ainda assim por largos anos,
preferiam dar à luz em casa, contratando uma mulher parteira que chegava
carregando consigo a habilidade das mãos, precisando somente de água quente,
panos limpos e tesoura para cortar o cordão umbilical.
Ainda na década de 40 e finda a II
guerra mundial, ainda era muito usado o casamento por procuração, ajustados
pelas famílias, pelo casal que já se conhecia, ou por anúncios nos jornais da
Metrópole. Finda a cerimónia do casamento, onde o noivo ausente se fazia
representar, por um amigo ou familiar, com a procuração em mãos, a noiva
embarcava em um dos navios da Companhia Nacional ou Colonial de Navegação,
acerca das quais, muitas histórias se contavam em Luanda naqueles dias, algumas
verídicas, outras não, de se envolverem durante a viagem com algum tripulante
ou passageiro ou da decepção que tiveram ao desembarcar, vendo que a foto do
indivíduo com quem tinham casado, nada tinha a ver com o individuo que se
apresentava.
Nas décadas de 50 e 60, com o aumento
da emigração portuguesa para Angola esta reflectiu-se também no aumento de
mulheres, que noticiavam de maior amplitude no sul do território. Por esses dias
dizia-se que funcionários públicos solteiros solicitavam transferência para Moçâmedes,
porque ali a população feminina era maior que a masculina. Contudo a chegada
dos militares vindos da Metrópole o quadro piorou, pois passou a haver competitividade
entre os civis solteiros e os militares que, nos primeiros anos, eram
preferidos pelas meninas, quadro que demorou a reverter-se.
Importa referir que, em 14 de
Fevereiro de 1884, o Governo Civil de Braga, fez publicar um Edital em que o
Governo português comunicava uma migração para o sul de Angola, em que se
responsabilizava por todas as despesas de viagem, fornecimento de alfaias,
terras, etc. O destino seria o Distrito de Moçâmedes, mas poucos interessados
apareceram, sendo solucionado no Distrito do Funchal com 200 inscritos e vários
clandestinos esquálidos e famintos, homens, mulheres e crianças, embarcados no
vapor (Índia) que a 19 de Novembro de 1884 fundeia na Baía de Moçâmedes
desembarcando (A primeira Colonia de Madeirenses).
Meses mais tarde, a 19 de Junho de
1885, o barco de guerra “África” desembarca na mesma baía outra leva de 336
emigrantes, em maior número de mulheres, todos provenientes da Madeira, dando
origem à “Segunda Colónia de Madeirenses, que vieram a instalar-se na região da
Humpata /Huila.
Houve também a participação de
mulheres degredadas no processo de colonização. Outras acompanharam os maridos
militares, deslocados para regiões inóspitas com poucos recursos. Ainda outras,
como muitos de nós conhecemos nas andanças pelo interior, distantes das
povoações, dando apoio aos maridos, dedicados ao comércio junto de aldeias
indígenas.
A mulher portuguesa mostrou ainda
abnegação, coragem e valentia no Norte da Angola no alvorecer de 15 de Março de
1961, e seguintes, quando a violência irrompeu de modo bárbaro, promovendo o
massacre ou orgia de sangue de populações brancas e negras, no que se chamou
Zona Sublevada do Norte, que ultrapassou em ferocidade tudo quanto é lícito
supor. Colunas armadas foram montadas para socorrer e resgatar populações
civis, mas mulheres sobreviventes, muitas delas, recusaram-se a serem evacuadas
preferindo ficar ao lado dos maridos, querendo também pegar em armas.
Mais uma vez a mulher portuguesa (da
estirpe de Maria da Fonte) aparece neste cenário inóspito da colonização de
Angola onde, enfrentando muitas dificuldades ao lado dos seus, deu a sua
contribuição no engrandecimento do território tanto no litoral como no
interior, onde, anteriormente se fez referência, o europeu não estava
acostumado ao clima africano e as doenças causavam muitas mortes.”
“LUANDA ENQUANTO LUGAR DE MEMÓRIA
(uma volta pela cidade alta dos anos
50)
Se diz que a Cidade Alta fazia parte
do morro, a partir da Fortaleza de S. Miguel, pela Praia do Bispo até às
Sambas, grande e pequena, e de outros morros, que se alongavam por Belas, na
direcção do Quanza e que a crista do morro é plana, com excepção do trecho da
Calçada de S. Miguel, que apresenta um pequeno declive no sentido da Esplanada
do mesmo nome.
Assim sendo, saindo do Hospital D.
Maria Pia (1865-1883) onde antes havia existido o Convento de S. José (1604),
de frente para a Avenida Álvaro Ferreira, entrava-se a esquerda na Rua da
Misericórdia, e do mesmo lado víamos o Quartel-general que, em meados dos anos
50 ainda detinha a sentinela indígena de guarda e com o tradicional barrete
vermelho em forma de cone, chamado cofió.
Desde este Quartel, atravessando duas
ruas havia o prédio da Mocidade Portuguesa junto à Avenida Álvaro Ferreira. O
terreno livre anexo ao prédio serviu de palco a muitas concentrações da MP
masculina e feminina. Dependendo do evento compareciam a Mocidade Portuguesa,
Polícia de Segurança Pública e Militares acompanhados também pelo toque dos
tambores, corneteiros, estandartes e militares desfilando numa cadência
impecável. As procissões anuais do corpo de Deus eram emocionantes e a presença
de civis de todas as raças era marcante.
Continuando a nossa esquerda, no
sentido do Palácio do Governo, passava-se ao lado da casa do poeta e escritor
Tomaz Vieira da Cruz, onde muitas vezes era visto sentado perto da janela,
escrevendo. Mais uns passos e do lado direito, o Miradouro, que nos permitia
ver o Parque Heróis de Chaves local de encontro de namorados e de lazer de famílias,
acompanhados dos filhos, principalmente aos Domingos.
No quarteirão compreendido entre o
Miradouro e o Asilo D. Pedro V, do lado direito, as casas eram de construção
mais moderna com quintais bem tratados e ajardinados, em contraste com os
prédios antigos do lado esquerdo que não tinham quintais e as fachadas
implantadas no limite interno do passeio. Chegados ao Asilo D. Pedro V, lugar
de órfãos, entregues aos cuidados desta Instituição gerido por religiosas, era
normal, aos Domingos, as alunas internas do Asilo, acompanhadas pelas
religiosas passearem pela Cidade Alta de modo ordenado, onde por vezes, uma ou
outra, eram acompanhadas pelo pretendente, sempre debaixo do olhar vigilante
das madres. Lateralmente ao Asilo, um largo dava acesso à Escola José Anchieta
de um lado, e do outro, a instalações militares onde funcionava a Companhia de
Comandos e Serviços e local de acesso à Rua do Casuno e Rua do Sol.
Ainda na Rua da Misericórdia
passava-se em frente à Igreja do mesmo nome (1576) até ao Largo de Salvador
Correia, com a estátua defronte da Igreja dos Jesuítas (1593), Torre do
relógio, Palácio Episcopal, anexo ao Palácio do Governo Geral e ao lado, o
Jardim da Cidade Alta, bastante frequentado nos finais de semana, arborizado e
agradável, com um coreto onde de vez em quando se escutava uma banda tocar.
O Jardim da Cidade Alta, criado na sequência
da demolição do Hospício de Santo António (1768) abrangia o Largo do Palácio e
envolvente e o miradouro do lado direito proporcionava excelente vista para a
Baía, Coqueiros e Fortaleza de S. Miguel. Aqui se concentravam os “borlistas”,
não só no Miradouro descrito, como no terreno da encosta adjacente, nas
extensas barrocas na zona do Estádio dos Coqueiros, para assistirem aos jogos
de futebol, ou sessões de Luta Livre promovidas pelo Lobo da Costa, sem nada
pagarem.
Do Palácio do Governo, entrava-se na
Rua Diogo Cão, sentido Fortaleza, e do lado esquerdo passava-se pela Escola de
Quadros Militares, que funcionou ao lado do Palácio, onde havia grande
concentração de sobrados antigos, que nos transportavam possivelmente para o
século XVIII. Adiante descortinava-se a torre do Observatório Meteorológico
João Capelo, que era da antiga Igreja de Nº Sr.ª da Conceição ou Sé Velha que
desabou em 1818. Depois o Consulado americano, onde se conseguiam revistas
muito ilustradas sobre os Estados Unidos. Depois do Beco do Balão, a Calçada
Baltazar de Aragão onde, anos mais tarde, em 1957, para evitar e reprimir
movimentos de oposição ao regime, se instala a PIDE (posterior DGS), via em
declive que desemboca na Rua Ferreira de Almeida que passava ao lado do Estádio
Municipal. Mais adiante a pequena ponte sobre a Rua de D. Francisco de Sover
que dava acesso, da Rua de Duarte Lopes à Praia do Bispo. A Rua de Diogo Cão
termina na ponte dando início à Calçada de S. Miguel em declive. Do lado
esquerdo, após a ponte havia apenas casas térreas antigas com cobertura de
telhas de cerâmica, tipo colonial, e finalmente chegávamos a Fortaleza de S.
Miguel e a Esplanada de São Miguel. O acesso ao interior desta fazia-se por
porta fortificada, em arco de volta perfeita, sobre pilastras, e encimado por
espaldar de cantaria com brasão de Portugal. Um arruamento contornava toda a
edificação e desfruta-se ampla vista sobre a cidade e a ilha de Luanda. Ao
longo do arruamento a iluminação era feita por antigos postes de ferro fundido.
A história refere que a 15 de Setembro de 1876, data a portaria que criava o
Depósito de Degredados de Angola, e que o mesmo se estabelece na fortaleza, mas
somente em 1881 começa a funcionar, ali se edificando um edifício de dois
pisos. No século XX, com a extinção do Depósito de Degredados, por Portaria de
8 de Setembro de 1938 a Fortaleza é classificada como Monumento Nacional e
nesta se instala o Museu de Angola. Em 1961 o acervo do museu é retirado por
completo e a fortaleza volta a assumir funções militares, nela ficado sediado o
Comando-Chefe das Forças Militares Portuguesas. Fiquemos por aqui.”
“Obrigatório Ler”
“Cristina Roldão é socióloga e
organizadora. Nossa história é cheia de lacunas e silêncios, diz ela. Se você cresceu
negro aqui, terá crescido procurando maneiras de preencher os espaços. Estamos
constantemente tendo que reconstruir essas histórias porque o trabalho das
gerações anteriores foi sistematicamente apagado e silenciado. Precisamos de
âncoras.
O novo memorial não é apenas uma
denúncia dos crimes do passado, mas também aponta um esforço para reconhecer e
homenagear aqueles que o viveram - uma história que tem sido muito
negligenciada.
Não devemos nos permitir cair na amnésia histórica, diz Kia Henda. Além do tráfico de
milhões de escravos da África para as Américas através da Passagem Média do
Oceano Atlântico, menos atenção tem sido dada aos milhares de africanos que
foram levados para a Europa e lá permaneceram, forjando uma sociedade muito
mais diversa do que costuma ser reconhecido.
Chegando do Togo há seis anos, Naky
Gaglo ficou surpreso com o pouco reconhecimento público do papel de Portugal no
comércio de escravos - especialmente devido ao impacto que ele sabia que teve em
países como sua própria terra-natal. Simplesmente
não é discutido no mainstream. Há um grande problema aqui com a forma como a
história é ensinada nos livros escolares. Resolvi então fazer minha própria
pesquisa e acabei criando um tour a pé. É uma forma de lembrar que esta história
dos portugueses em relação aos africanos não pode ser apagada.
Atendendo a turistas estrangeiros -
principalmente brasileiros, norte-americanos e europeus - o passeio de Gaglo
começa no centro da Praça do Comércio de Lisboa, o principal porto de Portugal
dos séculos 15 ao 19, agora uma armadilha turística icónica.
No limite da praça, o Lisbon Story
Centre, com a sua sala que aqui simula o terramoto de 1755, e o museu da
história do bacalhau do Bacalhau - nenhum dos quais faz referência ao tráfico
de escravos - estão ambos desertos. Gaglo está de costas para o rio, o portal
para as fabulosas riquezas que a era da
exploração trouxe; entre eles ouro, especiarias, açúcar e gente, muitos
apenas crianças.
A partir daqui, no seu percurso,
começa a caminhar-nos em direcção ao centro da cidade, recordando: Nos anos 1400, os portugueses viajaram para
África e começaram a traficar escravos. Como Lisboa se tornou o epicentro do
tráfico de escravos, muitos africanos acabaram morando e trabalhando aqui, na
cidade, a maioria no trabalho doméstico nas casas das elites e outros na
agricultura.
Em meados do século 16, os africanos
faziam parte de quase todas as áreas da vida portuguesa e cerca de 10.000
africanos viviam em Lisboa, representando 10 por cento da população. Foi a primeira cidade europeia com grande
concentração de negros, explica Gaglo, passeando pelo ainda resplandecente
centro de Lisboa. Principalmente a vida
na cidade para os africanos era trabalho, trabalho, trabalho.
Eram empregadas domésticas, cuidavam de crianças na cidade, forneciam
água para as casas, os homens trabalhavam descarregando navios, na construção.
Aos escravos foi negada uma vida familiar, porque na maioria homens e
mulheres pertenceriam a donos diferentes, que não os deixaram sair para se casar.
Nem toda a população africana de
Lisboa foi escravizada, aponta Gaglo. Havia
também uma área chamada Mocambo onde havia vários homens e mulheres libertos ou
condicionalmente livres, que tinham uma vida muito diferente - embora ainda
assim não fosse fácil, acrescenta. Rua a rua, Gaglo relembra as durezas e
nuances da vida negra em Portugal ao longo de vários séculos: Ao caminhar um pouco nas suas pegadas,
lembramo-nos do seu sofrimento e da vida que levaram.
Irmandades católicas
A cidade que Gaglo retrata em suas
viagens não existe mais; foi quase totalmente destruída no terremoto de 1755
que custou cerca de 50.000 vidas. Seis anos depois, em 1761, Portugal aboliu a
escravidão no continente. Existem poucos vestígios da presença negra que
antecederam essas bacias hidrográficas históricas de Lisboa, e muitos arquivos
cruciais foram perdidos na época. No entanto, Gaglo acredita que “ainda há
muito a ser descoberto” pelos historiadores - incluindo ele mesmo.
Qual é o papel do memorial nisso?
Para Gaglo: É apenas um passo...
Precisamos chegar a um ponto em que possamos falar sobre a história da
escravidão sem medo, mas isso ainda é difícil. O currículo, a forma como
falamos do passado aqui e o entendemos - todo o discurso sobre a história
portuguesa - tem de mudar.
Às portas da igreja de São Domingos,
Gaglo invoca as memórias das irmandades católicas negras que desempenharam um
papel complexo e até subversivo na sociedade portuguesa escravizada do século
XVI.
As igrejas católicas em todo o país
tinham cultos cujos membros eram uma mistura de homens e mulheres escravos e
livres, devotados ao culto de santos específicos como Nossa Senhora do Rosário.
A conversão dos africanos ao
catolicismo foi um pilar da escravidão, e a Igreja incentivou o surgimento
dessas irmandades - sem saber que, sob o pretexto de símbolos e rituais
católicos, outros deuses continuaram a ser adorados, como também acontecia em
outras sociedades de escravos como Brasil e Cuba.
Crucialmente, no entanto, essas
irmandades também ofereciam uma vida social e apoio aos que eram marginalizados
da sociedade em quase todas as outras formas. A fraternidade pode-te ajudar financeiramente, com problemas de saúde,
com assistência jurídica... Eram espaços que ofereciam proteções e certos
privilégios aos negros, explica Gaglo, mas
não podemos esquecer que eles também buscavam reforçar a dominação e subjugação
dos Africanos.
Eles também se tornaram uma forma de
resistir.
As irmandades estavam entre os
primeiros agitadores organizados contra a escravidão e frequentemente
arrecadavam fundos entre si para comprar a liberdade dos membros escravizados.
A saga de Mendonça
A história dessas irmandades também é
central para o trabalho de José Lingna Nafafé, antropólogo e historiador da
Universidade de Bristol, no Reino Unido. Nafafé traça a história de um
abolicionista angolano do século XVII que atendia pelo nome português de
Lourenço da Silva Mendonça. Príncipe do Reino do Congo do Ndongo (na atual
Angola), Lourenço foi exilado do Ndongo por declarar guerra aos invasores
portugueses e enviado ao Brasil em 1671.
Como exilado político da coroa
portuguesa, Mendonça viveu uma vida relativamente privilegiada na Bahia, o
estado nordestino do Brasil onde os portugueses introduziram as plantações de
cana-de-açúcar e trouxeram um grande número de escravos africanos para
trabalhar nelas. Mas enquanto ele estava lá, de acordo com Lingna Nafafé, os
portugueses temiam que Mendonça pudesse fugir para o Quilombo (cidade livre) de
Palmares, uma enorme comunidade quilombola de pessoas que escaparam da
escravidão, criada pelo lendário Zumbi dos Palmares, um homem que havia
escapado da escravidão anos antes. Foi dirigido de acordo com as suas próprias
leis e normas culturais e levantou resistência armada contra os portugueses que
os tentaram recapturar.
As autoridades temiam que Mendonça fugisse e se juntasse a Palmares, diz Nafafé, um animado contador de
histórias - mesmo com Zoom - em suas paredes cobertas de fotos de seu próximo
livro sobre Mendonça. Então, eles
mandaram ele e sua família embora novamente, desta vez para Portugal em 1673.
Se o movimento pretendia subjugar as
atividades antiportuguesas de Mendonça, ele falhou. Foi na Europa que Mendonça
deixaria sua marca como abolicionista - uma trajectória que Nafafé construiu
meticulosamente a partir de documentos encontrados em arquivos empoeirados de
todo o continente.
Após vários anos de estudo em um
mosteiro em Portugal, Mendoça foi nomeado defensor das Irmandades Negras. É
então, segundo Nafafé, que os registros mostram que ele havia começado a
trabalhar em uma petição contra a escravidão. Usando sua posição, ele conseguiu
o apoio das Irmandades Negras em toda a Península Ibérica, que pressionaram o
Vaticano escrevendo cartas que instavam o Papa Inocêncio XI a abolir a
escravidão no Atlântico. O papa Inocêncio XI, que deteve o título de 1676 a
1689, de fato condenou o comércio de escravos. Com o poder na Europa dividido
na época entre a Coroa e a Igreja, o Vaticano tinha enorme poder e influência
sobre o destino dos escravos.
Nunca foi estabelecido pelos historiadores que Mendonça era um africano,
o que é realmente incrível - que nos anos 1600 você tinha esse africano que
viajou por toda a Europa para mobilizar um movimento ativista pela libertação
não só dos negros africanos, mas também dos povos indígenas nas Américas, diz Nafafé.
Em 1684, Mendonça foi ao Vaticano,
onde acusou as nações envolvidas no tráfico transatlântico de escravos de
crimes contra a humanidade. O que descobri
é que não se tratava apenas de uma petição, mas de um processo judicial,
conduzido por negros africanos e apoiado por uma solidariedade internacional
altamente organizada, explica Nafafé. As
pessoas sempre pensam que o movimento abolicionista legal começou na
Grã-Bretanha, no final do século 18, mas Mendonça realmente nos obriga a rever
nossas posições sobre isso.
Protagonistas de suas próprias
histórias
Originário da ex-colônia portuguesa
da Guiné-Bissau e um dos poucos estudiosos africanos trabalhando no início da
história moderna, as descobertas de Nafafé parecem reforçar os apelos para descolonizar a história e para que novas
perspectivas sejam reveladas em velhas histórias.
Gosto de pensar que as futuras gerações de jovens de 16 anos, que procuram
a biblioteca para conhecer a sua história, possam encontrar algumas referências
positivas, diz
Cristina Roldão, que também sente que há muito trabalho a fazer na forma como
os africanos e afrodescendentes têm sido retratados na história portuguesa. Não apenas que eles possam ser descendentes
de escravos, de pessoas que foram colonizadas, ou histórias sobre pessoas que
vivem em bairros pobres - mas que eles podem encontrar um tipo diferente de
narrativa, em que os negros são os protagonistas de suas próprias histórias,
onde falamos sobre como eles viveram e resistiram. Isso é importante para a
população negra hoje - mas é tão importante para todos em Portugal que a
verdade e a complexidade desta história sejam restauradas.
A própria Roldão começou recentemente
a pesquisar as histórias das mulheres negras em Portugal desde o século XVI: Senti-me atraída por estas histórias,
afirma. Queria saber como era a vida
dessas mulheres; quem eram eles? Adoro imaginar onde eles se conheceram, sobre
o que conversaram... Quero descobrir uma história que está envolta em silêncio.
A pesquisa de Roldão tece os fios
entre as vidas de lavadeiras e vendedoras de comida de rua, até as “Rainhas do
Kongo” - uma posição cerimonial dentro das irmandades católicas negras, nomeada
e coroada todos os anos durante as festividades.
Havia toda uma complexidade da vida das mulheres dentro da sociedade
escravista da qual nunca se fala, diz ela. Por volta de
1700, por exemplo, há uma carta escrita por mulheres negras vendedoras
ambulantes que vendiam suas mercadorias na escadaria de um hospital, reclamando
de serem maltratadas pela polícia local, e elas dizem que têm o direito de
estar lá porque é lá que ela sempre foi, desde tempos imemoriais. Ver esse
documento pessoalmente, para mim, como uma criança pós-colonial, é simplesmente...
Incrível. Ou, por exemplo, quando você começa a procurar as rainhas cerimoniais
do Kongo, por exemplo, você as encontra no Brasil e em outros países
latino-americanos também, na diáspora [africana]. Essa busca, pela história
negra no feminino, não é apenas interessante, é...deliciosa.
Questões desafiadoras param Portugal
hoje. Roldão trabalhou na educação; Lecciona numa universidade e, no passado,
liderou investigações que mostram que os alunos de origem africana em Portugal
têm maior probabilidade de reprovação nos anos lectivos, de abandono escolar e
são mais frequentemente encaminhados para cursos profissionais do que para o
ensino superior.
Ela também é uma participante
vociferante da campanha para fazer com que o Estado português colete dados
sobre raça e etnia - o que é ilegal, nos termos da atual Constituição
portuguesa.
Destinada a remediar o racismo
explícito da ditadura colonial portuguesa derrubada em 1974, esta cláusula da
constituição tornou-se um grande obstáculo para os movimentos antirracistas em
Portugal porque significa que não há informações sobre o número de população de
minorias étnicas em Portugal. A ausência de dados tornou difícil para os
ativistas defenderem mais investimentos em serviços públicos para
afrodescendentes e outras comunidades racializadas, ou para provar a existência
de preconceito racial e desigualdade estrutural, para os quais há muitas
evidências anedóticas.”
PEQUENO DICIONARIO
QUIMBUNDO/PORTUGUES
Se utiliza a grafia da Planta
Topográfica de parte da Cidade de S. Paulo de Assumpção, chamada a Praya,
pertencente á Freg.ª de N. S.ª dos Remédios, de 1755.
Bungo - a palavra significaria
primitivamente o lugar onde se faziam os despejos da cidade.
Cassimas – covas a que chamam
cassimas
Embondeiro – “quimb. Mbondo (…) der.
De –bonda matar‟, em alusão à preferência dos feiticeiros por esta árvore nos
seus trabalhos macabros”
Kafaku – lugar arenoso, antigo bairro
na cidade de Luanda (na Engombota)
Kakibándu – pequeno balaio ou
peneira. Joeira
Kakusu – perca
Kalemba – violenta agitação do mar,
marulho, tempestade, alterosas vagas que, com estrondo, se vão quebrar à praia.
Kansandama – Morro que fica a NE da
cidade de Luanda, vulgarmente chamado das lagostas, onde se encontra edificada
a fortaleza de S. Pedro da Barra.
Kapaxi – sujeito ao sofrimento.
Angustiado, oprimido.
Kapónda – cinta estreita e curta.
Antigo bairro da cidade de Luanda, onde é hoje o mercado municipal
Káputu – govêrno ou autoridade
portuguesa. Português. De Portugal.
Kasekele – arenoso, povoação em
Quifangondo (rio Bengo)
Kásoso- Argueiro. Centelha, fagulha.
Katari, nome indígena que significa
Lugar de suplício; pelourinho, lugar de suplício, antigo bairro
Katomba – charneca, antigo bairro,
depois Largo de Cadornega
Kibándu –cicatriz, bairro onde está o
cine-teatro
Kikongo- língua do Congo; Planta fam.
das sinteráceas, de madeira olerosa e propriedades medicinais, sândalo
Kinanga- Largo; Praça; fig. Mercado;
Feira
Kipáka- redil, curral. Trincheira.
Barreira. Tapume
Kisibu, actualmente Kixibu, daí o
aportuguesamento cacimbo, estação do ano em que não chove e baixa a temperatura
Kinaxixe- Tremendal; pântano; charco.
Poça formada de água das chuvas
Kixima, ixima- poço, poços
Kurimba – confusão, complicação
Maculusso- Kimbundização da palavra
portuguesa cruzes, que significa cruzes em kimbundo
Makulusu – cruzes, local em que se
enterravam os mortos.
Massangano ou Massanganu, palavra
Mbundu, que significa junção, confluência,
lugar onde dois rios se juntam num só, província de Luanda compreendida
na língua de terra formada pelos rios Lucala e Quanza, na margem direita deste
rio o primeiro presídio (1583) fundado por Paulo Dias de Novais a 40 léguas de
Luanda.
Mazuika – antigo bairro, traseiro à
Igreja do Carmo
Mbánze - Tempo de Verão. Estio. Fig.
Calor
Mbungu-(…) antigo bairro da cidade de
Luanda (na Engombota); Planta gramínea exótica fam. das bambusáceas, cuja haste
é uma cana alta e grossa. Bambú
Miânga- candeias; luzes
Mulundu- serra, montanha, morro, (…)
penedo; rocha
Múseke- areia grossa; terra saibrosa
Musseque -originalmente, quer dizer,
em Kimbundo, areia vermelha, mais tarde, significa bairros de cubatas para onde
é escorraçada a população africana na periferia da cidade.
Mutamba- cação, peixe, tamarindeiro,
antigo bairro e mercado ao fundo da Igreja do Carmo. Mutamba em Kimbundo significa tb árvore.
Muxiluanda- que deixa de pagar
imposto, aduana, tributo. Nome dado ao natural de qualquer das ilhas adjacentes
à cidade de Luanda. Foi dado após a cessão da ilha então pertença do Ngola, ao
rei do Congo socorrido pelos portugueses capitaneados por Francisco de Gouveia
em 1570, da invasão e ocupação que durante 12 anos sofrera dos ngolas, que o
indígena deixou de pagar o imposto aduaneiro pela exportação de njimbu, por ele
pescado, para aquele reino, onde circulava como moeda (dinheiro).
Muxima- coração; íntimo; consciência;
fig. Regaço, colo.
Ndânji- espaço ocupado por uma
corrente de água, córrego, leito do rio; rio seco.
Ndânji ia loza - rua larga e arenosa.
Rua N‟ Dange ia Rosa – Em quimbundo significa rua larga e arenosa.
Ndongo- antiga residência do Ngola
(D. João Hari) vencido em 1671 por Luís Lopes de Sequeira
Ngôla – nome do rei do Dongo, dado ao
território que compreende a mais vasta e rica província de Angola
Ngombota- lugar onde se acoitavam os
escravos foragidos, moradia ou refúgio de gente má. Bairro da cidade de Luanda,
na encosta fronteiriça à Igreja do Carmo.
Nguengue - Ave conirostra de plumagem
vistosa e rabo comprido. Cardial. Fig. Pessoa de boas maneiras, boa alma.
Pessoa magnânima, de grande influência. Magnate.
Pombeiro – cruzamento do quimb. pombe
«mensageiro» com o quimb. pombo «espião» já que o indivíduo se embrenhava pelo
interior de África para trazer informações ou pessoas ao traficante de escravos
Púmbu – Pousada
Pumbo – Feira
Samba – charneca, savana
Samgamdombe – sang‟a-ndombe – antigo
bairro nas traseiras do edifício das obras públicas e onde se fabricavam bilhas
de barro preto (masanga ma ndombe)
Sanzala – povoado
“(…)
Quando pensamos em grandes inventores, geralmente os primeiros nomes que nos
vêm à mente são de pessoas brancas. Lembramos de inventores como Thomas Edison,
o criador da lâmpada elétrica incandescente; Alexander Graham Bell,
protagonista dos primeiros passos da implantação do telefone como meio de
comunicação de massas; Alberto Santos Dumont, pioneiro da aviação, entre
outros.
O
que muitas pessoas não sabem (ou pelo menos não lembram com frequência) é que
inventores negros, incluindo escravizados, criaram ou aprimoraram muitas coisas
que facilitaram a nossa vida, apesar de terem sido ignorados nos livros de
história pelo mundo.
O
afro-americano Benjamin Montgomery, nascido na escravidão em 1819, inventou uma
hélice de barco a vapor projetada para águas rasas. Esta foi uma invenção
valiosa, pois facilitou a entrega de alimentos e itens críticos. Montgomery tentou
solicitar uma patente. O pedido foi rejeitado devido ao seu status de escravo.
O sistema de patentes, que começou oficialmente em 1787 nos Estados Unidos, não
estava aberto aos afro-americanos nascidos de escravos, pois não eram
considerados cidadãos.
Essa
barreira não impediu que os afro-americanos inventassem e que suas patentes
fossem exploradas. De acordo com uma pesquisa feita por Shontavia Johnson,
advogada e professora de Direito de Propriedade Intelectual da Drake
University, os proprietários muitas vezes tomavam crédito por invenções
escravas.
A
própria lâmpada foi inventada por Thomas Edison, mas a inovação usada para
criar lâmpadas mais duradouras com um filamento de carbono veio do inventor
afro-americano Lewis Latimer. Latimer, filho de escravizados fugitivos, começou
a trabalhar em um escritório de advocacia depois de servir nas forças armadas
da União durante a Guerra Civil. Ele foi reconhecido por seu talento na
elaboração de patentes e foi promovido a chefe de desenhista, tendo participado
da invenção de um banheiro aprimorado para trens ferroviários.
O
uso de elevadores na vida cotidiana impede as pessoas de se comprometerem com
longas e cansativas subidas de vários lances de escada. Antes das portas
automáticas, as pessoas tinham que fechar manualmente as portas do poço e do
elevador antes de andar. Quando a filha do inventor afro-americano Alexander
Miles caiu quase fatalmente no poço, ele decidiu desenvolver uma solução. Em
1887, ele patenteou um mecanismo que abre e fecha automaticamente as portas do
poço do elevador e seus projetos são amplamente refletidos nos elevadores
usados hoje.
Filho
de um escravizado e com apenas o ensino fundamental, o inventor negro Garrett
Morgan foi responsável por várias invenções importantes, incluindo uma máquina
de costura aprimorada e a máscara de gás. No entanto, uma das invenções mais
influentes de Morgan foi o semáforo aprimorado. Sem sua inovação, os motoristas
de todo o país seriam direcionados por um sistema de duas luzes.
Frederick
McKinley Jones registrou mais de 60 patentes ao longo de sua vida, incluindo
uma patente para o sistema de refrigeração montado no teto usado para
refrigerar mercadorias em caminhões durante o transporte prolongado em meados
da década de 1930. Ele recebeu uma patente por sua invenção em 1940 e foi
cofundador da Thermo Control Company dos EUA, mais tarde conhecida como Thermo
King. A empresa foi muito importante durante a Segunda Guerra Mundial, ajudando
a preservar sangue, alimentos e suprimentos durante a guerra. Graças a Jones,
os produtos congelados ficaram mais acessíveis e são consumidos no mundo todo.
Além
desses, muitos outros itens do nosso cotidiano tiveram a participação de
inventores negros, incluindo um dos uísques mais vendidos do mundo.”
Berta, absorta na leitura, nem deu
pelo tempo passar. Terminou alguns textos, voltou à primeira página do jornal,
agradada pelo que tinha lido. Nunca tinha visto, nunca tinha ouvido nada acerca
daquele título “O Diário”. Intrigava-a, as referências à sua terra, ao seu
novel país naquele jornal eram diferentes. Até então tudo o que lia, ouvia ou
via na televisão era de grau pejorativo, de desagrado, desaprovação para com
Angola no contexto da sua História, cultura e povos. Sentindo-se animada,
respirou fundo e lembrou-se do quarto de frago do dia anterior. Olhou em volta,
reparou que ninguém reclamava o jornal abandonado no banco do jardim, dobrou-o
e carregou, debaixo do braço, de regresso a casa a fim de comer as sobras do
jantar do dia anterior e continuar a leitura acerca do seu país e de outras
coisas que lhe interessavam e lhe diziam respeito.
Afinal, como bem no fundo do seu
muxima persentia, preto não é sinónimo de matumba. Aliás, obtusos eram
sobretudo os pulas fugidos de Angola que apenas mostravam ódio, rancor e
ingratidão para com uma terra que os tinham acolhido, fugindo da fome em
Portugal. Muitas vezes dava consigo a pensar: “ estes brancos, esta brancada
são difíceis de entender – são miseráveis com mania da importância…”
Lembrou-se do Afonso com a mania da
esconder na varanda e impedir de utilizar os sanitários do apartamento, mas
forçou-a a fazer sexo com ele, neste caso já não tinha prurido, nem pejo, nem
nojo de lhe enfiar o membro nas suas intimidades. Doido acirrado, testosterona
incontrolável caiu sobre ela que nem mabeco esfomeado. Zé Maria outro que tal,
a mirá-la como se fosse um objecto. Ela tinha direito a dar-se a quem lhe
aprouvesse, a quem a merecesse. Não tinha preferência por homem preto, mulato
ou branco, mas queria um com quem quisesse partilhar e receber. Pensava no
rapaz guerrilheiro e ou das moedas no aeroporto que, por acaso era branco. Quer
dizer, branco, branco não sabia porque quando pensava nele nunca o recordava
segundo esse prisma. Ela gostou dele nem sabia por que razão, só sabia que o
desejava, que o amava, mesmo, e julgava-se correspondida, era uma certeza que
lhe vinha de dentro, do âmago, muxima…
Mesmo depois da tragédia com Afonso,
pensou novamente no seu júnior cavaleiro do MPLA, como donzela imaculada porque
ninguém a possuiria sem que ela se desse. Isso não faria com Afonso, Zé Maria
ou outro qualquer, nem que a esquartejassem, que as desventrassem, lhe
rasgassem a vagina, o ânus ou qualquer outro orifício. Pensou no seu júnior
cavaleiro a quem se entregaria totalmente e de quem desejava todos os fulgores,
prazeres, abraços, beijos e sussurros...
Foi à janela, demorando-se na
observação dos transeuntes, indiferentes e ignotos do drama de Berta na terra
de pulas, sozinhas na floresta de casas de cimento armado, ruas pejadas de
pessoas solitárias, cada qual nos seus mambos, pensou…
Não soube mais de Afonso, nem de Zé
Maria, nem de Alzira que julgou a leste do confronto de ambos, por ela, a preta
do Congo, serviçal em Portugal, como se ainda estivesse no Uíge colonizado. A
ideia de largar por ruas e vielas de Lisboa, até ancorar em qualquer abrigo
tentava-a, mas pressentia agruras e mais desenganos naquele labirinto
metropolitano. Cada vez mais se dedicava a rememorar episódios da sua vida em
Angola, as imagens da infância aproximavam-na da sua gente, do seu espaço
psicológico e criavam-lhe ilusão de esperança e de felicidade no horizonte.
Cada vez que caia no desespero, sempre algo lhe surgia de novo, como luz ao
fundo do túnel. Ao pôr de novo o olhar sobre o jornal que trouxera da rua, ali
sobre a mesa da sala, sentiu algum proveito na epopeia, acompanhando os
portugueses alvoroçados. Se na fuga não descortinava lógica, nem razão, já o
facto de ter aprendido a ler sim, fê-la sentir melhor, mais rica, embora, na
grande parte das palavras, frases e períodos lidos não entendesse significado.
O que a professora Alcina de Meruge lhe ensinara tinha sido rudimentar,
literal, muito redutor face às interrogações das suas cogitações. Contudo,
mesmo assim, tinha sido uma janela para a vida, uma luz na análise da sociedade
colonial no Norte da sua pátria, Angola. Começava a compreender a mentalidade
do colono. Em Meruge pôde observar a outra face do português, aquele que não
tinha ido a África, aquele que tinha regressado do trauma da guerra colonial,
as dificuldades inerentes a cada um na luta pela sobrevivência, os costumes e
tradições e sobretudo a rudeza de carácter, educação, cultura, a par de uma
outra simplicidade e adaptabilidade ao meio, distintas do que demonstravam os
colonos em Angola, ignorantes arvorados em inteligentes, assim que ela passou a
caracterizar os retornados. Berta aprendeu a gostar dos portugueses no seu meio
rural, originais, fraternos e solidários, depois de um primeiro impacto de
rejeição, porventura, resultante de ideias, e preconceitos inculcados por
doutrinas repetidamente marteladas nas suas cabeças. Lembrou-se do seminarista
António, embasbacado e baralhado face à sua presença feminina. Mais adiante
começava a analisar situações concretas no espaço por si vivido em Angola:
brancos a fornicar pretas, brancos amantes de mulatas, brancos maridos de
brancas. Colonos masculinos a perfilhar os seus filhos com as mestiças, a
ignorar os filhos de comum com as pretas e a assumir legítimos os filhos com as
colonas. Afinal, tudo resultava de ideias e atitudes emanadas por directrizes
políticas e religiosas das instituições superiores. Berta, nas suas lucubrações
noturnas, na cama, na solidão das suas noites longas e manhãs preguiçosas,
solidificava a sua ideia de que os portugueses que ditavam leis e mandavam em
Angola, faziam-no na sua total ignorância da cultura e da realidade do
território. Ao contrário do que pensavam os retornados e muitos dos
portugueses, Angola não era, nem nunca tinha sido Portugal, nem Europa.
Sentou-se e pôs-se a folhear o
suplemento fim-de-semana do jornal, “O Diário”, procurando algo mais de África,
de Angola e encontrou:
“Imagens de Angola da década de
quarenta
Negra/Branca
Na obra literária Imagens de Angola
(1949), de José d’Almeida, há um relato intitulado Negra Branca que me permitiu
prognosticar uma complexa montagem narrativa assente num drama que envolve, no
mínimo, explícitas questões de género, classe, raça. A negra branca é Catarina,
filha de uma lavadeira que trabalhava para um funcionário da administração
Pública de Angola, que na colónia estava entre outros, heroicamente, a
estabelecer obra de ocupação pacífica: “verdadeiros escravos do dever... De ontem
e de hoje." A história concentra o drama dos dois mundos – negro e branco
–, pelo qual passará Catarina e o filho do funcionário público. Ligados desde a
infância, sentiam-se violentados diante da separação obrigatória por causa de
demandas do trabalho do pai: “Com epidermes de cores opostas, mas ambos
portugueses, sentiam-se ligados por nós de amizade, que o ambiente e a
convivência aturada sabem dar” - Catarina, você quer acompanhar o menino?
(perguntou-lhe a sua mãe) Catarina, receosa, não sabendo, pelos seus diminutos
anos, avaliar uma partida, deixa a sua mãe preta que dava bolas de “pirão”, mas
a desviava quando não tinha comida para oferecer, hesitou por segundos. Depois,
parando de chorar, com os olhos húmidos e injectados, olhou para o seu amigo
branco que, contagiado, também chorava. E a sua resposta, simples, bem
compreensível, resumiu-se em ir enlaçar, com as suas próprias mãos pretas, o
seu amigo branco. A mãe da “negrita” terá confiado aos patrões a sua filha, com
a promessa de que um dia a restituíssem. Cumpriram-se as necessárias
formalidades, e a rapariga foi viver para Luanda. Uma vez ali, lá iam os dois
todas as manhãs à escola, colher ensinamentos que são o esteio do futuro de
cada indivíduo. Ambos aprenderam juntos, e juntos cresceram, nessa doce
convivência, a continuar um meio, onde não se distinguiam raças, e não aparece
equação, o eterno problema da cor.
Esta história deixa ver os esforços
dos portugueses em construir uma imagem de aproximação e reinventar relações
marcadas pela escravidão, racismo, opressão. Para a economia política e
cultural da época, era imprescindível que o poder de Portugal parecesse um
elemento fundamental para o desenvolvimento de Angola; uma presença que fosse
um símbolo de promoção da educação e civilização. Assim, com a acção do tempo,
“dez anos depois, Catarina era uma linda moçoila, com a delicadeza de maneiras
que a educação, paulatinamente, descobre” Ela também já era uma mulher e não
poderia mais conviver na mesma casa junto ao rapaz que a viu crescer, já que
estavam na idade em que “a febre do amor chega a altas temperaturas”. E a
moçoila, compreendendo a situação, mas segura de bons princípios, educada,
vestida e calçada como as brancas, regressou, de visita a sua família, que
vivia num meio diferente, onde as casas e os jardins são substituídos por
palhotas primitivas e árvores a deitar para o ar olores resinosos. Uma vez
chegada, apanhou em cheio a lufada morna dum meio de civilização incipiente,
contrastando brutalmente com a vida elevada da cidade, onde a transportaram,
quando a sua razão começava a ter lugar na existência humana. O tempo vivido
com os brancos fizera de Catarina uma estranha junto ao seu povo. Tornara-se
quase portuguesa, negra-branca e já não suportaria a “regressão” ao processo civilizador
a que teve acesso. O tempo que passara com os brancos parecia fazer dela mais
valiosa que as outras moças do seu povo, por isso, os seus pais já lhe tinham
arranjado casamento com um soba local, dono de centenas de cabeças de gado.
Catarina pensava no regresso, “a sua existência estava, afinal, presa aos
brancos e nada de ancestral a atraía àquele meio selvagem” Quando chega o dia
do “grande batuque”, que antecederia o seu casamento, Catarina permanecia
alheia, “deixava correr os acontecimentos à feição do tempo”.
José D’ Almeida narra o
acontecimento:
Em meados do século XX, os
portugueses começam a resinificar a exploração e violência colonial sob a luz
de outras estratégias discursivas. Esta discussão será melhor esmiuçada ao
longo deste capítulo, sem deixar de destacar elementos etnográficos que, de
facto, ele se propunha fazer. Nas primeiras páginas do livro, um pequeno
dicionário de “termos gentílicos ou de caráter gentílico” assessoraria o
leitor.
Dos “sobados” próximos, rapazes e
raparigas, ataviados para a dança, faziam o caminho entre cantares e o bater de
palmas. Eles de peito ao léu e mantas nos braços, e elas de bustos nus, untados
de “gunde” com “tacula” e com o “tchikuani”, enfeitado de missangas de
variegadas cores, seguiam radiantes para a festa. [...] O ar está impregnado de
perfumes da selva, húmida de “cacimbo”, onde se mistura o cheiro do suor dos
pretos com o “gunde” das pretas. Os corpos, de tanto dançar, são bocados de
achas das fogueiras que as circundam, escaldantes, ávidos de gozos misteriosos
da vida, que ali se abandonam por horas... O “batuque” não pára, os músculos
não cansam, os nervos não relaxam. Tudo vibra durante a noite e ninguém desiste
de cantar e dançar. Por vezes, os sons dos “gon’mas” e “puhitas” enfraquecem, para
logo redobrarem de intensidade. Gritos e assobios ferem o espaço, de vez em
quando, os dançarinos deliram sob uma febre violenta, que contagia tudo e
todos. Tudo é prazer e vida. Tudo é fogo a escaldar corações batendo
apressados. A lua, cansada de assistir à mesma cena, desaparece lentamente,
porque os arrebóis da aurora, lançando uma luz mais límpida, vão, mais uma vez,
purificar a natureza. As vozes enfraquecem... e tudo para, como se a vida
dependesse agora daquela luz clara do nascente... Feita pelo Criador.
É neste instante de transição da
noite para o dia – que também parece ser o da paisagem obscura ritual para a
“luz clara do Criador” –, que Catarina se lança na imensidão da selva. De
vigília toda a noite, aguardava o momento ideal para voltar para Luanda, “para
ir ter com o seu companheiro de infância, porque se sente ligada a esse branco,
que representa tudo pra ela..., fugindo assim da ligação com o “soba”, preto”
E, deste modo, assinalar “o triunfo da obra civilizadora”. O desfecho da negra
branca Catarina é centrado na ideia de irreversibilidade da civilização, que
foi descrita pelo autor como “gotas de chuva fresca, que caem no chão quente
que as traga” Uma vez absorvida, o sujeito era outro, e escolher a terra seca e
infértil da selvageria era inconcebível nos quadros da obra Imagens de Angola.
"A ideia da aurora como
representação do mundo do branco desejado é poeticamente exercitada no soneto
“Aurora”, de Costa Alegre, de São Tomé e Príncipe: “Tu tens horror de mim, bem
sei, Aurora,/Tu és o dia, eu sou a noite espessa, / Onde eu acabo é que o teu
amor começa. Não amas!... Flor, que esta minha alma adora./ És a luz, eu a
sombra pavorosa,/ Eu sou a tua antítese frisante,/ Mas não estranhes que te
aspire formosa,/ Do carvão sai o brilho do diamante"
A sensação de não-pertencer ao mundo
preto, depois do contacto com o branco foi também o encaminhar dramático para a
história de José, o “morador excêntrico” de um sobado no interior de Angola, no
conto Destino (…)”
Demorou a descodificar palavras e
afirmações, todavia, sentiu que sim, era tema que lhe dizia respeito e pensou
que o guerrilheirinho e as duas kwanhamas é que a poderiam auxiliar na análise
daqueles enigmas. Voltou à leitura do texto e releu ainda mais duas vezes. Ela
podia encarnar a personagem de Catarina no cenário descrito pelo autor. No
entanto, a metáfora de eventualmente se sentir uma estranha no seio do seu
próprio povo, da sua comunidade, considerou que não faria sentido. Mais à
frente aventou que se isso concorresse para o seu caso concreto, também seria
certo de que ela, Berta Kalemba (que o patrão Silva a cognominou de Berta
Bumba) nunca deixaria de se sentir uma estranha entre a comunidade branca
europeia, portuguesa ou de qualquer outra parte do planeta. Porventura a sua
gesta tê-la-ia feito estrangeira no exterior e estranha na sua própria pátria. A
eventualidade da sua relação com o homem branco não a deslocaria da sua origem
africana. Antes, sentia imperativa o seu sentido telúrico cujo resultado amante
com o branco se fundiria na formulação de tese, antítese e síntese. Síntese
seria o filho que ela parisse dessa relação com o branco, a mestiçagem. Porém
também percebia que a mestiçagem também é cultural, ou melhor intercultural, no
plano horizontal. Isso tinha percebido que o encontro de povos e culturas era
como uma feira de trocas. Cada uma dá de si e recebe do outro.
A leitura permitia uma abstração que
as imagens sonegam, pelo que Berta lendo sentia um prazer inolvidável. Ainda na
sua povoação de Tambuco julgava-se eterna. O mundo era aquele lugar, o conceito
de tempo não existia e todas as coisas eram duradouras e perenes. Só mais tarde
empreendeu o seu método de análise mediante os factos. Para a compreensão
desses factos sentiu necessidade de sequenciá-los num processo ao qual
catalogou de tempo. Então a sequência das suas ocorrências passaram a ser o seu
processo de vida, ou seja, a sua história. Por isso entendia que o passado já
não era o presente e o seu presente não seria certamente o seu futuro. Ali na
sala da patroa Alzira bem sabia que para o seu futuro todas as acções passadas
tinham concorrido para aquele momento e que o seu futuro dependeria das medidas
que empreendesse nesse sentido. Por isso é que já não voltaria a viver o que
por ela tinha sido vivenciado e se voltasse ao Negage transportaria consigo o
que tinha vivido, sem olvidar a sua origem familiar, o meio físico e humano. A
personagem Catariana, a preta/branca do texto apenas se caracterizaria como
mera representação. Berta considerava-se preta, não almejava alvura epidérmica,
nem renegava as origens, só lamentava os erros cometidos. Contudo, compreendia
que isso apenas lhe servia para melhor decidir nas suas atitudes e decisões com
vista à construção do seu futuro.
Na sala dos retornados adquirida com
proventos granjeados ou usurpados na sua terra, Berta espreitava pela janela,
enigmática, quase descrente da sua própria capacidade de construir uma vida
promissora. Tinha adquirido consciência de que era mulher, falível,
desfavorecida económica e socialmente. A viagem para Portugal, o convívio com
outras pessoas, em contextos distintos aos das suas gentes trouxeram-lhe
conhecimento. Não queria nem podia despojar-se dessas aprendizagens, desses
apetrechos, isso seria renegar à vida, só possível com a morte. A morte que ela
passou a entender como o términus de uma caminhada mediante a sequência de
factos, sucedânea de ocorrências, vincadas na memória e no corpo. Levando-se da
cadeira de onde mirava a Avenida e o fervelhar de transeuntes, dirigiu-se ao
espelho da casa de banho. Olhando-se bem de frente e de perfil certificando-se
mesmo que não era a mesma menina deambulante de Maquela do Zombo, nem a juvenil
criada preta do Negage, nem a preta matumba arrastada por Alzira, nem tão pouco
a preta da Alzira em Meruge, mas era a mesma pessoa a preta do Congo em Lisboa.
Adulta, porventura fértil, moldada pela sequência e pelo modo da sua própria
existência. Pela primeira vez terá compreendido o que representaria para si o
envelhecimento, mais aparentando o efémero percurso de uma bananeira do que a
longevidade de um embondeiro. Embora a preguiça de estar ali apenas na
incumbência de lavar e de engomar roupa de brancos, lhe proporcionasse viver de
modo tão cómodo e livre como nunca tinha usufruído, algo a inquietava quanto ao
se futuro, na qualidade de mulher e ser humano.
Alzira da Purificação e Benjamim
Floriano em Chipre folgavam, como que vingando-se de um amor roubado no
passado. É certo que o casamento de Alzira com Adelino Silva se consumara mais
por conveniência do que por amor, mas também não tinha sido martírio. Aliás,
até emprenhar de Adelino, pela primeira vez, no Negage, gostava de dormir e do
quotidiano com o marido em África, mesmo ainda sem abastanças. Benjamim
apaixonara-se por Alzira desde criança, tão imberbe que nem sabia a partir de
que momento, nem de que idade. Contudo, o destino ou seja lá o que fosse, ali
estavam ambos a gozar rendimentos, no Outono das suas vidas.
Alzira na companhia de Benjamim
descobria novos mundos e outras ideias. O empresário luso-germânico acumulou
experiência, adquirindo uma outra forma de investir dinheiros, olhar o mundo
empresarial e humano. Silva da roça do Negage apenas amontoava lucros, suprimia
gastos e enviava riquezas para África do Sul. Sugava da roça como se
adivinhasse o fim da mama a breve trecho. Benjamim julgava que multiplicando
lucros em participações financeiras conquistaria o mundo e ainda gozaria dos
maiores prazer da vida. Alzira com Adelino Silva tinha sido a senhora da
pretalhada, coscuvilheira entre a brancada, anfitriã de abades, oficiais
militares, colonos ricos e remediados e oficiais do regime, bem-fazente dos
indigentes: “fazer o bem sem olhar a quem”, beata arredia das homílias,
sermões, confissões, procissões e novenas. Com Benjamim era a mulher, de braço
dado, ao lado do condutor, na mesa e na cama de empresário bem-sucedido.
Susana e Fernanda eram as mulheres de
dois empresários improváveis fugidos da Revolução de 25 de Abril de 1974, em
Portugal, dadas as ligações ao regime deposto e enriquecidos, milagrosamente,
na África do Sul do Apartheid.
Alzira e Benjamim foram alojados por
umas semanas às expensas dos empresários turísticos, genros do falecido monopolista
da roça de Carmona. O empresário luso-germânico não acreditava naquele género
de gestão cujos investidores denotavam total desconhecimento pelos meandros do
negócio, desabafava para a companheira que aquilo era gerido à laia de
mercearia, à maneira salazarista, sem visão de expansão. Alzira começou por se
incomodar com as alusões de Benjamim, menosprezando a metodologia salazarista.
Salazar era para Alzira o expoente máximo da inteligência, da bondade, da
caridade e o fiel cordeiro de deus na terra. Mas, condescendia nas críticas aos
genros, até porque bem sabia que se tinham tornado proprietários de resort em
Chipre, por conta dos bens que o seu marido tinha traficado para África do Sul,
a partir de Carmona.
O telefone tocou, a recepcionista, em
inglês, atendeu e encaminhou a chamada para Fernanda e esta chamou Alzira. Ela
surpreendida, quem a poderia procurar em Nicósia no hotel das suas filhas…
- Estou, quem fala?
- Ah és tu meu filho. – Virou a cara
para o lado e disse, “é o Afonso”.
- Olha, cá estamos, isto é muito
bonito, meu filho, vem cá visitar as irmãs.
- Mesmo, queres vir para cá de vez?
Fico muito contente, mas desististe da política, meu filho?
- Ora, graças a deus, Nossa senhora
do Rosário ouviu as minhas preces. Tanto pedi para te tirar da cabeça a ideia
de seres deputado.
- Olha o Delfim está aqui a dizer que
podes vir já, vou-te passar o telefone, meu filho, beijinhos e abraços de
todos, meu filho, deus seja louvado…
Entretanto, na Avenida da Igreja nada
se passava de novo no apartamento dos retornados. Dona Júlia bem espreitava
pelas janelas, bem se punha à coca de eventual barulhinho, porém, era como se
ninguém habitasse a casa. Não enxergando rasto de Berta, morta por novidades
bateu à porta com os punhos, ignorando a campainha. Berta espreitou pelo forame
e não respondeu. Júlia regressou ao seu apartamento, encolhendo os ombros,
esticando os beiços e balançando braços, intrigada. Desceu as escadas e voltou
a subir, queria comentar com os vizinhos acerca da ausência de gente naquele
apartamento. Teria decorrido porventura meia hora voltou à porta dos
retornados, colou o ouvido e não escutando ruído nenhum, premiu a campainha,
demoradamente, em força. A preta do Congo, vendo que não se desobrigaria da
bisbilhoteira, abriu a porta, encarando-a de frente, cara a cara, tete à tete
como costumava dizer Alzira.
- Ah, estavas cá rapariga, e porque
não respondes? Desenvergonhada…
- O que quer, senhora Júlia, diga lá
se faz favor…
- Não quero nada, só se estavas viva,
depois da pouca-vergonha que se passou aqui com o teu patrão, até pensei que
tivesses desaparecido.
- Eu não fiz mal para ter vergonha e
muito menos desaparecer, senhora Júlia.
- Pois, pois, pensas que não sei da
vossa arte de pecadoras insolentes? Olha, passa bem, se for preciso alguma
coisa estou aqui ao lado. Olha lá, se aparecer por aí o menino Zé Maria ou a
senhora dona Alzira que me batam à porta, ouviste?
- Sim, senhora, ouvi…
Zé Maria vexado com o espectáculo ofertado
aos vizinhos da Avenida da Igreja, pressupondo que seria alvo de críticas e
chacota, retardou o retorno àquele lugar. A sua Bety não cozinhava, não limpava
a casa e não lavava nem engomava roupa. Na África do Sul branca da sua igualha
era sinónimo de vida fútil, só para mandar na criadagem e ser mandada pelo
marido, espreguiçar, passear, coscuvilhar, até empresária e funcionária, menos
doméstica. Não sabia, nem fazia intenção de aprender a língua portuguesa.
Afirmava: “quem fala o inglês não tem que aprender outras línguas, o inglês é a
língua da civilização, não temos necessidade de baixar de nível”. Zé Maria
contratara empregada externa para cozinhar e limpar a casa de Carnaxide, a
roupa habitualmente utilizava os serviços de lavandaria, com Berta na Avenida
da Igreja, seria ela a desempenhar a função de lavadeira à moda das pretas em
Carmona. Mais económico e funcional seria encarregar Berta de todo o serviço,
inclusivamente do fogão, mas como? Não podia introduzir uma preta na casa onde
morava com a sua branca do Apartheid.
Após uns dias de convalescença, de
recuperação de arranhões, negras e de mais mazelas resultantes dos socos,
bofetadas, pontapés, arranhões de Afonso, bem como das mocadas nas paredes das
escadas de mármore, solicitou a um dos seus empregados de confiança na empresa
de importação e exportação a tarefa de ir entregar roupa suja à Avenida da
Igreja. Num pequeno envelope com morada inscrita meteu umas notas, levando a
faixa de cola aos beiços, colou e disse:
- Germano, faz-me um favor, vais a
minha casa que a minha mulher te entrega uns sacos para levares a essa morada.
Tenho lá uma empregada. Passas-lhe os volumes e vens-te embora.
- Com certeza, patrão, e está lá
alguém?
- Sim, está, já confirmei pelo
telefone: vá, ela está à espera. Ah, não percas o envelope, dá-lho, sem falta.
Germano deslocou-se a casa do patrão,
atendeu Bety, arengando em inglês, na certeza de que não se fazia entender.
Fez-lhe sinal para apanhar quatro sacos grandes de plástico, depositados na
cozinha. Na mão Bety tinha um pequeno manuscrito que também entregou a Germano.
Ele fixou o pequeno apontamento, sem perceber nada perguntou:
- Este papel também é para entregar à
empregada, minha senhora?
- Yes of course!
Germano carregou os sacos e disse
para si próprio, ao entrar para o automóvel: “a mula não fala português mas
percebe, encabava-a bem, a ver se não dizia ai, ai, tão bom, tão bom, mais,
mais, bruto, bruto, nãooo (…) ”.
Berta com trabalho por sua conta,
abriu o pequeno envelope, retirando o dinheiro que logo guardou na cabeceira da
cama onde dormia. Mentalmente programou a aquisição de produtos para levar a
efeito um calulu, a sério. Através das suas andanças pela cidade já tinha
descoberto o local onde podia comprar todos os condimentos necessários: quatro
postas de peixe corvina; trezentos gramas de quiabo; duas beringelas; uma
cebola média picada; três dentes de alho; uma folha de louro; dois pacotes de
espinafres; meio decilitro de óleo de palma; um tomate médio; farinha de
mandioca.
Claro que se fosse no Negage ou
noutro sítio da sua pátria os ingredientes seriam diferentes e de acordo com a
tradição, em Portugal, pelo que tinha observado e auscultado, seria o mais
parecido possível.
Assim, pensou que começaria: descamar
o peixe (caso não lho descamassem na praça); esmagar os três dentes de alho e
temperar todo o peixe; retirar as pontas dos quiabos; descascar as beringelas,
cortando-as aos quadrados e colocar ambos num recipiente com água; retirar a pele
da cebola e ralá-la; cortar o tomate; lavar os espinafres com bastante água,
reservando-os tal como os outros ingredientes até a preparação do peixe; num
tacho largo começar por colocar uma parte da cebola ralada, uma parte do tomate
picado, as postas de peixes, os espinafres, a folha de louro, a beringela aos
quadrados, o restante da cebola, o tomate e por cima o óleo de palma; levar ao
fogo médio para que todos os ingredientes se cozinhassem lentamente; após
trinta minutos adicionar os quiabos; deixar cozinhar por volta de quarenta
minutos sempre tendo atenção a fim do peixe não se desmanchar; engrossar o
molho do calulu com farinha de mandioca; desfazer em água, uma colher de sopa
de farinha e misturar ao cozido; deixar no fogo por mais dois minutinhos;
pronto! Comer!
Bom, mas uma especialidade
gastronómica daquela natureza não teria sentido se não fosse à mesa com
patrícios ou, pelo menos, assimilados…
Lembrou-se das pessoas de Meruge e
concluiu que nem uma gostaria do seu calulu. Só a patroa Alzira, mas essa
andaria no bem-bom com Benjamim. Os filhos de Alzira não e resmungou: “sukuama
(exclamação, pejorativo/puta que os pariu) ”. A dona Júlia, a ngueta (senhora
de baixa estirpe) talvez apreciasse, porém, quase sibilou: “tugi (merda) ”.
Quem ela queria mesmo à mesa, comendo consigo um calulu, seriam as duas
kwanhamas e o branco guerrilheiro de Bbanz Congo, mas, onde andariam eles… Na
sua terra era tradição a mulher preparar um bom calulu para o seu marido, em
ocasiões especiais. Imaginou-se a cozinhar o seu calulu para o rapaz que lhe
tinha oferecido as moedas no aeroporto de Lisboa. De repente lembrou-se do
papelito que lhe trouxera o empregado do Zé Maria, junto do envelope do
dinheiro e os sacos de roupa suja. Foi ver novamente – que raio, nem uma palavra
decifrava, como se ainda fosse analfabeta. Mirou, mirou e cismou: “francês,
alemão do Benjamim ou inglês do Zé Maria… Ah, já sei a mulher do Zé Maria…”.
Lembrou-se da Paula, uma estudante que conheceu, por acaso, no mercado trinta e
um de Janeiro. Uma mestiça vistosa, bonitona, cabelos de ondas largas, esbelta
e muito bem trajada. A Paula tinha-lhe perguntado: “és angolana? Sou”,
lembrou-se então que lhe tinha mostrado onde estudava, na Faculdade de
Farmácia, Avenida das Forças Armadas, perto de entre Campos. Decidiu ir à sua procura,
tão simpática, conterrânea, certamente seria boa companhia com quem partilhar a
sua comida. Talvez soubesse inglês, já que estudava medicamentos, farmácia…
Berta, cuidadosa, inspecionou toda a
roupa suja, peça por peça, ao pormenor. Separou por cores e verificou as
nódoas. Lençóis foram para a máquina, programa a sessenta graus, detergente e
amaciador nos recipientes próprios. Roupas interiores, delicadas de Bety para o
omo, água fria, assim como lãs. Separadamente um monte de roupa clara e outra
escura para posterior lavagem em separado, evitando indesejáveis tingimentos.
Tudo em andamento, desceu as escadas deitou-se a caminho da Faculdade de
Farmácia. Pelo percurso lembrou-se que Paula lhe afiançara que só queria tirar
o curso e voltar para Angola onde pretendia contribuir para o desenvolvimento
do país. Isso é que seria uma oportunidade de ela própria voltar também,
solicitando ajuda a Paula que lhe pareceu menina engajada nos poderes de
decisão da nova Angola, gente preta e mulata, com certeza, nada de brancada
antiga, essa tinha migrado para Portugal, África do Sul (como o Zé Maria),
Estados Unidos da América e para outros países da Europa. Não foi difícil dar com
o edifício, valeu-lhe saber ler, graças aos ensinamentos da professora Alcina
de Meruge. Na portaria perguntou por alunos angolanos e logo lhe indicaram a
sala e, por incrível coincidência, encontrou Paula num corredor conversando com
um colega mulato, angolano o qual lhe foi apresentado, de imediato, o Gervásio
Kahungo Simões, do Lobito, filho de gente do governo de Angola e descendente de
mestiça da Catumbela e pula colono de Chaves. Foi Kahungo que traduziu o texto
do inglês para português, literal: roupa fina, querer lavar eficiente. Estragar
paga.
Berta, fez um muxuxo palatal com a
língua nos dentes e sussurrou: “ngueta”; Paula corroborou e atirou: “puta!”.
Kahungo sorriu. Jandira, estudante cabo-verdiana, que, entretanto, se tinha
juntado ao grupo rui-se alto e gracejou: “mondroga, catchorra dôs pé (branca,
cadela ordinária) ”.
Zé Maria levou a séria a desfeita que
o irmão lhe fez, ou seja, desrespeitou-o ao usurpar-lhe a presa que era Berta,
apesar do aviso que lhe tinha feito pelo telefone para não lhe tocar. Telefonou
para Chipre e perguntou à Susana:
- A mãe já chegou?
- Então diz-lhe que o Afonso não vê
mais um tostão.
Os negócios de Zé Maria,
teoricamente, compreendiam a exportação de peças de maquinaria e géneros
alimentícios não perecíveis para Angola. Contudo, iam bem além disso. Aliás,
essa era o disfarce para a transacção de mercadoria clandestina e recebimentos
em matérias preciosas. A sua estadia na África do Sul abriu-lhe caminho para o
acesso a individualidades da UNITA, estacionadas na Jamba e, por outro lado, a
experiência do tráfego do pai em diamantes ensinara-lhe o “modus facientis”. Dos portos marítimos do Sul de Espanha partia
matéria pesada até para oficiais do exército das FAPLAS e para a Suíça o
pagamento gordo em moeda cotada.
Antes de uma viagem a Cadiz com Bety,
Zé Maria foi à Avenida da Igreja, recolheu a roupa lavada e engomada e ordenou:
- Menina, tem cuidado, vou estar duas
semanas fora, não quero cá ninguém, ouviste? O Afonso não põe aqui mais os pés!
Se Zé Maria estaria quinze dias fora,
eis o intervalo ideal para Berta adquirir, convidar e cozinhar. Assim procedeu,
foi ao encontro de Paula que logo tratou de aceitar o convite para si, o
Gervásio e outra pessoa, surpresa. Berta no sábado aprazado aprontou o manjar.
Por volta das treze horas e trinta minutos (angolano não madruga assim do nada,
mangonha de fim-de-semana é irresistível) a campainha tocou. Paula na mão com o
saco de fruta, mamão e mangas, Gervásio mãos a abanar e sorriso estampado,
Roberto carregado de cerveja. Que belíssimo almoço e cerveja à vontade, Berta
não bebia cerveja, vinho, nem nada alcoólico, só água da torneira. Assistiu à
morte de patrícios na roça do Silva derivado ao consumo da zurrapa bangassumo,
importado de Portugal e ela própria quase se tinha desfeito em diarreias, por
via do maruvo palmito fermentado das palmeiras, em Tambuco. Por isso, jurou:
“bebidas alcoólicas, zero. Dizer a angolano: “deixa de beber, para, mais
cerveja não, chega…”. Nada, não resulta.
Os construtores civis em Portugal que se
lançaram na expansão do cimento armado em Lisboa foram, em grande parte,
oriundos da região de Tomar. Foram homens que singraram na vida a pulso,
investindo, mediante empréstimos a particulares, como uma sociedade mutualista
e corporativa, à maneira maçónica, ou seja, grupo fechado, secreto e conduta pré-definida.
Ganharam concursos na administração pública e impuseram estilos arquitectónicos,
materiais e criaram regras do mercado imobiliário. Como organização corporativa
também optimizaram construções lucrativas e aparentemente funcionais, à maneira
da corrente francesa de Le
Corbusier. Avançou-se na leveza, funcionalidade e na segurança dos edifícios,
mas também se encurtaram as espessuras nos muros e nas placas de cobertura,
pelo que os vizinhos passaram a escutarem-se reciprocamente.
Ora, angolano no convívio tem que
arranjar bebida, comida, música, dança e sensualidade. Concorreram para o facto
antigos discos vinil de Afonso – merengue, semba e coisas à toa. O disco dos
Jovens do Prenda foi até não dar mais, riscado… Júlia, alvoroçada, tocou à
campainha e atirou lá para dentro:
- Deixa estar, sua galderia
desenvergonhada que te dou o baile, vou já telefonar ao menino Zé Maria.
António, o seminarista, na mercearia
ouviu tio que falava com um conterrâneo:
- Não me digas que a viúva retornada
largou a terra?
- Bem, se calhar, volta, mas, pelo
que ouvi, anda a passear pelo mundo com o Benjamim a gozar os rendimentos.
- Benjamim, o quê o emigrante?
- Sim, veio rico, que julgas…
- Então e a preta, a criadita?
-Despachou-a cá para Lisboa, parece
que está lá para Alvalade…
António petrificou, avivaram-lhe a
memória acerca de Berta. Teve vontade de saber mais, sobretudo onde morava em
Alvalade. Quase que abria a boca, porém, a timidez mais uma vez tomou conta de
si e emudeceu. Ficou para ali a matutar na maneira de encontra a miúda pela
qual se apaixonara tanto que o fez largar a formação clerical. A conversa entre
o tio e o conterrâneo mudou de tema. António ainda escreveu ao irmão tentado
saber da senhora Alzira. Formulou mesmo a pergunta, “onde é a casa dela aqui em
Lisboa?”. A resposta do irmão ainda o confundiu mais porque lhe dava conta de
que a retornada não morava em Lisboa, mas que tinha ido com o senhor Benjamim
para a Alemanha. Claro que António não queria saber de Alzira, mas não tinha
coragem de perguntar abertamente por Berta, a criada preta. Parecia simples e
natural, só que não conseguia. Antes disso punha-se à alerta assim que o tio
falava das pessoas de Meruge, da quinta do Vale de Cabra, e até de Oliveira do
Hospital, tentando apanhar, nem que fosse uma pequenina referência a Berta, mas
o tempo decorria e nada mais. Numa tarde à saída da mercearia, tarde como de
costume, pois enquanto houvesse freguês não se fechava a loja, ganhou coragem e
perguntou:
- Tio, sempre é verdade que a senhora
Alzira voltou para cá?
- Parece que foi com o Benjamim para
a Alemanha, pá.
- Com a criada e tudo, tio?
- Qual quê pá, despachou a preta prá
África!
Aterrado com a ideia de Berta ter
regressado à origem, António perdeu o chão, à beirinha de desfalecer, quase
cambaleou, segurou-se só para que o tio ignorasse o seu pânico. Nessa noite não
pregou olho, às cinco horas matinais levantou-se, sentando-se na cama à espera
que os tios despertassem. Tanto magicara na forma de reencontrar Berta e tudo
se desvanecia num ápice. Amaldiçoou aqueles que acabaram com a guerra no
ultramar porque, nesse caso, iria voluntário atrás do cheiro da pretinha, até a
fararia a quilómetros de distância. Depois, serenou um pouco e concluiu que se
a guerra colonial perdurasse, Alzira não teria regressado e portanto não teria
conhecido a criada, a menina preta. Se Berta não tivesse surgido na sua vida,
porventura não saborearia nunca uma paixão avassaladora que o arrancou da
tenebrosa ilusão sacerdotal. Com essa ideia aterradora de jamais alcançar o
desejo de beijar a amada africana, apaziguou-o o facto de se ter livrado do
assédio sexual perpetrado pelo confessor. O profundo crer Berta animara-o para
a vida. O desaparecimento dela ofuscava-o de novo. Teria de buscar novas
quimeras para viver e banir os fantasmas tenebrosos dos assédios clericais.
Perante todas as incertezas do paradeiro de Berta, António queria acreditar no
reencontro. Voltou às orações, às Ave-Marias, aos Padre-Nossos. Devotou-se a
Nossa Senhora do Rosário de Meruge só suplicando por consolação e milagrosa
aparição da sua virgem negra. Pedia encarecidamente que São Miguel da capelinha
de Meruge lhe mostrasse o rasto da sua amada e a todos os anjos que lhe
iluminassem o caminho até ela. As divindades não lhe abonavam sinal e ele, mais
uma vez, desfalecia, desacreditando, outra e outra vez, ao ponto de praguejar à
maneira do maior herege, profanador e iconoclasta. Saía da mercearia e vagueava
por Lisboa noctura, buscando rostos negros nas transeuntes. Corria para elas
quando lhe pareciam Berta. Prostrava-se, frustrado, assim que se certificava do
engano. Calcorreava todos os milímetros das calçadas de Entre Campos à
Ameixoeira, pelo Lumiar. Subia e descia a Avenida de Roma, percorrendo,
incessantemente, avenidas, ruas, ruelas, praças e pracetas de Alvalade e sempre
voltava para a cama sozinho, desolado, para no dia seguinte prosseguir buscando
a menina preta que lhe mostraram, pela primeira vez, na quinta do Vale de Cabra,
ajudando nas tarefas da consoada. Berta, sem imaginar, continuava na Avenida da
Igreja na qualidade de lavadeira e subordinada aos caprichos de Zé Maria.
O coração de Berta não clamava por
António, mesmo que se cruzassem solitários numa desértica ou pejada artéria
lisboeta, os destinos não se fundiriam numa qualquer solução química. Os
misteriosos entes Kiandas e católicos apostólicos romanos não se alinhariam só
porque António queria Berta. Kiandas são "espíritos das águas" e uma
das entidades reguladoras do mar, dos lagos, dos rios, dos peixes, das marés e
da pesca. Estão ligadas ainda à fecundidade feminina e às crianças, sendo a
elas atribuído o nascimento de gémeos. Apresentam-se envoltas por um clarão de
águas ou de ar. São mistérios arredios dos entendimentos de noblato monge
celibatário, incauto aprendiz de confessor católico, austero monoteísta romano
inquisidor. Se porventura Berta avistasse António, nada mais lhe poderia
oferecer do que um cumprimento gentil de graciosa menina virgem negra,
inacessível a infeliz lampinho. Mesmo que Berta, por qualquer motivo, acedesse
ao fervor amoroso ilustrado pelo presumível gesto pasmo, tímido incurável,
boquiaberto de olhos esbugalhados de António, como entenderia ele que aquela
menina negra alva celeste tinha sido coagida a práticas sexuais? Pior, como
aceitaria o aprendiz de padre que a almejada virgem celestial se tivesse
desenvencilhado de lençóis amarotados, após noites de movimentos contorcionista
de corpos interlaçados?
António depois muito estonar em busca
de Berta, serões deambulando por Lisboa nocturna e manhãs de vigília,
desassossegado, serenou e empreendeu novo rumo, conformando-se.
A cliente Hortense não se esfalfava
de lhe pôr à frente a sua filha Miquelina, o tio também se empenhava no enleio
e António anuiu, pronto: para quê correr atrás de quem não se alcança e assim
se fez um casamento consumado sem canseiras de amores e desamores – tudo
tratado à maneira antiga. Efectuou-se a cerimónia católica na Igreja de Nossa
Senhor do Rosário, banquete na quinta do Vale de Cabra com direito a baile de
concertina.
O jovem marçano foi descorando
gradualmente a paixão pela lírica camoniana, fazendo tábua rasa dos
ensinamentos nas hostes da eclésia, mergulhando na literatura mundana. A prosa
poética de Virgílio Ferreira viciava-o ao ponto de devorar toda a obra do
autor, apesar da amargura que lhe provocara a leitura de “Manhã Submersa”.
De facto, o existencialismo do estilo
literário de Virgílio Ferreira, seduzia António no plano da sensibilidade
espiritual, religiosa, social e telúrica. António encarava Virgílio Ferreira
como o beirão erudito da Beira rústica, emigrado na cidade cosmopolita e
multicultural dos outros. Porém, “Manhã Submersa” era, para si, a incursão
pelas peripécias do seminário, na qualidade de mero aprendiz dos dogmas
formatadores. Os traumas, a rigidez e a impotência de lhes fazer frente avivaram
a memória prodigiosa de António. Lembrança que ele queria olvidar mas o romance
esporeava-o. Além de Aquilino Ribeiro com o seu “Quando os Lobos Uivam”, também
Miguel Torga, Carlos de Oliveira, Rodrigues Migueis e Luiz Pacheco o fascinaram.
Contudo, a grande revelação foi Manuel Fonseca. Logo que se embrenhou no “Fogo
e as Cinzas”, “Cerromaior”, “Tempo de Solidão”. Em Manuel da Fonseca descobriu
o vagar do dizer e o discorrer das personagens. António da Beira aprendia forma
do viver à alentejana de Santiago do Cacém. Desvendava com esta escrita dita
neorrealista o emprego da perifrástica e do gerúndio, coisas que na sua
vivência de seminarista não lho permitiam. Nos momentos de relembranças e de
inquietações passou a socorrer-se de Gil Vicente e rematava: “pró inferno com a
barca, antes burro que me leve do que cavalo que me derrube”.
Berta quis prodigalizar fuga da
Avenida da Igreja, sujeitando-se a ser novamente estuprada. Zé Maria herdara do
pai mais do que bens pecuniários, também vícios e metodologias apanágio do
progenitor. Receou arremessar-se na cidade, sem tutor, abrigo, conhecimentos.
Conjecturou e recuou na ideia de bater à porta de terceiros solicitando
auxílio, numa pátria que não era a sua. Ainda indagou junto de catanhós
eventual trabalho de limpezas, sem resultados concretos, ou seja, sem garantias
de ocupação, nem de alojamento. De facto, através das incursões que ia fazendo
pelos diferentes bairros de Lisboa, não detectava outra ocupação nas pretas que
não fosse serviços de limpeza. Até poderia oferecer-se para ajudante ou
porventura cozinheira numa qualquer taverna, mesmo assim temeu falta de
oportunidade, dado que só poderia residir naquela casa se admitisse os aferros
dos donos. À noite percorreu os lugares de vida noctura da cidade onde não topava
mais do que solidão, marginalidade e prostituição nos bares de alterne ou
prostíbulos degradantes. Rendeu-se e ficou, lavando e engomando e o que mais
desse na veneta a Zé Maria. Alzira sumiu-se, assim, sem mais nem menos,
evaporou-se com o seu Benjamim Floriano.
Zé Maria antes de a molestar,
demorava-se na casa da Avenida da Igreja. Sentava-se a ver televisão, observa-a
no tanque na tábua de engomar, mandava-a às compras e esperava que ela
regressasse, depois saía, assobiando. Uma tarde, de partida disse:
- Miúda, não te quero prenha, hein. Tens
alguma coisa para tomares?
- Hum, hum, menino…- Balbuciou Berta,
perturbada.
Durante duas semanas Zé Maria
ausentou-se, Berta distendeu. Queixou-se a Paula e a uma angolana que,
entretanto, conhecera no mercando, a Domingas quitandeira da fruta, amiga da
Patrícia varina. A estudante aconselhou-a a resistir, sem lhe prestar qualquer
apoio supletivo, a vendedora desvalorizou o assunto, rindo-se, dando a entender
que seria bom aquiescer.
Zé Maria voltou sem o habitual
embrulho de roupa suja. Bem-disposto, com dichotes e cortesias inusitadas.
Sentando-se numa das cadeiras adstritas à mesa da cozinha, enquanto Berta
inventava trabalho, esfregando, secando, molhando e escorrendo peças, sem
necessidade – só a fazer tempo até que ele abalasse. Quis saber da saúde da pretinha do Congo, se
alguma vez teria ido ao médico e para que efeito. O que fazia durante o tempo
todo de sobra. Por onde passeava, o que ouvia, conhecia, mirava e pensava. Ao
pormenor indagou da sua dieta alimentar. Ofereceu-se para lhe proporcionar
conforto. Inquiriu-a quanto aos gostos e precisões em matéria de indumentária.
Por fim, retirou da algibeira do casaco uma caixinha de aspirinas e um conjunto
de comprimidos pequenos brancos, avulso, dentro de um frasco que tinha sido de
xarope e ordenou, delicadamente:
- Ora, muito bem, aqui tens estas
aspirinas para tomares no caso de alguma dor de cabeça e estas pastilhas
pequenas para tomares todos os dias, sem falta, que te farão bem, mas tens que
tomá-las todos os dias e logo de manhã, capito, percebeu a menina, hein? – Eram
pílulas, surripiadas à mulher. Deduzindo que se Bety nunca tinha engravidado
por via daqueles milagrosos comprimidos, supunha, também Berta não emprenharia.
Zé Maria partiu, solícito, batendo a
porta suavemente e Berta pegou nos medicamento e arrumou na gaveta dos panos de
cozinha. A ideia era mostrá-los a Paula. No dia seguinte dirigiu-se à Faculdade
de Farmácia. Porém na conversa com a estudante acabou por esquecer as aspirinas
e as pílulas, ante o entusiasmo de novo jantar na Avenida da Igreja, na
sexta-feira daquela semana. Logo combinaram o menu: muamba de galinha com
quiabos, óleo de palma, funje e tudo, como ditam as regras de uma boa muambada
à angolana.
Desta vez Berta teve o cuidado de
alertar Paula para o facto de não meter música, nem confusão, por via de Júlia
e dos restantes vizinhos. Porque se Zé Maria tomasse conhecimento seria o caos.
Receosa que, por qualquer eventualidade, o patrão aparecesse, mas ansiosa por conviver
com patrícios e comungar de hábitos e de tradições, arriscou, com entusiasmo.
Às vinte e uma horas na casa dos retornados a muamba com galinha do campo
exalava, perfumando toda a casa e até o patamar exterior com aquele perfume
intenso do dendê. Paula bateu com os nós dos dedos na porta, Berta logo abriu e
eis os restantes: Jandira, Gervásio, Roberto e Ernesto, três para três,
incluindo Berta e Paula.
A preta do Congo, menina feita mulher
através dos sinuosos caminhos de órfã colonizada, arrastada por meios e para
lugares improváveis das verosimilhanças de uma criança do mato, estava feliz
entre africanos em Lisboa. Tinha vindo ao mundo depois da abolição da
escravatura, mas tinha sido usada como se ainda imperasse tal domínio, tinha
nascido depois de abolido o estatuto de assimilado, mas fora-o como tal. Tinha
cartão de cidadã angolana residente em Portugal, mas era como se fosse
clandestina, porque não vislumbrava quem a livrasse da condição de subjugada à
contumácia de terceiros. Com os jovens africanos sentia-se feliz, porém não
passou de indivíduo utilizado, capaz de proporcionar serviços e prazer, sem reciprocidade.
A muamba deliciosa e camas excelentes para regozijo dos estudantes e uma
réstia, uns míseros e efémeros momentos de prazer, para Berta na cama de Susana
e de Fernanda com o atlético espadaúdo Ernesto, em antagonismo com esquálido
Afonso.
Os estudantes foram escasseando mais
as visitas à Avenida da Igreja, até por temor à vizinhança e ao presumível
embate com Zé Maria que, entretanto, se assenhoreou do corpo e destino de
Berta. Zé Maria tinha o que lhe proporcionava prazer em contrapartida com a sua
Bety, distante, assexuada e insípida. Berta desleixava-se, ia perdendo o
sentido da sua vida. Entregava-se a um qualquer destino, só não queria pensar
em felicidade, nem nos seus mambos. Os momentos de sexo exultantes não eram
seus, apenas e só de Zé Maria, para ela apenas os minutos exasperados. Nunca
mais tocou nas pílulas, mas também não engravidava, descansou, sofismando:
“ainda bem que sou maninha, ainda bem que não emprenho, senão…”.
Berta gostava de ler, mas coisas
simples, vocabulário corrente do quotidiano dos bairros populares e ainda dos
resquícios da ruralidade de Meruge. Ia ao mercado, deliciando-se com os pregões
das varinas e entretendo-se com a azáfama de mercadores e clientes. Da parte da
tarde descobriu uma livraria em Entre Campos onde se podia sentar e ler, tomar
um galão, por vezes, também uma torrada pão de forma com pouca manteiga.
Procurava nos escaparates qualquer tema relacionado com Angola. Chegou a
comprar um romance de Pepetela, mas teve dificuldade na interpretação da trama
romanesca. Descobriu um de Luandino Vieira e esse sim, falava do seu mundo
real, concreto. Andou de volta de poemas de Viriato da Cruz, António Jacinto e
de Agostinho Neto, porém deparava-se com o problema das metáforas, para ela a
linguagem da roça era muito restrita e directa. Olhou, por acaso, para um
pequeno livrinho: “Trinta e três Poemas Inteiros”. Fixou-se naquele título, sem
saber bem o porquê. Retirou-o do mostruário e, numa mesa, com a torrada e o
café com leite, começou a folhear. Percebeu: trinta e três porque correspondem
ao número exacto dos poemas publicados naquele pequeno volume. Na contracapa
passando os olhos pela curta biografia do autor, sem fotografia retratada,
pensou: “até parece que sei quem é… Não, se calhar é um pula qualquer…”.
Terminou a torrada e o galão, limpou os dedos a um guardanapo de papel,
repetindo o gesto nos seus lábio túrgidos de menina preta, enigmática,
solitária e decidiu-se pela leitura.
“ (…) Miro-te ainda à distância/No
ontem que agora mesmo resgatei/E para mim…/É o hoje, intemporal/Para lá do
corrosivo/O corpo ancorado/E a alma teimosamente néscia/Pueril…
Vejo-te ainda e só/Sob as bátegas
inundantes/Repentinas/Nesga entre nuvens inesperadas/Como se Deus,
incontinente,/Escondendo-se do Sol/Mijasse sobre a Terra,/E Luanda submergisse
Detritos dos musseques/Fedorentos
imbecis/ Colonizadores…
Títeres e lacaios e cipaios e
beija-mãos/Dengosos da podridão/Submissão!
Ah… mas tu?/Tu não!/As gotas em
catadupa/Encheram-te o diáfano vestido branco/Duas rolinhas de biquinhos
apontados/Eu, impotente,/Obsceno e louco/Derreto-me embasbacado/Perante o
esplêndido descerramento/A metamorfose do opaco/O emergir do
transparente/Deleitoso surgimento de todo o teu corpo”
Leu e voltou a ler e a reler e
sussurrou, imperceptível a terceiros: “não é pula não, não é pula, não é pula,
pula não é assim – Muxima. Muxima… Até podia ser eu, o meu corpo à chuva no
Uíge…
Mais adiante de página em página:
“tudo Angola, mas, Cafofa de Benguela… Mussulo… Bumba? Bumba? Mas quê? Bumba
chamou-me o patrão Silva e a ngana Alzira…”
“ Ai se pudesse, o que faria por
ti…/Será que não poderia mesmo?/Quando se quer, sempre se pode./Meu Deus, como
te sinto em mim…/Fosse eu ousado, capaz, corajoso/Porém, para isso, seria o que
[afinal não sou] / Merecias que fosse o que deveria ser/Sim, és mesmo
mulher!/Porventura, nem te cheguei a desiludir/Tal a insignificância…/Ainda me
terás fixado/Nem perdeste tempo, mas talvez devesses/Se me estendesses a mão,
poderia ser o que deveria/Se ao menos soubesses como lamento…
Vagueio pelas ruas à tua
procura/Busco na ausência a esperança do reencontro, mas…/Em cada rosto de
negra em cada [carapinha entrançada julgo ver-te] /Não, regresso vazio,
inane…/Oh preta, preta, mais negra de todas as negras/Luz mais luz de todas as
luzes/Subtil, linda, resplandecente…/Pomba azeviche, alva etérea, éter
eterato,/ [eternal bem supremo] /Nem ao menos um sinal, um esgar, um
muxuxo…/Uma coisa qualquer/Excepto este silêncio que me consome, sem saber de
ti [e tu presente sempre em mim…”
Berta acabou a leitura, soletrando,
petrificada. Memorou “este é o meu rapaz do MPLA, o meu turra, o meu turrinha,
agora sei que vou encontrá-lo, é um aviso de Kiandas. Estão me a informar…”
Ia para se levantar, mas virando mais
umas páginas fixou-se em “Resistência” e pôs-se a ler, devagar, silaba a
silaba: “Do Negage à Portela/Pérola Quicongo à beira do Tejo/Bairro da lata do
Areeiro/Musseque dos espoliados em Lisboa
Negra sozinha na noite/embrenhada no
escuro dos escorraçados/Avenida abaixo, calçada arriba/Olhos tristes, paisagem
do desconforto
Como quem persegue a luz/Borboleta
africana, perseverante/Paciente e desesperada, luta, desarmada/Na garganta um
nó/Mas, ainda assim, sorri…/Mostra os dentes…/Da boca carnuda, belíssima…/Negra
esbelta, triste/E contente/só porque está viva/E seduz…
Que linda que ela vai/Anda prenha a
negra do Congo/Veio de tão longe parir em Lisboa/Um filho da noite no musseque
do Areeiro.”
Estupefacta com o poema acabado de
ler quis erguer-se da cadeira, mas sentiu fugir-lhe o solo sob os
calcanhares. Fechou os olhos,
concentrando-se e pensou: “sim esta sou mesmo eu, será que estou grávida mesmo…
o período não vem há muito e sinto que sim, prenha, eu a preta do Congo,
quicongo e tudo… Areeiro é onde mora a Patrícia a quitandeira, varina angolana
do mercado, mas esta sou eu, Berta…”
Dirigindo-se ao balcão da livraria:
- Quero este livro, por favor…
Até à Avenida da Igreja percorreu
ruas ao acaso, finalmente introduziu a chave na fechadura, abriu e deixou-se
cair no sofá da sala dos retornados. Só após um bom bocado de pasmo reparou que
o livrinho continuava colado ao peito sob pressão da sua mão esquerda.
Estendeu-o ao seu olhar e não quis ler mais. Levantou-se e foi guardá-lo no
fundo da maleta onde ocultava as coisas mais íntimas, só suas, longe das vistas
de outrem. Ao colocar o livrinho de poemas, reparou no jornal “O Diário
Fim-de-Semana”. Demasiadas páginas de assuntos diversos que perdiam
actualidade. Pôs-se a ler e decidiu que assuntos datados e de natureza
múltipla, não os queria a tomar espaço. Começou por excluir tudo menos os
relacionados com Angola mesmo esses só lhe interessavam os de cariz histórico,
etnográfico, social e cultural. Foi retirando até que encontrou outros artigos
nos quais não tinha reparado e pô-los de parte para posterior análise. Deixou
as páginas excluídas para oportunamente forrar o caixote do lixo e sentou-se na
cozinha examinar dois artigos:
“KIMUEZO FIGURA LENDARIA (de
portugueses e angolanos)
Ficou conhecido por José ou Zé do
Telhado um dos mais famosos salteadores do período pós guerra civil, um
conflito que colocou absolutistas e liberais em campos opostos na primeira
metade do século XIX. Liderava uma quadrilha que distribuía parte do saque
pelos pobres, um gesto que lhe granjeou reconhecimento popular.
José Teixeira da Silva (1818-1875)
nasceu na aldeia do Telhado, em Penafiel. De origens humildes, aos 14 anos foi
viver com um tio, para aprender o ofício de tratador de animais e castrador. Em
1845 Casou-se com a prima Ana Lentina de Campos, com a qual teve cinco filhos.
Nos Lanceiros da Rainha de Lisboa
iniciada no quartel de Cavalaria 2, começou a carreira militar, Combateu contra
os “Setembristas” em defesa da restauração da Carta Constitucional, em Julho de
1837 Posteriormente envolve-se- no complicado processo da guerra civil que opôs
liberais a absolutistas, e acabou por sair do país após a derrota da sua
facção, refugiando-se em Espanha.
Ao regressar, grassava a revolta
contra o governo anticlerical de Costa Cabral. Quando estala a Revolução da
Maria da Fonte, Março de 1846, vê-se envolvido como um dos líderes da
insurreição. Coloca-se às ordens do General Sá da Bandeira, que também tinha
aderido. Assume o posto de sargento e distingue-se de tal forma na bravura e
qualidades militares que, na expedição a Valpaços, recebe a Ordem Militar da
Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, a mais alta condecoração que ainda
hoje vigora em Portugal. Mas entra em desgraça, amontoa dívidas de impostos que
não consegue pagar e é expulso das forças armadas.
Foi após o exílio de D. Miguel que
José Teixeira da Silva regressou a casa, assumindo a liderança de uma quadrilha
responsável por vários assaltos no norte do país, durante um período muito
conturbado que coincidiu com a fase de maior resistência de D. Miguel, no
exílio com o seu governo: os partidários miguelistas tentavam formar grupos de
guerrilha em todo o país e começa a ser conhecido como “Zé do Telhado”. Durante
uma dessas surtidas o seu grupo mata um criado e o bando passa a ser procurado
com mais insistência pelas autoridades. Acossado, tenta escapar, mas é preso em
1859 a bordo do navio no qual pretendia chegar ao Brasil. Conta-se que devido à
traição do seu lugar-tenente, José Pequeno.
Da prisão para o degredo em Angola
Preso na Cadeia da Relação, conhece
Camilo Castelo Branco, que se lhe refere no livro "Memórias do
Cárcere" e que tinha sido detido por adultério, o que acaba por lhe salvar
a vida. É o advogado-escritor que o vai defender em tribunal e, contra todas a
expectativas, não é condenado à morte. Em 9 de Dezembro de 1859 é julgado e
condenado a degredo perpétuo na África Ocidental Portuguesa, pena que haveria
em 1863, de ser comutada para 15 anos de degredo em Angola, país onde viria a
reconstituir a sua vida.
Viveu em Malanje, negociando
borracha, cera e marfim. Casou-se com uma angolana, Conceição, de quem teve
três filhos. Conhecido entre os locais como o "kimuezo" - homem de
barbas grandes, viveu desafogadamente. Faleceu aos 57 anos, vítima de varíola,
sendo sepultado na aldeia de Xissa, município de Mucari, a meia centena de
quilómetros de Malanje, sendo-lhe erguido um mausoléu, que se tornou num local
de romagens.”
Berta quedou-se um pouco, digerindo o
que tinha acabado de ler. Concluiu que gostava daquela personagem de branco
assimilado, associado a estatuto dos mais velhos, quiçá, Príncipe Mbaza Congo
na hierarquia dos kiandas misteriosos.
Voltou-se para o novo texto, “bem,
este é diferente, História de Luanda, vou ver a surpresa…” E deu-se à leitura,
silenciosa, feliz por ter aprendido a ler e a escrever algumas coisas, grata à
professora Alcina de Meruge:
“25 DE JANEIRO - DIA DA FUNDAÇÃO DA
CIDADE DE LUANDA, LOANDA ou (SÃO PAULO DE ASSUNÇÃO DE LOANDA)
LUANDA 25 de Janeiro 1575
A cidade ganha o nome através da sua
ilha (Ilha de Luanda), local onde os primeiros colonos portugueses se
radicaram. O topónimo Luanda provém do étimo lu-ndandu. O prefixo lu,
primitivamente uma das formas do plural nas línguas bantu, é comum nos nomes
de zonas do litoral, de bacias de rios ou de regiões alagadas (exemplos: Luena,
Lucala, Lobito) e, neste caso, refere-se à restinga rodeada pelo mar. Ndandu
significa valor ou objecto de comércio e alude à exploração dos pequenos
búzios colhidos na ilha de Luanda e que constituíam a moeda corrente no antigo
Reino do Kongo e em grande parte da costa ocidental africana, conhecidos por
zimbo ou njimbo.
Como os povos ambundos moldavam a
pronúncia da toponímia das várias regiões ao seu modo de falar, eliminando
alguns sons quando estes não alteravam o significado do vocábulo, de Lu-ndandu
passou-se a Lu-andu. O vocábulo, no processo de aportuguesamento, passou a ser
feminino, uma vez que se referia a uma ilha, e resultou em Luanda.
A cidade de Luanda foi fundada por
Paulo Dias de Novais, na sequência da chegada à região de uma armada de
Lisboa, que transportava várias centenas de homens, entre soldados, mercadores
e missionários.
Paulo Dias de Novais era um fidalgo
da Casa Real, neto de Bartolomeu Dias, que tinha anteriormente sido incumbido
de liderar uma embaixada ao reino de Angola. Conhecia, portanto, o terreno e os
cenários politico e social da região.
A armada chegou à ilha de Luanda em
fevereiro de 1575 e Paulo Dias de Novais, após reconhecimento do terreno,
decidiu criar um núcleo permanente, a que deu o nome de S. Paulo de Luanda, não
na ilha mas em terra firme devido às boas condições de defesa e, sobretudo, do
porto abrigado.
Paulo Dias de Novais morreu em 1589,
no decorrer de uma dessas expedições. Seja como for, Luanda passou a ser o
centro da presença e da influência portuguesa em toda região durante os séculos
seguintes, exceptuando um breve período, entre 1641 e 1648, durante o qual a
cidade esteve sob o poder dos holandeses.”
No final resolveu juntá-los como
relíquias aos outros considerados do mesmo modo, no fundo da sua maleta, como
se fosse o seu cofre.
Zé Maria andava arredio das visitas a
Berta, os negócios de transacções impunham-lhe deslocações, cuidadosas e
secretos contactos. Pela ligação a influentes decisores na diplomacia
portuguesa com angolanos, havia que empreender viagens à Suíça, França e
sobretudo ao Sul de Espanha. A instabilidade política em Angola, bem como a
acção continuada de guerra interna, tinham depauperado toda a produção no
território angolano, de Cabinda ao Cunene. Ora, nesse caso, abriam-se
crescentemente oportunidades de negócio, quer de primeira necessidade, quer em
matéria de bens de sumptuosidade das elites. As transferências de verbas para
os paraísos fiscais internacionais e o tráfego de bens, via clandestina,
passaram a ser bens mais lucrativas do que o meio século de exploração da roça
do seu pai no Uíge. Não obstante o progenitor Silva já mexer com a exportação
de pedras preciosas, através de subterfúgios e à revelia das autoridades
administrativas coloniais, nada se assemelhava aos montantes que Zé Maria
passou a movimentar.
Regressou de uns dias entre La
Valeta, Rabat e Marselha, com uma escapadela a Nicósia Ocidental só para ver a
mãe, dado que com os cunhados arrastava-se o litígio por via das alegadas
roubalheiras de diamantes na África do Sul. Furtando-se ao encontro com as
manas, cruzou-se ainda, por acaso, com Afonso, mas ambos enfiaram o focinho no
chão, ignorando-se.
Ao regressar à Avenida da Igreja,
assobiando, sequioso dos prazeres roubados à menina preta. Bem sabia que o consolo
não era dela, nem nunca fora recíproco, mas nada disso importava a quem já se
tinha habituado a mulher desenxabida como a sua Bety. A sua escola paterna
ensinava-lhe que a preto não se perguntava se queria, concordava ou não
aceitava – perpetrava-se e pronto, zás, toma, já está, aguenta. Nada de
cedências, molezas, comiserações. Se deres a mão ao preto, ele toma-te o braço.
Se o branco desejava a preta só tinha que a mandar vir, estuprá-la, mais nada.
“Era o que faltava, proporcionar gozo, líbido, orgasmo à escaruma,” pensou…
Encontrou o apartamento às escuras,
não havia luz eléctrica. Chamou para dentro:
- Berta, Berta! Que brincadeira é
esta, já estás com o focinho na palha? A esta hora…
- Estou aqui, menino, não há luz…
- Porra! Fô….. Cará… Esqueci-me de
pagar a factura. Não tens uma puta duma vela?
- Não, menino, há dois dias que a luz
não vem.
- Não veio a luz, mas venho-me eu,
anda cá sua gazela macaca. Não, desculpa, sua rainha ngola, boa como o milho,
estou cheio de saudades.
- Não, não, não, não quero, não
posso, menino, estou grávida…
- O quê, repete lá isso! Será que
ouvi bem, malvada! Pensaste que me agarravas com essa merda, esse truque? Vais
já abortar, mas é já! Ouviste? Obrigas-me a gastar um dinheirão. Se repetes
vou-te aos cornos, toma nota!
- Não menino, não quero isso, o filho
é meu, só meu…
- Querem lá ver que estamos perante o
milagre da virgem, da santíssima trindade. Olha, se calhar, emprenhaste pela
graça do espirito santo. Eu sei que sou o teu deus, mas daí a emprenhar-te à
distância, por telepatia, sei lá… Tu pensavas que tinhas aqui tença para o
resto dos teus dias, não és nada burra. Comigo milongos não pegam…
- Não, menino, deixe-me ir.
- Mas… Não me digas que me puseste os
cornos…
-Não, menino, só quero o meu filho,
deixe-me ir.
- Até me farias cá um jeitaço, mas
para aonde? Prenha…
- Não sei, não sei, mas quero ir…
- Amanhã venho cá tratar do assunto,
depois de ir à companhia pagar e pedir para restabelecerem a energia.
Berta, logo naquela noite fatídica,
em que o patrão Zé Maria ficou sabendo da sua gravidez, foi ao bairro da lata
do Areeiro, ao aglomerado de barracas distendidas ao longo da linha do
caminho-de-ferro. Conversou com a sua conterrânea quitandeira, aquilatando da
possibilidade de se acolher ali.
- Vem já, está uma barraca à venda,
com luz de puxada e tudo, cinquenta contos. – Instruiu-a Patrícia.
No dia seguinte, Zé Maria surgiu,
após a hora do almoço, com cara de poucos amigos, carrancudo, de trombas.
- Então, princesa, tens para aonde
ir?
- Sim, menino, mas preciso comprar
uma barraca, são cinquenta contos…
- Cinquenta contos, julgas que
assalto bancos?
- Para a rua não posso ir, assim…
- Bom, quero lá saber, que se lixo,
pelo menos livro-me de ti. Não me apareças mais à frente, ouviste? Não sou o
pai de ninguém, toma atenção!
- Sim menino, só quero ir…
Zé Maria bateu com a porta, saindo
escadas abaixo. Meia hora depois voltou com notas num envelope pardo.
- Tens vinte e quatro horas para me
desamparares a loja. Tens aqui duzentos e cinquenta notas de conto, mais do que
te vales. Acabou-se, não te quero pôr mais a vista em cima, estamos entendidos?
Ai de ti se deres com a língua nos dentes. Amanhã mesmo mando mudar a chave da
porta, escusas de ter armar em espertinha. Adeus, passa bem, foi bom enquanto
durou.
Berta sozinha, sob o denso e pesaroso
silêncio ensurdecedor, pensou: “estou só”. Quase a entrar no desespero, fez-se
luz na mente que julgava inane: “ os sonhos não morrem, apenas adormecem a
nossa alma.”
Foi-se à luta, a preta do Congo,
perseverante, olhos tristes do desengano, paciente e desesperada, borboleta
africana, embrenhada no escuro dos escorraçados, como quem perseguia a luz, ainda
assim, sorrindo, só porque estava viva e seduzia, andava prenha, tendo vindo de
tão longe parir em Lisboa, um filho da noite no musseque do Areeiro.
Lá se foram as manhãs preguiçosas, os
desmesurados vagares de contemplação, as esperas de quem tanto queria distância,
cujas contingências a subjugavam como rês caminhando para o açougue. De caixote
à cabeça logo nas gélidas manhãs, fazendo de quitandeira de canastra de
qualquer mercadoria de refugo, batendo à porta dos também desafortunados
fregueses. A cada dia de labuta o corpo mais lhe pesava, não apenas em virtude
do crescente amadurecimento do fruto que no ventre carregava, mas sobretudo
dada a mágoa de que no seu espírito se ofuscava. Os finos, delgados e
belíssimos tornozelos, pareciam que copiavam a elefantíase. Da esbelta silhueta
feminina, compridos e atléticos membros apenas sobressaía, e não muito, a pança
prenha. De resto, inchada, só se fossem os grandes lábios vaginais, porque as
maminhas rezingavam pequeninas, não querendo desabrochar de menina pretinha de
Tambuco.
A colega, conterrânea e amiga
Patrícia alcovitava:
- Berta, quase não tens barriga, as
tuas mamas não crescem, não vais ter leite, vais ter um bebé pequenino, não
pode, tens que comer…
- Mais? Olha só, a minha mãe era
assim. A minha irmã teve um filho dum branco e também não tinha quase barriga…
- Filho de preto ou de pula, a
barriga e as mamas da mulher crescem sempre.
Nem tudo era nefasto no bairro da
lata do Areeiro, como nos musseques de Luanda, a comunidade partilhava meios e
conhecimentos. Berta foi encaminhada para a segurança social, através de
técnicas habilitadas. Foi apresentada à directora da Associação o Ninho onde
recebeu apoio, afectividade e esclarecimentos convenientes para que a sua
gravidez fosse conduzida com os meios necessário e adequados ao seu caso de mãe
solteira, imigrante e desempregada.
A noite do parto chegou quando ainda
não se esperava, antes mesmo de madrugar para a sua habitual deslocação à lota
do peixe onde buscava produto vendível naquele dia amanhecente. Não foi sozinha
para a maternidade, Patrícia, a confidente, estava convidada para madrinha e a
directora de O Ninho tinha-se voluntariado para todas as diligências junto das
instâncias da assistência social. Afinal a menina nasceu grande e foi difícil
de parir. Os mamilos brotaram colostro, mesmo que pequeninos. Berta, ainda
dorida, logo quis mirar o seu bebé. Tinha-o imaginado como um raio de luz,
resplandecente, a sair das suas entranhas. Imaginara-a a menina enviada pelos
espíritos dos mais velhos, aquela que lhe traria o consolo, o sal, o conforto à
sua vida insonsa. O poema que a anunciara era o seu anjo São Gabriel, o
mensageiro enviado pelo seu Deus branco, o rapaz guerrilheiro nas matas de
Mbanza Congo. O seu espírito protector que a arrancara dos escombros de
Tambuco, que se lhe mostrou no aeroporto, enfiando-lhe moedas nas suas próprias
mãos. Que lhe enviava sinais de esperança e lhe injectava forças e tino na
perseverança da sua caminhada. No entanto, ali à vista, um ser frágil, apenas,
que nem um cachorrinho, sem graça, apagadinho, à mercê de qualquer papa-crias,
na selva dos vorazes predadores, citadinos…
No momento do registar oficialmente
uma nova cidadã ao mundo dos mortais, Patrícia, a madrinha encomendada, ditou:
Nome – Patrícia Domingas Kalemba
Duarte.
Nome do pai: Manuel Luís Sousa
Duarte.
Nome da mãe: Berta Kalemba.
O pai assina? Não, ausente no
estrangeiro. Mãe, presente.
A directora, humanista, amorosa,
sensível, reparou no desapontamento, quiçá, frustração de Berta, afagando-lhe o
rosto, confortou-a:
- Menina, ânimo - não exijamos dos
outros qualidades que ainda não possuem; a felicidade não entra em portas
trancadas.
Uma mãe sozinha na selva dos
edifícios de cimento, argamassa, austera, vertical, ferro, tijolo, ruas pejadas
de apressados, frustrados, obtusos, alegres, contentes, inteligentes,
humanistas e vis hipócritas, todos numa amálgama de transeuntes indiferentes
aos gritos mudos, insuportavelmente pesarosos, aflige-se, exaspera-se, mesmo
que, apenas, querendo sobreviver.
A preta do Congo, do Negage à
Portela, pérola quicongo à beira do Tejo, bairro da lata do Areeiro, musseque
dos espoliados em Lisboa, negra sozinha na noite, embrenhada no escuro dos
escorraçados, avenida abaixo, calçada arriba, olhos tristes, paisagem do
desconforto, como quem persegue a luz, borboleta africana, perseverante,
paciente e desesperada, luta, desarmada, nó na garganta, mas, ainda assim,
sorri… Mostra os dentes, da boca carnuda, belíssima, negra esbelta, triste e
contente, só porque está viva e seduz…
Que linda que ela é a negra do Congo
que veio de tão longe parir em Lisboa. Tem uma filha da noite, brincando no
musseque do Areeiro a quem precisa de dar comida. Os mamilos pequeninos,
hirtos, sublimes, secaram nas agruras.
Berta subia e descia escadas, ia a
patamares de elevador, percorria a cidade a pé, de autocarro, de eléctrico e
até de comboio aos arrabaldes. Entrava e saía de qualquer habitação urbana na
senda de sustento. A lavar, a engomar, a esfregar, cozinhando comida para os
outros como se ainda morasse na roça do patrão Silva, às ordens da ngana
Alzira. As novas patroas, umas educadas e instruídas, outras convencidas vilãs
promovidas que mais aparentavam nguetas tipo Júlia racista, ignorante e
coscuvilheira branca da Avenida da Igreja.
No seu bairro da lata do Areeiro
também residiam: manjaco, papel, mandinga, badiu, sampajuda catanhó, beirão,
indiano, paquistanês, transmontano, alentejano, algarvio, minhoto, campino,
alfacinha, tripeiro, cigano, kuicongo, quimbundo, lunda-quioco, umbundo,
ganguela, lunhaneca, luncumbi, kwanhama, xindonga e herero. Mas não só, abundava
a brancada e a mestiçada dos quatro cantos da Geo planetária, os espoliados da
sorte e da sociedade da procura e da oferta mercantil à Colbert. Os portugueses
que tinham demandado ao estrangeiro, os retornados que, entretanto, granjearam
manhas do desenrascanço nas ex-colónias estavam ausentes dali, bem como a elite
económica e uma crescente classe média, ignorando os bairros da lata: Areeiro,
Casal Ventoso, Meia Laranja, Trafaria, Quinta da Cabrinha, Chelas, Zambujal,
Tojal, 1º de Maio, Charneca do Lumiar, Camarate, Ameixoeira, Portela, Jamor, Algés,
Bela Vista, Porcalhota, Damaia, etc.
Berta deixava a sua filha Patrícia
aos cuidados dos outros meninos no bairro da lata como se fosse num qualquer
meio rural tal como tinham sido as aldeias portuguesas, Meruges, dos tempos
salazaristas e marcelistas. Como se residisse numa qualquer latitude nos
aglomerados dos excluídos: Rebera Bote;
Monte Sossego; Bairro Operário de São Paulo de Luanda, Rangel, Mota, Cazenga,
Prenda, Cuca…
Lugares onde não apenas se adicionavam novos
moradores pobres, mas também ratazanas, gatos, gatas, cachorros, cachorras,
cães e cadelas grandes, médios e canitos, cabras, bodes, galinhas, galos,
porcos e porcas. As grandes diferenças em relação a Rebera Bote de São Vicente? Talvez o facto de em Portugal
proliferar a diversidade étnica, cultural, física e psicológica nos humanos e a
raça bisara ao invés da negra suína africana. As cabras deambulantes dos
bairros da lata de Portugal davam mais leite do que as de Rebera Bote porque tinham mato, erva e mais restos para devorarem,
enquanto aquelas se restringiam a esporádicos ramos ressequidos de acácias ou
papéis esvoaçando ao vento agreste a partir do Monte Sossego onde também havia
prostíbulos como os do Cais do Sodré, Bairro Alto e Intendente.
No bairro da lata do Areeiro, como
noutros, pontificavam os duplamente usados, ou seja, os que tinham sido carne
para canhão na colonização e na Guerra Colonial e fugiram de lá farejando os
donos como animais amestrados. Muitos pretos dos bairros da lata agiam como
antigos escravos comendo à mão dos esclavagistas, nem saberiam viver sem a sobra
do patrão. Cá já não destonavam minas antipessoal e antianimogue nas picadas, à
frente das tropas tugas, mas davam o corpo ao manifesto nas obras e naquilo que
a brancalhada rejeitava. As pretas e mulatas também teriam que se prostituir e
trabalhar nos restos. Os meninos e meninas, como Patrícia, filhos dos
submetidos, pelo facto de nascerem no chão pátrio do pula, não deixavam de ser
igualmente estrangeiros tal como os seus pais.
Os párias em Portugal, oriundos das
antigas províncias ultramarinas, não faziam jus à reivindicação independentista
de muitos dos seus antecessores ao longo de mais de duzentas e cinquenta
gerações. Assim, até parecia que os deuses kiandas os ignoravam.
Na democracia pós colonialismo, a
Constituição da República estipula educação, saúde, habitação e trabalho para
todos. Porém os mandantes não eram os aparentes. Esses figuravam por detrás da
cortina, como no colonialismo, não eram os do tipo roça Silva de Carmona, esses
eram peões privilegiados, tal como os deputados à assembleia da República. Os
verdadeiramente mandantes possuíam monopólios e empórios de riquezas cujos
lucros davam para comprarem serviços e servidores.
Nos bairros da lata também havia
supermercados, os da droga, e também não eram dos traficantes no terreno. Os
barões da droga não iam aos bairros degradados. Residiam em mansões como os da
quinta da Marinha. Ocupavam apartamentos luxuosos, no cetro da cidade, de onde
tinham expulsados os antigos moradores dos bairros populares. Aos bairros da
lata assolavam consumidores em Porches, BMW e até de Limusines, mas quem morria
de overdose eram os viciados e traficantes da ralé, que para manterem os hábitos
esvaziavam a casa dos pais e hipotecavam o próprio futuro.
Não eram os políticos, nem os
mandantes que culpavam em público os pretos e os ciganos de todos os males, mas
compravam e instruíam quem o espalhasse. Para lavar a cara à cidade e parecer
melhor à luz das instituições internacionais, mandou-se arrasar os bairros da
lata, espetando com os espoliados em caixotes de cimento barato, na vertical,
plantados nos descampados como cogumelos. Os retornados e os refugiados, como
qualquer viajante, transmitiram e receberam influências. Os íncolas portugueses
adotaram expressões novas, trazidas sobretudo pelos mestiços, enriquecendo o
vocabulário com novos termos como bue, madie, catota, kota, meu, iá e um sem
número de expressões fácies, como muitos dos anglicismos. Contudo, se adotaram
o significante, não o obedeceram no significado. Por exemplo, um kota africano,
porventura umbundo, representava, em África, pessoa veneranda, sapiente, elemento
aglutinador da comunidade, no novo Portugal significava, um velho caduco,
descartável, à maneira das sociedades neoliberais, um peso morto na equação da
lei da oferta e da procura.
Berta, por vezes, quase desfalecia,
por pouco, só por uma unha negra não negava a sua crença no seu anjo da guarda
e no poder dos espíritos dos mais velhos, dos seus kiandas. Contudo,
endireitava-se sempre na manhã seguinte e voltava à luta, procurando manter o
rosto limpo, olhos abertos, grandes, e o sorriso de menina preta do Congo.
Como aprendera em Meruge, por vezes,
quando a necessidade obriga, dá-se o corpo ao manifesto. Na linguagem
futeboleira dizia-se, põe-se toda a carne no assador. Em Meruge aprendeu até a
usar a sachola. Em Lisboa, o seu corpo teria mesmo de fazer de enxada e era se
queria dar comida a Patrícia. No final de sábado outonal de morno Outubro foi,
como se dizia, eufemisticamente, fazer serviço ao domicílio lá para a zona da
Praça das Flores. Ela e Cristina, esta mais
conformada com os serviços ao domicílio, sem se importar a quem, se velho, se
novo, se pobre, se rico, se limpo, se porco, se solitário ou devasso. No fundo
das escadas do prédio na morada combinada, Berta recuou, teve receio, teve
pena, muita pena de si própria e não foi capaz naquele dia. Cristina subiu
indiferente, parecia contente da vida e foi, enquanto Berta a aguardaria
sentada num banco de jardim.
Cristina partiu contente e regressou
eufórica, parecia ébria. Mesmo antes de se abeirar da colega, mostrando notas
entre os seus dedos da mão destra:
- Olha, olha, querias? Querias mufete
para amanhã? Vai lavar escadas!
Troçava e voltava a troçar de Berta,
esta triste, enigmática. Cristina adiantou mais:
- Não quiseste, melhor para mim,
aviei os dois pulas. Agora vamos ali à rua do Poço dos Negros apanhar o vinte e
oito, se calhar, ainda vou fazer mais, esta noite.
- Preciso muito, mas não tive forças,
não fui capaz… - Retorquiu Berta, preocupada.
- Olha, espera, anda, vamos beber uma
cerveja e comer uma bifana aqui no Meia-Noite, pago eu. – Ditou, resoluta,
Cristina, ao chegar ao fundo da Calçada do Combro, nas imediações do liceu
Passos Manuel.
Ambas penetraram na cervejaria. No
interior, a clientela de sexta-feira à noite, sobretudo estudante do Passos
Manuel do ensino nocturno, no final das aulas, tagarelavam que nem gralhas
notívagas. As duas, especadas, percorreram com a vista todas as mesas e lá
descortinaram uma vaga, de quatro lugares. Sentaram-se sem pedir autorização ao
empregado de mesa. Ele chegou, disse:
- São só as duas? É que se chegar
mais alguém tem que se sentar também.
Berta não respondeu, mas Cristina,
fazendo orelhas moucas, pediu:
- Uma cerveja, uma garrafinha de água
e caracóis.
- Cerveja fresca não tenho, pode ser
imperial?
- Pode!
Berta não consumia álcool. Nem sentia
fome, estava apreensiva, ia bebendo uns pequenos goles de água engarrafada,
enquanto Cristina sorvia cerveja e chupava caracóis, abstendo-se das
preocupações da colega.
Manuel, estudante trabalhador do
décimo segundo ano nocturno do Liceu Passos Manuel, assomou-se à porta do
Meia-Noite, a exemplo do que costumava à sexta-feira, pós o términus da última
aula. Não vendo lugares vagos e não lhe interessando a companhia de colegas,
por via da sua intenção em passar uma vista de olhos, sossegado, sobre os
apontamentos, gozando do barulho como se fosse música de fundo, óptimo meio de
concentração, decidiu-se por se dirigir à mesa das duas africanas.
- Dão-me licença? – Perguntou, virado
par Cristina, julgado que a outra figura, de costas para a plateia, de
carapinha, extensões alongadas, à músico jamaicano, fosse companhia masculina
dada a razia de peitos, sem ainda lhe ter enxergado o rosto.
- Senta-te e paga-me uma cerveja. –
Atirou Cristina, autoritária e indiferente.
- Está bem, peço já! – Respondeu o
rapaz, sorrindo face ao descaramento da preta obesa, desajeitada. – E para sss…
- Ia para perguntar a Berta se também queria, mas ficou-se pela tentativa face
ao deparar com a expressão aberta, enigmática daquela moça que lhe pareciam
olhos, faces e boca familiares.
- Para mim, nada, obrigado, ainda
tenho aqui água, não bebo bebidas alcoólicas.
- Tá bem, ofereço um sumo ou outra
coisa qualquer.
Aproximou-se o empregado e indagou
para Manuel:
- E prá aí, um fino e o prego da ordem?
- Sim, Miguel, obrigado. Ah, e mais
um fino para esta senhora e, já agora, dois pregos.
Manuel, totalmente alheada da
presença de Cristina, nem tomou nota da proposta dela:
- Vamos lá, queres ir comigo pró
quarto, filho?
Só reparou no ar reprovador, de
gestos desaprovativos e zangados, perante a tirada da colega.
- Ah, é isso, não, não leve a mal,
mas…
Ia para prosseguir com qualquer
desculpa para Cristina, sem querer melindrar, nem aquiescer, quando Miguel
chegou com os finos e os dois pregos, cortados a meio, cada qual em seu
pratinho. Cristina, nem ligou mais importância, esticou a manápula a um dos
pregos, segurando num dos finos e sorveu, e comeu sofregamente. Manuel voltou a
sorrir, encarando com Berta de olhos em si, familiar como que irmanados uma
vida inteira. Serenamente, sem perceber bem o motivo, sem fazer menção de pegar
nos apontamentos, dentro da pasta, sobre o seu colo, adiantou:
- Geralmente, venho aqui todas as
sextas-feiras, depois das aulas. Peço um prego e um fino, por isso é que ele me
perguntou se era o do costume. Gosto disto porque revejo os meus apontamentos
da semana inteira. Amanhã é sábado não
trabalho, posso dormir até mais tarde, descansado. Moro sozinho, ali no largo
do Miradouro de Santa Catarina e trabalho no banco, mesmo em frente, no
Calhariz, por isso…
Cristina já se preparava para largar,
ao mesmo tempo que Manuel tomava meio prego para si e arrastava delicadamente a
outra metade para Berta. Atrapalhou-se com os repentinos de Cristina e o receio
que Berta também abalasse. Esta quase
ensaiou movimentos de se levantar da cadeira, mas ficou, sem pestanejar,
serena, só a vista dirigiu para a colega que saiu decidida porta-fora e logo,
em frente, tomou um táxi.
- Tiveste medo que fosse com ela? –
Serenamente, com candura, em voz suave, silabas batidas, palavras redondas,
perguntou Berta a Manuel.
- Sim, tive… Gosto de ti, tenho a
sensação de que nos conhecemos e bem…
- Manuel Luís Sousa Duarte… -
Soletrou Berta pausadamente, como se murmurasse par si ou falasse durante a noite
velando.
- Si, isso, eu próprio, como sabes?
Linda menina. Julgo que és… Não pode ser. Mas és mesmo igual, não pode ser, ser
capturado por andar à tua procura e agora encontrar-te em Portugal…
- Foste preso em Maquela do Zombo?
Sou eu mesmo a Berta que salvaste em Tambuco e me deixaste, sozinha, em
Maquela, do Zombo, ainda me dói teres-me deixado assim. Porque não me levaste
convosco? Tiveste medo que vos denunciasse?
- Não, não tive medo de ti, só amor,
solidariedade, mas não podia, tínhamos regras, ordens superiores. Depois fui à
povoação, sem autorização, nem precauções, os paraquedistas capturaram-me.
- Fizeram-te mal?
- Não, nem me tocaram, o tenente, o
alferes, o sargento e os soldados trataram-me bem. Mandaram-me de helicóptero
para Benguela. Estive algum tempo preso e depois, meteram-me num navio no
Lobito, sob prisão e aqui estou, livre, sem cadastro, graças ao 25 de Abril de
1974. Tenho andado a pensar em voltar a Mbanza Congo, à tua procura, só queria
saber se te tinhas desenrascado e se estarias feliz…
- Feliz estou, agora, contigo aqui,
mas não tenho estado, quase desacreditava em te descobrir outra vez. Vi-te no
aeroporto quando cheguei cá, em 1975. Não me viste e não reparei que eras tu,
por isso não fui atrás. Sei o teu nome porque tenho o teu livro de poemas,
Trinta e Três Poemas Inteiros, e sei que alguns poemas eram para mim. Como
descobriste que estava grávida se não sabias nada de mim?
- Eu não sabia onde andavas, nunca te
imaginaria em Portugal. Não te vi grávida, apenas o meu subconsciente, a minha
intuição poética, nem sei como te explicar…
- Não expliques, não é preciso, Posso
ir contigo?
- Se podes, podes e deves, eu quero.
- Então vamos, até pagava eu mas não
tenho mesmo dinheiro, pagas a conta?
- Claro que pago, o que for meu será
teu, sempre, anda. Moro sozinho, como te disse, a minha família vive no
Cartaxo, não tenho namorada, mas comprei uma casa mais ou menos confortável.
Como trabalho no banco, tive oportunidade de resgatar uma hipoteca a uma
família incumpridora, a juros beneficiados, tudo legal, nada de candongas. De
lá telefonas à tua gente, a dizer que hoje não vais. Não te faço mal, não
estupro, embora sinta uma vontade incomensurável de te beijar e abraçar.
- Não tenho que ligar a ninguém, a
minha filha está entregue a uma amiga e mais família não tenho, nem nunca tive
desde aquela que sepultaste alguns restos, lembras-te, amor? – Ao pronunciar a
palavra amor, duas lágrimas grossas brotaram dos olhos, descendo rosto abaixo,
Manuel aparou de lábios comprimidos contra as faces da menina preta do Congo.
Na rua, depois de saírem da
cervejaria, Meia-Noite, quedaram-se mudos de tanto quererem dizer um ao outro.
Emudeceram por carência de vocabulário que descrevesse tantos sentimentos,
tantas coisas que pretendiam partilhar. Até que Berta, mulher portentosa,
corajosa e dotada de categorias inauditas de que só elas são capazes, perante
Manuel, homem frágil e titubeante como os outros machos descidos à sua condição
de género garboso, mas mortal, à mercê da fêmea deleitosa, perguntou, terna:
- Lembras-te como te despediste de
mim em Maquela do Zombo?
- Então não, claro. Queres que te
exemplifique?
- Quero, estou à espera há tanto
tempo… - Ao responder assim, franqueou-lhe a sua face e Manuel, solicito,
repetiu como naquele dia o beijo suave e a carícia meiga na outra face, como os
mesmos olhos embaciados, retesos de lágrimas de dor, coração palpitante,
sentido de impotência perante tamanha empresa, a de vencer os monstros das
injustiças, mas determinado, quiçá, quebrar os cornos a toda e qualquer
desgraça, por maior que fosse a avalanche. Berta outra vez uniu os lábios aos
de Manuel que cobriu de beijos os olhos, as faces e lhe aparou mais duas
grossas lágrimas, como se canta-se: “Mãe-Negra, desce com ela... Nem
buganvílias vermelhas, nem vestidinhos de folhos, nem brincadeiras de guizos,
nas suas mãos apertadas. Só duas lágrimas grossas, em duas faces cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento, voz de silêncio batendo nas folhas do cajueiro...
Tem voz de noite, descendo, de mansinho, pela estrada...”
De mãos dadas subiam a calçada e o
rapaz branco que quis ser herói de metralhadora em punho, porém imberbe,
incauto, impreparado manso, tão manso que nem uma kissonde seria capaz de
espremer quanto mais mabecos pulas e mancebos serviçais, cantava, calado, feliz
e assustado, a canção:
“ Naquela roça grande não tem chuva é
o suor do meu rosto que rega as plantações; naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja são gotas do meu sangue feitas seiva. O café vai ser
torrado pisado, torturado, vai ficar negro, negro da cor do contratado. Negro
da cor do contratado! Perguntem às aves que cantam, aos regatos de alegre
serpentear e ao vento forte do sertão: quem se levanta cedo? Quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa a tipoia ou o cacho de dendém? Quem capina e em
paga recebe desdém, fuba podre, peixe podre, panos ruins, cinquenta angolares
“porrada se refilares”? Quem? Quem faz o milho crescer e os laranjais
florescer? – Quem? Quem dá dinheiro para o patrão comprar máquinas, carros,
senhoras e cabeças de pretos para os motores? Quem faz o branco prosperar, ter
barriga grande – ter dinheiro? – Quem? E as aves que cantam, os regatos de
alegre serpentear e o vento forte do sertão responderão: “Monangambééé…”Ah!
Deixem-me ao menos subir às palmeiras. Deixem-me beber maruvo e esquecer diluído
nas minhas bebedeiras.”
Berta não ouvia a canção mas sentia o
coração de Manuel palpitando com tanta força que temia que lhe fugisse como
cavalo veloz a trote adejante. Por isso apertava-lhe a mão, caminhando tão
juntinha que nem espaço permitiria que uma faúlha entrasse entre ambos, já que
as almas há muito eram inseparáveis. Manuel, o guerrilheiro improvável, coração
manteiga, seguia, lábios cerrados, memórias esvoaçantes, cantando a Berta mais
uma canção:
“Porque os outros se mascaram, mas tu
não. Porque os outros usam a virtude para comprar o que não tem perdão. Porque
os outros têm medo mas tu não. Porque os outros são os túmulos caiados, onde
germina calada a podridão. Porque os outros se calam, mas tu não. Porque os
outros se compram e se vendem e os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os
outros são hábeis mas tu não. Porque os outros vão à sombra dos abrigos e tu vais
de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas eles não.”
Subindo juntinhos a calçada, cinco
meliantes ou toscos desventurados, porventura ébrios do álcool desnaturado,
meteram-se com Manuel, rapaz guerrilheiro desarmado, de coração agrilhoado à
preta do Congo. Hesitou, quis ripostar à laia de cavaleiro medieval de peito
feito contra castelos de ventos. Porém, Berta mulher de experiência feita,
tomou ela as rédeas de defesa da fortaleza, ordenando-lhe, seciando, palavras
mansas de amor e de confiança:
- Anda, caminha comigo, não se responde
a cobardes. Homens valentes, lindos e corajosos como tu não descem tão baixo.
- Mas eles ofenderam-nos,
humilharam-me. Sinto-me um merdas. Se calhar, pensas mal de mim. Porra! – Reagiu
Manuel a tremer de raiva, impotente.
- Só nos ofende quem para isso tiver
categoria bastante. Nós, muito menos tu, não lhe conferimos esse poder.
- Fico triste quando alguém me
ofende, mas, com certeza, eu ficaria mais triste se fosse eu o ofensor...
Magoar alguém é terrível!
Chegados à porta de entrada da casa de
Manuel, ela sem saber, parou quando ele se pôs a remexer na algibeira das
calças de ganga, com a mão livre. A outra sempre presa à dela, atrelada como
arreata, segurando potra esquiva. Escusado, ela era mansa. Até poderia escoicinhar,
mas não naquele cavaleiro. Ela mesmo queria ser montada por ele desde o
inesperado encontro após o brutal bombardeamento tuga, em Tambuco.
- É aqui, desculpa, estou tão nervoso
que nem encontrava as chaves. Cá estão, esta é do correio, esta da porta de
cima e esta daqui. Não temos comunicador lá de cima, moramos no terceiro
esquerdo. Já te dou um conjunto que lá temos de reserva.
- Esses nós, nós moramos, nós temos…
- Pensei que quisesses fazer parte do
conjunto a dois. Não, perdão, a três: eu, tu, ela, a Patrícia, pequenina…
- Quase me aliviaste da dor que trago
no peito, desde do momento que me disseste aquilo em Maquela do Zombo. É que se
te referisses a ti e a outra qualquer, antes me tivesses matado com uma das
granadas que trazias. Sabias mesmo lançar aquilo?
- Acho que não seria capaz de lançar
contra ninguém, nem mesmo a mabeco ou a hiena, em legítima defesa. Já deves ter
percebido que não sou lá grande espingarda em desavenças e pelejas desavindas,
a harmonia é muito mais confortante. Se fosse mesmo um combatente a sério, como
alguns do Zaire, ter-me-ia atirado àqueles infelizes, há pouco, nem que isso me
custasse a vida. Num ápice, tiveste o poder de me transmitir essa tua enorme
serenidade, essa incrível sensatez que mais me parecem dez mil anos de siso.
Por isso, acobardei-me, mesmo correndo o risco de me considerares um reles e
medíocre cavalheiro. Mas como já não somos selvagens medievais, cometi-me à mulemba
e esplêndida protecção feminina da rainha Ginga, menina belíssima, preta do
Mbanza Congo e aqui estou, cobarde mas inteiro. Quanto ao que te afirmei
naquela fatídica, ou talvez não, tarde em Maquela do Zombo, acho que ainda me
doeu mais a mim: ordens são ordens, guerra sem disciplina nas hostes está
perdida de batalha em batalha, eis alguns ensinamento que lá assimilei de
sábios, que julgas? Vai lá, agora tenta encontrar ajuda, mas é segredo, não
fales a ninguém em nós, não digas que nos viste, a ninguém, mesmo ninguém,
qualquer dia voltaremos para saber de ti: jura! Foi isto que disse?
- Exactamente, guardei mesmo esse
segredo, só que demoraste muito e eu já estava cansada, muito cansada, a dor já
não cabia no peito, podia estoirar a qualquer momento. Acho que só não caí por
causa da Patrícia a quem tinha de alimentar. Percebes mesmo?
- Se percebo, ninguém melhor me
poderia explicar, pelo menos tão cruelmente verdadeiro, profundo, sereno,
metaforicamente poético, brutalmente cru, literal…
- Bem, o emprego de tantas palavras
não estão ao meu alcance, a minha formação está muito abaixo da tua, não sei se
entendeste…
- Não, não entendo assim, não se
trata de habilitações literárias nem de teses académicas. Tão só de
sensibilidade, inteligência, saber, saber verdadeiro e aí, menina, levas-me
dianteira e que avanço, mas consigo ir atrás. Ajuda-me… Por mim, por nós, julgo
que me darás alento, força e determinação para mergulhar no ponto mais profundo
dos oceanos em busca do teu kianda, mesmo que seja o mais renitente, escondido
no maior esconso dos refúgios…
- E eu que posso dar em troca?
- Nada, tudo, tudo o que só tu me
podes dar, nem sei se há outra forma de expressar amor como este, singular,
nada de fútil, nem pindérico, nem gasto, nem roto pelo mau uso…
Berta e Manuel tinham alcançado o
patamar cimeiro, ele, imensamente excitado, comovido, exultante como se
declamasse o mais sentido dos poemas de amor, sorvido pela multidão da maior
das plateias, da qual só enxergava Berta de olhos retesos, beijando os seus
lábios sequiosos por supremo desejo. Berta, grávida de amor, ansiedade e desejo
arrebatador, porém, serena, segura, hirta, capaz de derrubar a mais feroz das
tempestades, como fera inquebrantável na defesa de Manuel, nem que para tal
tivesse de enfrentar o maior dos dragões incandescente do universo, como mãe
protegendo, defendendo para lá dos limites o que é seu, intrinsecamente. Só aí,
nesse momento, prestes a penetrarem no interior do espaço dos seus domínios
onde firmariam o maior dos segredos, sem peias, em desvelos, Berta libertou a
sua mão de Manuel, mas foi só para melhor encostar os seus lábios túmidos de menina
pueril aos dele que não se cansavam de lho clamar, através do olhar suplicante.
Com as duas mãos soltas pôde melhor selar as carícias mansas, acutilantes que
nem espadas afiladas, capazes arrancar do íntimo dos íntimos a fístula que
carregavam por tão delongada ausência. Na manobra suave de contorções labiais,
fundas e sentidas profusões tácteis e olfativas, Berta, por sua vez,
sussurrando vagidos, ciciando gritos alarmantes de socorro ao ouvido de Manuel,
como ósculos prazerosos:
- Ajuda-me, ama-me muito que eu
quero-te muito, muito. Preciso de ti…
O primeiro ocupante, só por isso guia
habilitado a mostrar e descrever o espaço sagrado de ambos, o novo altar
iniciático de todos os rituais, consolo e refúgio, o Manuel, passou à
descrição:
- Isto foi uma casa velha, totalmente
recuperada pelo antigo senhorio e posta em venda horizontal. Um casal comprou-a
sob hipoteca, mas não tendo capacidade financeira cedeu-a coercivamente ao
credor, a entendida onde trabalho. Na qualidade de funcionário, adquiri o imóvel
a um preço satisfatório e juros perfeitamente compatíveis com o meu salario
mensal e aqui estamos.
- Isso foi quando?
- Há pouco mais de seis meses. Como
vez está carecido de mobiliário. Aqui este bengaleiro, chapeleiro, cabide ou
seja lá o que for, herdei-o já tal como o vês. Penduremos os nossos casacos e a
tua carteira, se quiseres. Esta sapateira também já cá estava, deixemos, pois
os sapatos e cada um os seus chinelos, para ti estes grandes, quarenta e dois
em pezinhos lindos, maneirinhos de quê, trinta e seis?
- Mais os trinta e sete…
- Bem, esta sala só a estante dos
meus, nossos livros, o sofá, a televisão e aquela mezinha de apoio, tudo parco
e singelo. Como vês, aquelas portadas, sem cortinas, pedem gosto e mãos
femininas o que só agora surgiram.
- Trinta e Três Poemas, estão ali?
- Sim, queres verificar?
- Não, deixa estar, os que me dizem
respeito, julgo, sei-os de memória.
- Avancemos, cozinha assim, como vês,
de ponta a ponta, bastante bom, janela par o Miradouro Santa Catarina e daquela
banda, chaminé, armários, frigorífico, máquinas e fogão eléctrico, esquentador
a gás canalizado, tudo preso e incrustado, adquiridos ao casal a quem comprei o
apartamento. A mesa e essas cadeiras comprei-as, se não gostares, trocamo-las.
Aqui despensa quase vazia, aqui uns detergentes e uns produtos de limpeza,
apenas. Não troces das minhas inabilidades. Casa de banho, aqui está, jeitosa,
tudo também já estava montado e pregado. Não tem banheira, ali a cabine até me
parece melhor e funcional, armários, lavatório, bidé, sanita e tudo, até os
cabides pregados.
- Eu quero tomar um banho, demorado,
se fosse na banheira até seria de imersão.
- Calma, vamos já tratar do assunto.
Que tens tu de alijar se te enxergo tão lavada, limpa, alva pura, azeviche
rainha ngola?
- A alma sim, mas o corpo só quero
que mo possuas tão esfregado e perfumado como lençóis brancos corados ao sol.
- Ai o outro é que é poeta… Compondo
tu assim um soneto…
Prosseguindo, dois quartos, três
seria melhor, mas é o que é. Este, praticamente, desmobilado só o armário,
guarda-fatos embutido. Este, por último, que deveria ser o primeiro, a cama e
toda a mobília associada. Comprei, não sei se te agrada, mas… Não repares na
desarrumação, senão envergonhas-me. Vou já tratar de mudar lençóis, adicionar uma
almofada. Pronto, vamos então ao banho?
- Primeiro, nestes lençóis, nesta
cama assim, dormiste com alguém?
- Não, nunca, serás a primeira e a
única, espero… Sabes uma coisa, linda menina, podemos morar numa casa mais ou
menos, numa rua mais ou menos, numa terra mais ou menos. Podemos dormir numa
cama mais ou menos, comer mais ou menos, termos transporte mais ou menos, e até
ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro. Podemos olhar em volta e
sentir que tudo está mais ou menos. O que não podemos, mesmo, nunca, de maneira
nenhuma, é amar mais ou menos, sonhar mais ou menos, ser amigo mais ou menos,
namorar mais ou menos, acreditar mais ou menos. Senão, corremos o risco de nos
tornarmos pessoas mais ou menos.
- Então, eu também não quero fazer
amor contigo mais ou menos, não mudes os lençóis, gosto de sentir o teu odor,
trago-o comigo desde o mato do Uíge. Depois trato disso, deixa comigo.
- Encantado, como eu inalo até a tua
respiração, menina. Quantas noites dormimos, lado a lado, no Mbanzo Congo, quatro,
cinco…
- Nada, seis, seis!
- Bem, primeiro… E o segundo ponto?
- Deixa-me tomar banho, sozinha,
deita-te à minha espera, por favor… Só quero saber se também há sabão azul…
- Azul, azul, não há, mas temos
clarim, lava mais branco, toca a lavar!
Berta entrou no poliban, Manuel
entregando-lhe gel duche, champô, brincando e cuidando de tudo. Um lençol de
banho, novo, um tapete à saída da cabine duche, uma escova de dentes a estrear
e um frasco de elixir aprontou à sua companheira. Ela que já esfregava clarim
por todo o corpo como se arrancasse sarna, tal a ensaboadela, quedou-se a ver
os movimentos e os cuidados dele para conforto dela, até então ninguém lhe
tinha prestado cuidados, muito menos mimos daquela natureza. Ia para se
emocionar perante o gesto de Manuel, ao recolher cuidadosamente cada peça de
roupa largadas por ela, mas recompôs-se, como marinheiro agarrado ao mastro,
firme na sua já aparente serenidade. Ainda permaneceu pasmada enquanto o mirou
dobrando as suas cuecas, a blusinha e a minissaia, com especial carinho que
mais parecia cuidando de mantos sagrados. Logo que se saiu com as suas vestes
coladas ao peito, premidas com a mão esquerda e acenando-lhe com a direita,
sorrindo, Berta retomou a barrela, ensaboando e deixado água escorrer abundante
sobre todo o corpo, alto a baixo, de fora para dentro nas partes genitais,
esperando pelo retorno ao exterior e introduzindo mais, utilizado toda a
pressão do chuveiro.
Manuel, ansioso, quase tremelicando
de pernas, mas mesmo assim hirto e fervoroso, ajeitando ligeiramente os mantos
da cama, colocou mais uma almofada, fronha nova. Acendeu apenas um dos
candeeiros de cabeceira, iluminação a meia-luz. Voltou à casa de banho pedindo
autorização a Berta que já se ensaboava de gel, aromatizando o espaço. Com
parcimónia, solicitou nova autorização para que na sua presença pudesse expelir
a sua necessidade mictar, sentando-se na sanita, bem como proceder à escovagem
de dentes. Berta notou a fineza de movimentos, sem trejeitos de mesurice, porém
civilizados, sóbrios e determinados. Nunca tinha visto nada daquilo. Os homens
que a tinham rondeado eram brutos, toscos ou falsos delicados e urinavam em pé,
sacudindo o membro excrescente como animais do chiqueiro, por tudo isso e por
tudo mais, repugnavam-na. Abominava-os ao ponto de duvidar de alguma vez sentir
o estro. Temia não possuir atributos femininos que lhe permitissem alguma vez
atingir o mínimo prazer sexual, quanto mais orgasmos. No entanto, Manuel
excitava-a, toldava-a, roborizava-a desde o primeiro momento em Tambuco. A
ternura que recebia dele e a que ela própria lhe desejava ardentemente
retribuir afastavam de si, todos esses idos fantasmas. Por isso serenou,
sorrindo à saída dele daquele compartimento. Prosseguindo os seus cuidados
higiénicos, como se preparasse o seu grande ritual iniciático. Imaginava-o
deitado à sua espera e depois logo saberia coordenar e ser conduzida. Manuel
contava, ansioso, cada décimo de segundo de espera. Despiu-se e depositou as
suas roupas sob as da companheira, em cima da única cadeira do quarto. Pensou
qual seria o lugar da cama mais aprazível para Berta. Deu-lhe o suposto de comando.
Às mulheres o seu estatuto, condicente com o portentoso saber de receber e de
partilhar. Para ele, o do canto, retaguarda, secundário. No Mbanza Congo tinha
sido o contrário. Porém, nesses tempos e nesse lugar e nas condições de então,
as incumbências protectoras cabiam-lhe a ele. Manuel não sendo já o miúdo
juvenil de Mbanza Congo, em matéria de acasalamentos, a sua experiência
resumia-se a quase nada. No entanto, nem mesmo os outros seres, mesmo os
considerados irracionais, sempre se desenvencilham nos rituais de copulação,
quanto mais ele, andarilho, vivenciando muito para além do que outros numa vida
longa. Deitou-se para o lado esquerdo, membros flectidos, olhos abertos e
coração palpitando que nem cavalo a galope. Não querendo desvirtuar o ambiente
acolhedor, romântico, cobriu-se, só com o lençol, até aos ombros. Não queria
parecer rapazote púdico, mas, desbragado, também não. Pensou que gestos e
atitudes grosseiras e rudes matariam todo o encanto num momento ardente,
sublime, como o que estava a viver, à espera de Berta.
A preta do Congo, menina feita
mulher, ao aproximar-se do quarto, logo à entrada, pronta para a cerimónia,
toalha de banho, atada acima do peito, escondendo desde as maminhas pequenas e
firmes, até às canelas, gostou do que encontrou. Não carecia de espalhafates,
nem de mostrar traquejo, apenas seguir a sua intuição feminina. Só precisava de
ser igual a si própria, amar finalmente o seu companheiro. Discreta,
aproximando-se, como que afagando a almofada, destinada ao seu conforto de
cabeça, meteu sob a dita uma toalhinha precavida. Não fez perguntas nem
objecções, há momentos em que qualquer palavra é inoportuna. Berta podia,
simplesmente, deitar-se ao lado de Manuel, de toalha vestida ou desnudada. Mas,
serenamente, olhos semicerrados, boca entreaberta, narinas escancaradas,
inalando, contornando a cama pelos fundos, quedou-se junto dele. O lençol de
banho deslizou-lhe pelo corpo, à medida que se debruçava, suavemente. E ela não
se ralou com isso. Tinha chegado o momento de entregar a batuta, o mestre da
cerimónia, aquele que comandaria a orquestra, o afinador de instrumentos, o
jóquer da cavalgada, o condutor dos passos de dança na valsa celestial, o
impulsionador dos arrojados, adejantes, voluptuosos requebros do tango luso-quicongo,
estava ali, deitado à sua espera, aparentemente, timorato, mas firme, garboso,
forte e reteso. Ela fêmea, finalmente em pleno estro, só tinha que mostrar a
sua deliciosa submissão de leoa transbordando de cio não ciar. Só tinha que se
acomodar, estimulando o macho eleito, como o vencedor absoluto que, gladiador, do
alto do seu trono de branco rei Mbaza Congo a sua rainha Ginga tinha submetido,
completamente, rendida aos seus atributos e encantos. Ela dava-lhe sinais de
que ele podia e devia baixar a juba de penas pavónicas e lançar-se na maravilhosa
empresa de explorador de todos os caminhos africanos que representava o seu
corpo de preta do Congo. Ela a pauta, a lira dos mais belos e harmoniosos
acordes, cooperaria, contorcendo-se, quanto mais fossem os pontos sensíveis que
o seu leão tacteasse, mordiscasse, até poderia morder fundo, se necessário para
melhor se equilibrar na montada, aquela sublime, esplêndida égua de corrida
toda se mobilizava, retesando todos os músculos, capaz de galgar sobre todos os
obstáculos, pronta para a desabrida correria. Nem Berta, nem Manuel
necessitavam de luz artificial, de olhos cerrados viam mais fundo a luz que os
iluminava. Ela mais avisada estendeu o braço negro e harmonizou o ambiente, ao
apagar a luz, vertida do candeeiro. Manuel, ciente de que o ritual de exibição
aos olhos e aos sentidos da fêmea já não bastavam, tinha aportado na fase de copulação
ambicionada, ela cedera, na totalidade. O mastro era dele e, desse modo, teria
de conduzir o navio, ao leme, sulcando mares revoltos e mansos, à sua mercê.
Teria de ser capaz de penetrar nos grandes rios, lança içada, no âmago da sua africana
azeviche quicongo rainha ngola Mbanza Congo.
Berta, sensual como só naquele
momento descobria ser dotada, com apenas dois dedos da sua mão direita de
preta, desnudou suavemente o amante branco, até à cintura, deixando-lhe ainda
os genitais encantos sob o, imaginariamente, diáfano pano. Podia lançar-se
repentina para o seu lugar reservado no leito nupcial, odorificamente envolto
no denso manto luxuriante. Todavia, morosa extasiante, fêmea totalmente segura
dos seus dotes intrínsecos, sem necessidades de recursos a milongos, deixou-se
deslizar sobre o corpo de Manuel que virado de frente para si tomava posse da
função que lhe cabia, tacitamente. Entrelaçados nos mogimos de tese, antítese,
a alquimia laboratorial trabalhava na miscibilidade do branco com o preto e a
preta com o branco fundiam-se em síntese café com leite. A desmesurável
homogeneidade física e espiritual da aquosa transmutação osmótica
impossibilitava já qualquer regressão. Em plenos poderes de maestro explorador,
Manuel, afoito içado, não tinha que se apressar, quanto mais demorada fosse a
expedição, mais o explorador gozaria e mais prazer provocaria à sua companheira
de viagem. Por isso procurava, tacteando, beijando, lambendo e até chupar todos
os milímetros do aveludado e retinto corpo de mulher, buscando as maiores
sensibilidades que tocassem as campainhas alarmantes e incandescessem todos os
poros. A assumpção simbiótica evidenciava-se afincadamente. Já lá iam os
balanços da valsa. Porém ainda não era o momento de subir na pauta as notas
altas, negligenciando ainda o só, o lá, o si e o fá, murmurou, ciciando, ao
ouvido de Berta, beijando sussurro em mi menor:
- Cheiras tão bem, querida, que bom…
Se todas as secreções de líbidos
exponentes epidérmicos se aglutinavam num único rio de alegre serpentear, a
partir daquela voz de comando do cavaleiro, a montada arrancou naquela correria
louca, desabrida, puxando para si o jóquer, já bem firme no dorso, mas, ambos
gradativamente mais se fundiam numa unidade inquebrantável. Berta, agora mulher
adulta, absorvente e venturosa, combatente animada, ombreando com Manuel, como
um corpo só aceleravam na pista ascendente, sem vacilar nas curvas, descolando
da pista que nem bombardeiro em direcção à maior estrela cósmica a fim de
explodir com estrondo todos os orgasmos contidos num só grito ensurdecedor de
ambos os amantes.
Manuel, o descobridor dos maiores
sinais de prazer no corpo de Berta, mesmo os dos minuciosos coitos recônditos,
não se deixou cair do alto, desamparado. Mesmo se o fervor lhe faltasse, Berta
já tinha reassumido a categoria de veladora. Por isso ambos se relaxavam
pousando de paraquedas na mansidão, só possível pela total ausência de ventos soprando
desenganos, a caminho do solo firme e regenerador a comuns mortais, depois
daquela viagem endiabrada, inolvidável voo espacial. Berta era a fortificação
personificada, apesar do seu franzino aspecto, fragilidades aparentes, na
verdade, frondosa mulemba cujos ramos abrigavam Manuel. Este, gozando o prazer
da sombra, protegido da canícula, inalando aromas da sua árvore, Berta, a
menina preta, ancoradouro e objecto de todos as suas volições.
Se o guerreiro, precoce
ex-combatente, generoso e incauto imberbe descansava no epílogo da vitoriosa
batalha, Berta relaxava, gozado ainda mais agrilhoada finalmente ao seu
idolatrado companheiro, no encalço do qual tanto tinha penado. Apesar da
abrasadora junção de corpos, ambos se aconchegavam ainda mais. Saciados nas
endiabradas contorções, porém sequiosos do consolo mútuo, a paz. Por isso
Manuel dormia, resgatando o sono de todos as noites de insónias. A simbiose
perfeita dos dois corpos, fundidos na alquimia síntese café com leite, levou-os
a emaranhado aconchego. Pernas, coxas, braços, antebraços, pés, troncos e até
cabelos finos do branco e encarapinhados grossos de preta se uniam, repousando,
um no outro. A cabeça de Manuel pendia para o peito de Berta que parecia capaz
de lhe fornecer a seiva para todos os alentos. Berta velando de olhos fechados
ia passeando os seus dedos de preta aveludada sobre os cabelos, as faces, os
olhos de pálpebras cerradas e os lábios entreabertos de Manuel, na
impossibilidade de, naquela posição, beijar com os seus. Nem um nem outro
arfavam, antes respiravam de mansinho e Berta gozava divinal sentimento.
Deixou-se ir, esquecida de todas as incumbências, adormeceu também no onírico
repouso de todas as preocupações.
Sem saber bem como, na madrugada
seguinte, Berta acordou devagar, tranquila, virada par o seu lado esquerdo, com
uma réstia de claridade anunciando-lhe novo dia: o primeiro dia do resto das
suas vidas. Aconchegada, sentido o corpo de Manuel, em concha nas suas costas,
ficou-se, assim, encaixada. A serena respiração, a saliva que os lábios
entreabertos humedeciam o seu ombro preto desnudado, a mão direita espalmada no
seu ventre, abandonada, mostravam-lhe o seu ainda sono, tranquilo. Aos poucos,
foi ganhando coragem, descerrando as pálpebras para o alvorecer. Bastou um
pequeno e quase imperceptível movimento para que Manuel acordasse também. Antes
mesmo de qualquer outro sinal, Manuel beijou três vezes o ombro de Berta,
murmurando:
- Querida…
Berta estremeceu como se não fosse
experimentada, subtil, voltou-se para ele e beijou-o de manso, respondendo:
- Sim, bom dia, obrigada…
Os caminhos das descobertas marítimas
estavam mapeados na memória do explorador e África já se tinham rendido ao
invasor. Não apenas o mar, mas os rios, as estradas, os caminhos e as veredas,
à mercê, apontavam o âmago mais íntimo da rainha do Congo. Naquela manhã do
novo dia, os corpos deslizavam na simbiose osmótica, livres, soltos, seguros
nas voltas idiossincráticas, sem necessidade de grandes introduções, pelo que
nem o branco nem a preta perderiam o comboio sobre carris, imparável, até à
estação derradeira, naquela manhã.
Ambos refrescaram os corpos em água-tépida,
duche ligeiro, para que totalmente enxergassem a luz da clara manhã outonal,
primavera das suas vidas. Já Berta se dirigia para a cozinha em busca de
sustento que robustecesse e reabastecesse o corpo, só com a alma içada a
combustão não engrenaria. O telefone tocou. Ela ciente de que ninguém saberia
do seu paradeiro na casa de Manuel. Por isso, apenas abrandou a marcha e
escutou, aparentemente, desinteressada: “Sim, bom dia!… Não faz mal, para ti
estou sempre disponível… - Berta estacou, silenciou o movimento de bater ovos
mexidos, expectante. – Claro que posso, só tens que me dizer e a que horas tos
levo… às duas e meia… Certo, e então o teu marido não se importa de vir contigo
ao sábado? Ah vens ao trabalho… Mas não é costume, pois não? – Berta desceu à
terra, serenou, retomando a tarefa do matabicho em preparação, mas sem perder o
interesse na conversa de Manuel com alguém, do outro lado. – Ai isso é
excepção, logo vi… Tendes falta de funcionários aí no infantário, em que
sector?… No refeitório, nas limpezas e auxiliares… Bom, não leves mal, mas
tenho uma pessoa para esse serviço, muito interessada mesmo e, tenho a certeza,
mesmo, mesmo adequada. Claro que sabe cozinhar e fazer tudo à maneira, como
deve ser. Posso-te garantir, de confiança absoluta e perto, perto do local de
serviço, ainda mais do que eu relativamente ao banco… - Berta, matabicho
pronto, não resistiu, percebeu que o companheiro se referia a ela. Aproximou-se
dele, postando-se bem perto, a olhar com os seus olhos grandes de menina a
pedir rebuçados. – Ainda não falei, mas vou já conversar com ela… Oh, é minha
companheira, mora comigo… - Percebeu-se silêncio do lado de lá da linha… - Sim,
sim, temos uma menina, mas só agora decidimos viver juntos… Não sabias, também
nunca me perguntaste… Não é segredo, pelo contrário… Quê, ela também pode meter
aí a menina, hê pá, hê pá, isso é que seria, ouro sobre azul… Bom, então
combinado às duas e meia acertaremos melhor. Queres que te leve os apontamentos
da semana toda, fotocopiados? Ah, fazes aí as cópias, está certo, até logo,
obrigado… De nada, até já…
- Berta, desculpa adiantar-me assim
nos assuntos que te dizem respeito, não resisti. Era a Augusta, minha colega no
Passos Manuel, a pedir-me uns apontamentos das aulas às quais faltou. Pelos
visto têm muita falta de funcionários no infantário, quando ela me disse isso,
o resto já sabes… Não levas a mal?
- És tonto ou quê? Estás farto de
saber que agora é mesmo disso que preciso! Combina lá, com calma não te
precipites, eu quero, quero mesmo, mas tem cuidado os portugueses são
esquisitos… Tens de arranjar maneira de lhe dizer que sou preta, preta mesmo,
percebes?
- Para quê… Achas que…
- Sim, sim, já sofri muito com isso.
À primeira vista parece que encaram com o diabo, depois até gostam de mim, mas
não é fácil lidar com tugas, bem sabes. Lá por seres branco preto ou mestiço ou
sei lá. Realmente, há para aí seis anos que te conheço e te amo e nunca tinha
pensado que és branco… És branco mesmo, deixa ver bem, nada, és mais preto do
que os pretos mesmo, preto branco Mbaza Congo do mato: turra, o turra, mais
doido e lindo da Europa!
- Turra, combatente do nada, sem
saber dar um tiro, quanto mais uma morteirada, mas doido e irresponsável sim.
Mais doido ainda que me deixei capturar por ir à tua procura, estúuuupido….
- À tua procura andava eu desde que
nasci ou, se calhar, antes, mas tenho que ir, é tarde, estou preocupada, tenho
uma filha que julgas… Não a posso deixar sozinha, a esta hora já anda por lá à
minha procura, a chorar, aflita…
- Sim, claro que sim, vamos!
- Nada, ficas cá. Vou sozinha. Não te
esqueças, vai lá tratar do meu emprego com a ngana…
- Mas, assim, não me deixas ir
contigo…
- Deixo, deixo, sempre, agora espera.
Pareces menino, já cresceste… Volto lá para as seis horas… sete… mais ou menos…
Deixa dar-te um beijo…
- Estás a ver, esquecia-me, a chave,
espera. Estão aqui, mas porta-chaves, só este, olha, este verdinho do Sporting,
queres?
- Dá-me esse, dá cá gosto do
Sporting, que pensas, já lá fui algumas vezes ver andebol, basquete, sou
sportinguista de verdade…
- Porra, é demais, agora é que foi,
agora é que me deixaste mesmo doido, sportinguista como eu… Leva o número de
telefone se for preciso alguma coisa. Ah, dinheiro, aqui na gaveta, vês? Temos
sempre aqui para qualquer eventualidade.
- Sim, escreve num papel. Não faças
nada, eu trato de tudo depois, vai almoçar fora, já não tenho tempo para
cozinhar. Dinheiro… Vim estragar a tua vida, mas amanhã falamos, vou mostrar-te
as minhas contas, o que recebo de abono de mãe solteira e… Mais nada. Preciso
mesmo do emprego da tua amiga. Mas hoje, não, tenho uns trocos para o metro e,
lá em casa, no kimbo, tenho assim guardado, como tu, para aí dois contos setecentos
e cinquenta escudos.
- Bom, a partir de agora, a gestora
serás tu, o que houver é para aquilo que achares mais conveniente. Tenho uma
pequena poupança, mas segunda-feira vou encerrá-la porque é preciso mobilar
esta casa e, naturalmente, haverá outras necessidades com a menina, contigo e
sei lá, até onde der, desde que não tapemos a cabeça, descobrindo os pés. Olha,
só se for ali ao Príncipe do Calhariz e trago também um frango para levares, é
rápido, posso? – Berta paralisou, entristeceu, enigmática como que o nublado
lhe toldasse toda a jovialidade, Manuel olhou-a novamente fundo, vendo
claramente a sua mágoa como na noite anterior na cervejaria, atarantado, sem
saber o que dizer, ciente que a tianha ferido, mas sem saber reagir, paralisou
também. Berta recuperou, sensível, inteligente, perspicaz, retomando
rapidamente o sorriso e abraçou-o como que pedindo desculpa por qualquer
mal-entendido e disse, naquela voz doce, palavras redondas, vogais aberta:
- Lembrei-me de uma coisa triste na
minha vida, sem importância, logo lembra-me que te vou contar, desculpa, não te
preocupes, vi-te tão atrapalhado que até me doeu, até logo, vá!
Da varanda Manuel mirou ainda Berta,
cá em baixo, a dobrar a esquina, mas, sem antes se virar para trás e lhe
acenar, sorrindo, antagonizando a despedida de ambos em Maquela do Zombo.
Manuel em casa novamente só, parou
para reorganizar o pensamento, retomar as lides de rotina. Em poucas horas a
sua vida tinha-se transformado totalmente. Precisava de se reprogramar.
Estudar, ler e pasmar o nada naquele sábado estava fora de qualquer cogitação.
Rapidamente, mentalmente, estabeleceu prioridades: organizar os apontamentos a
emprestar à Augusta, era importante, ainda mais com a eventualidade de empregar
Berta e ainda admitir a miúda na creche. Em segundo lugar a fascina habitual
dos sábados, pelo facto de previsivelmente receber uma companheira de todos os
dias e especialmente todas as noite, não abandonaria as suas obrigações, de
patrões estaria Berta farta, pensou. Ora, fazer duas máquinas de roupa,
lençóis, toalhas e tudo. Atascar uma primeira de roupa clara, colocar a secar
no estendal e fazer rolar para a seguinte. Entretanto, aspirar a casa toda,
passar a esfregona casa de banho (antes lavar poliban, lavatório, bidé e
sanita), cozinha, esfregona nos azulejos do chão, paredes, deixar estar assim.
Terceiro ir almoçar ao Calhariz, “que diabo foi aquilo do frango”, intrigou-se.
Quarto fazer umas compras de jeito na mercearia, as prioritárias para Berta e
para a menina. “Para a menina”, interrogou-se: “Giro, engraçado” concluiu, por
fim.
Berta a caminho do bairro da lata do
Areeiro, pelo Loreto, Chiado, rua Garrett, rua Nova do Almada ao Rossio tomar o
metropolitano quis cantar, mas evitava que a tomassem por louca, por isso
imitou Manuel, cantando a sua cantiga, por dentro, para si e para os espíritos
dos mais velhos, porque esses ouviam o que ela pensava: “Muxima ue ue, muxima
ue ue, muxima. Muxima ue ue, muxima ue ue, muxima. Se uamgambé uamga uami.
Gaungui beke muá Santana. Muxima ue ue, muxima ue ue, muxima. Muxima ue ue,
muxima ue ue, muxima. Se dizes que sou feiticeira. Leva-me então a Santana… Muxima
ue ue, muxima ue ue, muxima. Muxima ue ue, muxima ue ue, muxima. Se uamgambé
uamga uami Gaungui beke muá Santana. Se dizes que eu sou feiticeira Leva-me,
então, à Nossa Senhora. Kuato dilagi mugibê. Kuato dilagi mugibê. Kuato dilagi
mugibê. Lagi ni lagi kazókaua. Kuato dilagi mugibê. Kuato dilagi mugibê. Kuato
dilagi mugibê. Lagi ni lagi kazókaua”.
Manuel com a máquina de lavar roupa a
rodar, programa a quarenta graus, detergente e amaciador para ficar roupa limpa
e cheirosa, pôs-se a aspirar, fazendo de contas que o zunido era a sua
orquestra, sozinho, cantou alto, desafinado: “ Antigamente a
velha chica vendia
cola e gengibre e lá pela tarde ela lavava a roupa do patrão
importante; e
nós os miúdos lá da escola perguntávamos à vóvó Chica qual era a
razão daquela pobreza, daquele nosso sofrimento. Xé menino,
não fala política, não fala política, não fala política. Mas a velha
Chica embrulhada nos pensamentos, ela sabia, mas não dizia a razão daquele
sofrimento. Xé
menino, não fala política, não fala política, não fala política, não fala
política, não fala política. E o tempo passou e a velha Chica, só mais velha
ficou. Ela
somente fez uma kubata com tecto de zinco, com tecto de zinco. Xé menino,
não fala política, não fala política. Mas quem vê agora o rosto
daquela senhora, daquela senhora, vê as
rugas do sofrimento, do sofrimento, do sofrimento! E ela agora
só diz:
-
Xé menino, já posso morrer, já vi Angola independente. Xé
menino, fala política, fala política, fala política.”
A máquina de lavar roupa terminou o
seu programa, Manuel deu por finda a aspiradela, o chão passado a esfregona, o
equipamento do WC limpo, novas toalhas nos seus toalheiros e a cama feitinha de
novo, porventura, com os lençóis lavados e não engomados. Isso eram habilidades
muito para além das suas capacidades, o de engomador. Por mais que quisesse,
nunca tinha sido capaz, resultava tudo numa miserável engomadela. As
capacidades de cada um são assim, limitadas. Por isso é que se aglutinam forças
e vontades, no sentido de se obter a harmonização das partes na vida de todos
nós, pensou: “Que raio, por que razão o homem contém em si a noção do perfeito
e, em vez de caminhar em direcção de tal desiderato, roga a um deus qualquer
que o alcance por e para si? Demite-se cobardemente de lutar pelos seus
objectivos. Talvez lhe falte alento ou então tenha a noção exacta das suas
incapacidades no confronto, tal como eu tive perante aqueles gajos, ontem.
Agora também chegou a minha vez de alijar carga e pedir auxílio à minha
demiurga, druida, kianda, feiticeira, Afrodite, Diana preta do Congo, rainha
Ginga do Zaire. Aquela feiticeira, aquela cativa que me tem cativo e porque
somos livres quer que eu viva. Realmente o indivíduo no mundo está só,
absolutamente só, apenas o amor e a solidariedade o pode salvar. A
interioridade é a relação do indivíduo consigo mesmo perante os seus fantasmas.
O seu estádio supremo evolutivo é talvez o ético, corrompendo as lucubrações,
os mambos de Kierkegaard. Coitado do pensador nórdico, só desvalorizaria a
categoria do estético porque, se calhar, não conhecia, não vivera nem sentira o
fervor de um ritual iniciático. Ele concebia o religioso como um estádio
exterior, sabia lá como se pode ser religioso intrinsecamente. Naquele gelo lá
dos picos da Europa, como é que poderia vivenciar o colorido, a ebulição
africana austral… Ao menos os tuguitas da treta embarcaram no papel de
conquistadores e foram assimilados, por mais que o neguem, tristes, mas,
afinal, maiores e mais fortes espiritualmente do que esses quejandos germano-anglicanos
e até franco-transalpinos. Eu que o diga, aqui um descendente celto-romano,
castreja-lusitano, concheiro-caçador, viking-nómada africano, afro-asiático,
afro-indiano, mestiço filho da preta e do reles conquistador, bravo velejador,
sei lá do de quê mais, ou se de outra descendência qualquer ou da nada mesmo,
porventura, obra materializado da real fecundação miraculosa e improvável graça
do espirito santo lendário, sim, que o diga mesmo como me apaixonei pelos
encantos, absolutamente, arrebatadores de uma preta, mais alva, a mais bela e
encantadora mulher Mbanza Congo na África, na Europa, no planeta e em todo o
universo cósmico. Berta, a virgem negra que concebeu por minha vontade uma
filha à luz dos nossos desejos, na senda dos poderes druidas e kiandas
superiores e não brados nem ovates no altar das florestas, sob o esplêndido
aroma do arbusto viscos, dos altíssimos ciprestes, dos vetustos e sapientes
carvalhos à mulemba das encantadoras, sublime mangueiras…
A hora do almoço despedia-se,
avançando o dia de Outono, no morno entardecer. Manuel de apinhado só o
cérebro, de pensamentos; pejado, a alma; cheio, transbordante, dilatado apenas
de coração. Porque o estômago vazio clamava alimento, comida. Os músculos
cansados já não tinham onde buscar combustível. Por isso, saiu e foi ao restaurante
Príncipe do Calhariz, almoçar, de preferência um prato de carne, excepto
galináceos por causa do que a sua referência tinha provocado em Berta. Se algum
bicho dessa espécie molestara a sua rainha Mbanza Congo, não se alimentaria
dele.
À mesa já devorando o seu bife com
arroz branco e salada a acompanhar, o seu professor de Geografia, acompanhado
da respectiva esposa qui fazer-lhe companhia. Manuel anuiu com agrado e quase
que lhe falava de Berta, tal a intensidade com vivia o momento. No entanto,
teve o bom senso de não avançar nesse sentido. Porque, de repente, lhe ocorreu
inarrável tamanha história de amor. Há situações únicas, restritas,
incompreensíveis à compreensão de terceiros. A sua gesta com Berta era
demasiado singular. Como toda História da humanidade para ser escrita e
assimilada terá de fazer o seu caminho, amadurecendo e depois sim, contá-la,
porque há páginas da vida humana que não devem ser apagadas, a bem do
desenvolvimento e do aperfeiçoamento espiritual. Pois, nem todas as almas
terrenas escutam os ensinamentos dos mais velhos.
Foi à mercearia do senhor Marcelino
da Calçada da Bica, comprou muito mais e variado do que o habitual. A exemplo
daquele instinto de mulher alcoviteira, a senhora Olinda, mulher do merceeiro,
tentou descobrir os motivos que levaram Manuel a tais aquisições, fazendo-lhe
perguntinhas e inusitadas insinuações a terceiros, tudo na tentativa de
descobria algo, mas Manuel defendeu-se refugiando-se no seu mutismo, sorrindo.
Às dezoito horas pôs-se à espera de Berta, quase tão ansioso como quando
esperava por ela, deitado no leito, sobre o qual tinha embarcado em tão
inolvidável barca de amor e luxúria desmedida. O encontro com Augusta tinha
decorrido a contento, pelo que aguçava ainda mais o desejo do reencontro com a
companheira. E queria ver mesmo Patrícia. Queria verificar se a descrição que
tinha feito da menina correspondia à efectiva aparência física. Augusta,
metediça e curiosa em demasia, obrigou-o a satisfazer perguntas e mais
perguntas. Se não soubesse que Augusta era mulher casada e mãe de filho, até
tinha pensado que estava enamorada por ele. Em defesa de Berta não lhe convinha
criar nenhum atrito, por isso tentou responder a todo o questionário com
urbanidade e objectividade.
Entardecia, foram-se as dezoito, as
dezoito e trinta e as dezanove e as dezanove e trinta. A partir daí começou a
contar minuto a minuto e depois ia já nas décimas de segundo, quando, pelas
dezanove e cinquenta, Berta abriu a porta com a à-vontade e absoluta elegância
de senhora distinta, sorrindo para ele, sem pedir desculpa pela demora. Chegava
linda e carregada com um saco de compras em cada mão. Sozinha, sem bagagem, nem
filha. Manuel esperava-a com Patrícia a tiracolo e malas ao funda da escada.
Ela como era seu timbre, intuitiva e perspicaz, senhora de todas e quaisquer
estados de alma de Manuel, para o sossegar disse, meiga e sensual:
- Eh, já te levo comigo, não tenhas
medo. Vim só buscar-te e trazer tudo para amanhã te fazer o mufete.
O mufete era o presente, a honra que
a mulher da Ilha de Luanda faria ao marido, pelo menos uma vez por semana.
Berta era do Uíge/ Zaire, mas também fazia o seu mufete em honra do enviado,
aquele que ela esperava há muito, muito tempo, tanto que não o queria perder no
resto da sua vida, nem terrena, nem celestial. Por isso foi buscá-lo para o
levar a dormir consigo na sua cama do bairro da lata do Areeiro.
Manuel, encantado, ambos beijando-se
e abraçando-se como se aquele momento fosse mesmo o do reencontro, o culminar
de infinita espera. Mais uma vez qualquer pronúncio silábico seria alheio ao
assombroso e recíproco estado de alma. Este era o momento do apaziguamento,
nada de exultação lasciva ou sucoso êxtase sexual. Ambos gozavam de uma
extraordinária sensação de paz, traduzida na capacidade divina de se olharem
por dentro, mutuamente, sem caridade, parcimónia, nem sanção, nem clemência,
nem raiva, nem explicações, nem euforias, nem exacerbo. Não tinham pressa, nem
relaxamento letárgico, afastaram os corpos sem qualquer possibilidade de
desapego emocional, apenas compreendiam que o caminho seria longo, o mais longo
possível na maratona das suas vidas. Não necessitavam de aconselhamentos
relativamente aos escolhos, às barreiras que teriam de transpor. Ambos cientes
de que nem sempre encarariam tudo do mesmo modo, mas ambos sabiam claramente
que só aportariam em bom porto se remassem na mesma direcção, coordenando
forças e vontades. Berta tratava já de organizar os apetrechos e os produtos de
cozinha. Não que sentisse o dever de servir, na qualidade da sua vida de
empregada quase escrava, por vezes serva mesmo, para todo serviço dos
retornados ou de qualquer outra entidade que lhe tinha ditado serventia.
Organizava a casa, usando das suas aptidões e saberes de experiência feita.
Manuel fazia de sombra de Berta, contemplando-a e pronto a cumprir ordens e
demandos, juntos, cúmplices. Manuel mirava a companheira como o protótipo do
conhecimento absolutamente independente da experiência, proveniente unicamente
do pensamento, saído da razão e condição da experiência. Por isso, ela, tal
como nos instantes de separação física, em Maquela do Zombo, sentiu os olhos, o
pensamento, a alma cravados em todo o seu ser e observou, sem necessidade de
lhe retribuir de frente com o seu olhar, também:
- Manuel Luís, não me adores assim
que te posso desiludir. Ajuda-me a fazer um jantar simples, não temos a noite
toda para contemplações, há mais que fazer.
- Sim, mas, se isso for vero, eu não
viverei, porque vivo em ti…
- Oh, nãooo. Diz-me só essas coisas
quando viajarmos nas nuvens, agora precisamos dos pés firmes no chão.
Derreto-me com os teus galanteios. Fazes-me bem, fazes-me sentir mulher e eu,
que não sabia o que isso era, gosto tanto. Até sou capaz de te imitar nos teus
devaneios poéticos: estremeço de líbido aquoso, mas, por ora, dá-me lá um
tachinho, uma panelinha, por favor…
- Este?
- Não, o outro, esse, mais pequeno,
só para hoje. Bem sei que precisas de recuperar forças, nada de estragações
desnecessárias. Vou ensinar-te. Uma cebola, alhos, tomate, azeite, nada de
margarinas, nem óleos, só se for dendê. Aprendi em Meruge. Ensinaram-me muita
coisa. Gostei deles.
- Sim, e mais? Gostei de te ouvir
isso. Não há nada nem ninguém, cem por cento mau, Nem o contrário.
- Aí, aí não sei se é mesmo assim, é
capaz de haver os cem por cento maus… Agora, então, refogado, depois de cebola
e alho dourados, o tomate assim cortado. Vá, lava lá essa medida aí de arroz e
escorre bem. Sabes que já vi como se descasca o arroz, até parecem as fábricas
do café. Aprendi até a semear, a mondar, colher, sei lá, tanta coisa
interessante, muito melhor gente do que aqui em Lisboa. Isto já está, mede três
medidas dessas de água, mais um pouquinho, para ficar a escorrer, não quero
arroz do quartel dos portugueses.
- Mas, estiveste no quartel deles?
- Já te conto. A água a ferver
mete-se assim o arroz e mexe-se bem. Sal já tem, deixa ver. Ah, esperto, tens
curcuma, gindungo e louro. Um pouco disto, uma folha e uma semente. Daqui a
pouco mistura-se o atum e está pronto! Ah, a tropa dos portugueses em Maquela.
Foi o meu primeiro susto, a minha primeira humilhação de verdade. Sabes,
deixaste-me lá e fiquei à vossa espera. Bem sabia que tu não irias…
- Porquê… Até fui depois sozinho, sem
autorização superior…
- Por isso mesmo, se fosses à minha
procuram, prendiam-te. Viam logo que eras do MPLA, branco, miúdo, eram
certinhas. Pensei que fosse alguém disfarçado de trabalhador, preto andrajoso.
Era assim que o MPLA fazia. Ninguém aparecia, dormi no mercado, com mais medo
do que sozinha em Tambuco, um cão parecia que tinha tino de gente, adotou-me,
se calhar, achou-me desgraçada e perdida como ele.
- Solidariedade de que muitos humanos
não são capazes.
- Sim, isso. Agora diz-me tu, porque
não tiveste pena de mim, nem nojo quando me tiraste do buraco no
bombardeamento? Onde é que arranjaste coragem para catares do chão, espalhados,
os restos mortais da minha mãe e dos outros, se eu não fui capaz? Quando me
encontraste eu já nem pensava em nada, nem chamava pela minha mãe, estava só à
espera da minha vez de ser devora pelas aves e hienas, se aparecessem também. Estava
assim perdida sem farol como ontem quando me foste buscar à cervejaria. Estava
tão perdida que até me tinha esquecida que tinha uma filha para cuidar. Bem,
mas não respondas agora, isso é muita coisa para me explicares tão breve. Põe
lá dois pratos, toma dois garfos e duas facas, mas tira lá a tampa às latas de
atum, depressa! Isso, ah, tens uma chave própria. Também combatente sem arma…
- Era isso mesmo combatente pela
liberdade sem preparação, nem saberes suficientes. Por isso, falhei, fui
capturado.
- Não, não, nada. A culpada fui eu
que te chamei sempre, desesperada. Pronto, vamos começar a comer. Ah mas no
quartel fui pedir esmola como os outros. Só nos davam restos de arroz e massa
que parecia cimento pegado, restos, estragados. Um infeliz pula, soldado,
tentou violar-me. Tive medo, mas consegui fugir dele, daquela vez…
- Daquela vez, quer dizer que te
perseguiu o triste…
- Não aquele nunca mais vi porque o
patrão Silva me levou na carrinha para o Negage. O que me violou, o que me
magoou fundo na minha alma, o que quase me fazia crer na minha desistência por
ti, foi outro, em Lisboa, tem a ver com o frango no espeto. Tu aguentas? Tens a
certeza que pedrou-as? Bem agora também já não há nada a fazer, tenho mesmo de
te contar.
- Não sou juiz, nem demiurgo para
perdoar as falhas dos outros. O que posso fazer, neste momento, apenas lamber
as tuas feridas, já que tu me sarar as minhas.
- A patroa Alzira arranjou outro
marido e entregou-me aos filhos, na avenida da Igreja. Pensei que seria uma
empregada só para lavar e engomar roupa e fazer limpeza, sozinha na casa,
à-vontade para fazer o que me apetecesse, até passear por Lisboa. Deram-me
dinheiro para a minha mão e fui fazer compras, de regresso comprei um frango
inteirinho, só para mim e jantei, sozinha, três quartos de frango assado,
guardei um quarto para o dia seguinte. Sentei-me pela primeira vez no sofá dos
pulas retornados. Liguei pela primeira vez a televisão dos pulas, só para mim.
E fiquei assim, acho que estava triste mesmo, julgando-me, como se diz…
- Alforriada?
- Sim, isso mesmo. Lembro-me que
chamei por ti, aflita, nem sei porquê. Já agora vou dizer como chamava por ti,
uma oração só minha, segredo só meu, até este momento: meu amor, querido, vem
buscar-me… Depois outras palavras conforme a situação.
- Não chores assim, agora não, por
favor. Tu conseguiste apanhar os restos mortais e ainda eras um menino, que
idade tinhas?
- Quinze, desculpa…
- Um dos filhos retornados chegou,
abriu a porta e já não sei o que aconteceu, sei que lhe implorei para não me
fazer mal, mas não quis saber. Nem sei bem o que me fez. Só sei que me doeu
muito mas cá dentro, no coração, abriu-me uma ferida tão funda que só ontem ma
arrancaste quando me deitei contigo e tu me amaste e deixas-te amar daquela
maneira, já sabes: à sétima noite de amor que dormimos juntos, fomos ao céu
sete vezes… Ah já te ris, né… Ainda bem porque já não sinto essa dor. Vamos
lavar esta loiça.
- A menina com quem ficou?
- A Patrícia ficou com a madrinha,
amanhã já ta apresento. Está descansado que já sabe de nós. Que horas são, ah,
já a deitou na minha cama, quando chegarmos, dormimos os três. É isso que
quero. Quero sentir-me, quando acordar, como esta manhã, aliviada da minha dor.
Contigo encostado nas minhas costas, abraçado ao meu ventre. Quero meter a
mãozinha dela na tua e pôr a minha por cima. Não faremos sexo, mas só amor, de
outra maneira, abraçados, toda a noite. Não te perguntei se aceitas porque sei,
sinto que me compreendes e também queres fazer isso… Depois voltamos aqui com a
Patrícia, vamos ver se a tua amiga Augusta nos ajuda, sim, Estás conte?
- Sim, muito, querida….
Ambos se aprontaram para a viagem ao
bairro da lata do Areeiro, Manuel não conhecia, nem precisava, a guia
orientava. No Calhariz ele olhava nos dois sentidos na busca de táxi, Berta,
puxando-lhe pela mãe:
- Anda, de metro, deixa lá o táxi.
- É mais rápido, o metro nunca mais
lá chega, a esta hora é mais escasso e no fim-de-semana ainda há menos
transportes. Ainda para mais, a esta hora, de certeza, que o metro vai cheio,
há jogo, daqui a pouco em Alvalade.
- É da maneira que viajamos de verde,
esperançados…
Desceram na Estação do Areeiro onde
parecia que a cidade acabava e o descampado de estendia pelas sombras de
construções, arbustos, caminho-de-ferro e o escuro, sem electrificação, em
frente.
- Não tenhas medo, sei o caminho,
mesmo de noite passei por aqui muitas vezes, com medo, mas agora não. Com um
combatente…
- Um combatente de papel é que foi,
agora continuo-o, mas com outras armas, não baixei guarda que julgas?
- Julgo que não desistes até ao fim,
como também não desistimos um do outro este tempo todo.
Desceram o morro, por carreiros e
atalhos ínvios até uma casa de madeira, bem no sopé, a poucos metros da linha
férrea.
- É esta, comprei-a por cinquenta
contos e vai ser demolida. Vão alojar todos os moradores em Chelas, sabes onde
é?
- Sei, penso que é mau.
- Não, não é mau, é horrível. Era o
meu destino, se me aguentasse até lá. A assistência social inscreveu-me. Por
causa do estatuto de mãe solteira fui aceite. Já ouviste falar numa senhora da
Associação o Ninho?
- Não só ouvi como conheço a senhora,
a responsável, queres que te diga o nome?
- Diz lá então.
- Aquela fonte mais o diminutivo.
- É, ajudou-me muito…
- Mas podemos falar com ela. Não vais
para lá, mas pode ser que recebas alguma compensação. Não que seja oportunista,
mas parece-me legítimo, que pensas disso?
- Acho bem, até que já me fizeram uma
proposta nesse sentido. Não pude aceitar porque com o que me ofereciam não
daria para arranjar uma casa minimamente decente. Se fosse sozinha, agora com a
Patrícia não podia ir para qualquer lugar. Xiuiu, já está a dormir. – Ciciou,
mostrando-lhe a menina, ferradinha no sono, inocente, quase à beira da cama
logo atrás da porta da barraca.
- Não a acordes, até se vê aqui
dentro com a luz de fora, com a porta entreaberta.
- Não, xiuuu. Temos um candeeiro que já
deixei no chão, de propósito, para não a incomodar, bem, mesmo que acendesse a
luz de cima, se calhar, não acordava. Queres uma camisolinha minha para
dormires? Põe a tua roupa em cima dessas caixas, são coisas que arrumei para
levarmos.
- Sim, empresta-me essa camisolinha,
durmo com isso e cuecas.
- Deita-te aqui.
- É linda, mulatinha, posso dar-lhe
um beijinho?
- Sim, querido, já chega, senão ela
acorda mesmo e depois não há quem a ature com brincadeiras. É mulata e tu não
és branco? E eu não sou preta? Leite com café dá o quê? Não me chamaste virgem
negra, preta do Congo, Mbaza Congo, então, engravidas-te me por milagre,
através de tanta vontade que tínhamos de fazer amor. De nos deitarmos assim
juntinhos, como no Zaire. Às vezes destapava-me só par que me cobrisses. Ainda
tenho aquela sensação boa, de conforto, eram como beijos. Ouvia-te respirar a
dormir e eu ficava acordada o mais que aguentassem. Tu é que tinhas ordem para
cuidares de mim, mas acho que tu querias é que eu te protegesse e isso era tão
bom, tão bom e só agora te posso confessar isso. Tinha tanto medo de morrer sem
te dizer.
- Xé menino já posso morrer, já vi
Angola independente…
- Xiuuu, queres mesmo acordá-la, mas
depois és tu que a terás de adormecer, estou a avisar. Beija-me e abraça-me
assim, mas não faças barulho e fica quieto, não podemos fazer brincadeiras
agora com ela a dormir. Eu disse-te que só queria dormir assim abraçados,
sinto-me muito bem, melhor do que de qualquer outra forma.
- Onde está a mãozinha dela?
- Aqui, espera, assim, não lha
apertes, pronto, assim é bom, bom…
Manuel adormeceu e acordou assustado,
sonhava que estava ainda na mata e que alguém lhe arrancava Berta, aflito quase
gritava: “Não, não eu é que sou o responsável por ela, quero-a aqui”. Berta
ainda velava afagou-o, beijou-o nos lábios e murmurou baixinhos: “ estou aqui,
amor, já ninguém me pode levar e não deixo que te tirem de mim, eu é que cuido
de ti, querido, isso dorme, amor…”
Como em qualquer musseque colonial,
logo pela manhã a miudagem saltava na rua, entravam e saíam das tabancas. Dos
três na cama de Berta, só Patrícia ainda dormia, Berta e Manuel saboreavam,
quietinhos, o prazer da companhia. Entraram, por ali dentro três ou quatro
petizes, iam buscar Patrícia, como se fossem à procura de uma boneca para as
suas brincadeiras. Ao verificarem que na Cama de mãe e filha, dormia um rapaz,
um homem, saíram. Cá fora segredaram:
- A tia tem marido branco…
- É arto…
- Hum, hum, é nada arto, não chega co
pé no fundo da cama…
Manuel quis rir e Berta sorriu antes
e beijou-lhe a boca do namorado branco com os seus lábios sensuais, túrgidos,
belíssimos de menina preta do Congo, feita mulher…
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