sábado, 28 de janeiro de 2017

Mozinhos - Cartas dos Párocos - Souto Penedono

Carta. Pároco da Igreja de S. Pedro do Souto de Penedono, José Lopes  

Pároco da Igreja de S. Pedro do Souto de Penedono. José Júlio de Almeida Proença

 Carta. Pároco da Igreja de S. Pedro do Souto de Penedono - Luís Clemente de Sequeira

Carta. Pároco da Igreja de S. Pedro de Souto de Penedono – Inácio de Almeida

Carta. Pároco da Igreja de S. Pedro do Souto de Penedono - Joaquim Manuel Saraiva Guerra 



















sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

 
INTERVENÇÃO DA POPULAÇÃO E DAS AUTORIDADES ADMINISTRATIVAS DE SOUTO, PENEDONO, NOS TRABALHOS DE PESQUISA DA MINA BEBEZES














de Salazar foi declarada, na universalidade dos bens móveis que o integram, coisa dominial única, constituindo propriedade do Estado. 
O Decreto-Lei nº 77, de 18 de Abril de 1981, estabeleceu que a consulta pública do Arquivo de Salazar só devia ser permitida após a realização de trabalhos que garantissem o tratamento e a sua total preservação e nunca antes de decorridos 25 anos sobre a morte do seu antigo titular. 
No entanto, o Decreto-Lei nº 33, de 31 de Janeiro de 1985, ao assumir que a referida proibição de consulta pública, estipulada pelo Decreto-Lei nº 77 de 1981, radicava unicamente na necessidade de salvaguardar o tratamento e conservação dos documentos, determinou que a Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista, que havia sido criada pelo Decreto-Lei nº 110, de 26 de Maio de 1978, acedesse livremente a todos os documentos constantes do Arquivo Salazar, através dos seus membros ou de pessoal devidamente credenciado pela mesma entidade. Ainda segundo o Decreto-Lei nº 33 de 1985, a referida Comissão podia reproduzir no Livro Negro do Fascismo em Portugal quaisquer documentos que constassem do Arquivo de Salazar, desde que não ficasse prejudicada a preservação dos documentos. 
Ao consignar a transferência do Arquivo de Salazar para a Torre do Tombo, o Decreto-Lei nº 279, de 9 de Agosto de 1991, preconizou um regime de acessibilidade semelhante ao já estipulado no Decreto-Lei nº 77, de 18 de Abril de 1981. Porém, o artº 3º, do Decreto-Lei nº 279 de 1991, previu o acesso ao Arquivo, a título excepcional, antes de decorrido o prazo de 25 anos sobre a morte de Salazar, mediante a apresentação de requerimento pelo interessado, em que demonstrasse motivo relevante para a consulta. O requerimento devia ser autorizado pelo membro do Governo responsável pela área da Cultura, após parecer do director da Torre do Tombo ou do director da Biblioteca Nacional, enquanto o bem arquivístico se encontrasse nesta instituição. 
A partir de 1993, o acesso ao Arquivo de Salazar passou a reger-se pelo disposto no artigo 47º, do Decreto-Lei nº 16, de 23 de Janeiro de 1993, tendo sido considerado que, em matéria de comunicabilidade de bens arquivísticos, este Decreto-Lei não prejudicava o estabelecido no artigo 3º, do Decreto-Lei nº 279, de 9 de Agosto de 1991. 
A partir de 27 de Julho de 1995, cumprido o prazo de vinte e cinco anos sobre a morte de Salazar, a restrição para o acesso que a lei impunha, o Arquivo ficou aberto à consulta pública. 
COTA ATUAL 
Arquivo Salazar, EC-20, cx. 81, pt. 4




terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Mozinhos - Maria Lopes - Rio torto



PROCESSO MARIA LOPES - condenada pelo tribunal santo ofício (Inquisição), 1728


74 f.; papel
Âmbito e conteúdo
Estatuto social: cristã-velha
Idade: 35 anos
Crime/Acusação: heresia
Naturalidade: Rio Torto, freguesia de Souto de Penedono, bispado de Lamego
Morada: Rio Torto, freguesia de Souto de Penedono, bispado de Lamego
Pai: Daniel Rodrigues, moleiro
Mãe: Maria Lopes
Estado civil: casada
Cônjuge: Gaspar Rodrigues, moleiro
Data da prisão: 02/03/1728
Sentença: auto-de-fé de 09/05/1728. Abjuração de veemente, degredo para o couto de Castro Marim, por três anos, instrução na fé católica, penitências espirituais, pagamento de custas.
Cota atual
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc. 61
[1]
               Neste trabalho foram seguidas as regras de transcrição do padre Avelino Jesus da Costa: Normas gerais de transcrição e publicação de textos modernos, 3ª ed., Braga, 1993.
- Foram actualizadas as maiúsculas e minúsculas
- Desdobraram-se as abreviaturas sem fazer especificação das letras omissas
- Separaram-se as palavras indevidamente unidas utilizando o apóstrofe para as elisões
- Manteve-se a grafia do y
- Colocou-se (…) para assinalar todas as dúvidas resultantes, quer por falta de nitidez do original quer por dificuldades de leitura.
- Utilizou-se [ ] quando foram introduzidos elementos que não se encontram no documento mas se tiram pelo sentido da palavra ou frase.
- Colocou-se (sic) após algumas palavras com grafia incorrecta, significando que a palavra foi transcrita exactamente como está no documento.
- Colocou-se entre < > as palavras entrelinhadas ou escritas à margem do documento.
- Colocou-se (?) a seguir a qualquer palavra de leitura duvidosa
- Suprimiram-se as consoantes duplas iniciais
- Manteve-se a numeração romana

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Mozinhos - Aquilino Ribeiro

Aquilino: quando os lobos uivam, ecoando ainda a estugada


       Ensaio



Luís de Sousa Peixeira




2015



I
A ideia é a de exercitar os sentidos a partir de uma sugestão de Arthur e Gasset, ou seja, a cultura talvez seja aquilo que fica depois de esquecer absolutamente tudo que tenhamos aprendido na forma de instrução primária – o esqueleto depois da carne literalmente devorada.
O barroco das frases estruturadas, o desenho psicológico das personagens e o ramalhete das paisagens esvaem-se nas veias da apreensão de um romance. Aqui assola-nos a ideia romanesca de se ficcionar ou não o palpável, o inegável ao solhos do concreto real e indefectível.
Ora, os desenhos, esboços ou, porque não, o traço ínsito na macieza e profunda perscrutação psicológica e vernácula, rija do universo aquiliniano, apresentam-se como a porta aberta e nua, através das inscrituras de Pedro Albuquerque.
No lastro da esponja que, supostamente, varreu a mais liliputiana virgula aquiliniana ainda se enxerga o mais portentoso fauno da universalidade literária. É assim que esse esqueleto estrutural aflora à tona das unárias narrativas.
Sendo, desse modo e na vincada perspectiva sensitiva, atrás citada, inusitada a análise, a par e passo, de cada trecho, do recurso estilístico e, sobretudo, da ilustração onomatológica. Preferimos, pois, o exercício via etnogeografia e sociológica, na obra literária de Aquilino Ribeiro.
Obra literária que se fundirá na unidade da diversidade da vida cuja força motriz se moverá por acção absoluta do ser, estar e agir humanos, nos seus contextos sociais, dos paradoxos interdependes laborais e de sobrevivência, sob o manto político e estrutural da sociedade. Não se trata, pois, de uma capitulação calvinista, nem, tão pouco, de um banho de acções ao estilo das tramas do Romantismo e, porventura, ainda, muito menos, à laia dos tentados esmeros do Natural-Realismo queirosiano.
Não poderemos, assim, aqui, estabelecer um quadro valorativo no que concerne à gradação literária, comparativamente a outras obras e autores independentemente da origem e existência temporal, mesmo que esse olhar se estenda ao apertado anel dos escrupulosos requisitos clássicos nos quais, julgo, Aquilino emboitar. Se o fizéssemos, teríamos de estabelecer e apresentar argumentos lúcidos e assertivos acerca do universo de autores e obras a arrolar. A exegese que preconizamos neste pretenso ensaio não será mais do que o estilho de uma leitura despreocupada, mas vivificante de “Quando os Lobos Uivam”.
O brotar, o despontar, o assolar de um quadro ficcional do romance Quando os Lobos Uivam no mais inesperado encontro com uma ideia, uma frase, uma imagem ao acaso; não constituirá a inquestionável capacidade do artista em inculcar o vértice comunicacional no receptor?
Sem qualquer preocupação de alinhamento quanto ao suceder de cenas no âmbito do desenvolvimento narrativo, tal como a nossa capacidade intelectual possui na apreensão dos factos, foquemo-nos no quadro da emigração, ou melhor, no êxodo do povo daquela serra beirã para o Brasil.
Se o leitor se abstrair do estrito teor literal novelístico, indo para além do espaço geográfico, intuindo o putativo adejo do narrador, então, porventura, cruzaremos as premissas e descrições de Ferreira de Castro nas inolvidáveis desventuras em “A Selva”; as cogitações de Malheiro Dias; as vivas e inéditas crónicas de Pero Vaz de Caminha, apresentado, ao mundo, os íncolas da Terra de Santa Cruz. É certo que num contexto histórico e social do século XX em que os portugueses já não se apresentarão como marinheiros descobridores incumbidos pelos da Coroa, mas, antes, párias de uma sociedade sem contemplações. Contudo, gente, personagens de carne e osso, foragidos em busca do pão subtraído da serra pelo desmando de um poder de mandantes, caciques e castrados mentais, ávidos, sedentos do bem servir, para melhor se servirem à sombra da estrutura hierárquica de governo.
O Manuel Lavadeus, personagem singular da narração, poderá, no nosso entender, à distância, repetimos, da leitura, então despreocupada, ser a encarnação disso mesmo, do beirão aventureiro, esculpido pelos ventos da serra, mãos calejadas pelo arado, pela machada cortante dos toros das giestas e pela enxada, derrubando terrões, tombando sulcos no confronto com pedras, pedregulhos inertes do tamanho dos empecilhos que lhe coartam o acesso ao pão de cada dia. Será, porventura, o herdeiro do marinheiro incauto, servil, aportado no novo mundo de mil e quinhentos. Igualmente desprovido de fazenda, tisnado pela canícula e regelado nos ossos na serra onde o homem se afeiçoa à terra na encruzilhada das desventuras, agruras e intrínsecas manhas que lhe permitem sobreviver no hostil parnaso domado onde o lobo o espreita mais manso do que o lacaio do mandante que ali oprime em nome de uma razão e de um deus sagrado e sem compaixão.
A personagem do emigrante rural, carregando o peso do carácter moldado no caldeamento de gerações de lavradores e de pastores, à margem de histórias e dos feitos guerreiros nobiliárquicos, das lucubrações monásticas e do terrífico poder eclesiástico, e num processo, emerge, aqui, na forma de Fénix Renascida, figura burilada, como o colono analfabeto, quiçá, semente, e fazedor da miscigenação lusófona.
Agora, colocar-se-á a questão, isto é, o papel do narrador: omnisciente, de focalização interna, de focalização externa, e a observação sob o ponto de vista ideológico? O narratário, explícito ou implícito? A caracterização das personagens, directa ou indirecta?
A resposta, por que não uma das cogitações filosóficas de Armando Castro, aproposito do conhecer o conhecimento: é que aqui, além do peso dos interesses sociais coados mentalmente de uma maneira inconsciente, manifestam-se condições favoráveis aos mais diversos agravamentos das deformações heurísticas dos processos históricos. É o que sucede, por exemplo, com a circunstância de a ideologia especializar a duração histórica, tornando-se o espaço no meio que permite isolá-lo do tempo, ao mesmo tempo, que este é o meio que proíbe a reversibilidade: a ideologia faculta essa marcha atrás desobjectivada. Aque o próprio historiador não poderá fugir à ideologia, só tendo escapatória, parcial, pela porta do domínio epistemológico e metodológico do seu labor, mesmo quando, porventura, a sua ideologia pessoal, em vez de construir um obstáculo, desempenhe, pelas próprias condições históricas, um factor favorável à construção científica. Talvez seja o contraponto de análise acerca desta narrativa no contexto de toda a obra de Aquilino Ribeiro sob o prisma de determinados analistas como, por exemplo, Mário Soares, antigo Presidente da República Portuguesa, desvalorizando-a ou minimizando-a comparativamente no seu conjunto. Aqui, o receptor não terá tido a cabal recepção da obra por força da ideologia do mesmo. Quanto à omnisciência do narrador e à caracterização, essencialmente, indirecta poderá apresentar-se como uma questão deveras importante se apenas no centrarmos na análise crítica da obra do ponto de vista académico e formal cuja recensão objective um trabalho preferencialmente lectivo.



II

Passemos, pois, a referenciar asserções diferenciadas, concomitantes, divergentes, por vezes, repetições na forma, mas singulares na subjectividade: umas parcialmente, outras transcritas integralmente, identificadas em rodapé…
Para nós, serranos, é sempre opressão, ainda que se não proteste, ainda que não saibamos exprimi-la. Nós somos bárbaros, mas bárbaros sem trela. Temos muito dos lobos que mesmo nas selvas plantadas a cordel, não aprenderam a morder os instintos da sua braveza.
Nas fráguas da serra dos Milhafres existe o lugar de Rochambana. Um casebre ladeado por menos de dois hectares de terra onde o velho Teotónio Louvadeus vive com a terra, e com a serra, velho lobo eremita que esgravata dali o alimento e o engenho para conviver em paz com a sua solidão. Corre à boca pequena que tem um pacto com o Diabo: fala com os lobos que ameaçam outros lugares e rebanhos, mas que à sua mão vêm comer...Baseada no romance homónimo de Aquilino Ribeiro e adaptada por Francisco Moita Flores, "Quando os Lobos Uivam" retrata a saga dos beirões em defesa dos terrenos baldios durante a ditadura, nos finais dos anos 40 e início dos anos 50.
Corria o ano de 1958 quando Aquilino Ribeiro publicou o seu livro-choque “Quando os lobos uivam”, obra que li mais tarde numas férias. É um livro duro como as rochas beirãs da serra onde decorre a acção, curiosamente com um nome familiar aos açorianos: Serra dos Milhafres. O enredo retrata bem aquela época do Estado Novo – a história tem lugar nos anos 40 do século XX – tendo como pano de fundo a expropriação forçada de terras para plantação de pinheiros. Surge, vindo do Brasil, uma espécie de líder salvador, esclarecido por leituras e vivências diferentes, que assume a causa dos beirões indefesos e amedrontados. A repressão policial, expoente do poder ditatorial, revela-se em toda a sua crueza no seio de uma população ignorante e miserável – mas, ainda assim, capaz de se rebelar, apesar do preço a pagar.
Nos nossos dias, Portugal vive num regime bem diferente, onde a liberdade de expressão faz parte dos direitos democráticos e onde não existe uma polícia política como a dos tempos do Doutor Salazar. A Europa, constituída em União Europeia, alardeia pelos quatro cantos do mundo a índole civilizada, exportadora de direitos humanos e regalias sociais. Dá-se mesmo ao luxo de querer impor, com alguma inconfessada arrogância, o seu modelo nórdico a outras nações, dentro e fora do espaço europeu. Abraçando um modelo capitalista desregrado e selvagem, oriundo das escolas formadoras norte-americanas ou das suas sucursais londrinas, a UniãoEuropeia vem perdendo a velocidade que lhe permitiu ser um exemplo de coesão económica e social, para ser somente um reflexo de algo que só pode conduzi-la a uma situação secundária no panorama mundial. Todavia, mesmo no tempo escuro do salazarismo, existiam modelos e procedimentos que fariam inveja ao que hoje se vê por aí, o que torna ainda mais triste a realidade actual.
Onde é que alguma vez, em Portugal ou num país europeu, se vislumbra a possibilidade de surgir uma Lei como a 2105 do governo de Salazar, datada de 1960, na qual se estipulava que nenhum gestor público, de empresa pública ou participada pelo Estado, poderia ganhar mais do que o ministro da respectiva tutela? Pelo contrário, o que se vê são chorudos vencimentos nas empresas públicas, nas público-privadas e nas privadas que vivem à sombra dos poderes públicos e do Orçamento de Estado. O que se vê mais, são uns políticos que fazem da passagem pelos governos um trampolim para administrações de empresas onde vão usufruir de vencimentos incomparavelmente superiores ao Presidente da República – na sua maioria, empresas que eram do Estado e foram privatizadas, tornando-se apetecíveis depois de lhes terem sido injectados volumosos investimentos, saídos dos bolsos dos contribuintes. Foi assim com a Galp, a PT, a REN, a EDP…e será assim com a TAP, quiçá com a CGD e outras, em que o capital, sobretudo o capital estrangeiro, fareje um negócio irrecusável.
No regime do Estado Novo, sempre que Salazar pressentia ou era informado que algum banqueiro ou industrial pensava querer sobrepor-se ao poder político, mandava-lhe a PIDE vasculhar a casa e os escritórios, indo mesmo mais longe se o personagem não entrasse nos eixos. Hoje, no capitalismo de casino que vivemos, são os poderes políticos que temem ser escrutinados pelos especuladores financeiros internacionais, as agências de “rating”, os “hedgefunds” e os grandes bancos globais de negócios como o Goldman Sachs, o J P Morgan, a UBS, o DeutsheBank e mais o que por aí vai. Houve um rapazote, de nome AlessioRastani, que foi há uns anos à BBC denunciar o governo global do Goldman Sachs, através do seu polvo financeiro. A coisa causou um escândalo, mas durou pouco, porque nunca mais se ouviu falar no rapaz. Não deve ter ido desta para pior, senão sabia-se…logo deve estar muito bem da vida – alguém se ocupou rapidamente e a bom preço do seu mutismo.
O que espanta, é ver como se manipulam Estados frágeis como a Grécia, Portugal ou Chipre, usando-os quase como vírus para corroer um conjunto que deveria ser suficientemente forte e coeso, como a União Europeia, ao mesmo tempo que se tira das situações difíceis para que os empurram, enormes dividendos sobre as respectivas dívidas soberanas. Tudo isto com claríssimas cumplicidades no interior desses mesmos Estados, denunciadas na Comunicação Social mas sempre aparentemente impunes, tal é a jactância e o poder de quem os apoia. Parece até que cumprem missões específicas, as quais, uma vez terminadas, dão recompensa em lugares de destaque em empresas multinacionais ou organizações internacionais de grande poder, financeiras ou não. Nem é preciso ir muito longe, temos bons exemplos em Portugal. Curiosamente, dá a impressão que, por vezes, alguns desses personagens passam por um certo tipo de diapausa ou “dormência”, para subitamente regressarem, depois de algum afastamento a que se chama travessia do deserto (embora na travessia, quase sempre bebam água e água de boa qualidade…). Quando regressam, os acólitos que sempre têm preparam-lhes o caminho, apagando as pegadas desastrosas que deixaram antes e dando-lhes acesso a um percurso redentor.
Estamos, neste vai e vem de manipulados pelos poderes externos em que se transformaram os portugueses, a caminho da redenção de alguns dos piores responsáveis pelo descalabro a que a nação lusitana chegou. Tal como uma alcateia que sente indefeso o rebanho, começam a surgir de novo na ribalta nomes que, se tivessem alguma vergonha e pudor, deveriam permanecer no anonimato dourado para que foram remetidos, após as terríveis feridas que infligiram ao País. Mas não: indiferentes, senhores da impunidade que sempre tiveram, antifascistas gloriosos do neoliberalismo feroz que se acoita sob uma capa de pseudo-esquerda, descem da montanha em cujo cimo se refugiaram no tempo adverso, espreitando a oportunidade do retorno, facilitada por idêntica coorte que lhes ocupou interinamente os lugares do Poder.
Assiste-se a uma quase transumância do pasto para a montanha e da montanha para o pasto, com os lobos acompanhando o rebanho que lhes serve de presa. Em Chipre, já se sentem os uivos dos lobos predadores, sedentos da carne das ovelhinhas. Em Portugal, além dos que já se refastelam com os pratos fartos da austeridade, descem dos montes os foragidos, convencidos de que poderão voltar ao repasto, uma vez chegada a ocasião. É vê-los na televisão, de pelo luzidio e dentes à mostra, porque é sempre assim quando se ouve o uivar dos lobos.
Aquilino Ribeiro gostava das verdades duras como punhos. Se fosse vivo, e como nunca fora homem de mandar recados por ninguém, não teria por certo dúvidas em desdenhar o epíteto de "mestre" que hoje lhe atribui uma sociedade que não lê os seus livros, ignora a riqueza do vocabulário por ele introduzido nos seus romances, e há muito depositou a sua obra num muito reverenciado mausoléu.
Não é sina, nem destino. É algo que acontece, mesmo a grandes escritores como o foi Aquilino Ribeiro, cujo ex-líbris era desde logo uma afirmação de persistência e vontade: "alcança quem não cansa".
Se fosse vivo, o escritor teria agora 127 anos. O seu tempo já não é deste tempo, sobretudo quando se percebe que o facto de ter passado de moda tem a ver, não tanto com a qualidade da escrita ou a originalidade dos temas, mas sobretudo com a desvalorização da ruralidade num imaginário português que se quer atribuir a si próprio um estatuto cada vez mais urbano.
Desaparecido das estantes
Aquilino deixou de ser lido. As livrarias deixaram de o ter nas estantes. Os estudantes só com muito esforço conseguem aproximar-se do universo deste homem que soube como poucos conjugar a palavra liberdade. Fazia-o no modo como concebia o seu empenhamento cívico e político, ou na agudeza com que levava as suas personagens a contestarem o estabelecido, a questionarem os autoritarismos.
Aquilino Ribeiro nasceu a 13 de Setembro de 1885 no concelho de Sernancelhe, freguesia de Carregal, e morreu a 27 de Maio de 1963, num ano de muitas homenagens públicas a que com gosto assistia.
Após o 25 de Abril de 1974 o povo de Soutosa, para onde Aquilino foi viver com dez anos de idade, e onde está agora a Casa Museu com o seu nome, viveu uma festa nunca antes vista. Muitos terão despertado ali para a circunstância de respirarem o mesmo ar que tantos anos foram respirados pelo génio que naquela altura se homenageava com a colocação de um busto.
Para trás ficava a história longa daquele que muitos especialistas continuam a considerar um dos maiores prosadores portugueses do século XX.
Publicou em vida 69 livros distribuídos por áreas tão diversas como a ficção, jornalismo, crónica, memórias, ensaio, estudos de etnologia e história, biografias, crítica literária, teatro, literatura infantil, polémicas a que nunca se furtava e traduções (às vezes muito livremente recriadas) do latim, grego, espanhol (o D. Quixote, por exemplo), francês e italiano.
Com uma vida pessoal rica e intensa, Aquilino estudou no Liceu de Lamego, depois iniciou os estudos de filosofia em Viseu. A pedido da mãe, foi para o seminário de Beja, mesmo se o que menos se lhe conhecia era vocação religiosa.
Acusado de bombista em 1907, devido à explosão em sua casa de uns caixotes de explosivos que levaram à morte de dois correligionários, acabou detido por fazer parte do Partido Republicano.
Não descansou enquanto não se evadiu da cadeia e encontrou refúgio em Paris. Depois de proclamada a República veio a Portugal, mas frequentara já na Sorbonne os cursos de Filosofia e Sociologia. Entretanto conhece Grete Teuidemann, com quem acaba por residir na Alemanha e de quem tem um primeiro filho.
Espírito sempre inquieto e avesso a ditaduras, vê-se de novo em fuga política e refugiado na Beira Alta, e depois de novo em Paris, devido às suas posições contra a ditadura militar que se instalara no país após o golpe de 1926.
Nestas andanças tem um período em que se esconde em Soutosa e depois fica viúvo. Sempre em revolta, sempre em contestação, conhece uma vez mais o exílio. Em Paris casa com Jerónima Dantas Machado, filha de Bernardino Machado, presidente da República destituído com o golpe militar de 1926.
Enquanto vivia a vida, Aquilino escrevia e fazia-o como poucos. Da sua pena saíram obras magistrais, como "Quando os Lobos Uivam", "Via Sinuosa, "Tombo no Inferno", ou "O Arcanjo Negro", entre muitas outras.
O escritor morreu há meio século. Há uma eternidade na sua obra, que as momentâneas vivências ou exigências do actual quotidiano têm feito esquecer.
Nada a que não consiga resistir o trabalho de um homem que se assumia como uma força da natureza, e para quem a natureza era o palco maior da vida que em cada instante imaginava e reconstruía.


Manuel Louvadeus dum galão subiu os degraus. Em cima, no patamar, topou a porta fechada e deteve-se, quando ia para bater, como quem toma fôlego. Com a breca, achava tudo tal e qual! Os dez anos de ausência apagaram-se como um sopro perante a obsessiva eternidade que se lhe oferecia ao lance de olhos. (…) Que distância, anos e anos que correram na levada do tempo, e as coisas conservarem-se ali iguaizinhas, estáticas, teimosas no seu ar de encantamento! Talvez mais velhas… Sim, mais velhas, ferradas mais fundo pelos dentes da morte e a despenhar-se na voragem como as telhas do beiral. E haviam, porventura, de resistir aos vaivéns mais que o coirão dum homem, entretanto que se fartava de dar tombo por esses mundos de Cristo?!»
Sobre a obra
Serra dos Milhafres, finais dos anos 40, o Estado Novo resolve impor aos beirões uma nova lei: Os terrenos baldios que sempre tinham sido utilizados para bem comunitário e onde essa comunidade retirava parte vital do seu sustento, seriam agora “expropriados” e utilizados para plantar pinheiros. Emerge um clima de medo nas pessoas e é esse clima que Manuel Louvadeus, que havia emigrado para o Brasil anos antes, vem encontrar quando regressa à aldeia.
Agora um Homem vivido e culto, Manuel tem uma visão e um sentido de justiça que rapidamente o fazem cair nas boas graças do povo. Toma então parte da sua gente, homens honestos e humildes que trabalham de sol a sol mas que não deixam de viver em condições miseráveis. A revolta acaba por suceder e tudo acaba numa caçada aos homens por parte da polícia que leva muitos deles à prisão acusados de serem instigadores e cérebros da revolta. O Estado mostra então todo o seu esplendoroso poder. Aqui representada está a saga dos beirões na defesa dos terrenos baldios perante a ditadura do Estado Novo.
Sobre autor
Aquilino Ribeiro nasceu na Beira Alta no ano de 1885 e morreu em Lisboa em 1963.
Deixou uma vasta obra em que cultivou todos os géneros literários partilhando com Fernando Pessoa, no dizer de Óscar Lopes, o primado das letras portuguesas do século XX. Foi sócio de número da Academia das Ciências e, após o 25 de Abril, reintegrado, a título póstumo, na Biblioteca Nacional, condecorado com a Ordem da Liberdade e homenageado, quando do seu centenário, pelo Ministério da Cultura. Em Setembro de 2007, por votação unânime da Assembleia da República, o seu corpo foi depositado no Panteão Nacional.
1885: 13 de Setembro: Carregal de Tabosa, concelho de Sernancelhe - nasce Aquilino Gomes Ribeiro, filho de Joaquim Francisco Ribeiro e de Mariana do Rosário Gomes. 1895: A 10 de Julho, entra no Colégio da Senhora da Lapa, onde em Agosto fará o exame de instrução primária. 1900: 5 de Outubro: é admitido no Colégio Roseira, em Lamego. 1902: 16 de Junho - vai para Viseu estudar Filosofia; 16 de Outubro: transfere-se para o Seminário de Beja, onde frequentará o curso de Teologia, vindo durante o segundo ano lectivo a ser expulso por insubordinação. 1906: Passa a viver na capital iniciando a sua vida de escritor e jornalista. 1907: Adere à Carbonária. Violenta explosão no quarto da Rua do Carrião durante a manipulação de cargas de TNT. É preso. 1908: 12 de Janeiro: evade-se da prisão. Em Maio, refugia-se em Paris. 1910: Proclamada a República, no final do ano vem a Portugal, regressando depois a França para continuar os estudos. 1912: Durante alguns meses reside na Alemanha. 1913: Neste país, casa com uma colega da Sorbonne, Grete Tiedmann, e, com ela, regressa a Paris. Publica o livro de contos Jardim das Tormentas. 1914: Eclode a I Grande Guerra: em Agosto, regressa a Portugal com a mulher e o filho que nascera em Fevereiro. 1915: Irá, durante três anos, dar aulas no Liceu Camões, em Lisboa. 1918: É publicado o romance A Via Sinuosa. 1919: Convidado por Raul Proença, entra como bibliotecário na Biblioteca Nacional. Sai o romance Terras do Demo. 1920: Publica as novelas Filhas da Babilónia. 1921: No ABC, publica em Outubro a novela Valeroso Milagre. Sai a novela A Traição. 1922: É publicada a sua tradução (e prefácio) de Recreação Periódica, (AmusementPériodique), de Cavaleiro de Oliveira. É editada a colectânea Estrada de Santiago. 1924: Edição do livro infantil Romance da Raposa. 1926: É a vez do romance Andam Faunos pelos Bosques. 1927: Envolve-se numa conspiração política e, perseguido, refugia-se de novo em Paris. Morre sua esposa Grete. Regresso a Portugal. 1928: Adere ao movimento militar do Regimento de Pinhel. Abortado este, é preso e internado no presídio do Fontelo, em Viseu de onde se evade. Novo refúgio em Paris. 1929: Em Junho casa em Paris, com Jerónima Dantas Machado. Em Portugal, é julgado e condenado à revelia. 1930: É editado o romance O Homem que Matou o Diabo. 1931: Publica o romance Batalha Sem Fim. Passa a residir com a família na Galiza. 1932: É amnistiado e instala-se na Cruz Quebrada. Publica o livro de novelas As Três Mulheres de Sansão, pelo qual lhe é atribuído em 1933 o Prémio Ricardo Malheiros. Ainda em 1933, publica o romance Maria Benigna.1934: Publica as obras É a Guerra e Alemanha Ensanguentada. 1935: É eleito sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. São editados o livro de contos Quando ao Gavião Cai a Pena e a obra para crianças Arca de Noé, III Classe. 1936: Publica os livros Aventura Maravilhosa de D. Sebastião, Rei de Portugal, depois da batalha com o Miramolim, O Galante Século XVIII e Anastácio da Cunha, o Lente Penitenciado. 1937: Sai o romance S. Banaboião, Anacoreta e Mártir. 1938: Traduz e prefacia a obra de Xenofonte, A Retirada dos Dez Mil. 1939: Publicam-se o romance Mónica e o livro de ensaios Por Obra e Graça. 1940: Traduz o texto latino de António Gouveia Em prol de Aristóteles. Edita-se o livro de novelas O Servo de Deus e a Casa Roubada; publica uma monografia dedicada a Oeiras. 1942: Publica e prefacia a obra biográfica Brito Camacho. 1943: Regressando à temática histórica, publica Os Avós dos nossos Avós. 1944: Publica o romance Volfrâmio. 1945: Saem a público O Livro do Menino Deus e o romance Lápides Partidas. 1946: Sai o opúsculo Camões e o Frade na Ilha dos Amores; publica a obra etnográfica Aldeia - Terra, Gente e Bichos. 1947: Publicação dos livros Caminhos Errados e Constantino de Bragança, VII Vizo-Rei da Índia e do romance O Arcanjo Negro. 1948: Saem os romances Cinco Réis de Gente e Uma Luz ao Longe. 1949: São publicados os textos de crítica literária Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais; publica em separata o comentário à EditioPrinceps de Os Lusíadas. É ainda publicada uma edição de luxo de O Malhadinhas. Colabora na propaganda da candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República. 1950: Luís de Camões, Fabuloso e Verdadeiro, um ensaio em dois volumes. 1951: Saem os livros Portugueses das Sete Partidas e Geografia Sentimental. 1952: Entre Março e Junho, vai de visita ao Brasil, onde é homenageado. Acaba a tradução de O Príncipe Perfeito; publica Leal da Câmara; sai uma edição ilustrada da tradução de a Retirada dos Dez Mil. 1953: Publica Príncipes de Portugal e Arcas Encoiradas. 1954: Humildade Gloriosa, um romance sobre a vida de Santo António, e O Homem da Nave, são os livros publicados por Aquilino este ano. 1955: Sai a obra Abóboras no Telhado e a biografia crítica O Romance de Camilo. 1956: Publica o conto Sonho duma Noite de Natal e sai também Soldado que foi à Guerra. É fundada em Lisboa a Sociedade Portuguesa de Escritores, sendo Aquilino eleito como seu presidente. 1957: A Bertrand inicia a colecção Obras Completas de Aquilino Ribeiro. Sai a crónica romanceada A Casa Grande de Romarigães e edita-se a sua tradução do D. Quixote de la Mancha, de Cervantes. 1958: É publicada a sua tradução das Novelas Exemplares, de Cervantes; é eleito sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa. Publica o romance Quando Os Lobos Uivam, obra que viria a ser proibida pela censura. É membro da Comissão de Candidatura do general Humberto Delgado. 1959: Publica D. Frei Bartolomeu dos Mártires; prefacia a tradução do romance de Pasternak, Dr. Jivago. 1960: São publicados os livros No Cavalo de Pau de Sancho Pança (uma biografia de Cervantes) e De Meca a Freixo de Espada à Cinta, colectânea de ensaios dispersos. No Brasil, sai o livro Quando Os Lobos Julgam, a Justiça Uiva. 1961: Para ser submetido a tratamento, vai a Londres. 1962: Publica O Livro de Marianinha. Escreve Um Escritor Confessa-se, em que conta a sua vida até 1908, e que sairá apenas em 1974. 1963: É publicado Tombo no Inferno. A Sociedade Portuguesa de Autores, promove uma homenagem a propósito do 50º aniversário da publicação de Jardim das Tormentas. 27 de Maio: no Hospital da CUF, em Lisboa, morre Aquilino. 1985: Nas comemorações do centenário do nascimento, realiza-se na Biblioteca Nacional um ciclo de conferências sobre a sua obra, sendo também inaugurada uma exposição biobibliográfica. Na casa onde nasceu é descerrada uma lápide. 1986: É criado em Viseu o Centro de Estudos Aquilino Ribeiro. 2007: É oficialmente decidida a trasladação dos restos mortais de Aquilino para o Panteão Nacional de Santa Engrácia (o que ocorrerá em 19 de Setembro).
Em 1885, nasce Aquilino Ribeiro na aldeia de Carregal de Tabosa, concelho de Sernancelhe. É baptizado na igreja matriz da freguesia de Alhais, concelho de Vila Nova de Paiva. No ano em que Aquilino chega ao mundo, Émile Zola escreve Germinal, Mark Twain publica HuckleberryFinn, Guy de Maupassant, Belami. Por cá, Guerra Junqueiro dá à estampa A Velhice do Padre Eterno, Oliveira Martins publica a sua História da República Romana e Ramalho Ortigão A Holanda. Nascem outros grandes escritores: Sinclair Lewis, D. H. Lawrence, Jules Romain, EzraPound... Morre o grande Victor Hugo. Louis Pasteur inocula pela primeira vez o soro contra a raiva. Circula o primeiro automóvel – um ano normal.
Em 11 de Março de 1895, passa a residir com os pais, em Soutosa, freguesia da Nave, concelho de Moimenta da Beira. Em 10 de Julho desse mesmo ano, ingressa no colégio jesuíta de Nossa Senhora da Lapa, onde em Agosto faz exame de instrução primária. Em Cinco Réis de Gente e em Uma Luz ao Longe, romanceia reminiscências da sua infância e pré-adolescência. Em 5 de Outubro de 1899, entra no Colégio Roseira (ou do Padre Alfredo), em Lamego. O objectivo é enveredar pela vida sacerdotal (seu pai fora padre). Por isso, em 16 de Junho de 1902 vai para Viseu, para fazer a cadeira de Filosofia, que o habilite à admissão no Seminário de Beja, onde entra em 16 de Outubro desse ano com a intenção de frequentar o Curso de Teologia: «Quando cheguei de Lamego, com os preparatórios feitos, afora filosofia, declarei peremptoriamente em casa que não sentia bossa nenhuma para a carreira eclesiástica. Tinha eu dezasseis anos.» 1 Com estas palavras iniciam Aquilino o seu livro de memórias Um Escritor Confessa-se. «Eu entrara crente, crente absoluto, para o Seminário, e sentia, malgrémoi, a favor das exuberâncias da minha natureza, que estava a despir a carapaça religiosa, pode dizer-se, com que se nasce e nos tolhe na idade da razão de dar tombo para o desespero e pessimismo», diz mais adiante na mesma obra. De facto, o seu percurso no seminário de Beja, onde frequenta o Curso de Teologia, nem é longo nem termina da melhor maneira - completa o primeiro ano e faz ainda uma parte do segundo. Porém, vai pondo em causa dogmas, descobre as corrupções dos irmãos Ançã, vice-reitor e prefeito que dominam a instituição, discorda da disciplina rígida do Seminário, insubordina-se – acaba por ser expulso.
Consciente da sua completa falta de vocação para a carreira eclesiástica, resolve-se, em meados de 1904, a regressar à Soutosa, enfrentando a ira, a zangada desilusão dos pais, que sonhavam já vê-lo ser ordenado, a receber a prima tonsura e a celebrar missa... Este conturbado período da sua adolescência será transformado em matéria ficcional, em alguns dos contos de Jardim das Tormentas e, principalmente, no romance A Via Sinuosa. É com essas recordações que dá início ao seu livro de memórias.
Em 1906 muda-se para Lisboa, morando primeiro numa pensão da Rua do Crucifixo, depois na Rua das Pedras Negras e, finalmente, num quarto alugado na Rua do Carrião. Em Um Escritor Confessa-se, relata, com a mestria que caracteriza toda a sua obra, as peripécias por que passa um jovem provinciano na Lisboa do princípio do século XX. Tentando sustentar-se com o trabalho de escrita, começa a publicar os primeiros artigos em A Vanguarda, publicação dirigida por Sebastião de Magalhães Lima. Traduz Il Santo, de Fogazzaro, livro editado por José Bastos. Conhece Alfredo Luís da Costa, que virá a ser um dos regicidas, fundador de uma pequena editora (a Social Editora) que publicará A Filha do Jardineiro, romance a sair em «fascículos semanais de 30 réis», que Aquilino começa a escrever de parceria com José Augusto Ferreira da Silva. Este, que virá a ser ministro das Obras Públicas durante a I República, na transposição para a obra literária de Aquilino, dá corpo à personagem de Tomé da Silveira, do romance Lápides Partidas. O tal «romance histórico contemporâneo», que pretendia relatar a alegada sedução pelo rei D. Carlos, na sua juventude, da filha de um pobre jardineiro da Tapada da Ajuda, nunca passará do terceiro fascículo. Já em 1907, Aquilino é abordado no Rossio nem mais nem menos do que pelo fundador da Carbonária – Artur Augusto Duarte Luz de Almeida - Liga-se assim à Carbonária, braço armado da Maçonaria, Guarda no seu quarto da Rua do Carrião dois caixotes com cargas de TNT. Gonçalves Lopes, um professor do Liceu do Carmo e Belmonte de Lemos, um adelo da Rua dos Fanqueiros, ao manipularem os explosivos no quarto de Aquilino, provocam uma terrível explosão que vitima ambos. Aquilino sai ileso, mas é detido e levado para a esquadra do Caminho Novo, o cárcere mais severo do regime franquista. Em 12 de Janeiro de 1908, logra evadir-se da prisão, episódio que conta com magistral ironia e comicidade em Um Escritor Confessa-se. Segundo aí conta, vive escondido numas águas-furtadas da Rua Nova do Almada. Em 1 de Fevereiro, dá-se o Regicídio que vitima o rei D. Carlos e Luís Filipe, o príncipe-herdeiro. Aquilino é por muitos apontado como um dos elementos do grupo que atentou contra a família real, coisa que sempre negará. Em Maio vai até ao Entroncamento, onde toma o Sud-Express, viajando clandestinamente para Paris, onde irá viver durante seis anos.«Todo o livro é percorrido por sinais que antecipam a visão de Cesário acerca da antinomia cidade/campo. De um modo geral, é o campo que sai exaltado no processo discursivo que organiza o material do discurso. É claro que a recusa da «civilização» citadina corresponde, algumas vezes, aos mecanismos republicanos que recusam servir o rei.» [...] «É inegável, porém, uma antipatia visceral pelo espaço urbano («a cidade dormia o sono dos devassos», XXII), reiterada com insistência no poema XXIX:Eis a velha cidade! A cortesã devassa, a velha imperatriz da inércia e da cobiça,
Não sendo arbitrária a permanência na estrofe seguinte dos significantes «lama» e «preguiça»
Conseguindo obter a equiparação aos seus estudos portugueses, frequenta durante três anos a Faculdade de Letras da Sorbonne. Convive com numerosos artistas, filósofos, escritores. Pelo meio, no final de 1910, já proclamada a República, vem a Portugal. Mas logo regressa aos estudos na Sorbonne. Aí conhece uma colega, Grete Tiedemann, uma alemã de Meclemburg, que virá a ser a sua primeira mulher. Em 1912, reside alguns meses na Alemanha, em Berlim e em Parchin. Ainda na Alemanha, casa em 1913 com Grete. O casal regressa a Paris, onde reside primeiro na rueHallen e depois na rueDareau. Este é o seu ano de estreia como novelista – publica Jardim das Tormentas, obra que dedica a Grete. O livro é editado por Júlio Monteiro Aillaud e prefaciado por Carlos Malheiro Dias. Em 26 de Fevereiro de 1914, nasce o primeiro filho do casal - Aníbal Aquilino FritzTiedemann Ribeiro. Em Agosto, eclode a I Grande Guerra. Aquilino e Grete vêm para Portugal. Aqui Bernardino Machado preside a um governo de «Conciliação Republicana». Bernardino Machado... Mais adiante veremos como os destinos do escritor e do tribuno republicano se irão cruzar.
Embora não tenha terminado a licenciatura na Sorbonne, dá, a partir de 1915, aulas como professor supranumerário no Liceu Camões. Vive com Grete e o filho no Campo Grande. Este período da sua vida é experiência mais tarde utilizada na novela Domingo de Lázaro (incluída na versão definitiva de Estrada de Santiago). Em 1918 publica o romance A Via Sinuosa, dedicado a seu pai, onde, como atrás dissemos, se projectam algumas experiências autobiográficas da adolescência, nomeadamente a sua tormentosa passagem pelo Seminário de Beja. No ano seguinte, a convite de Raul Proença, ingressa como bibliotecário nos quadros da Biblioteca Nacional. Aí convive com Jaime Cortesão, Raul Brandão, Gualdino Gomes, Azeredo Perdigão, António Sérgio, Câmara Reis, com o próprio Raul Proença e outros; desse convívio e das acaloradas discussões que, começando ao fim da tarde, se prolongavam noite adentro, nasce a Seara Nova, revista «de doutrina e crítica» de cujo primeiro corpo directivo Aquilino fará parte. Publica ainda o romance de raiz marcadamente telúrica, regionalista, Terras do Demo que, segundo disse depois, elaborou ao mesmo tempo que escrevia A Via Sinuosa. Em 1920, publica a colectânea de novelas As Filhas da Babilónia, páginas que reflectem as suas vivências parisienses.
 «Alcança quem não cansa», dita o ex-libris de mestre Aquilino. Na realidade, a sua infatigável pena vai produzindo livros a um ritmo alucinante. Irá legar-nos uma obra de setenta volumes. Por aqueles anos da sua juventude e maturidade, alcança a justa fama de ser um dos maiores prosadores da língua portuguesa. Isto, ao mesmo tempo que vive intensamente - a sua vida, como vemos, é o inesgotável alfobre onde sempre vai buscar matéria ficcional. Só escreve sobre o que conhece bem. Assim, em Outubro de 1921 publica no suplemento literário do ABC, semanário ilustrado fundado em 1920 por Mimon Anahory e por Rocha Martins, a novela Valeroso Milagre, na colecção Leitura de Hoje, sai a novela A Traição. Em 1922, publica na Imprensa da Biblioteca Nacional, uma tradução e prefácio do livro de Cavaleiro de Oliveira, Recreação Periódica (AmusementPériodique), obra de que existem raríssimos exemplares. O prefácio irá dar lugar à brochura O Cavaleiro de Oliveira e depois a O Galante Século XVIII. No mesmo ano, sai o livro de contos Estrada de Santiago, onde se inclui pela primeira vez a novela O Malhadinhas – uma das suas obras de maior fulgor e que virá posteriormente a merecer publicação autónoma. Também a conferência sobre Anatole France que ainda neste ano proferirá, será mais tarde integrada no volume de ensaios Por Obra e Graça.
Entretanto, o País prossegue o seu rumo direito ao abismo. Depois das aparições de Fátima, do messiânico golpe militar de Sidónio e do magnicídio que a vítima, dá-se a «Noite Sangrenta» em que António Granjo, Machado Santos e Carlos da Maia, são barbaramente assassinados. A República tece a sua mortalha e aconchega as palhinhas para o presépio da ditadura. Em Itália, Mussolini e os seus «camisas negras» marcham sobre Roma. Hitler escreve MeinKampf; na Turquia, Ataturk proclama a República, em Espanha dá-se o golpe de Estado de Primo de Rivera, Estaline ascende à chefia do Partido Comunista Soviético, morre Lenine, o Partido Fascista vence as eleições italianas. Por cá, Teixeira Gomes renuncia à presidência. Bernardino Machado substitui-o... Como podemos ver, 1922, 1923, 1924, 1925, 1926, são anos muito normais.
 Em 1924 o nosso Aquilino publica o livro infantil O Romance da Raposa, com belíssimas ilustrações de Benjamin Rabier. Em 1926, é a vez do romance Andam Faunos pelos Bosques, com uma bela capa executada pelo pintor Abel Manta. O arsenal teológico do escritor estende-se sobre o fundo rústico comum à sua obra, dando lugar a uma fábula de sabor mitológico. A partir de 1927 vive em Santo Amaro de Oeiras. Envolve-se numa conspiração contra a Ditadura Militar instalada em 28 de Maio do ano anterior (com revoltas no Porto e em Lisboa, em 3 e 7 de Fevereiro, respectivamente); demitido da Biblioteca Nacional, foge à perseguição policial indo clandestinamente para Paris. Regressa depois a Portugal, refugiando-se na Soutosa. Morre Grete Tiedemann. Em 1928 envolve-se no movimento insurreccional do Regimento de Pinhel. Com o Dr. António Gomes Mota, é preso em Contenças, ficando ambos detidos no presídio do Fontelo, em Viseu. Em circunstâncias rocambolescas, conseguem evadir-se. Nova fuga para Paris. Em 1929, no mês de Junho, casa pela segunda vez, agora com D. Jerónima Dantas Machado, filha de um ilustre exilado – o ex-Presidente Bernardino Machado. O consórcio tem lugar na mairie de Montrouge e os noivos seguem depois para o Sul de França – Ustaritz e Bayonne. É nesta última cidade que, em Abril de 1930, nasce o seu filho Aquilino Ribeiro Machado. Entretanto, em Portugal, é julgado e condenado à revelia pelo Tribunal da Ditadura Militar que governa o País. Ainda em 1930, publica O Homem Que Matou o Diabo, um romance que dedica a sua mulher. No ano de 1931 passa a residir com a família na Galiza, primeiro em Vigo e depois em Tui. Publica Batalha Sem Fim.
Em 1932 entra clandestinamente em Portugal e vive algum tempo em Abravezes, Viseu. Entretanto é amnistiado e fixa-se na Cruz Quebrada. Em 1933, o ano em que se instala o «Estado Novo» de Salazar, pela sua obra As Três Mulheres de Sansão (publicado em 1932), é-lhe atribuído o prestigioso prémio Ricardo Malheiros. Sai o romance Maria Benigna, onde narra o encontro romanesco entre uma lisboeta e um beirão. Em 1934 publica as obras É a Guerra (Diário) e Alemanha Ensanguentada – Cadernos de Um Viajante, livros que reflectem a posição do escritor face à tragédia da Primeira Grande Guerra. Por estes anos, estabelece amizade com o médico e professor universitário Francisco Pulido Valente. No consultório deste, reunir-se-á a tertúlia que Abel Manta fixou na tela – temas preferidos – a recorrente crise política do País e do mundo, e a efervescente cultura daqueles tempos.
Em 20 de Fevereiro de 1935 é eleito sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. Neste ano sai o seu livro de contos Quando ao Gavião Cai a Pena e ainda o livro para crianças Arca de Noé, III Classe, com ilustrações de Matos Chaves. 1936 é mais um ano de grande produção, com predomínio da temática histórica - sai Aventura Maravilhosa de D. Sebastião, Rei de Portugal, depois da batalha com o Miramolim, o ensaio O Galante Século XVIII e Anastácio da Cunha, o Lente Penitenciado (Vida e Obra). No ano seguinte, publica o romance S. Banaboião, Anacoreta e Mártir, com capa de Clementina Carneiro de Moura. Contesta com a sua subtil ironia, o modelo hagiográfico tradicional. Em 1938, socorrendo-se da sua vasta cultura clássica, faz a tradução e escreve o prefácio de A Retirada dos Dez Mil, de Xenofonte. A capa é de Eduardo Faria. Em 1939 publica o romance Mónica, baseado na burguesia lisboeta dos anos vinte, e a colectânea de estudos Por Obra e Graça. Entretanto, em 1936 começara a Guerra Civil de Espanha, e em 1939 eclode a 2ª Guerra Mundial.
Em 1940 traduz o texto latino de António Gouveia Em Prol de Aristóteles. Publica ainda as novelas de O Servo de Deus e a Casa Roubada, e uma monografia sobre Oeiras, onde residiu durante alguns anos. Lá fora, a guerra continua. Em 7 de Dezembro de 1941, os japoneses atacam PearlHarbor e arrastam os Estados Unidos para a fogueira. Em 1942, publica, em parceria com o «seareiro» Matias Boleto Ferreira de Mira, Brito Camacho. Ferreira de Mira ocupa-se do «homem político» e Aquilino, que também escreve o prefácio, do «homem de letras. Em 1943, regressa aos temas históricos, com Os Avós dos nossos Avós. Em Itália, cai Mussolini. Em 1944, o Mestre faz uma primeira incursão nos temas da actualidade - publica o romance Volfrâmio. 1945 é mais um ano normal: os Estados Unidos lançam bombas nucleares sobre Hiroxima e Nagasáqui e acaba a 2ª Guerra Mundial com a vitória dos Aliados sobre as potências do Eixo. Aquilino publica a edição ilustrada de O Livro do Menino de Deus e um romance-sequela de A Via Sinuosa - Lápides Partidas. O pano de fundo da acção romanesca é a Lisboa dos últimos anos da Monarquia, nomeadamente do episódio do Regicídio. Em 1946, publica nos Cadernos Históricos, dirigidos por Rocha Martins, o opúsculo Camões e o Frade na Ilha dos Amores (o frade é Frei Bartolomeu Ferreira). Sai ainda o estudo de cariz etnográfico Aldeia - Terra, Gente e Bichos. 1947 é o ano do livro de novelas Caminhos Errados (onde se inclui a narrativa Chumbo) e do romance O Arcanjo Negro (continuação de Mónica), onde se aproveita como matéria ficcionística os agitados anos da instauração da ditadura em Portugal. Publica ainda uma obra ilustrada - Constantino de Bragança, VII Vizo-Rei da Índia. Em 1948, volta aos temas autobiográficos com os romances Cinco Réis de Gente e Uma Luz ao Longe, baseados na sua infância e adolescência. Em 1949 publica os estudos Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais. Causam grande polémica no meio intelectual. A visão de Aquilino sobre estes génios da nossa literatura é aguda e brilhante, mas está longe de ser consensual. O ensaio de crítica bibliográfica e literária EditioPrinceps de Os Lusíadas, surge em separata do Boletim da Junta da Província da Estremadura. É neste ano que a edição de luxo de O Malhadinhas, ilustrada por Bernardo Marques, sai a público. É membro activo da Comissão de Candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República. Em 1950 publica o ensaio em dois volumes Luís de Camões, Fabuloso e Verdadeiro. Nova celeuma na comunidade intelectual - Aquilino, como sempre, tem uma visão brilhante, mas pouco ortodoxa sobre um tema tão sedimentado na matriz cultural indígena. Em 1951 publica Portugueses das Sete Partidas (Viajantes, aventureiros e troca-tintas) e, na mesma linha de raiz etnográfica de Aldeia, Geografia Sentimental.
Entre os meses de Março e de Junho de 1952, vai de visita ao Brasil. Ali recebe homenagens de instituições, escritores e figuras públicas do país irmão. Visita Salvador, onde é eleito sócio da Academia de Letras da Baía, São Paulo, Mato Grosso e Rio de Janeiro. Nesta cidade, é-lhe oferecido um banquete onde estão presentes grandes intelectuais brasileiros e destacados elementos da colónia portuguesa. Em 22 de Julho, é condecorado pelo Governo brasileiro, pelas mãos do ministro das Relações Exteriores, João Mendes Fontoura, com a comenda do Cruzeiro do Sul. Em 1953, o seu livro Príncipes de Portugal (suas grandezas e misérias), provoca indignação nos meios afectos ao regime salazarista, sendo mesmo objecto de ataques na chamada Assembleia Nacional; publica ainda Arcas Encoiradas (Estudos, opiniões, fantasias). 1954 é o ano de um romance sobre a vida de Santo António - Humildade Gloriosa. Edita também O Homem da Nave (Serranos, caçadores e fauna vária), mais uma obra do foro da antropologia e da etnografia. O saber do Mestre não conhece fronteiras. Em 1955 sai a obra Abóboras no Telhado (Crónica e polémica) e o estudo biográfico e de crítica literária O Romance de Camilo, ilustrado por diversos artistas plásticos, entre os quais Júlio Pomar. Em 1956, com ilustrações de Bernardo Marques, edita o conto Sonho duma Noite de Natal. Na colecção Novela, sai o conto Soldado Que Foi à Guerra, extraído de Caminhos Errados (sob o título Chumbo). Neste ano é fundada a Sociedade Portuguesa de Escritores (actual Associação Portuguesa de Escritores). Aquilino é eleito como primeiro presidente. 1957 é o ano de publicação de uma das suas principais obras - a crónica romanceada A Casa Grande de Romarigães. Sai ainda a sua tradução de D. Quixote de la Mancha, a imortal obra de Cervantes. São dois volumes ilustrados por Lima de Freitas. A Bertrand inicia a publicação das Obras Completas de Aquilino Ribeiro
Em 1958 acontecem muitas coisas: é eleito sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa, proferindo no acto um Discurso de recepção na Academia, mais tarde publicado no Boletim da instituição. Publica o romance Quando Os Lobos Uivam. Em Março de 1959 é-lhe instaurado um processo pela publicação de Quando Os Lobos Uivam. Em Outubro, é pronunciado como arguido no crime de abuso de liberdade de imprensa, sendo emitido em seu nome um mandado de captura. Evita a prisão mediante pagamento de caução. Em 1960, o Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, Francisco Vieira de Almeida, propõe Aquilino como candidato ao Prémio Nobel da Literatura. Mais de uma centena de intelectuais e figuras públicas, subscrevem a proposta. Como consequência, o processo instaurado pela publicação de Quando Os Lobos Uivam é arquivado, abrangido por uma amnistia - forma de o regime salvar a face e evitar um escândalo que ultrapassava já as fronteiras. Neste mesmo ano, no Brasil é publicado Quando Os Lobos Julgam, a Justiça Uiva (texto integral da acusação e defesa no processo movido pelas autoridades salazaristas contra o seu romance, com prefácio de Adolfo Casais Monteiro). Ainda em 1958 sai D. Frei Bartolomeu dos Mártires, escrevendo ainda o prefácio para a tradução do romance de Boris Pasternak Dr. Jivago. Este é o ano da candidatura de Humberto Delgado. Apesar dos seus 74 anos, Aquilino vai à luta - é um dos promotores da campanha eleitoral do «general sem medo».
Em 1961, vai tratar-se a Londres e, no regresso, passa por Paris, a sua cidade-refúgio. Em 1962, filha de Aquilino Ribeiro Machado, nasce a sua primeira neta – Mariana, a Marianinha de um livro que escreverá nesse mesmo ano - O Livro de Marianinha: (Quando o meu tio veio de Paris, /trouxe-me de lá um cavalo gris, /com arreio de couro e selim. /Apenas lhe faltava, para grão rocim, /saber despedir uma parelha, /e enxotar moscas detrás da orelha.)
Em 1963, publica Tombo no Inferno. A Sociedade Portuguesa de Escritores, agora presidida por Ferreira de Castro, nomeia uma comissão para comemorar o 50º aniversário da publicação da primeira obra de Aquilino – Jardim das Tormentas. É também homenageado pela Casa das Beiras. Durante essas homenagens, Aquilino é acometido por doença súbita – morre às 12,30 do dia 27 de Maio no Hospital da CUF, em Lisboa com 77 anos.
Como diz Jorge Reis, «Aquilino Ribeiro - toda a sua obra o prova - não gostava de falar de si - e quando o fez, foi quase sempre para recordar os amigos, confundir-se com eles.» Mestre Aquilino é um dos maiores escritores portugueses de sempre. Falemos nós dele, nós, os seus leitores e amigos. Principalmente, não deixemos que a sua magnífica obra possa cair no olvido.

Ouço dizer que a máquina humana tem milhares de anos. Terá. Pois desmontá-la, convertê-la noutra, é tarefa perigosa.
A nação é de todos. A nação tem de ser igual para todos. Se não é igual para todos, é que os dirigentes, que se chamam Estado, se tornaram quadrilha. Se não presta ouvido ao que eu penso e não me deixa pensar como quero, se não deixa liberdade aos meus actos, desde que não prejudiquem o vizinho, tornou-se cárcere. Não, os serranos, mil, cinco mil, dez mil, têm tanto direito a ser respeitados como os restantes senhores da comunidade.
Os filhos, julgam vosselências que eles os fazem na cama, debaixo da fumosa e feia telha-vã?! Não, senhores, os filhos fazem-nos na serra quando a queirós e a giesta estão em flor.
Kirieeleison, kírie eleison, os santos eram tais quais os nossos e o sacristão lembrava-me o Isidro Capadinho, que não fazia outra coisa senão puxar o pigarro e coçar o piolho. Há quantos anos não ouvia missa, santos deuses imortais! O latinório trouxe-nos à terra em pensamento e só por vergonha não chorei.
Governo para o aldeão é sinónimo de Estado e de tudo o que dá leis, uma quadrilha do olho vivo. Já lhes levavam coiro e camisa em contribuições, tributos, posturas, alcavalas de vária ordem, e vinham ainda esbulhá-los da serra! Hoje a serra, amanhã, por uma razão análoga, corriam-nos de casa para fora! Ah, cachaporra dum santo!
O que todos queriam era viver à custa da barba longa, mãos brancas com bons anéis, bom automóvel, amigas para o gozo e criadas para todo o serviço que vinham buscar aos viveiros da plebe, cabritos gordos que se criavam ferregiais, e trutas que eles, serranos, estavam proibidos de pescar nos seus rios. Que maiores carrascos e ladrões!? Esta era a noção que tinha do Governo.
O Governo não era formado por um corpo de homens bons e sábios, com função directiva, reguladora e distribuidora dos bens comuns, e atentos à promulgação e defesa do direito? Qual quê? Bandoleiros das encruzilhadas e gorgulhos silenciosos das arcas e larvas da carne é que eles eram.
Quando os lobos uivam - Aquilino Ribeiro - 1958 - Livraria Bertrand, 1979 - O uso da língua e a sua relação aos leitores 63
Modificado e acrescentado a 21 de Setembro de 2013.
O isolamento de Aquilino Ribeiro era, e é, de vários tipos. O isolamento de Portugal no qual o escritor residia - e mentalmente vivia -, o isolamento em relação a qualquer escola e o isolamento em relação a qualquer vanguarda. Aquilino foi escritor como entendeu e afirmou uma intelectualidade autónoma dentro do que, para ele, seria a independência do escritor em relação aos vários sistemas de censura - e não unicamente ao sistema da censura política. Outros sistemas censórios existem, particularmente o que não deixa exprimir o ser sexual. O problema de Aquilino era o de todos os portugueses que queriam sair do salazarismo, e da igreja, do conservantismo mais adunco e criminoso que levou o mental português ao isolamento, não só mental. A problemática dos romances de Aquilino é muito diversa da problemática que o hoje nos apresenta, que é muito diverso daquele que o escritor viveu e sobre o qual escreveu. Fazendo referência à data final da escrita deste romance, 1958, o mundo mudou de tal modo que o romance representa, de qualquer modo, uma realidade hoje acabada. Realmente acabada, em Portugal? A autonomia do escritor, por outro lado, permitiu-lhe escrever com os lugares comuns da língua ao mesmo tempo que usa da sua própria liberdade para estruturar os "actos de linguagem" segundo uma dinâmica muito apropriada ao que quer narrar. O escritor Aquilino é um narrador, embora seja também um pintor naturalista, mais realista na passagem para o naturalismo, usando não tanto das cores mas muito mais dos espaços que a pintura desta época representava, sobretudo a pintura portuguesa que Aquilino devia conhecer, assim como alguma pintura vista fora de Portugal, já que, na sua época, a reprodução pictórica fosse de pequena qualidade, muitas vezes a preto e branco, e de pouca cobertura. A pintura está hoje publicada em boas condições fotográficas, as cores estão, muitas vezes, razoavelmente reproduzidas. Mas o principal, a meu ver, não são as cores - embora lá estejam - mas os espaços que Aquilino conhecia bem por terem sido os seus dentro de um mundo rural que caminhava pouco a pouco para a urbanização - não é isto nenhuma novidade - mas também um mundo inculto e analfabeto onde a possibilidade de emigração para melhorar o nível de vida era uma constante, igual à de hoje,  se bem que por razões e enquadramentos técnico-competentes muito diversos. Aquilino era um escritor urbano que narrava o campo, o rural e os seres que habitavam esses espaços. Há, no entanto, excepções na prosa de Aquilino, excepções urbanas de valor significativo e interessantes - "Caminhos errados", A batalha sem fim", "Lápides partidas", "Uma luz ao longe"... Aquilino não é só a ruralidade regional; nem só a ruralidade, nem só o regional. E daí a necessidade de criar outros conceitos que caracterizem o que Aquilino é. O facto de recorrer ao soi-disant local não o mete na linha do "escritor regionalista", convicto de que o "regionalismo" seria a base de qualquer estrutura simbólica fundamental. Aquilino está atento, está distante em relação às suas personagens, não se identifica com nenhuma, não se transporta para dentro de ninguém. É um analista que percorreu várias obras e vidas fazendo biografia crítica e biografia histórica autónomas, demonstrando uma grande abertura mental, e fazendo relato histórico com a sua própria vida dentro dessa historicidade - "Alemanha ensanguentada", "É a guerra", "Leal da Câmara", "Portugueses das sete partidas", "Humildade gloriosa", "Camilo, Camões, Eça e alguns mais"... Uma obra vasta e esquecida. Falar da região não tem um qualificativo específico. Da região, da cidade, da rua, do bairro... da Europa... O que é específico, no caso de Aquilino, não é o regionalismo, qualquer regionalismo. É a relação da linguagem ao social na sua suposta integralidade. Aquilino conhece os termos adequados aos trabalhos no campo, conhece a fauna e a flora locais. É a representação da língua entre o homem e a terra que faz de Aquilino Ribeiro um escritor da geografia, do local. Não chamo a isto regionalismo; que não existe, a não ser noutro tipo de literatura. Aquilino tem uma "inteligência maçónica" no que ela informa sobre o cosmopolitismo do pensamento (e de luta contra o salazarismo), e de prática "autoritária" da inteligência. Por ser inteligente, a inteligência cria um poder; além de clarificar, Aquilino junta à sua prosa inteligente um paternalismo de quem sabe, pelo diálogo consigo próprio e com os seus companheiros, que a verdade sociopolítica pode formular-se. A distância entre ele e as personagens descritas neste romance é enorme, salvo que, pela língua, Aquilino aproxima-se das personagens pela demonstração do conhecimento que tem da relação entre os homens como habitantes de uma certa região - a Beira Alta - e a pobreza miserável deles. As palavras utilizadas por Aquilino são a ponte entre o cosmopolita e os miseráveis. Bastaria esta equação para que o conceito de regionalismo, como muitas vezes aparece definido Aquilino, não tivesse razão de existir. Em contrapartida, o isolamento literário em que se coloca é uma condição da sua "teimosia literária", ao mesmo tempo que demonstra uma concepção filosófica e crítica sobre o que é ser escritor e qual é a finalidade da obra. É nesta relação que digo que Aquilino "se fechou" na sua contribuição linguística - enorme - ao património inteligente da língua. Era uma outra época, até 1963, ano da sua morte. De qualquer modo, Aquilino estava em relação com o país e não o desmentiu; estava em relação com a língua e utilizou-a da maneira que lhe parecia, eticamente, a mais útil. Um factor me perturba: a qualidade da língua tem um lado bíblico, como se a língua tivesse uma origem sagrada, tal a profundidade didáctica, educativa e inteligível da palavra. Parece-me que a atitude que atravessou o século XX é a de entender a palavra como um elemento de explicação, é certo, mas, antes de tudo, de discussão e de contrato. Isto do lado do civil e quotidiano entre entendimento e decisão. É claro que a discussão e o contrato divisional não existiam no país de Salazar. Daí que alguma "autoridade" apareça nesta "ficção sem discussão"; daí que a linguagem maçónica de Aquilino seja paternalista - não só por isso - e educativa. No que diz respeito ao ficcional, a língua tem, depois de todo o século XX, uma relação mais evidente com as várias estruturas sociais, sem por isso cair na banalidade; por outro lado, a língua - a palavra - não cabe mais na sua posição de transcendência. A transcendência, disse-o já, está na capacidade que a língua ficcional tem de ser interpretada. A língua ganha a transcendência na interpretação. Não é já em si transcendência. Ou ganha transcendência explicada por palavras que, segundo os autores que assim o decidem, querem dar à palavra um estatuto transcendental, aplicando um conteúdo e uma retórica de transcendência. Aquilino ocupa-se racionalmente da língua mas dá-lhe um poder que ela, entretanto, já não tem. Não tinha já na sua época. Só que, em Portugal, devido ao regime político repressivo, a língua ainda não tinha feito a sua discussão sobre o valor dela própria, a não ser por escritores que pertenceram a movimentos literários, como os dois modernismos, e por outros escritores que seguiam os movimentos literários da modernidade... Por outro lado, Aquilino sabe que a terra tem uma imanência imediata; mas que a arte da escrita, profissional ou não, transporta a língua para um plano "poético" ou "verídico" - conforme a intenção do autor - que distancia a escrita da sua instrumentalidade ou da sua funcionalidade em relação a um fim de entendimento ou de contrato. É aqui que a prosa de Aquilino obtém uma percutânea que não cabe em nenhuma definição de regionalismo, se, por acaso, e repito, houver uma definição de "regionalismo".    
O isolamento de Aquilino é o de todos os escritores, portugueses ou não, mas sobretudo portugueses, que não correspondem mais ao que se entende por "literatura", por "escritor" e por "leitor", não sendo a sua literatura, por isso, nem mais nem menos literatura da que se faz hoje; só que o nível é outro, a exigência literária, pela parte do escritor e do leitor, muito outra, assim como a capacidade de englobar o recitativo, a narração e o assunto numa relação lógica, medida pela autonomia do escritor, que se aprecia a todo o momento, mesmo quando não se está necessariamente de acordo com a problemática mental que aí às vezes se desenha,como por exemplo, a p.50: "Era uma procissão, à mão direita o compadre Justo, à esquerda o Nacomba, que deixou a mulher a aviar os quartilhos, também ele, o grande judeu, açulado ao faro da bagalhoça". O isolamento de Aquilino seria igual ao de todos os que se referiam à comunidade judaica de modo irracional; Aquilino não escapou a essa regra indecente. Aqui, o pormenor é pequeno, mas não evita que se diga que o mundo ainda estava, em 1958, debaixo de muito silêncio que permitia, por sua vez, estas frases, de uma banalidade estúpida, que não se compreende num espírito autónomo como o de Aquilino. É o isolamento e a falta de controvérsia que faria dizer - a todos -, isto que Aquilino desabrocha aqui.

Os diálogos aquilinianos têm a finalidade de abrir o assunto do romance; a condução dos diálogos é muito viva, perspicaz. Nota-se a inteligência de uma escrita que favorece a função libertária da língua e da linguagem, apoiada na lógica da "distância", não da "distanciação" brechtiana, mas de uma "distanciação" que é a do narrador que se diferencia das personagens e que não quer assumir os "actos de linguagem" delas nem de se mimetizar nelas, numa forma ao serviço do interior, da interiorização, "dudedans", como faria Sarraute, por exemplo, que escreveu à volta da mesma época, "L'èredusoupçon", artigos de 1947 a 1956, num livro publicado em 1956, dois anos antes deste romance de Aquilino Ribeiro, e que escrevia, p.79: "Lesoupçon, qui estentrain de détruirelepersonnageettoutl'appareildésuet qui assuraitsapuissance, est une de cesréactionsmorbides par lesquellesunorganisme se défendettrouveunnouveléquilibre. Il force leromancier à s'acquiter de ce qui est, ditPhilipToynbee, rappelantl'enseignement de Flaubert, "sonobligation la plusprofonde: découvrir de la nouveauté", etl'empêche de commettre "son crime leplus grave: répéterlesdécouvertes de sesprédécesseurs". Aquilino estava muito longe de qualquer perspectiva que olhasse para fenómenos literários e artísticos desta natureza. A ordem literária de Aquilino era a de um especialista da língua, mais focado no século dezanove, que se vivia mentalmente em Portugal, do que no já avançado século vinte. Aquilino fechou os olhos ao novo século vinte, já a meio? Fechou, em parte, os olhos a toda uma nova atitude literária que, de qualquer modo, não o impediu de escrever sobre a sua "terrinha", de se localizar nela e de se estruturar nela, não procurando outros modos de funcionamento e outra relação com os "actos de linguagem" e com a língua, na medida do seu funcionamento actualizado, conservando-se ligado a um sistema linguístico perfeitamente dominado e original, mas "ancienrégime". Aquilino poderia ter escolhido - se para isso fosse levado e se quisesse ter estado ao corrente, mentalmente falando, do que se passava noutros territórios linguísticos -, falar dos mesmos ruralismos sem, no entanto, se servir dos modelos que o ligavam ainda ao século dezanove. Aconteceu isto a muitos escritores: não se relacionarem com o andar dos tempos, esteticamente falando, com o que se movia e o que movia a literatura para outros campos, para outras considerações. A relação de Aquilino com os modernismos, portugueses ou não, é nula. Aquilino quis ficar à parte, quis fazer literatura pessoal e autónoma segundo o que ele considerava autónomo e autêntico, sem para isso ir procurar outros meios e outras relações com a palavra. A ruralidade regionalista de Aquilino não é, portanto, unicamente, a sua relação a uma língua ruralista e a um vocabulário regionalista - nem sempre - mas é também a sua relação ambivalente e contraditória contra a relação que os outros estabeleciam com as artes, e necessariamente com a literatura. Aquilino conheceu sem dúvida a literatura brasileira; a de João Guimarães Rosa, a de Graciliano Ramos...? O realismo de Aquilino não é de segunda mão, assim como o seu naturalismo, como disse acima. O que o distancia da modernidade é uma vontade de separar-se dos campos das experiências literárias, - ou que o escritor considerava tais atitudes como experiências literárias - escolhendo "actos de linguagem" autónomos, independentes, mas ruralistas, na medida em que a ruralidade era a justificação dos seus "actos de linguagem", neste caso específico, e a afirmação pessoal do que "fazer literatura quer dizer". O mental de Aquilino, muito interessante, é o de um cosmopolita que, tendo reconhecido o mundo, quis negá-lo através da sua prosa e do seu posicionamento, apesar das excepções, algumas delas citadas acima. Uma delas, "Alemanha ensanguentada" é bem um exemplo do que Aquilino escreveu para separar-se deste estado rural-naturalista que o encantava, certo, mas que o fechava num mundo que já não estava só ligado aos carros de bois, apesar da realidade portuguesa, mentalmente falando, estar ainda ligada, em 1958, aos carros de bois, às vindimas, às colheitas... Por ser um país de grande percentagem de mão-de-obra no sector primário de produção, ainda em 1958.
Apesar destes sintomas, a função dos diálogos neste romance, é a de criar complexidade; Aquilino não se fia numa certa linguagem comum, de discurso fácil – e nisto Aquilino aproxima-se de um certo modo da arte e do lado "artista" de Sarraute,como mental literário responsável do que é a escrita "artista", embora profissional (o que não era o caso de Sarraute). Aquilino não escreve com o que é o discurso generalizado, um comportamento linguístico comum e generalizado. Aquilino exprime-se e exprime uma linguagem muito complexa, onde as ideias e as formulações linguísticas representam um mental em funcionamento e que, por ser assim, constitui uma complexidade literária (e demonstrativa de um mental) que requer um uso e um trabalho sobre a língua e sobre os "actos de linguagem" escolhidos que estejam de acordo com o que é, para Aquilino, fazer literatura, e o que representa fazer literatura num país politica e socialmente censurado e onde o mental é tratado com a baixeza que se conhece. Aquilino trata a linguagem e a sua responsabilidade de escritor de modo responsável: como um complexo de vários planos onde os sentidos, os sentimentos, as razões, os raciocínios... Aparecem conectados de modo a dar uma impressão de grande complexidade. Aquilino sabe que a língua é um veículo complexo e complexificado, não tanto como seria de desejar, na medida em que ele se afastou, precisamente, da complexidade que o mundo ia transmitindo à língua e aos seus "actos de linguagem" para trabalhar (e esclarecer) só o seu ponto de vista, esquecendo-se de que o mundo girava e que a própria literatura não era mais aquilo que ele fazia e pensava, mas bem outro fenómeno, à parte a sua correcta responsabilidade como escritor e homem de pensamento contrário à repressão político-social de que ele próprio sentiu pessoalmente os efeitos degradantes, notoriamente com este romance. A complexidade da linguagem coloca Aquilino imediatamente no grupo dos escritores que fizeram e que fazem a literatura em língua portuguesa, e a literatura tout court. O modo literário de agir de Aquilino é sempre demonstrativo de um mental liberto, apesar de fazer referência a um mundo fechado, pela sua inutilidade política, mas sem esquecer o sentido telúrico e poético da sua terra. Aquilino, talvez devido à censura (mas não só), não produziu escrita que nos desse a pensar sobre a realidade mental portuguesa da sua época; o mental rural regional é justo que aqui esteja; não é aí que está o problema; não é na falsa e repetida "universalidade" que está o problema. Não proponho nada que vá no sentido habitual do que se entende por "universalidade". O problema de Aquilino é de outro teor. Neste sentido Aquilino é um narrador construtor de um mundo literário ficcional, ao mesmo tempo que um escritor distante das personagens (nem sempre; já o veremos), já o disse; mas falta-lhe a controvérsia com o estado do país, que aproveitando a maré politicamente permissiva que as publicações neo-realistas tiveram, poderia ter feito de Aquilino um escritor mais paralelo e ao corrente do que se passava no território que conheceu. E tê-lo-ia feito de modo soberbo. O facto contraditório de aplicar de um certo modo a língua não quer dizer que esteja ligado de modo rudimentar ao que esta língua quer dizer. Aquilino é um grande conhecedor e aplicador da língua, em termos de novidade e de espontaneidade. Aquilino é um escritor; está - e demonstra-o - nesta sua atitude contra qualquer novidade, movimento ou vanguarda, na medida em que não quer projectar os "actos de linguagem" que pratica, e que escolheu, qualquer ideia de crítica da linguagem; de crítica e de exame da língua e da linguagem. A crítica, contraditoriamente, fá-la ele próprio na escolha da complexidade formal com que escreve. Saramago procede, anos mais tarde, do mesmo modo: nada se identifica na linguagem escolhida pelo autor que seja uma razão de desconfiança sobre o que a língua diz, a presença de qualquer elemento desconfiante da língua: a língua é um material e, se se maneja bem o material, nada obsta a que seja a favor da humanidade leitora; nada na língua é traição ou redução do pensamento... Mesmo que se esteja do outro lado da língua, ou seja, do seu lado ficcional, onde a desconfiança deveria ser dupla e onde se verifica o trabalho, precisamente, entre o que é ser-se língua ficcional e transmitir-se língua (na qual o funcional tem sempre lugar) aos que lêem. A responsabilidade do escritor implica, hoje, um posicionamento diverso daquele que lemos em Aquilino, em Borges, em Saramago... Grandes conhecedores da língua e, ao mesmo tempo, beneméritos e condescendentes escritores da língua... Sem aparelho crítico visível sobre o que a língua é. No seu aparelho difuso e complexificado, embora à maneira antiga, Borges escapa, em parte, ao que estou a dizer. Borges, entrando pelos labirintos mentais, tem uma veia moderna e crítica ao mesmo tempo, se bem que o aparelho linguístico de Borges seja só um labirinto mental e cultural, em vez de ser um labirinto crítico. O labirinto borgesiano é aceite como tal; é o mundo linguístico babelístico que dá a confusão: é a cultura que determina a impossibilidade da totalidade; e nisto, Borges, junta-se, "à soncorpsdéfendant", aos que desconfiaram da língua e dos seus usos. É nesta concepção que os linguistas aparecem hoje e que, no tempo destes três escritores, não respondia do mesmo modo.
Citei Sarraute e "L'èredusoupçon" (1956), se bem que me pareça que já na época da escrita dos artigos deste livro de ensaios, Sarraute não veja, sob muitos aspectos, da maneira mais clara, sobretudo quando pensa que o leitor da época está à altura do que se fazia e do que ela própria propunha. Se em França era ainda possível encontrar um reduzido público interessado, nos países com menos índices de cultura e, além disso, com outras problemáticas, como a da saúde, da economia, da independência, da liberdade, da igualdade dos direitos de todos os cidadãos... - Não faço aqui o inventário de todas as problemáticas possíveis -, nos países menos equipados, os leitores não estariam interessados em tal tipo de literatura. Ser localista (regionalista parece-me um equívoco) é, portanto, considerar que o isolamento é a melhor das respostas ao nível literário e mental; se bem que este posicionamento não é feito às escuras; pede, da parte de Aquilino, uma concepção da literatura. O isolamento permite a Aquilino "esquecer-se" do que se passa à volta, mesmo em Portugal: Encontra-se no seu estilo uma satisfação - justificada, a seu ver - e, ao mesmo tempo, uma reacção contra tudo e todos, mantendo o seu estilo e a sua escrita dentro de moldes que o "regionalizam", que o "localizam" - como se a literatura não fosse um projecto de localização, precisamente -, na medida citada aqui: o localismo é o isolamento que permite a Aquilino não conhecer, ou, pelo menos, não nos dar sintomas de que acompanha o que o mundo resolve, ou não resolve. Esta ideia é, de qualquer modo, contraditória no próprio Aquilino, na medida em que o escritor segue um estilo "ancienrégime" explicativo baseado no "dehors" (no exterior), embora saindo dele, não propriamente para entrar no "dedans", mas para fugir ao exterior unicamente realista, fazendo-o por meio de "débordements" poéticos descritivos, sobretudo da natureza, que implicam um estilo pastoril platónico e telúrico que lhe dá uma grandeza, clássica, é certo, mas de grande representatividade poética. No que diz respeito ao mental português, transparece, na sua literatura, uma crítica quanto ao estado mental negativo que permite a Portugal situar-se na borda da discussão, embora, através da literatura e do seu correspondente mental, o autor se fixar sobre determinados temas, "à antiga", sem dar relevo às novas realidades que se aproximavam velozmente da época da publicação deste romance; uma destas realidades, aqui citada como um entre vários exemplos possíveis, seria o do estado das colónias portuguesas e a possível revolta a favor de uma independência. Entre outras possíveis hipóteses, que dariam a impressão de que o escritor estaria atento a outras realidades, fora dos seus assuntos habituais. A literatura obedecia a um catálogo de assuntos. Desde a época de Aquilino, a ficção em geral - não só o romance -, introduziu novos assuntos e introduziu-se por caminhos da relação entre a palavra e o "dedans" como não tinha feito até aí. A realidade de Aquilino confinava-se ao antigo país novo-republicano, caído em desgraça com o salazarismo e o Estado-Novo. A escrita em Portugal não cultivou os horizontes que, na época, foram abertos por outras literaturas.
Outros factores ou sintomas do isolamento encontram-se no negativo dos textos de Aquilino, que continua a sua brilhante literatura como se a escrita não tivesse sofrido variantes e sinais estéticos e não estéticos importantes, seja do lado da linguística, seja do lado político-social. Apesar disto, Aquilino dá-nos sinais, parciais e hipotéticos, do que leu, dos escritores que poderão tê-lo, não digo influenciado, mas feito pensar que outras realidades existiam e que o isolamento não deveria ser a melhor posição possível para quem faz literatura e se dedica a exprimir, pela palavra, pelos "actos de linguagem", o que o mundo, ou os mundos dizem e transmitem, como, por exemplo, Guimarães Rosa e, na parte cosmopolita e urbana, Thomas Mann... Um certo conflito manniano poderá estar na sua prosa urbana e autobiográfica, sobretudo quando se abre para a ligação amorosa urbana, muito rara mas existente em Aquilino. De qualquer modo, é impossível fazer referência a toda a obra de Aquilino, aqui, um autor que é prolixo e vasto ao mesmo tempo que paradoxal em muitas situações. O paradoxo é próprio da literatura e do escritor "artista".  
Não só o espaço mas também a natureza física do homem é um elemento de fixação da literatura de Aquilino. O que o escritor introduz sobre o físico do homem é o seu elemento exterior. O contrário do que pensaria, na mesma época, Sarraute, que pensa que a literatura está no "dedans" enquanto Aquilino está no "dehors", prioritariamente. Esta diferença faz a distância dos dois mundos e do mundo português - de que Aquilino foi sempre um grande representante, e justificado, no capítulo da literatura e da compostura humana, mas que tem esta vertente, a do "negativo" da sua literatura - não digo que a sua literatura é negativa -; é o seu "negativo" que é interessante, no sentido de negativo de uma foto, que me faz dizer que o que lá não está faz parte do estilo e do mental aquiliniano; a recusa é mental, já que a massa literária com que trabalha é-lhe de perfeito conhecimento; é mesmo um dos raros grandes escritores que se aproximaram, em Portugal, do escritor profissional "avant la lettre". Era profissional da escrita e fincou-se na profissionalidade da produção, seguindo o que ele entendia por literatura, sem dar contas ao aspecto "artístico" e "dedans" da sua prosa. Ou ainda: a sua prosa urbana aproxima-se do "dedans", da psicologia íntima descritiva não só do carácter mas do que vai pelo íntimo das personagens.
A sua prosa é escrita como se estivesse numa fase anterior à "arte"; a sua prosa está ligada ao conhecimento "seminarista" da escrita; a arte da escrita, para Aquilino, é uma regra, um conhecimento e uma transmissão de conhecimento; o lado "artístico" vem distrair a função da literatura que se deve subordinar à sua especificidade de ensinar, de integrar, de dar a conhecer, de sublinhar, de tratar como se a base da literatura fosse a teologia, e a palavra de propensão litúrgica, ligada ao facto de que a palavra já foi bíblica, certa e justa à relação ao que se diz e à honradez do que se diz. Aquilino assume uma posição moral em toda a sua obra. É por isso que a ligação entre texto, palavra e fundo ético são de primeira importância para se perceber o que se passou com a literatura desde a sua morte - 1963 - até 50 anos depois, não só em relação aos leitores de Aquilino, sem dúvida cada vez mais reduzidos, ou mesmo desaparecidos, e ao que se consome em português e em Portugal, na língua original, na medida em que os leitores, conhecendo outras línguas, preferem os cânones industriais ao que a literatura "artesanal", "ante-arte", "pré-artística" de Aquilino. Nada de equívocos: a literatura aquiliniana é "artista", na sua elaboração e autonomia, embora esconda o "artístico". O "artístico", repito, não é a primeira função da literatura que afirma, antes de tudo, um jogo moral e ético.
Disse acima que o corpo é representado pelo seu aspecto "exterior" (ledehors); mais uma vez, o "Naturalismo" e o seu espaço representam o homem como um "exterior", por vezes naturalisticamente sexuado e sem recurso à psicologia; o narrador pode recorrer à psicologia de carácter; as personagens, não. Procedem com uma certa manha e artimanha, com dignidade, ou não. O homem aquiliniano é uma representação eficaz, não do que é o português - na medida em que ninguém fixa em literatura o que é uma população (não falo de "povo", ou de outras concepções indeterminadas, limitadas e abusivas; muito menos de massas...) -, mas do que é o combate entre homens dominantes, em relação ao poder (e às mulheres), dentro de uma sociedade arcaica que Aquilino quer resolver pela educação e pelo mínimo de qualidade de vida. Aquilino, através do seus "actos de linguagem", ficcionais ou não, quis influenciar a moral pública. Este romance é um exemplo que responde a esta questão. A literatura, para Aquilino, é um acto de dignidade, como um "artesão" que apresenta os seus actos-objectos como uma realização honorável e honesta. O escritor está antes das vanguardas, por estar antes do posicionamento "artista" como o século XX o compreendeu, assim como as vanguardas e os modernismos procuraram definir. Na sua obra "Um escritor confessa-se", interessante e fenomenal - não no sentido elogioso, mas no sentido literário da palavra, quero dizer, na sua realização lógica e demonstrativa de uma ligação de autonomia e de "à vontade" em relação à palavra e ao exercício da escrita - Aquilino diz-nos bem que a sua autobiografia está ligada à profissão de escritor. Ele entende-se como escritor profissional que colabora, pelos sues romances e obras de ensaio histórico ou biográfico, na realização de um plano de conhecimento da relação entre a terra e o homem, conhecimento que vem também da sua relação com a teologia que permite relacionar o homem com o mundo das divindades ao qual está ligado; um muindo cósmico e litúrgico. Ao lado da escrita ficcional, tal como os escritores do século XIX, Aquilino quis introduzir-se na ordem do conhecimento, não se ficando só pela ficção; assim fizeram Montaigne, Pascal, Chateaubriand, Flaubert, o Eça de "A Relíquia", os orientalistas... O facto de verificarem que as ciências - e, entre outras, as ciências da liturgia do cristianismo e das religiões em geral... se desenvolviam de maneira interessante para o conhecimento humano, fê-los sair do terreno da ficção para proporem outras intervenções "exteriores ao ficcional". O ficcional não era só o romanceado. Outros elementos penetraram, influenciados pelo desenvolvimento das ciências, na literatura ficcional. Aquilino é um panteísta spinozista, ao contrário de Saramago, que é anti-religioso e que o quer mostrar, embora muitas vezes esteja ligado ao religioso, pelo lado idêntico ao que acabo de propor; ou seja, pelo lado cultural... Sem dar por isso? Como comunista Saramago teria que se posicionar, de modo consciente, em relação à história das religiões e do cristianismo. Como ficcionista, a sua tendência para a grandeza temática, para a alegoria... Fazem de saramago o contrário do que ele quis dizer... Não é a alegoriauma das chaves da interpretação teológica e teleológica?
Apesar de autónoma, a literatura de Aquilino consola e conforta o leitor, na medida em que os "actos de linguagem" são não-antagonistas a não ser no capítulo da vida política e da moral pública. Aquilino não escreve uma prosa ficcional contra qualquer posicionamento linguístico. Não é uma prosa pessimista. Os "actos de linguagem" determinam com eficácia o que o escritor quer dizer, te dal modo estão "apropriados" ao assunto, à narração e à actividade narrativa em si: o seu ritmo, a sua cadência; o tom da linguagem é adequado ao que se lê. É a noção que Aquilino transmite ao leitor. Neste sentido, a escrita aquiliniana é profissional por ter como finalidade o acordo do leitor. É profissional, não só por encontrar o acordo, mas também por trabalhar no sentido mais activo da leitura, para a sua economia ficcional. A ficção está garantida pela eficácia literária de Aquilino Ribeiro: p.57.
Aquilino está na literatura do "dehors"; o explícito é a sua gramática, o autêntico; o inautêntico de Sarraute não entra na concepção aquiliniana. Em todo o caso, se Aquilino segue o autêntico, enche-o com um a propósito inteligente (pleonasmo), baseado num ritmo de frase que lhe vem também da complexidade dela, sabendo Aquilino muito bem como se compõe o seu pensamento e como exterioriza - literatura de explicação, com o seu ladpo didáctico -o que pensa. Um círculo vicioso que serve a autenticidade de Aquilino de maneira soberba; é ele próprio o fazedor desta relação. É um escritor "autêntico" e, se o lado profissional poderia chamá-lo para só a eficácia, o lado "artista" compõe a eficácia com a complexidade do discurso. É um artista do "exterior", na sua grande parte. A frase aquiliniana é rigorosa como o seu pensamento racionalista. É por estas razões - e muitas outras - que o profissional nega nas vanguardas o que o "artista" propõe de modo individualista e original. Apesar de Aquilino não "entrar" nas personagens, muitas vezes fala por elas: cf.p.69. De qualquer modo, o escritor fala por todas e por ele próprio: é ele o construtor do ficcional na sua totalidade. Por vezes o discurso fantasticamente bem organizado da personagem não é senão o discurso do escritor: as páginas 160 e 161 são significativas da atitude do escritor e da irrealidade da fala que a personagem usa: a personagem tem um falar evoluído que corresponde mais ao que Aquilino quer dizer do que à personagem que não teria conhecimento linguístico e racional para se exprimir assim. é nisto que está o realismo de Aquilino, ou seja, um realismo que quer coadunar as realidades e pô-las à prova da ficção sem que haja da sua parte uma subordinação ao exacto, seja ele qual for. A exactidão é a da ficção racional a não antagonista, comprovativa da necessidade ética da literatura e do papel do escritor numa sociedade injusta e primitiva. O texto explicativo, o desenvolver das ideias, a consciência delas e a inteligibilidade das frases só são possíveis quando se escreve, não quando se fala. A fala não é tão rica de complexidades. A escrita é um organismo independente e que se cria à medida do avanço da própria materialidade da escrita. Aquilino tem a governança da frase e da sua relação com o inteligível - já o disse acima. Esta relação é a inteligência e o a propósito da frase. Aquilino, neste exemplo a p.160 e 161, "sai" do terreno do romance-ficção (e a saída do ficcional é muito habitual na ficção romanesca de sempre) para explicar, pelo seu conhecimento humano e histórico o que é o habitante das Beiras. Faz história sociológica, defende ecologicamente a natureza e a relação do habitante à sua natureza. É um estudo, como fez noutros seus textos: "Geografia sentimental", "Aldeia, Terra, Gente e Bichos"... Aqui estamos diante de uma antropologia etnográfica actualizada e na qual Aquilino associa a perigosa transformação que o progresso abruptamente quer impor - o sistema do progresso, na medida em que o progresso não é só o ir daqui para ali, melhorando, mas todo um sistema que funciona a vários níveis e que apaga outros. Aquilino tem disso a consciência, embora o seu pensamento esteja preso ao precedente, não digo de modo atávico, mas precavidamente. Por outro lado, Aquilino propõe que o progresso venha depois da melhoria geral da educação, do conhecimento, e do bem-estar. Aqui a sua posição é vaga, apesar de estar paternalisticamente do lado dos inferiorizados pelo sistema desigual e injusto.
O raciocínio político-social de Aquilino vai também além da crítica ao sistema salazarista. Não é só um ataque à falta de igualdade nasociedade portuguesa da época. É também uma luta entre a irracionalidade ancestral, imposta pelos sistemas dominantes mas não só, e a artimanha política medíocre e exploradora. Mas o saber Aquilino que a sociedade portuguesa assim o era, não lhe permitiu de qualquer modo a configuração de uma literatura que ligasse este circuito mental, moral e cívico de escriba profissional e de grande acuidade, a um outro, menos explicativo mas mais "artista", que lhe colocasse o discurso noutra vertente, uma vertente mais libertadora, no sentido de escolher "actos de linguagem" e uma forma literária mais autónomos em relação á linguagem utilizada - que resta sempre do lado realista da literatura -, uma linguagem que seria o que ela não é. E não se pode escrever sobre o que a língua de Aquilino nunca foi, embora o negativo, como disse, seja a presença mais eficaz para Aquilino dizer que não aceita uma série de experiências - que ele considera experiências - literárias, tais como as vanguardas as apresentavam. Aquilino escrevia para o seu público e este não tinha necessidade de "literatura artista" para compreender e seguir civicamente o autor.  
O vocabulário é apropriado por duas razões: porque o é, e por conhecê-lo; só assim poderia ser utilizado como é. A relação entre o uso e a sua finalidade é concludente. Aquilino tem um vigor linguístico que o aproxima da veemência, sem ser uma escrita autoritária. O vigor e, mais uma vez, a sua relação à acuidade linguística. A explicação literária é a de um "tribuno". Aquilino está sempre diante de uma assembleia; é para ela que ele discursa e apresenta com sarcasmo a palavra rápida, sincronizada com a ideia. É uma literatura de satisfação para o leitor que encontra uma explicação fundada do temperamento do habitante e da sua relação com o meio ambiente. Para que o leitor adira ao modo aquiliniano é de acrescentar que um posicionamento político semelhante ao do escritor facilita a assimilação literária. Aquilino, em todo o caso, reconcilia-se com o leitor; os dois vão no mesmo sentido. Aqui não estamos (ainda) na "l'èredusoupçon", na medida em que o aristocrata literário e mental Aquilino se mostra paternalista nas suas ideias e na sua literatura. O que põe como ideias-frases na boca das personagens é o texto pensado e inteligente do autor. Para quem vivia em Portugal nos anos cinquenta, o romance é um prazer linguístico de ajustamento e de inteligência política, embora tudo relançado numa escrita racional e racionalista de quem goza com a talentosa disposição que tem para com a linguagem e o tratamento da língua escrita. Aquilino é um escritor; a arte sai-lhe pelo escrito e é no escrito que o escritor acredita. Não há "desconfiança" em relação ao uso equilibrado e equitável da língua; um sabor paternalista e de grande tribuno está sempre presente. Faulkner não apresenta as suas personagens rurais desta maneira. Nem pode. Os países e a posição social estavam nos antípodas. Os rurais de Faulkner são silenciosos e bruscos; correspondem à arte fotográfica que os fotógrafos americanos documentaram durante os anos vinte e trinta, a preto e branco. O mundo é muito mais agitado e degradado pelo que Aquilino não quer deixar penetrar na serra do Milhafre: o capitalismo, o progresso capitalista... a não ser que se dê, antes de tudo, uma educação e se pense na miséria do camponês, antes de lhe introduzir, à força, o que se considera progresso. A América de Faulkner é uma democracia explorativa e explorada pelo capitalismo progressista e cego. Aquilino está no Portugal salazarista, cuja justiça aplica as leis do regime. Este romance é, antes de tudo, um ataque à magistratura, como foi visto pelo regime quando da sua publicação, até levá-lo a processo.
A relação de Aquilino com a língua é clássica, é teológica, é jesuítica. A palavra - mais do que o diálogo - tem uma ancestralidade etimológica, uma base demonstrativa daquilo que era e que foi nos tempos de Aquilino. A palavra aceita-se como uma herança; a sua literatura é um "dom" da história literária, uma herança que recebeu dos que o precederam, sempre neste exame de conceber a língua na sua maior clareza, esperteza e inteligibilidade. Aquilino não está na "era da suspeita". Se suspeita é dos que utilizem a língua num registo autoritário. Escrevi a palavra: autoritário. Por haver também a autoridade da palavra escrita. A palavra escrita, para Aquilino, tem a autoridade educativa e moral; tem de ser clara, razoável e de boa qualidade interpretativa do que é o homem. Para o autor, a língua é uma das poucas certezas com a qual se pode e deve argumentar contra os poderes. A argumentação não pode ser falaciosa. A língua, se quisermos e pusermos nela a sua clareza, é explicativa. Aquilino faz a diferença entre ser antagonista - colocar-se, é o caso, no registo da oposição ao regime escandaloso de Salazar - e ser anti-antagonista na sua arte literária. Conformista dentro do que era "alta utilização da palavra". O seminário ensinou-lhe esta ciência socrática da língua. Estando estabelecida a base, Aquilino prossegue com a sua arte literária no sentido ficcional, tendo em vista uma apreciação da História. Não é literatura neo-realista. Aquilino não está vinculado a ideologias. É escritor autónomo tanto quanto a sua individualidade procurava a independência. Não deve nada a ninguém. O seu estilo perdeu actualidade? De que actualidade se fala? Uma actualidade é a de querer ler-se literatura sem relação inteligível com o que a língua é, e como se desenvolvem as ideias com a língua? Neste sentido, Aquilino perdeu a actualidade. Mas há outras actualidades. Numa época de grande desenvolvimento das escritas para os mercados, o seu caso é significativo da reduzida influência dos mercados e da autonomia do escritor.
O realismo de Aquilino é um relatório (literário) do verídico; um "verismo", apesar de esta concepção admitir a divagação poética. O verídico está relacionado com a autenticidade. A "inautenticidade" de Faraute não entra no escritor Aquilino. O realismo verídico é directamente ético e moral, exemplar e formativo; o valor literário é educativo. Não quer isto dizer que a literatura da "inautenticidade" não seja moral e ética. O problema é outro: é o da confiança na palavra. Neste sentido, Aquilino não está na modernidade; pelo menos, neste sentido de modernidade. Se o silêncio actual sobre o escritor fosse dominado por este problema, ainda se poderia pensar que a modernidade lhe faltou e que é hoje um obstáculo à sua leitura; mas o abandono da leitura de Aquilino é baseado em causas que não têm nada a ver com a "autenticidade", ou não, da palavra. É o abandono de todas as literaturas - sobretudo em Portugal, país de fraco investimento cultural. É a procura da "literatura de ajuda" e das literaturas feitas para os mercados, em detrimento da literatura "artista" autónoma. Aquilino viveu à parte dos modernismos por querer e julgar que a literatura fosse uma argumentação, antes de tudo: uma argumentação e uma tomada de posição; a literatura é uma intervenção cívica - além de ser literatura - sem estar ligada a princípios ideológicos. O escritor Aquilino está sempre perto do ensaio, e do ensaio sobre a literatura. A literatura estabeleceu, no passado, regras de argumentação explicativas. A prosa estava ligada à ética. Ainda hoje, do mesmo modo? O modo é, hoje, o que passa pelos conceitos frauteamos, mais do que pelos conceitos de literatura explicativa. É claro que, se há abandono dos autores que representam uma autonomia em relação aos mercados, e se lhes acrescenta a "suspeita" e a "inautenticidade" - e outros critérios que não aponto agora - então os leitores mais se afastarão, não tendo nenhum interesse por eles, autores autónomos; nem os mercados. A prosa ficcional de Aquilino está entre a prova, a "verdade civil" e o exame do leitor; desde que o leitor aplique o mesmo tipo de racionalidade, e que a prosa ficcional pede. A ficção tem como base a realidade; e aqui Aquilino afasta-se do conto tradicional, embora lhe garanta a influência formal; por outro lado, Aquilino abandona a fantasia da tradição oral por aproximar-se do facto quotidiano. A demonstração estilística que Aquilino faz quando da descrição do julgamento, a partir do capítulo VIII, é de grande importância para o que acabo de dizer: intervenção - pela literatura, pela arte literária - no domínio público, contribuindo para a clarificação do que foi a constituição dum tribunal especial "plenário", p.256: "A língua tem as suas leprosarias. Reparou o senhor engenheiro que plenário rima com uma série de palavras significando coisas no geral retrógradas embora com o seu pitoresco? Por exemplo, calvário, rosário, bestiário, fundibulário, trintário, antifonário, inclusive prostibulário? Dir-se-ia um bairro da Idade Média, achacado de má nota. Ouço estas palavras e parece-me ouvir um dobre a enforcados e vejo sair da igreja uma procissão, atrás de uma bandeira das Almas, conduzida por um frade negro, e um menino de coro, à frente, com uma campainha rachada: xelão, xelão!"    
Diz Óscar Lopes, no seu livro de ensaios "Em busca de sentido - Questões de literatura portuguesa", Editorial Caminho, 1994, na p.265, (a propósito de uma obra de Bento da Cruz): "[...] para mim, Aquilino é a única grande contrapartida vitalista para o génio esquizóide de Pessoa". A literatura não é classificável pelas "doenças" do escritor. As palavras - a objectividade da palavra - veicula significados sobre doenças, sobre caracteres, temperamentos... Tudo o que se quiser. Em todo o caso, a literatura não é uma doença, por mais que a doença, o temperamento, a loucura... Tenham entrado na organização do "dedans" da literatura. O resultado dos sintagmas que formam a literatura não caracteriza a literatura por uma doença. Não se pode dizer, por exemplo, que Aquilino é a única grande contrapartida vitalista para o génio de esquizóide de Pessoa, referindo-se à literatura de cada. Se os caracteres e os temperamentos são vitalício de um lado e esquizóide do outro, o resultado literário não se qualifica do mesmo modo temperamental, apesar, repito, da cada vez haver uma maior intervenção do "dedans" nas literaturas, e das concepções que aproximam a arte da loucura. A literatura em si não está sujeita a doenças; é um resultado do que se quer dizer. O que se quer dizer é que reflecte, na medida do possível, uma ligação com o interno, ligação que é simplesmente ficcional, apesar de todas as tendências das literaturas em quererem afirmar o contrário. Os próprios escritores atribuem à literatura que produzem um carácter temperamental - quando o atribuem - que pouco significado literário tem, apesar de toda a ainda grande interferência do ego temperamental no fazer literatura, julgando os autores que o temperamento está lá. A interferência está sempre lá, embora não seja suficiente para atribuir à literatura a "doença" do seu autor. A literatura autobiográfica utiliza muitas vezes esta ligação temperamental, se bem que a autobiografia seja uma ficção em relação a um fim: o de dizer-se o que se é, quando o que se é "não cabe" na literatura. Qualquer tentativa... não passa de uma tentativa. Isto não quer dizer que a literatura seja uma peça autónoma, sem que o escritor não se veja atrás dela. A relação existe, mas o qualificativo por tipo de doença ou por temperamento não existe. Chama-se de autobiográfica a literatura que põe o ego - a primeira pessoa, nem sempre o ego... Em evidência. O pô-lo em evidência só qualifica a literatura de "mise enévidence de l'ego", como qualquer outra personagem. Daí que se possa dizer que o autor, qaundo escreve ficção, é todas as suas personagens, na medida em que se mimetiza nelas; como se elas fossem pessoas vivas. Tudo - desde o assunto às personagens - é criação ao autor. O autobiográfico não é ficção? É a primeira ficção, a de saber-se como se é dentro, "dudedans", sem ter a perspectiva do "dehors" (do de fora). Para uma única objectividade possível, o sujeito teria que sair dele próprio para sair ao mesmo tempo do ficcional. A relação temperamento - escritor - língua - e literatura não se faz segundo a ordem do contágio. Pode ter-se um temperamento esquizóide sem que se transmita à literatura a mesma intensidade "doentia", a mesma oportunidade "doentia". Os que assim fizeram e pensaram "abusaram" da literatura, que é consciente - a não ser que se queira dizer que toda a literatura, toda a obra de arte, é "artbrut". Ou seja, que a relação do artista à obra é irracional, inconsciente e fruto da "doença". O que se verifica, muitas vezes, e os autores bem colaboraram nisso, é julgarem os autores que a sua relação à obra é influenciada pelo temperamento. Influenciada, repito, é, mas o resultado não é o resultado do contágio. A obra não é uma "doença" e, quando é, não quer dizer que seja "doente" mas que o autor abusa do que é a literatura para vê-la com um espelho de si próprio. A literatura de Artaud não é equivalente à sua "doença mental". É o resultado da sua análise do seu caso; embora o autor queira transmitir um desfasamento, a literatura resultante é um exame lúcido, consciente do que se passa. Artaud (1896-1948) não passa do temperamento à obra. Neste sentido, a "artbrut" não é uma réplica "doentia" da doença do pseudo-autor. Para os autores autónomos, a autonomia é a própria libertação do temperamento e das eventuais consideradas "doenças" psicológicas, através da obra. A obra é o resultado liberatório. Só os pequenos autores é que julgarão - e será mais próxima a relação entre temperamento e literatura, nestes casos - que o que escrevem é directamente o resultado do temperamento. A obra é um ser objectivo e não é o ser representativo da integralidade física e psicológica do artista; a obra está ali como um ser objectivo que se separa do autor, seja ele Van Gogh, Ravel, Celan, Schumann, Pound, Aquilino ou Max Frisch... Julgar que a literatura é o resultado do temperamento é sujeitar o resultado literário à subjectividade do artista, e só à sua subjectividade. Tudo depende dela, subjectividade, e dele, artista. É lógico que tudo dependa dele, autor: é ele o responsável, é ele que escolhe, é ele que se serve dos códigos ou que os modifica. A "doença" esquizóide seria a mais perturbadora da obra, por ser a que mais a classificaria, "au corpsdéfendant de l'artiste", de "artbrut" em permanência. Pessoa, no dizer de Óscar Lopes, teria uma "escrita esquizóide" e Aquilino uma "escrita anti esquizóide"... São termos que classificam a literatura segundo o temperamento, por se julgar que Pessoa-esquizóide faz poesia/prosa-esquizóide. E o contrário para Aquilino. Só que os temperamentos não são escolha artística, se bem que, é certo, o temperamento conte para o resultado final da obra. Mas este resultado final é o produto de outros móveis. O facto de que muitos autores tenham caído na loucura - Schumann, EzraPound, Hölderlin... Quantos! - Significará que os temperamentos não normalizados tenham uma tendência para a expressão artística... e para a loucura. Não quer dizer que foi a loucura que fez a obra como não quer dizer que a droga tenha feito Charlie Parker, Coltrane, JimiHendrix... E muitos outros. Ou que só os loucos são artistas... Ou os esquizóides. Por outro lado, muito esquizóide pode produzir uma literatura sem qualquer efeito directo do seu desfasamento. Ainda por outro lado: Aquilino não é, psicologicamente falando, isento de qualquer problemática mental da ordem do psicológico. A arte escolhida por Aquilino tem uma intervenção menor do "dedans", isso si. A obra, de qualquer maneira, lê-se à parte. Sade não é um abusador sexual. A sua literatura é sobre a relação entre a culpabilidade, a liberdade de acção sexual e o que a sexualidade pressupõe como aparelho repressivo quando é reprimida. Em contrapartida - não na ficção, onde esta relação é mais complexa, como acabo de propor -, os autores identificam-se racionalmente com o que escrevem. É o caso de Aquilino neste romance - e de Pessoa -, na medida em que faz entrar as suas concepções nas personagens que se exprimem com um raciocínio muito elaborado - e que é elaborado por Aquilino. As páginas dedicadas ao julgamento são de alto nível literário e intelectual. Aquilino permanece na ordem ficcional, embora o fio da ficção se dirija para a explicação literária, voluntariamente, segundo a necessidade do autor. Por outro lado, é na obra ensaística que Aquilino exprime a sua relação às ideias, de modo mais explicativo. No registo do ensaio-prosa explicativa o que resulta é a representação do pensamento do autor. E, neste caso, estamos ainda mais afastados da "doença" ou do temperamento eventual de Aquilino, da tal "doença" que contaminaria a literatura. Um exemplo: as ideias de Céline, nos seus ensaios anti-semitas, estão longe de qualquer desculpa que seria a de se atribuir ao autor um qualquer grau de "doença" que o impossibilitaria de conceber as ideias de outro modo, e que o tornaria irresponsável. Aqui, as suas ideias são uma consequência do que, racionalmente, Céline pensou. O resultado é uma objectivação e é ela que conta. No caso de "artbrut" o que conta é o que vemos, como fenómeno psiquiátrico próximo do artístico. É claro que os psicólogos e os psiquiatras - Prinzhorn entre muitos - quiseram fazer uma análise do que era e é a produção artística: como se chega à necessidade de expressão; quais são os processos subjectivos de criação; subjectivos e psicológicos. Mas a literatura não é só uma análise psicológica, psicanalítica ou só linguística... É o complexo final expressivo - nos melhores casos - daquilo que conscientemente se realiza. Não conscientemente no registo mais banal; mas conscientemente na sua finalidade como expressão.
O problema da loucura e da arte, ou a sua relação, nasceu com os pré-românticos e atravessou o século dezanove até hoje, segundo as participações posteriores da psicologia, da psiquiatria e da psicanálise... E de outras ciências, entre elas, as neurociências... Antes do romantismo, a ligação entre a obra e o autor ou autora não se expõe do mesmo modo. Era raro sentir-se dizer que tal artista (escritor, neste caso) tivesse enlouquecido. Voltaire, Shakespeare, Montaigne, Racine, Rabelais, Dante, António Vieira, Sófocles... Nomes da literatura onde o racionalismo - e a normalidade (!?!) - se exercitava com plena consciência dos autores. Um outro tipo de artista, e de relação com as ciências do psíquico, nasce a partir do romantismo. O que se pede ao artista é que faça obra com a sua consciência mas que esta seja completada pelos aspectos mais íntimos, obscuros e irracionais, aqueles aspectos que, até aí, não eram tomados em consideração - para a realização da obra de arte. O romantismo veio abrir as válvulas a esta parte importante do indivíduo, e não completamente ignorada, mas que não se utilizava nas artes. As artes beneficiaram desta abertura. O resultado foi uma maior complexidade que, de qualquer modo, seria muito mais o resultado de um mundo mais complexificado, do que directamente de uma maior liberdade humana na concepção da obra de arte. O avanço científico veio ajudar a clarificar o pensamento e a intervenção humana na literatura. A maior liberdade também contribuiu para a nova literatura, é evidente, mas esta nova concepção melhorou - aumentou - abriu-se pela força da complexificação do social e da sua análise científica. O que era considerado desnecessário, a partir do romantismo torna-se um elemento interessante e fundamental a juntar à obra expressiva. A obra ganhou uma dupla autonomia: em relação ao corpo social, pelo abandono da autocensura, e pela nova concepção estética que considerava os elementos "perturbantes" do psíquico (do dedans) a juntar ao racional de maneira a obter um resultado artístico mais apropriado e verdadeiro, mas verdadeiro da sua autonomia. O que é verdadeiro é o ser autónomo, não o que ele escreve. Não me interessa saber se o artista é verdadeiro e sincero na sua declaração ficcional ou autobiográfica. O resultado literário não tem valor moral em si, e na ficção: apesar de que, cada leitor possa avaliar o que está escrito à luz da moral... ou de qualquer outro ângulo. Na ficção, digo bem.
Aquilino situa-se na historicidade "ancienrégime" da literatura, na definição da literatura segundo um modelo unicamente racional, ou preponderantemente racional. A sua participação como autor é unicamente admitida como "au-dehors". No interior de Aquilino está o seu segredo; a sua vida privada. Quer dizer que a literatura saiu do domínio público para abranger o domínio privado; e no privado entraram as razões mais diversas. A intimidade passou à literatura. Gide (1869-1951) será o exemplo, contemporâneo de Aquilino (1885-1963), que se colocará nos antípodas de Aquilino, muito mais do que Pessoa. Aquilino e Pessoa pertencem também à mesma época. A que Óscar Lopes se quer referir é a uma outra questão: à literatura soi-disant interiorizada de Pessoa e à literatura soli-disant exteriorizada de Aquilino.
Para falar de intimidade: Aquilino trata da vida das personagens segundo as regras consuetudinárias. Não há possibilidade de sair das convenções do que se relata: a vida íntima não aparece, neste romance. Na bibliografia de Aquilino, é raro ler-se qualquer fenómeno que escape às "leis da natureza". E a como essas leis foram estabelecidas.
Uma nota curiosa, em relação à literatura "artista" que se faz actualmente em português e em Portugal (não só): o uso abusivo do pretérito-mais-que-perfeito na ficção. Aquilino usa-o normalmente; faz parte da sua narração, sem procurar preciosismos. A literatura "artista" e a outra, a industrial pós-industrial comercial, abusam deste pseudopreciosismo. O mesmo se poderá dizer do uso de conseguir um outro verbo: um caso, p. 262: "conseguira erguer". Aquilino usa muito pouco desta forma estereotipada da escrita portuguesa actual.
Uma outra nota, não curiosa, esta: a literatura "artista" que tentei definir em vários artigos (e, antes de mim, muitos o fizeram, com outras nuances e outros conceitos...) também pertence, hoje, ao mesmo mundo industrial ou pós-industrial em que estamos todos, escritores e leitores. Só que a literatura autónoma tenta fugir às (das) pressões dos mercados, fazendo, por isso, literatura autónoma; chamei de literatura industrial ou pós-industrial propriamente dita (mas sempre de literatura) a que segue as leis dos mercados, perdendo a autonomia (cf. Bourdieu, entre muitos) e garantindo a maior receita possível e a melhor integração mental ao sistema que explora a rede cultural, e a interferência entre o cultural e o mental repressivo.
O romance "Quando os lobos uivam" é um ataque à magistratura, feroz ataque; um exemplo, p.262: "Um dos adjuntos, Adalberto Fernandes, reunia em si o tipo do magarefe, alto, membrudo, encarniçado de tez, e até no manejo do cutelo quando se tratava de aplicar a lei. No tempo da forca era homem para, à falta de carrasco, puxar a corda. Quando interpretava o código, tendia para a pejorativa. Punha certa prosápia nas suas sentenças, de resto, transcritas nas gazetas da especialidade e muito apreciadas no Conselho. Corria que a sua vida particular era desastrosa, a mulher ninfomaníaca e perdulária; dois filhos valdevinos; uma filha que não regulava bem do juízo. Por isso, seria fera exacerbada." Entre muitos exemplos possíveis. Aquilino "perde a cabeça", ataca o homem na sua vida privada (ataque ad hominem) - se se pode identificar o juiz em questão; se não é pura imaginação! A prosa de Aquilino é um processo voluntário que coloca o leitor, orientado pela mesma necessidade de sair do salazarismo, na mesma linha. Daí que tenha chamado a este romance um romance de consolação mental. Por outro lado, a coragem cívica de Aquilino é evidente, sobretudo a partir dos capítulos sobre o julgamento do "Plenário". É notória a função profanadora da literatura, num escritor que alia a mestria da língua na sua relação entre os actos e o pensamento.
A capacidade descritiva é enorme, em Aquilino; uma citação, entre tantas possíveis, p.258: "Barbeara-se (sic, pretérito-mais-que-perfeito, raro, como disse) na Rua do Sol com um fígaro de balandrau, que se lhe fartara (outro) de puxar pela ponta do nariz para escanhoar o lábio superior em que as comissuras cavavam ravinas difíceis de chegar ao fundo. Acima das maçãs do rosto, subindo para as capelas dos olhos, guardava, escapo à navalha, um matiço virgem, com cerdas negras, zincadas, e das orelhas saíam-lhe tufos tão densos que bastariam para pincéis. Embora as sobrancelhas lhe ensilvassem as arcadas, não projectavam sombra suficiente, para escurecer as pupilas, tão estranhamente vivas que a sua expressão ordinária era a do gato assanhado. Serrano aparentemente tímido, o chão que pisava era seu. [...]". E por aí adiante. Outra questão: Aquilino gosta da caça e não abdica do gozo do caçador, ao ponto de falar na dor dos animais com um certo prazer; ainda mais uma vez a natureza e a natureza do próprio homem em funcionamento; p.250: "Sem perda de tempo, meteu a espingarda à cara e puxou o gatilho. Chapéu, o tiro moita, e, como o lobo lhe desse a impressão de retesar-se nos jarretes para investir, ficou assustado e sem pinga de sangue. Se a fera dava o pulo?! Desandou, fingindo não o ver, como as vezes que avistava uma lebre na cama e "não trazia com que lhe fazer bem". Quando se apanhou na limpança, despediu a chamar gente que andava ali perto numa estorgada. Vieram todos, armados de gadanhas e sacholas, com seus cachorros. Entretanto, os rafeiros não tinham desamarrado do barbeito onde se escondia o lobo: béu! béu!" E mais longe, P251: "O bicho deu um ronco, mordeu a pedra, e estacou a arruaçar. Uma terceira bateu-lhe na espádua. Depois, como se lhes afigurasse improcedente o tiroteio assim mandado e o lobo num dado momento pudesse recobrar-se e fugir, procuraram atingi-lo nas pernas e quebrar-lhas. Para aí dirigiram a pontaria. Ao ser tocado numa das mãos, dorido, o lobo ergueu a fronte com o ar altaneiro de quem vai carregar os agressores. Mas os podengos, pela retaguarda, atiraram-se a ele. Para os escorraçar teve de voltar-se. [...] Um deles conseguiu acertar-lhe com um calhau acima do olho, e logo a seguir com outro em plena testa. O lobo cambaleou, endireitou-se, e num último arranco caiu sobre a matilha uivando. Mas o obriga veio com uma pedra às mãos ambas e deixou-lha cair em cima. A fraga resvalou-lhe pela espádua ao tempo que filava um cão pelo cachaço. Era o podengo predilecto do Obriga e este, tirando o gadanho das mãos dum dos estorvadores, cresceu para o lobo. Tenteando-lhe o golpe, descarregou-o com quanta força tinha. E a fera desabou como um roble."Tolstoi está por perto.
O facto de Aquilino não se impor como um formalista literário - preocupado pelo que o aspecto formal da literatura distingue e inova - não quer dizer que não tenha obtido um resultado semelhante, que é imposto pelo processo que parece conservador dos "actos de linguagem" que utiliza, tal o classicismo e o trabalho artesanal, constituído de forma a parecer "perfeita" (não há nenhuma possível perfeição literária) a linguagem do artesão escritor, linguagem que vem da influência dos clássicos e do ensino seminarista, da constituição da frase de intuito religioso, assim como da própria estrutura religiosa do mental de Aquilino Ribeiro, um gnóstico racional de quem praticou o latim. A língua latina encontra-se atrás da língua portuguesa, a lógica latina deu a escrita aquiliniana que só não tem veia modernista por ser um escritor profissional que se inscreve num mundo psicologicamente atrasado - Portugal - em relação ao mundo urbano onde se criaram (se fizeram) as modernidades. Aquilino sabe que haveria incongruência entre estar nesta territorialidade e escrever em português e propor uma modernidade linguística ou social. O abismo entre os dois elementos não lhe permitia entrar em confronto com as modernidades, tal como Pessoa concebeu, embora artificialmente - por não ter e não estar na territorialidade apropriada à função literária da invenção de qualquer modernidade. Pessoa criou mais incongruência modernista do que uma modernidade. Quis pertencer a uma (sua) modernidade quando se aparelhou contraditoriamente com sebastianismos, quintos impérios e mensagens... A grande vantagem de Pessoa está no facto de ter sido "artista" e, como tal, ter entrado na formação de um caos que - esse, sim - estaria no centro das modernidades; e por ter criado, como outros na mesma época, a multiplicidade da personalidade, fenómeno que se relacionou com as modernidades e com a actuação "artista" da sua época. Indirectamente, Pessoa entrou pelas suas incongruências na literatura moderna que Aquilino não podia conceber, por absurdidade, como disse acima, entre o uso da uma língua arcaica que estaria em relação com o mental da população - e mesmo em relação com o mental da população mais sabedora e culta - e o local onde se encontrava, depois de ter estado pela França onde poderia entrar - e com certeza entrou, ao nível do conhecimento literário - em contacto com as modernidades; não com todas, não com as mais abertas, mas com as mais convencionais, como a de Valéry, por exemplo, se se quiser dizer que Valéry representou qualquer aspecto das modernidades do começo do século vinte. No seu sentido mais convencional e largo, Valéry representou uma modernidade conservadora, na medida em que nem todas as modernidades foram autónomas. Aquilino, como Guimarães Rosa, não se inscreveu nesta tensão entre a língua e o movimento especulativo urbano que facilitou a modernidade, como fez John dos Passos, por exemplo. Estava preso ao mundo caótico, não por ser rural mas por utilizar uma linguagem arcaica e doméstica, no sentido da domesticidade e da relação entre servos e patrões, que ainda encontramos nos livros e no mental da escrita de Agustina Bessa-Luís, onde os temperamentos parecem naturais - Aquilino buscava mostrar esta naturalidade: uma linha de fuga na qual Agustina se inscreve como sucessora não de Aquilino mas da linguagem elitista que quer dar-nos a entender que "intui" - e que descreve pela pseudo-intuição - a pasmaceira portuguesa. Pasmaceira ou não, a literatura que resulta é a correspondente ao mental "agustiniano" e à sua relação com o social, linguística e socialmente falando.
O estudo da literatura em geral obedece a estratégias "locais" de conhecimento. Alguns escritores que poderiam ser referências "deslocalizadas" não são conhecidos pelos críticos que estudam a literatura. Os modelos são invariavelmente os mesmos, sendo os escritores de língua e de cultura dominantes (com razão, embora existam excepções - é delas que estou a falar) os exemplos citados. O estudo da literatura no seu aspecto criativo, inovador de formas, e da correspondente relação entre forma literária, sociedade e mental, é feito a partir dos que de facto realizaram, pela escrita, uma relação nova. Os escritores portugueses actuais e os do século vinte não estão e não estavam interessados e preocupados pela factibilidade formal, no que esta tem ainda de estereótipo sobre o que fazer literatura significa. Tratar da forma é tratar da relação entre a apresentação formal da obra - o formalismo - e a relação com o corpo social linguístico e político-social, e com o que o mental cria; se cria e quando cria. Criar é verbo ainda relacionado com o divino. Substituo-o voluntariamente por factibilidade literária ou artística, incluindo todas as expressões, todas as artes.
Lobo Antunes, Saramago... Toda a escrita em português de hoje e do século vinte em Portugal (à parte a flagrante presença de Aquilino na prosa) e incluindo a poesia, só encontra em Pessoa uma personagem literária que tenha ocupado ou que ainda ocupe um lugar interrogativo sobre o que se chama o estudo da criação literária como inovação. Aquilino Ribeiro, sem representar nenhuma forma nova de questionar o romance, a biografia ou a autobiografia... Teve um papel à parte no desenvolvimento da narratividade e do que chamo a literaturalidade, ou seja, o que é e como se situa o escritor em relação ao escrito (à escrita, como "actos de linguagem") e com que finalidade literária propor "actos de linguagem" ficcionais. Aquilino tem um papel relevante no confronto com a língua, como matéria que envolve o cérebro e o que o mental dita. É um escritor, por esta faceta, interrogador do facto escrito, da elaboração artesanal (antes de artística) do escritor, da função do escritor, ao mesmo nível que, e neste aspecto, Eça de Queirós, ou de Antero poeta. A escrita em português de hoje não tem originalidade como proposta prioritária interrogativa. A literatura artista do século vinte teve personalidades interessantes que dominaram a escrita "artista" em português (refiro-me só a Portugal) sem que tenham tido um papel interrogativo sobre o que se considera escrever, aplicando "actos de linguagem" expressivos já praticados e produzidos noutras línguas e territorialidades. São seguidores, por estarem subordinados ao uso de uma língua dominada e por se terem colocado como agentes expressivos de uma territorialidade cultural e economicamente dominada. Tais escritores vão de José Cardoso Pires a Herberto Hélder, a Jorge de Sena, a António Ramos Rosa, a José Régio, a Fernando Pessoa, a Mário de Sá-Carneiro, a Maria Velho da Costa, a Carlos de Oliveira, a Augusto Abelaira, a Isabel da Nóbrega, a Mário Cesariny... Em desordem e como exemplos entre muitos. A literatura em português e em Portugal tem poucos exemplos de autores que se tenham interrogado sobre as estruturas de factibilidade da literatura, no seu aspecto formal. E não só formal. A maior parte escolheu inscrever-se no que já estava feito pelos agentes dominadores, não só pela língua como pelo estatuto social que pretendiam representar como escritores. Agustina Bessa-Luís é um bom exemplo de uma literatura que se estabeleceu dentro das normas de reprodução dos "actos de linguagem" literários sem querer representar, pela sua escrita, mais do que a integração de uma escritora no âmbito do tratamento da língua e do mental português. A redução ao mental português - não falo da redução à língua mas à prática da língua na sua resolução conservadora - fez de Agustina Bessa-Luís uma escritora interessante dentro do cânone mental que caracteriza a literatura em português e que produziu desde a sua primeira publicação, "Mundo fechado". Agustina Bessa-Luís estabeleceu uma ligação entre a desenvoltura linguística e o conservadorismo linguístico, numa prática de domesticidade dupla: a de desenhar facilmente o mental português e a de seguir a estrutura tradicional do romance que trata da economia do casamento e do familiar doméstico - na sua concepção mais restrita - com toda a nomenclatura habitual a este tipo de ficção; à parte ficará o último ciclo ficcional que a escritora publicou a partir de "Jóia de família" e no qual aparece um tratamento da sexualidade feminina que não cabe já no tradicional romance sobre o casamento, embora Agustina não tenha sido explícita sobre este assunto nas obras deste último ciclo. Apesar deste não explícito - a qualidade literária do implícito é a considerar - sobre o tratamento da sexualidade sobretudo feminina, a escrita de Agustina Bessa-Luís é bem representativa da relação entre forma de escrita, intenção "artista" e realização do mental através dos "actos de linguagem" que propõe. A integração no mental elitista de pessoa que "percebe" e "intui" a mentalidade portuguesa facilitou-lhe o processo de escrita mas criou-lhe um mental "mundo fechado".
Aquilino exprimiu o seu posicionamento literário várias vezes nos prefácios das suas obras. Na "introdução necessária" ao seu romance histórico "Humildade gloriosa" (1953) escreve Aquilino: "Tempos virão em todo o mundo, e portanto nesta plaga afortunada segundo um conceito em voga, que o homem de letras não tenha necessidade de compor ano por ano um ou dois livros, dado que se proponha tirar desta actividade o seu pão. Como antigamente os Vergílios, os Dantes, os Camões, inspirados do Espírito, bastar-lhes-á fazer um com o senso das realidades. Terá então pano para mangas. Sobrar-lhe-á ensejo para mostrar que é génio ou a sua rotunda negação. A nós hoje, aviltados pela fancaria triunfante em todos os ramos da indústria e do engenho, nem nos é dada a faculdade de estabelecer esse discrímen. Em suma, o livro único do autor do futuro terá sempre a possibilidade de ser melhor que o livro plural do malfadado autor contemporâneo. O bom burguês admira que haja artífices entregues a este mester com impávido orgulho. Parecem-lhe heróicos e estupendamente sobre-humanos como aqueles obreiros polacos das minas de sal que jamais viam a luz do dia. Pois não é mais fácil e rendoso ser mestre-de-obras, ponta esquerda do team de Paio Pires, cortador de talho?", Edição de 1985, Bertrand Editora.  
Os autores sem consciência formal do que é e como se forma e faz literatura não se apercebem da mediocridade do estilo que propõem. Aquilino é o contrário deles. Os escritores conscientes e autónomos escrevem para os que estudam a literatura; que a lêem, estudando; os leitores estudiosos são os "executantes" como os músicos são os intérpretes dos compositores. Os leitores não estudiosos são "ouvintes", seguem o ritmo e apercebem-se de que lhes falta um elemento: o da concentração sobre a obra de modo a observarem como ela foi elaborado. O mesmo se poderá dizer da literatura de Robert Musil, de Raymond Roussel, de Henri Michaux, de Joyce, de VirginiaWoolf, DerekWalcott, ElfriedeJelinek... de todos os que colaboraram para a literatura autónoma.
À suivre.

AQUILINO E OS MODERNISTAS – RETRATOS CRUZADOS DA PRIMEIRA REPÚBLICA
Desde os inícios do século XIX, pelo menos, que a produção cultural e, muito especificamente, a literária parece indissociável do aparecimento de grupos, mais ou menos coesos, que se constituem e se apresentam como colectivos renovadores em torno de um conjunto de opções estéticas, filosóficas e mesmo por vezes políticas, que publicamente defendem, nalguns casos sob a forma de Manifesto. Para referir os exemplos mais conhecidos, foi este o caso dos movimentos a que chamamos Romantismo, Realismo ou Futurismo. A consequência disto, em termos de história cultural, é a tendência, comum e compreensível, para encararmos o passado através da óptica das gerações: no caso português, falamos da primeira geração romântica (Herculano, Garrett), da Geração de 70 (Antero, Eça), da geração do Orpheu, da geração da Presença, por exemplo. Mas uma outra consequência desta visão estritamente diacrónica da cultura é a de fazer-nos esquecer que esta arrumação dos autores por movimentos sucessivos e afastados no tempo e no espaço cultural é mais esquemática e utilitária do que real e que dificilmente ela nos poderá dar o retrato exacto de uma determinada época.
De facto, e em primeiro lugar, convém notar que os movimentos, em geral, não coincidem estritamente com a vida dos seus protagonistas, ou seja, há sempre coincidências de tempos e de espaços que esta arrumação tende a ocultar. Para citar apenas dois casos: Herculano, por exemplo, não só foi ainda contemporâneo das Conferências do Casino (que aliás, como se sabe, paternalmente defendeu), como trocou abundante correspondência com Oliveira Martins (num diálogo fecundo e infelizmente pouco conhecido); e se Eça morreu demasiado cedo, Ramalho Ortigão ainda assistiu à implantação da República e mesmo aos primórdios do Futurismo (tendo morrido exactamente no ano da publicação do Orpheu). Ou seja, os tempos culturais não são estanques, uma dada época é um conjunto de cruzamentos vários entre gerações. E em segundo lugar, esta visão diacrónica por gerações contribui para tornar “invisíveis”, ou, pelo menos, menos visíveis, aqueles autores que escapam à lógica dos grupos mais destacados, ou cuja ligação a uma estética precisa é mais problemática: o que não será apenas o caso dos autores que se situam cronologicamente entre duas gerações, como Camilo ou Júlio Dinis, por exemplo, mas também de certos autores que, sendo contemporâneos de um ou mais “movimentos”, se movem num espaço individual distinto e cujo destino póstumo (e até, nalguns casos, contemporâneo) é, muitas vezes, o de serem colocados numa margem mais ou menos indefinida ou secundária: o exemplo mais flagrante desta situação parece-me ser o lugar reservado pelas histórias da literatura a Teixeira Gomes (cuja longa vida – 1860/1941 – o fez contemporâneo da Geração de 70, dos Simbolistas, do Orpheu e mesmo da Presença e do Neo-Realismo, sem nunca, verdadeiramente, se ter integrado em nenhum destes movimentos).
Assim, e num pequeno esforço de imaginação, peço ao leitor que siga os passos de Almada e entre com ele numa livraria do Chiado, num qualquer dia dos finais de 1922. Como o exercício é virtual, pode partir do princípio que o acervo português dessa livraria é bastante completo e nele constam, para além dos inevitáveis “clássicos” (Herculano, Garrett) e dos “consagrados” já falecidos há alguns anos (Antero, Eça, Cesário, António Nobre), todas as obras publicadas nos últimos 7/8 anos (na inevitável secção “Novidades”). Neste último escaparate, e para além da miríade de autores de sucesso, que então, como hoje, o vento irá levar (entre os quais talvez o leitor reconheça os nomes de Brito Camacho – Nas horas calmas, 1920 – ou de Júlio Dantas, este último agora certamente por razões alheias ao seu mérito literário2), é possível que o leitor encontre, em habitual mistura aleatória, na prosa, O Jardim das Tormentas, de Aquilino Ribeiro (1913), A Confissão de Lúcio, de Mário Sá-Carneiro (1914), A Arte de ser Português, de Teixeira de Pascoaes (1914), as Últimas Farpas de Ramalho Ortigão (ainda 1914), o Húmus de Raul Brandão (1917), A Engomadeira, de Almada Negreiros (1917), A Via Sinuosa (1918), as Terras do Demo (1919), Filhas de Babilónia(1920) e A Estrada de Santiago (1922 - colectânea onde surge pela primeira vez “O Malhadinhas”), todos de Aquilino; na poesia, algum número perdido da revista Orpheu (1915), Antinous e 35 Sonnets, de Fernando Pessoa (1918), o Livro de Mágoas, de Florbela Espanca (1920), as Poesias Dispersas, de Guerra Junqueiro (igualmente de 1920), os Cantos Indecisos de Teixeira de Pascoaes (1921), os EnglishPoems I e II, de Fernando Pessoa (igualmente de 19214). Embora seja possível que o leitor não fique tão perplexo como Almada (ou não busque exactamente a salvação), a escolha é variada, como se vê. Se o leitor for exigente mas tiver os seus hábitos, é possível que se fique por Ramalho, Junqueiro, Brandão e Pascoaes, à época já nomes consagrados (ainda que alguns muito contestados, como Pascoaes). Se porventura for um dos muitos lisboetas curiosos que, na recente conferência de Almada, começou a patear e terminou a aplaudir o orador de pé, talvez decida rever o juízo, generalizado pela imprensa desde há alguns anos, sobre “aqueles malucos do Futurismo”, folheando algumas das suas pequenas edições de autor. Mas se for não só curioso como aberto e habituado a pensar por si próprio (como será certamente o caso, até porque a distância lho permite) é possível que simplesmente decida ir ver o que andam a fazer esses jovens e talentosos autores de que a imprensa tem, mal ou bem, falado. E concluirá, obviamente talvez, que nem todos andam a fazer a mesma coisa. Que o leitor me perdoe esta longa introdução num texto que pretende falar essencialmente de Aquilino Ribeiro. Ela pareceu-me, no entanto, necessária para explicar um dado evidente mas que temos tendência a esquecer: o de que Aquilino é absolutamente contemporâneo da Geração do Orpheu. Do ponto de vista puramente geracional, para começar, e aqui será útil a perspectiva diacrónica: na verdade, nascido em 1885, Aquilino é apenas três anos mais velho do que Fernando Pessoa (n. 1888) e oito anos mais velho do que Almada Negreiros (n. 1893). Estas pequenas diferenças de idades quase se anulam quando analisamos o percurso artístico de todos eles, sobretudo no seu início (que coincide, grosso modo, como se sabe, com a implantação da República). A baliza poderá ser colocada em 1908, ano em que Pessoa começou, “num impulso súbito”, a escrever em Português (como o próprio posteriormente relata), exactamente o mesmo ano em que Aquilino inicia uma série de curtas colaborações n’ A Ilustração Portuguesa (a partir de Paris, onde a sua militância anarquista e também a sua proximidade aos regicidas o tinham obrigado a exilar-se5). A partir daqui, os percursos quase coincidem: de facto, no mesmo ano de 1913 em que Aquilino Ribeiro publica o seu primeiro livro (O Jardim das Tormentas, contos), Almada Negreiros realiza a sua primeira exposição individual. Um ano antes (1912) tinha Pessoa publicado os seus primeiros textos, sobre “a nova poesia portuguesa”, na revista Águia. E um ano depois (1914) vem a público A Confissão de Lúcio de Mário de Sá-Carneiro. Em termos estritamente cronológicos ainda, poderíamos dizer que os anos seguintes são os da afirmação e consolidações públicas de todos estes jovens escritores: quando, em 1915, sai o primeiro número de Orpheu, Aquilino acaba de regressar de Paris, certamente muito a tempo de não ficar indiferente à polémica então desencadeada (que, no entanto, parece ignorar). A agitação cultural que se segue parece tão intensa como a agitação política que o país atravessa: limitando-nos aos factos mais marcantes, 1917 é o ano do Portugal Futurista (que inclui o “Ultimatum” de Almada Negreiros e o de Álvaro de Campos – este saído em separata) e ainda d’ A Engomadeira também de Almada; em 1918,
Aquilino publica o seu segundo livro, A Via Sinuosa, a que se seguem, nos dois anos imediatos, As Terras do Demo e Filhas de Babilónia. E se Pessoa, publicando, muito embora, alguns pequenos livros em Inglês, parece optar, por esta altura, por se remeter para a posição mais discreta que seria, a partir daí, a sua, e Almada segue agora, por sua vez, para Paris, encontramo-lo ano e meio depois, no Verão de 1921, a realizar mais uma das suas grandes intervenções públicas, a conferência que profere na Liga Naval e que dará origem a um dos seus mais notáveis textos, A Invenção do Dia Claro, cujo início vai citado em epígrafe. E exactamente no ano seguinte, Aquilino publica aquela que se tornará a sua obra mais conhecida, O Malhadinhas. Fiquemo-nos, de momento, por aqui. Na verdade, em 1922, alguns dos grandes textos da literatura portuguesa do século XX tinham sido já publicados, na sua maioria por jovens autores aparecidos na primeira década da nova República.
E, no entanto, apesar da idade e dos percursos literários serem praticamente os mesmos, esta visão conjunta da produção cultural dos jovens autores da época raramente é apresentada8: fala-se da Geração do Orpheu (que gradualmente, aliás, parece ter vindo a ocupar em exclusivo a cena pública da primeira República) e falasse de Aquilino Ribeiro (cujo fortuna póstuma parece ser a inversamente proporcional), entidades culturais autónomas, “gavetas” distintas da história literária e cultural do século XX português. As razões para este facto não são difíceis de perceber. As mais imediatas prender-se-ão certamente com o facto de essas “gavetas” parecerem já existir na própria época, ou seja, prendem-se com a quase inexistência de referências mútuas, pelo menos directas (o que, aliás, não deixa de ser estranho, se atendermos às dimensões da Lisboa cultural de então). Na verdade, e para citar só um exemplo, muito embora hoje em dia possamos saber, através da sua correspondência, que Pessoa considerava, de facto, Aquilino um “grande prosador”, o certo é que, publicamente, não fala dele uma única vez (nem para bem, nem para mal); e se Aquilino refere uma ou outra vez os Futuristas, fá-lo sempre em termos genéricos e tomando como referência nomes internacionais, nomeadamente da pintura, e nunca os do grupo português do Orpheu.
Na verdade, se todos estes jovens escritores coincidem biograficamente no tempo e no espaço (e é mesmo quase impossível que fisicamente não se cruzassem), o facto é que eles se situam estética, literária, política e mesmo socialmente em universos paralelos, aparentemente com pouco ou nenhum contacto entre si. No que diz respeito às opções estéticas e literárias, a questão parece evidente, até porque, sobretudo no início, os protagonistas fazem questão em delimitar, por vezes ruidosamente, os respectivos campos, agitando as suas bandeiras, nomeadamente as das suas diferentes figuras tutelares, Marinetti e Anatole France. Muito sintomaticamente “o divino Anatole” de Aquilino é o primeiro, de uma extensa série de autores, a ser “fuzilado” por Álvaro de Campos no seu “Ultimatum”10 (o que talvez não seja fruto do mero acaso). Quanto a Aquilino, “o divino Marinetti” de Almada (e repare-se que a expressão é rigorosamente simétrica) provocar-lhe-ia já então o mesmo sorriso que o leva, ainda em 1927, a intitular “Consagração da loucura” uma crónica que, do seu segundo exílio parisiense, envia para o jornal O Século e na qual dá conta da consagração social e sobretudo comercial da arte futurista (num texto, aliás interessante sob vários aspectos, e que nos mostra como, recusando liminarmente os seus princípios, os compreendeu perfeitamente). Campos separados, pois, e que inevitavelmente se traduzem em produções literárias que aparentemente se situam nos antípodas: entre A Engomadeira e as Terras do Demo nenhuma relação parece realmente existir, para além da data de publicação (e nem faria sentido existir, certamente, para os seus respectivos autores).
De facto, para além das opções de ordem estética ou literária, outras coordenadas mais gerais opunham fortemente os dois campos. Uma das mais evidentes e reconhecidas diz respeito às diferentes opções políticas, opções que, sobretudo numa época de grandes tensões nessa área, definiam zonas mais ou menos estanques de antagonismos irredutíveis, mesmo entre os que não eram militantes activos (o que não era o caso de Aquilino, muito pelo contrário, como se sabe). Muito embora hoje se possa entender que as posições políticas aristocráticas e mesmo proclamadamente monárquicas dos membros do Orpheu tivessem uma componente estética indesmentível, não só porque directamente bebidas no “divino Marinetti”, mas também pelo que representavam de afirmação do próprio movimento como vanguarda “rebelde” em luta contra o mainstream republicano e burguês, o certo é que, nesses anos de instabilidade política e conflito agudo, este lado estético dificilmente poderia ser entendido e muito menos aceite pelos que se encontravam na ardente e internamente conflituosa barricada oposta12. N’ A Engomadeira, onde o burguês rico, anafado e republicano (o Sr. Barbosa) é um dos bombos da festa, todo este agitado mundo da conflitualidade política é bem visível, nomeadamente nos usos e abusos a que o estigma de “talassa” podia conduzir (e que vale, entre outras coisas, o despedimento inicial da protagonista), tal como o de “germanófilo”, aliás (acusação de que o protagonista se salva à justa, mediante a intervenção do Sr. Barbosa, exactamente). “Malucos”, “germanófilos” e “talassas” (ou vice-versa?), os futuristas só podiam, pois, ser olhados pela tradição liberal e republicana, em geral culturalmente pragmática e avessa a devaneios (conservadora, se quisermos), no mínimo, com desconfiança. E Aquilino pertencia indiscutivelmente a essa família política, muito embora o radicalismo anarquista dos seus primeiros anos em Lisboa não possa deixar de ser considerado, de certa forma, paralelo (embora em sentido inverso) aos radicalismos estéticos dos jovens futuristas. Os dois campos estavam, de qualquer forma, também a nível político, bem delimitados. O mundo onde se movia o jovem Aquilino não era o mundo onde se moviam os igualmente jovens protagonistas da Geração do Orpheu. E não o era também do ponto de vista social, uma componente talvez menos visível mas, sem dúvida, muito determinante. A biografia dos intervenientes ajuda, de resto, a delimitar uma outra fronteira, que nitidamente separa os seus mundos, e que pode ser desenhada a partir do binómio urbano/rural: os futuristas são, na sua esmagadora maioria, lisboetas de origem média-alta, nados e criados em Lisboa, em famílias letradas e com algum desafogo económico13, Aquilino é o beirão de Carregal de Tabosa, filho de padre e ex-seminarista, que Lisboa acolhe (como, à época, tantos outros “rústicos”) e, de certa forma, “civiliza”, sem nunca verdadeiramente integrar. Os títulos de duas das obras de Almada e Aquilino referidos (publicadas com a diferença de meses) são, aliás, elucidativos a este respeito: na verdade, entre A Engomadeira e as Terras do Demo14 não está apenas todo um conjunto de opções estéticas, literárias ou mesmo políticas bem distintas. Mas está também, e em primeiro plano, ainda que de certa forma oculto pela visibilidade das opções anteriores, está também o desenho exacto dos dois mundos que coexistem no Portugal dos inícios do século XX, o mundo citadino e burguês de Lisboa e o mundo rural das aldeias perdidas no interior Beira, mundos esses que correspondem muito claramente aos diferentes e mesmo radicalmente opostos universos de origem dos dois autores. Independentemente, pois, das diferenças de modos e maneiras, é indesmentível que tanto Almada como Aquilino falam do que conhecem, do mundo que é biograficamente o seu, e tomando mesmo como referência a sua própria experiência biográfica. Se a superfície é radicalmente distinta, o gesto mais profundo não difere muito. Repare-se como o próprio Almada, no meio de um provocatório e lúdico jargão futurista, descreve o seu projecto d’ A Engomadeira, na pequena carta-dedicatória ao seu amigo José Pacheco com que abre a novela: “ Reli-a, e se bem que a aceleração das imagens seja por vezes atropelada, isto é, mais espontaneamente impressionista do que premeditadamente, não desvia contudo a minha intenção de expressão metal-sintéctica Engomadeira, em todos os seus 12 capítulos onde interseccionei evidentes aspectos da desorganização e descarácter lisboetas” (sublinhados meus). E, na verdade, ainda que na época isso talvez fosse difícil de entender, esta afirmação corresponde bem à questão de fundo que atravessa A Engomadeira, verdadeiro pequeno fresco da vida quotidiana de Lisboa em vésperas da I Guerra Mundial (e questão que mais tarde Almada irá retomar, em moldes mais tradicionais, no Nome de Guerra). De facto, deve salientar-se que os futuristas portugueses (sobretudo Pessoa e Almada) não deixam nunca de tentar conciliar o lado cosmopolita e provocatório do seu movimento, com um olhar atento sobre a realidade portuguesa (ou melhor, lisboeta) que os cerca - e note-se que é este também, de certa forma, o projecto de Pessoa n’ O livro do desassossego. O projecto de renovação da literatura portuguesa, comum aos futuristas e a Aquilino, parte certamente de pressupostos estéticos muito distintos. Mas a questão está também em que o mundo urbano e cinzento de um escriturário da Rua dos Douradores não é, nem pode ser, obviamente, o mundo camponês e solar do Malhadinhas.
Neste sentido, talvez alguma coisa de verdadeiramente interessante e nova possa ocorrer ao leitor que, com a devida distância política e estética, entrasse, no tal dia dos finais de 1922, na livraria do Chiado com o propósito de perceber o que andam a fazer os jovens escritores de quem se fala: na verdade, cada um à sua maneira, anda a escrever sobre o que sabe e sobre o que vê. E na leitura conjunta desta série de retratos cruzados o leitor inteligente encontrará, decerto, a imagem mais completa do Portugal dos inícios do século XX.
O resto da história, nomeadamente a que se segue à implantação do Estado
Novo, já o leitor provavelmente conhecerá. Ou, dito de outro modo, e para terminar novamente com Almada, agora na frase-epílogo de um dos seus “Frisos”15: “A estampa do pires é igual”.

Do Regionalismo ao Universalismo – Uma leitura de Andam Faunos pelos Bosques de Aquilino Ribeiro
Resumo: Tradicionalmente considerado escritor regionalista, Aquilino Ribeiro viu, frequentemente, a sua obra ficcional classificada sob o mesmo rótulo. Em prefácios e outras intervenções, o escritor pronunciou-se sobre a «escola regionalista» em Portugal, defendendo que pelas perspectivas linguística e etnográfica não se poderia concluir relativamente à sua existência e que a escola não se definia pelo lugar geográfico.
A acção de um dos romances preferidos do escritor, Andam Faunos pelos Bosques, decorreno seu espaço de eleição, a serra da Nave, e as personagens são os habitantes das aldeiasmontesinhas, cuja vivência é perturbada por assaltos à pureza das jovens casadoiras perpetradas por entidade ambígua. A reacção das populações aos acontecimentos, que proporciona a observação de vivências e tradições, hábitos e crenças, ocasiona a emergência de novo lugar no horizonte serrano, permitindo constatar a existência de coordenadas que ultrapassam o universo regional



Histórias do lobo nas obras de Aquilino
No Ano Internacional da Biodiversidade, urge lembrar Aquilino como um dos escritores portugueses que mais se destaca pela inclusão dos animais como personagens das suas obras ou como elementos marcantes dos seus cenários literários. Na sua obra, o lobo tem uma presença comum, original e de grande relevância identitária para Terras do Demo. Disso dão conta expressões com que o escritor descreve o seu território literário, tais como «terra de fraguedos, tojal e lobos», «A minha serra, pedregal, lobos e vento» ou «A serra era escalvada e agreste, sala de vento e dos lobos».
No território nacional, o lobo encontra-se ameaçado e protegido por legislação. O Livro Vermelho do Vertebrados de Portugal (Queiroz et al., 2005) atribui-lhe o estatuto de “Em Perigo” (de extinção), em virtude da diminuta população existente: menos de 250 indivíduos com idade reprodutora. A Lei nº 90/88, de 13 de Agosto, bem como o Decreto-lei nº139/90 que a regulamenta, estabeleceram o regime de protecção, conservação e fomento da espécie. Também por via da aplicação das Directivas Comunitárias para a Conservação da Natureza (Directivas Aves e Habitats,respectivamente 79/409/CEE e 92/43/CEE) e da Convenção de Berna (Decreto nº
95/81, de 23 de Julho e Decreto-Lei nº 316/89 de 22 de Setembro), o lobo beneficiou de um estatuto de protecção estrita das suas populações e dos seus habitats de ocorrência.
Outrora com uma vasta distribuição em toda a Europa, o lobo foi perseguidosobretudo desde a Renascença, período em que foi considerado a personificação doDiabo (Sax, 2001). Em consequência disso, este animal encontrou a extinção emInglaterra, na Escócia, na Irlanda e na Alemanha, entre outros países europeus. Ararefacção das suas populações em Portugal, Espanha, França, Itália e Grécia, ondehá algumas décadas eram abundantes, justifica que o lobo seja considerado tambémuma prioridade de conservação à escala comunitária.
 No início do século XX, os lobos seriam «sobejos» nas serras da Lapa e da Nave,assim como em todas as «terrinhas altas da Beira», e com eles conviviamquotidianamente os habitantes das aldeias: «retumbavam pela noite velha, do fundodos currais, o destampatório dos bacamartes e os gritos destemperados de "à coa"! Ossabujos traziam coleiras de puas ao pescoço, e cacheira e gaita só usavam ospastores bucólicos de Bernardim. O que eles traziam debaixo da capucha era areiuna»
A experiência do escritor, transcrita para a sua obra literária, encontra noutrosregistos documentais perfeita consonância. A história da distribuição do lobo emPortugal nos últimos 100 anos (Petrucci-Fonseca, 1990) e o estudo detalhado daespécie a Sul do Douro (Roque et al., 2005, c.f. Figura 1) sugere que, apesar daperseguição directa de que eram alvo, até à década de 1970, a espécie ocorria deforma contínua em toda a Beira Interior e Alto Alentejo, possuindo ainda núcleospopulacionais no Baixo Alentejo. Na década seguinte, o lobo desaparece do BaixoAlentejo, do Alto Alentejo e da Beira Baixa. Na dedada de 1990, uma nova regressãoorientada de Sudoeste para Nordeste, confina a espécie, a Sul do Rio Douro, aosdistritos de Viseu e Guarda.
 Distribuição do lobo a Sul do Rio Douro, ao longo das últimas três décadasdo século XX (Roque et al., 2005)
Os dados mais recentes (Pimenta et al. 2005) apontam para a existência em Portugalde apenas 51 alcateias confirmadas. A população a Norte do Douroencontra-se aparentemente estável mas, a Sul do Rio Douro, o declínio continuado da espécie não foi interrompido. Em áreas muito próximas de Terras do Demo já não foipossível assinalar uma presença regular do lobo.
 Resultados do Censo Nacional do Lobo 2002/2003: área de distribuição elocalização das alcateias (Pimenta et al., 2005)
Em todas as referências ao lobo, Aquilino Ribeiro mostrou admiração e respeito pelaespécie. O lobo é um animal feroz, o bicho mais bravo dos cumes e planaltos, mastambém o mais emblemático. Os lobos de Aquilino Ribeiro vivem nas brenhas, nomatagal, nos pinhais, ao abrigo dos povoados. Às vezes, aproximam-se das casasporque vêm ao cheiro “do bodum das cabras, que nos dão o leite”. São bichos domonte que não vivem sós, e por isso são descritos no seu grupo social, a alcateia: osagregados são sempre de quatro ou cinco animais. Anunciam-se quando uivam, maisfrequentemente nas noites geladas ou de nevoeiro. Nas noites brancas, grupos de lobos uivam à Lua: “nas limpaças”; “os uivos das alcateias nas noites esfomeadas de Inverno”; “lobos a uivar nos tesos”; “Essa mesma noite uma alcateia rondou e uivou em torno da penha com acirrado denodo, como se se preparasse para executar um assédio”.
Como carnívoros, procuram as suas presas no monte; mas, quando a estiagem se prolonga, “até os lobos que noutros tempos, nesse passo do ano, se apresentavam com samarra nova, besuntados e luzidios, andam despelados e voltaram a ameaçar os redis do aldeão menos cauto”. Da predação de cabras e ovelhas nasce a principal Renunciação, in Caminhos Errados, p.196
 Razão do conflito que opõe Homem e lobo.
Reconhecendo os benefícios do seu comportamento predatório e da sua voracidade,
Aquilino Ribeiro considerou que desempenhavam um indispensável papel sanitário, repartido com outros necrófagos: “Abençoado fosse o Criador que esfomeava os corvos, os lobos e as aves de rapina para exercerem à superfície da terra o papel sanitário de coveiros!”.
O serrano das aldeias recebe destes bichos metade da sua natureza. Revela o seu lado lupino, de “bárbaro sem trela”, por não “moderar os instintos da sua braveza”.
Assim os encontram aqueles que vêm de fora tentar mudar o quotidiano duro e pobrede agricultores e pastores:“ - [o inspector] Declarou que tivera a impressão, ao pisaros povos da serra, de entrar em apriscos de lobos. Tudo uivava, os cães, as mulheres, os meninos e os próprios velhos”. No mesmo sentido, depois de possuir Brízida num cardenho, António Malhadas descreve a situação ao abade de Britiande: “Ovelha que tinha de ser do lobo foi do lobo. Quem aqui vai não é nenhuma donzela... Não senhor, que eu não sou parvo”. Quando o lobo é gente e macho, a sua fome é de rapariga.
Maria Benigna desperta o apetite de Adriano; mas, porque se recusa a entrar no seu automóvel ou ir ao seu escritório, não chega a “cair na boca do lobo”. Assim, com “todos estes impossíveis”, a sua fome vai “crescendo como a de lobo no fojo”. Em Gandra de Rei, lugar de ficção, os lobos são “a valer”, são “umas feras”, como bem se vê por andarem “à margem do direito e da religião que até comem carneiro roubado … às sextas-feiras”.
Em todos estes trechos, aparecem associados predadores e presas, lobo e carneiro. Segundo o escritor, também é assim na natureza do serrano. O serrano é metade lobo. Recebe do carneiro a outra metade: “formato desta vegetação rastiça e humilde, da paciência imensurável que representa uma rês a encher a barriga percorrendo léguas, aqui esponta um broto, ali apanha uma paveia seca”17. Por ambivalência óbvia do seu carácter, e proporção importante do jeito vulnerável e submisso, Aquilino Ribeiro afirmou que o serrano teme o lobo, pela sua segurança e pela segurança do seu gado.
 Em O Homem da Nave elabora extensamente sobre o comportamento dos e sobre todo o tipo de lendas e mitos que a tradição popular fez crescer à sua volta (e.g. o lobisomem). No injusto entendimento da gente, “o lobo é sempre o responsável pelo que faz e pelo que não faz” e é por isso que histórias falsas, como a de um lobo que teria comido uma pastorinha, são contadas e noticiadas, obrigando depois a desmentidos. Até o naturalista francês Buffon tinha por ele “uma antipatia visceral”!
Mas “a fera, sobretudo, tem a sua ética”: “o lobo no meio de um rebanho deita agarra, não à zagala, mas a um cordeiro ou a uma ovelha. É mais fácil, menos arriscado e corresponde à tendência do seu instinto e do seu paladar”. Para o escritor, “o lobo é cheio de virtudes domésticas”: “alto sentimento de família e das responsabilidades do progenitor”. Acresce-lhe a “intransigência”, mencionada pelo escritor como uma qualidade de carácter. Porque “é um solitário e de gorra só com os seus”, “está reduzido à condição de perfeito eremita”. Escreve Aquilino, que “quandoPortugal era mata ininterrupta de Norte a Sul, a vida se lhe tornava fácil. Sobejavambichos, para que o seu palato está feito, a pegar pelos bosquedos”, sugerindo que parte dos conflitos que se punham na relação do Homem com o Animal, decorrentes sobretudo dos ataques dos rebanhos, foram originados pela destruição do seu habitat natural (e em consequência, das suas presas selvagens). No mesmo sentido, a identidade do lobo surge no imaginário colectivo como multifacetada e controversa (Morais, 2005). Sendo certo que ele aparece como “animal nocivo e indomesticável, tendo a natureza de fera voraz” (p.6), ele é também, de todos os animais, o mais exposto à má sorte e às perseguições. Do “lobo mau” e de um “lobo manso” (de S. Francisco de Assis) se constrói a imagem desta espécie.
Através de 5 narrativas literárias datadas da primeira metade do século XX, com as Terras do Demo como cenário, apresenta-se o “lobo aquiliniano”, uma projecção mítica e cultural (na acessão usada por Álvares, 2004), mas sobretudo uma presença física nas vivências e nos ecossistemas locais.
Numa travessia da serra da Lapa, em que Malhadinhas e o Frei Joaquim das Sete Dores partilham uma tempestade de neve com as suas respectivas montadas, dá-se um encontro com os lobos. Já cai a noite e, na beirinha de um caminho, o Padre vê um animal sentado sobre os quadris: «tinha o topete coberto de neve, neve que acamava à maneira de solidéu dum bispo, e era sinal de que assentara ali o pouso de caça ou de espreita depois de nos farejar de longe. Luziam-lhe as duas lanternas dos olhos». Os dois viajantes reagem apavorados, gritando para o afugentar – “À coa...à coa!” – mas, num primeiro tempo, o animal nem se mexe. Ainda paralisados de frio e de medo, vêem-no passar em frente das suas cavalgaduras, subir para um oiteiro e começar a uivar: «Uivou, uivou contra o vento, o focinho muito esgalgado erguido para o céu, aqueles uivos que parecem vagidos de criança doentinha a quem estão a bulir no axe. Um uivo que nem uma sovela a furar».
Já disposto a encomendar-se a Deus, Frei Joaquim é contrariado pelo almocreve que, naquelas circunstâncias, exige acção. Malhadinhas conhece os hábitos dos lobos e, embora assustado, evoca lendas antigas cujo trágico final não quer experimentar: «se traz faca ou arma, saque dela, que vem sobre nós uma alcateia que nem os pés nos poupam nos sapatos!». Pelas costas, aparecem-lhes quatro lobos, «muito mansarrões, passo descosido, focinho por terra, como pessoas não-te-rales que vão ao seu destino». Soltam-se novos gritos de «à côa» e toda a força dos dois assustados é posta na voz: «o grito e atrás do eco lá iam céu fora a esparvar aves e animaizinhos monteses». Mal sucedidos, vêm os lobos acompanhavam-lhes o movimento: «o luar era mortiço, mas eu bem lhes via o lombo saraivado e pelo jogo das pernas como se iam mandando connosco a compasso». O religioso apavorado bate os dentes commedo, «tão forte batiam que os engenhos que se armam nos milhos contra os gaios não fariam maior estreloiçada».
Nesta aflição, lembra-se Malhadinhas de um tilintar que ouvira no alforge. «É o turíbulo da igreja de Arnas, que trago para consertar”, responde Frei Joaquim. Sem mais demoras, o almocreve põe-se com ele a «tocar ferrinhos, a bimbalhar, a fazer uma matinada que nem cambalheiras arrastadas por um cavalo!». O alarido dá resultado e os lobos afastam-se. A história termina com a fuga dos bichos: «os lobos meteram o rabo entre as pernas, e desarvoraram». Conclui o almocreve que «os lobos se assarapantam facilmente com o ruído dos metais e se se petisca fogo».
Nas aldeias de Terras do Demo, Pedro Jirigodes era uma personagem pouco simpática, ainda que influente e considerada: «feitor ou negreiro, misterioso, duro e esquivo como era, punha naquelas terrinhas pobres um vulto considerável». O seu passado, construído a «gerir uma roça» em África, ter-lhe-ia rendido «boa mancheia de libras». Com imagem de valentão, «distinguia-se sobretudo como grande batedor de montes e engenhoso inventor de laços» e «tocava pandeiro em lobatos e raposos com tanta sanha que se diria movido, menos por ódio de espécie ou recreio, que por vendetta particular. Com o arcabuzeiro, estes bichos, que se pelavam pelo gigot, viam-se constrangidos à mais dura e ascética abstinência».
Num dia em que as populações das aldeias se mobilizaram para uma batida ao Papa -Moças (um não identificado violador de donzelas da região), Jirigodes e o seu grupo de atiradores encontraram uma alcateia: «cinco lobos de galhardia, dos quais um pela corpulência, o aprumo altivo da cabeça, a carranca trabalhada, lembrava grande e indómito capitão de ladrões, a fugir à tropa». Era cerca de meio-dia e os animais seguiam o seu caminho com «andadura nervosa». Jirigodes enfrentou então uma súbita e inesperada inquietação fosse porque «o maioral enristou o focinho, fairou, olhando em redor; e pareceu a Jirigodes que a pupila incandescente trespassava a pedra e o divisava» ou porque, descobertos pelos demais atiradores, «tiros e urros de “à côa” agarra que é lobo!” os lançaram tresmalhados na direcção de Jirigodes».
Seguiu-se uma grande carga de disparos, tendo Jirigodes visado «a cem passos velho lobo birbatão. Bum! Bum!». Com a sua «pontaria esparvadiça errara o lobo». Também os outros não conseguiram atingir qualquer bicho do grupo: «Quando a fumaceira da pólvora deixou ver, iam todos à desfilada, com indícios de levarem o fole intacto, corridos, que não molestado daquela salva real».
Tempos depois, o caçador desapareceu na serra. Constou que o comeram os lobos, vingando-se do seu «implacável inimigo» e fazendo jus à lenda do viajante a quem os lobos só deixaram os pés nos sapatos21. O episódio da morte de Jirigodes tem umcontorno intencionalmente difuso. Supõe-se que: “Depois de ter palmilhado muitoterreno, vagado para trás e diante, até, provavelmente, se abrigar com as rochas cerca das quais foram encontrados os despojos. Exausto, com a noite em claro, sem comer nem gordo nem magro, é natural que se deixasse tomar do sono e que os lobos, que ai são sobejos, o farejassem e fizessem dele pastel. (…) Agora lá que os lobos o surpreendessem adormecido e o trucidassem, ou que o trucidassem tendo-o encontrado já morto, é segredo, em última causa, que a serra guarda e não diz a ninguém».
De nada podem os lobos ser acusados e ninguém parece lamentar o destino do valente matador. «Paz à sua alma; não era boa rés!», é o que se diz.
António mata-lobos
António das Arábias, «sapateiro remendão e caçador de fama», saiu para o monte com o seu cão Pilatas. Andando no rasto de coelhos e batendo uma zona de mato muito denso, não tardou a encontrar-se com uma alcateia de lobos: «Cinco bichos de alto lá com eles! Peitaça tesa, jarrete elástico, carranca de quem anda de mal com o mundo todo, avançavam na sua direcção, e já cobria com a mira aquele que vinha à testa, mais alceiro! Ah, mas ei-los a chegarem-se…a chegarem-se, pós-catrapós… passos cada vez mais largos e furtivos…a entrarem, Santo Deus, no campo de tiro….». Desprevenido e assustado, «a prece ia-lhe bichanando nos lábios, com uma repercussão muito atabalhoada na penumbra da consciência e a ritmos acelerado, enquanto os lobos seguiam o seu caminho»; «se trago a escopeta carregada com zagalotes (…) fazia uma açougada; com escumilha, milagre é se deitar um a terra».
Apesar do fraco calibre da arma, António disparou e feriu o animal que lhe entrou no campo de tiro. Em tormento, o lobo adquire um comportamento feroz: «viu a fera dar um pulo prodigioso, enovelar-se, cair de joelhos, depois erguendo-se de rópia, precipitar-se com ligeireza fulminante para ele (…) crescia no seu horizonte, temível, colmilhos a branquejar na goela escancarada». O caçador desferiu ainda um segundo tiro, desta vez mais próximo e «em pleno peito». Já nesse momento reduzida pelo sofrimento, «a fera escabujava, escarvava a terra, e mal conseguia sustentar-se sobre as espáduas». E num estertor final, «cortou quantas urzes e sargaços pôde deitar o dente, cheio de furor a princípio, depois como por tineta, o corpo possuído de sobressaltos cada vez mais espacejados e frenéticos (…) num estremeção violento dobrou a cabeça para a terra e não se moveu mais».
António levou-o depois de terra em terra para angariar recompensas: «aqui lhe davam uma tigela de feijões, ali um celamim de centeio, acolá um gigo de batatas, nesta casa, naquela e naqueloutro meio braço de cebolas, o seu naco de toucinho, a sua mancheia de castanhas piladas. O senhor prior contemplou-o com cinco tostões e o tio brasileiro com um velho chapéu panamá!» Já o lobo cheirava mal, e ainda o caçador se aproveitava, enchendo a pelo com palha e mostrando-o de porta emporta: «era ascoroso, mais ascoroso que o corpo de um rei embalsamado».
Contrastando com o magnífico animal que no início se descrevia, a narrativa termina com uma reflexão que deixa, neste confronto de atitudes de força, espaço para louvar a existência de todos os seres vivos, respeitando o seu papel nos ecossistemas. No final, escreve-se: «era a vera-esfígie do inimigo que salteava os currais descuidosos, atassalhava os mastins, teimava a viver, imolando o seu carneirinho, maquiando o milho em espiga, rebuscando a glande por baixo dos carvalhos, no desfrute, ilusório em suma, dum direito à vida igual ao do homem, e viam-no deliciados. Se porém o Criador lhe havia dado tal licença e o gozo de concomitantes cavalarias, o homem feito à divina imagem e semelhança é que não estava pelos ajustes».
O lobo Estudante
Houve tempo em que se organizavam batidas aos lobos e algumas crias deixadas órfãs, esfaimadas e perdidas, deambulavam depois pelas serras daquela região. Aconteceu que, depois de uma «grande batida que houve nos chavascais de Montemuro», numa quinta da Serra dos Milagres apareceu «um lobinho de tenros dias». Porque este «andava cheio de fome», Teotónio Louvadeus (o proprietário) começou a alimentá-lo, primeiro com «uma tigelada de leite», e tendo-o perto, logrou prendê-lo. O homem cortou-lhe também a ponta do rabo, «sempre pendente e comprido, apanhava os argalhos do chão» e “pôs-lhe o nome de Estudante, não saberia dizer porquê, talvez porque entrava para a escola do bicho-homem».
O animal foi crescendo «sempre amigo de Teotónio». Certo dia, não resistiu «aos apelos surdos que lhe vinham de longe das fêmeas aluadas”, soltou-se e rumou ao encontro dos seus congéneres. O homem compreendeu. No Inverno seguinte, o Estudante voltou. Voltava sempre que tinha fome e Teotónio recebia o amigo lobo com o que tinha «à mão semear: coelhos, se os havia agarrado nos ferros; à falta de coelho, uma malga de leite; se acabara o leite, até um tropeço de broa». Porque Teotónio Louvadeus não aceitava que pudesse este animal magnífico estar condenado à fome ou a actos de furtivíssimo. Assim clamava a Deus: «para que deixas estes bichos morrer de fome? E, para que a matem, porque hão-de ser maus e ferozes?
Porque é que na tua infinita sabedoria os obrigas a actos de bandoleirismo, contra a ovelha sem defesa e o inocente cordeirinho, a menos que estiquem à míngua! É verdade que muito do que fazes nos é incompreensível, senão seria para dizer que és um tirano absurdo e desmiolado!»
Estudante acasalou e formou a sua própria alcateia. E foram esses bichos, chefiados pelo reconhecível «lobo do rabo saracoto», que «romperam a pilhar gados nos currais (...) Os pastores queixavam-se de duas feras corpulentas que assaltavam os rebanhos no pino do dia (…) na imaginação do serrano, entravam pelos povos, iam-seaos estábulos, desencravelhavam as portas, e toca para as costas com o reixelo maisgordo que lhes enchesse o olho». Esse efeito prejudicial teria ligação com proximidade estabelecido pelo Teotónio com os lobos, e que teria colocado em clara superioridade: «Como haviam de livrar-se de bichos assim, que conheciam as manhas da gente e sabiam torcer-lhe as voltas e cadilhos?».
Estudante é morto pelo povo congregado. Primeiro, é Manuel da Obriga que tentaeliminá-lo a tiro: «deparou-se-lhe um grande lobo que lhe dardejava, agachado pordetrás dos sargaços, olhos sonsos a fuzilar na cabeçorra meio dobrada para o chão.Sem perda de tempo, meteu a espingarda à cara e puxou o gatilho. Chapéu, o tiromoita, e, como o lobo lhe desse impressão de retesar-se nos jarretes para investir,ficou assustado e sem pinga de sangue. Se a fera dava um pulo?». Mas tal nãoaconteceu. Depois, «vieram todos, armados de gadanhas e sacholas, com seuscachorros» e começaram a acometê-lo à pedrada. O animal estava cercado e nãotinha por onde escapar. Aleijado por uma e outra pedrada e atingido por um golpe degadanha, «a fera desabou como um roble».
A história não acaba aqui, pois a Teotónio Louvadeus não escapou a perda do amigo:«pareceu (…) que o último olhar do lobo era para ele, antes de se vidrar com o frio damorte». Preparavam-se os matadores para o transportar de terra em terra, e fazer ocadáver «render muito ovo, cebolinhas e batatas», quando Teotónio o põe em grandepira de mato seco e queima-o: «- Deixa estar que não te hás-de rir de mim nem fazerpouco do lobo».
Inácia era uma égua de estimação. Amadeu conhecia a «velha horsa» desde sempre,desde que seus «olhos tinham encontrado à argola da casa quando se abriram à luz».
Agora, o rapaz era interno no Colégio da Lapa e nas idas e vindas da sua aldeia,atravessava a serra nesta montada, acompanhado do moço de recados da casa, seugrande amigo, o Manuel Lóio. Foi o Lóio que lhe contou da desgraça da Inácia: «Aégua comeram-na os lobos! Não acredita…?!». E seguiu dando pormenores do ataqueque esta sofreu, numa noite, quando acidentalmente foi deixada no monte, presapelas patas e sem maneira de fugir.Certo dia de Novembro, a mãe de Amadeu disse ao Manuel Loio: «Levas a Inácia àsPovoinhas e deitas-lhe as peias». A égua encheria a barriga de erva e recolheria aofim do dia para, no aconchego do estábulo, ficar protegida das intempéries e doslobos. Mas aconteceu que, cumprida a ordem, o Lóio foi chamado para uma outratarefa, que lhe demorou muito tempo: «julgou que o mandavam a pé, julgaram queia a cavalo, o caso é que baixou a noite e a égua ficou esquecida no pasto». O Lóiochegou por volta das 22 horas, a tempo de ouvir «o aranzel» lá para os lados onde aInácia tinha ficado, e avançar na sua direcção: «fazia um escuro tão denso de cortar àfaca, tão denso que logo acima da Portela tiveram de se dobrar para o chão e apalparo caminho (...) homens e rafeiros atiraram-se para a frente com grande lambaça (...)a égua estava já nas vascas da agonia, a gorgolejar sangue pelas cordoveias e comum grande rasgão na vazia por onde lhe saíam as tripas». Entretanto, os lobos játinham desaparecido. No local ficou um espojadoiro, «na erva, sinal da luta que aInácia travou com os meliantes, naturalmente enquanto não perdeu o fôlego».Na noite seguinte, os homens voltaram ao local, na mira de alvejar os lobos a tiro,mas estes “não se chegaram a jeito da pontaria (...). Então, a população forjou umaterrível forma de vingança: o senhor Heitor Boticário veio com a peçonha e espalhou-aa esmo pela serra (...) Patearam não sei quantos cães (…) mas dois demonhõesgrandes como burricos, não comeram mais badana. Apareceram mortos, diasandados, nos carqueijais da Nave».
Considerações Finais
Apresentadas algumas das oportunidades deixadas por Aquilino para conhecer umpouco mais acerca dos lobos e dos seus encontros com as populações de Terras doDemo, pode questionar-se a razão por que se recontam estas histórias, celebrandoassim o Ano Internacional da Biodiversidade. O que nos trazem os episódios deMalhadinhas, de Jirigodes, de António das Arábias, de Teotónio Louvadeus e da éguaInácia, que possa ser entendido como um contributo para a preservação do lobo?Muitos têm afirmado que a gestão das populações de lobo adquiriu uma importantecomponente sociocultural, que suplanta a biológica, requerendo o estudo dadimensão humana para a definição de qualquer estratégia de conservação (Bath&Majic, 2001). É neste sentido que se investigam as atitudes públicas e osconhecimentos face às espécies partilhados pelos habitantes das áreas de ocorrênciade lobo e dos grupos que as visitam.
No tempo de Aquilino, a fome aproximava os lobos das povoações, para que, numadesatenção dos humanos, pudessem pilhar uma cabra, uma ovelha ou qualquer outroanimal indefeso. Mas nunca nas histórias se testemunha qualquer atitude agressivaou ataque a seres humanos (pelo menos, enquanto vivos). Embora realista e fiel aoscostumes locais, expondo práticas hoje consideradas inadequadas e sobre as quaisrecai um estatuto de ilegalidade – e.g. abate, envenenamento, mostra de cadáverpara obtenção de recompensa –, o escritor é sempre claro na valorização da naturezapara o seu próprio bem (posição egocentrista). O mito do “lobo mau” e a lenda dafera que devora o corpo do humano, deixando apenas os pés nos sapatos, sãodesmontados com a sabedoria e a sensatez própria de um pensador da Natureza e deum ambientalista avantla lettre. A exibição do cadáver do lobo e as recompensasrecebidas pela morte são descritas como um ritual grotesco, e a explicação dasconsequências do uso de veneno testemunha bem o seu impacto negativo sobre o ambiente.
Ontem como hoje, a diminuição na disponibilidade de presas selvagens, adependência do gado como fonte de alimento, a perda do habitat, os mitos e a faltade conhecimentos sobre a espécie permanecem como factores que afectam asobrevivência do lobo em Portugal.
A paisagem de Terras do Demo está diferente daquela que Aquilino Ribeiro descreveu.As suas narrativas descrevem um período em que a agricultura e a pastorícia eram osprincipais, senão únicos, agentes modeladores dos padrões espaciais e dos processosecológicos da paisagem. Assim terá sido até ao final da década de 1950, momento emque a arborização maciça com pinheiros bravos, imposta pela política florestal daépoca, transformou grande parte das encostas e cumeadas destas serras de lobos.
Mais tarde, grande parte das suas áreas de pinhal foram destruídas pelo fogo. Matase matos continuam a arder todos os anos, sempre que sobrevêm temperaturaselevadas, num ininterrupto ciclo do fogo. Os rebanhos de ovinos e caprinos quepastam nas serras da Lapa e da Nave são raros e de muito pequena dimensão.
Embora com populações muito mais diminutas, o lobo permanece. Redobra aimportância nacional desta área para a conservação da espécie, porque nela seabrigam ainda algumas das poucas alcateias que persistem em Portugal a Sul do RioDouro.
Um estudo sobre as atitudes públicas para com o lobo (Roque et al. 2005) abrangeudiferentes grupos de interesses relacionados com o uso do território: os criadores degado, os caçadores, os conservacionistas e os investigadores. A problemática doscães-vadios, o abate ilegal, a falta de habitat, a falta de sensibilização e anecessidade de mais dados biológicos foram unanimemente considerados comotópicos-chave para a sua gestão. Os intervenientes nos inquéritos realizadossugeriram a necessidade de envolver activamente outros parceiros na conservação,acrescentando as autarquias, as associações e os privados, incluindo os agricultores,os madeireiros, os representantes religiosos, as escolas e os bombeiros, entre outros,aos organismos governamentais com a tutela do Ambiente e da Agricultura.
Um estudo similar realizado no Sul de França, mostrou diferenças significativas acercado que pensavam os diferentes grupos de interesses confrontados com a recuperaçãodas populações de lobo, a partir de animais emigrados do território italiano, depois deum século de desaparecimento (Bath, 2000). Alguns, consideraram o facto como umbenefício para o eco-turismo e valorizaram as oportunidades criadas para atrairvisitantes interessados em ouvir uivar, observar uma pegada na lama ou qualqueroutro tipo de vestígio da sua presença. Outros consideraram que os lobosrecolocavam problemas de segurança, para as pessoas e para o gado. Para muitos, osmitos e os preconceitos mantinham-se vivos, facto que criou, às entidadesresponsáveis pela gestão do território e dos seus valores, o enorme desafio de mantero público envolvido e informado acerca da evolução das populações deste predador.
Numa época em que aumentam as preocupações ambientais globais, pode umterritório como Terras do Demo alienar uma parte do seu Património Natural? Aespécie sobrevive como elemento natural e como elemento cultural da região, e assimserá enquanto o lobo se mantiver no imaginário individual e colectivo. Recontar assim histórias permite estimular o diálogo acerca das atitudes e acções a desenvolver paramanter ou recuperar o seu estado de conservação favorável. Lembrar estes textos deAquilino significa também valorizar o lobo como elemento da identidade da região.Através delas, fica o Presente carregado de memórias, valores e significados, sem osquais nem os lobos, nem nós próprios, poderemos sobreviver.
Mais do que uma obrigação, que o dever ético e a legislação exigem, conservar a espécie nas Terras do Demo é uma missão de todos: o território é de lobos. Por legado natural e cultural. Valorizar este património, que já Aquilino reconhecia, cabe sobretudo aos gestores locais, seja qual for o seu papel no desenvolvimento.
Quando os lobos uivam
É já no dia 31 e Março que vai começar a ser transmitida na RTP1 a série “Quando os lobos uivam”. Baseada na obra homónima de Aquilino Ribeiro, retrata a oposição popular à expropriação dos baldios (ou seria privatização?) que originou um levantamento duramente reprimido pelas “forças da ordem”: GNR, PIDE, Tribunais, Câmara Municipal, etc. Trata-se de uma adaptação de Moita Flores da obra referida, numa série produzida pela NBP, de Nicolau Breyner.
Chamo aqui a atenção para o facto de as filmagens terem ocorrido em grande parte em Almeida e Sortelha. Em Almeida podem ser vistos, não só os monumentos e edifícios públicos e privados de interesse histórico e/ou arquitectónico como, e sobretudo algumas figuras típicas da nossa terra.
Muitos turistas reconhecerão o João “Cagão”, mas podemos ver ainda o Zé e o Carlos “Monaito”, e tantos, tantos outros nossos conhecidos num registo que ficará, por certo, a perdurar na memória e nos arquivos.

É uma série para ver e gravar. Estou convencido que, no futuro, ainda nos vai dar mais prazer revisitar Almeida pela mão de Aquilino do que agora, no primeiro visionamento.
Para quem não conhece esta magnifica Vila, que sirva de incentivo para uma próxima visita.
Para esses e para os Almeidenses da "diáspora" deixo uma fotografia de alguém que é um dos figurantes mais conhecidos da série (cá e no estrangeiro), tirada por um grande fotógrafo que esteve alguns meses entre nós, Kim Morgado.


 O Regime da ditadura, estabeleceu novas regras, mas o povo não baixou os braços!
"Quando os Lobos Uivam", uma série baseada no romance homónimo de Aquilino Ribeiro, adaptada por Francisco Moita Flores. Retrata a saga dos beirões em defesa dos terrenos baldios durante a ditadura, nos finais dos anos 40 e início dos anos 50.
Anos 50. Beira Alta. Nas fráguas da serra dos Milhafres existe o lugar de Rochambana. Um casebre ladeado por menos de dois hectares de terra onde o velho Teotónio Louvadeus vive com a terra, e com a serra, velho lobo eremita que esgravata dali o alimento e o engenho para conviver em paz com a sua solidão.
Teotónio Louvadeus tem a força do granito e por entre as gentes daqueles lugares perdidos, e escondidos nas lapas da serrania, corre à boca pequena que tem pacto com o Diabo: fala com os lobos que ameaçam outros lugares e rebanhos, mas que vêm comer à mão do velho. Não se importa com os boatos. Apenas teme a venatória. A guarda sabe que não tem igual caçador furtivo nas redondezas.
Há mais de dez anos que o filho Manuel partiu para o Brasil. Em Arcabuzais deixou a mulher, Filomena, e dois filhos? Jorgina e Jaime? Com a jura de regressar rico, pelo menos remediado, com dinheiro suficiente para matar de vez a fome, essa doença ruim que pairava como ameaça sobre a multidão de humildes que nascia e vivia na serra de Milhafres.
O velho Teotónio sonhava com o dia em que podia abraçar o filho, e como não rezava a Deus, rogava à serra, que a serra tinha a generosidade das mães, que lho enviasse de volta. Talvez fosse por suplicar tanto que Manuel Louvadeus regressou. Não trazia fortuna, é certo, mas regressava menos pobre do que no dia em que deixara Arcabuzais.

O julgamento de Alonso Ribelas (Aquilino Ribeiro, Quando os lobos uivam)
LEVANTE-SE o segundo réu! — Proferiu na sua voz pastosa e forte, revigorizada pelo descanso da noite, ao abrir às dez da manhã a audiência, o desembargador Octávio Rouvinho. — Alonso Ribelas, não é? Antigo regedor da freguesia. Proprietário, natural de Favais Queimados, casado? Sabe de que é acusado?
— Ao certo não sei, não senhor — respondeu Alonso Ribelas, um homem na força da vida, entroncado, guedelhudo, com grandes e nervosas mãos, as manápulas do agricultor pobre que tem levado a vida a virar a leiva, a fazer da pedra terra, olhos mansos de boi, dentuça sólida. Bem vestido para o tronco de nozelhas que era, uma gravata rubra, com pintinhas pretas, parecia uma facada aberta na pescoceira de bronze. Na estrutura e nos modos, tipo de Sancho Pança.
— É acusado de ser um dos cabeças de motim no Perímetro Florestal da Serra dos Milhafres. O réu foi um dos que deram fogo...?
— Nunca soube pegar duma arma.
— Não fez o serviço militar?
— Não senhor.
— Com esse corpanzil?
— Livrei-me.
— Remiu-se, quer dizer.
— Não, senhor, livrei-me na Junta. Bem-haja quem pôs a mão por mim, que foi o pai do senhor Dr. Labão aqui presente.
 Ao corregedor, Dr. José Ramos, pareceu aquele solto falar irreverência ou aleivosia contra o Estado, cominado de venialidade num dos seus órgãos, e acudiu em tom de desfastio:
— Passou-se isso no tempo da outra senhora...?
— Saiba V. Ex.a que fui casado uma só vez.
 Estalaram risos na assistência. O próprio senhor Presidente desanuviou o parecer carrancudo. Ao digno assessor porém o desconchavo soou falso, afigurando-se-lhe o homem zorato ou desbocado.
— O réu está-nos a sair um grande maloio...
— Saloio, não senhor. Sou serrano. Decorreu um pequeno silêncio durante o qual o corregedor se compenetrou, olhando em face, da atitude hílare do tribunal. E tentou um retruque prudente, cortando todo o campo ao contra-ataque:
— Afinal se o isentaram na Inspecção é porque algum achaque lhe descobriram. Nos miolos ou nos ouvidos. O réu ouve mal. Mas adiante: perguntava-lhe o meritíssimo Presidente se não foi dos que deram fogo...?
— Nem com fuzil e pederneira, que não sou fumador.
— Mas empunhava uma gancha... Uma faca de matar os porcos... Um estadulho... Viram-no equipado, bota de carda no pé...
— Por essa altura andava descalço, senhor juiz, que trazia um calo assanhado no calcanhar que não me consentiria calçar a botina.
— Não é o que rezam os autos. — Lendo: Marchava à frente do bando, soltando grandes urros e gritos de viva e de morra...
— É falso. Eu nem aos lobos posso berrar que se me abre o peito. Há tempos andava numa propriedade que tenho a um lugar chamado a Cheleira do Negro, veio uma alcateia e levou-me uma borrega mesmo diante dos olhos. Pois com a folha cheia de gente ninguém me ouviu berrar à coa! Tão sumida era a minha voz.
— Não é a impressão que dá, ouvindo-o falar.
— Em conversa, dizes tu, digo eu, posso passar um dia inteiro que não me canso.
— Mas que grande ratão! — Proferiu o corregedor José Ramos Coelho voltando-se para o Presidente, como quem diz: tome conta dele e meta-lhe bandarilhas de fogo.
 De facto o presidente, empertigando-se no cadeiral, fez um cite com a cabeça e lançou:
— Que política é a sua?
— Saiba Vossa Senhoria que eu de políticas não percebo patavina. Não leio gazetas.
— Já foi regedor.
— Já fui a pedido do pai do Sr. Dr. Labão que me livrou da mochila.
— Nunca votou?
— Ah, lá isso votei, mas agora cortaram-me o nome para não votar contra o Governo. Nós todos na serra estamos à uma contra o Governo.
— Mas sabe quem governa?
— Quem governa? Sei lá quem governa? Quem governa o mundo, sempre ouvi dizer que é o Raimundo; deve ser algum filho de má mãe, que as coisas vão de mal a pior.
— O réu está a ser acintoso. É parvo ou faz-se?
— Nasci com os meus sentidostodos. Lá em dizer que quem governa o mundo deve ser algum filho de má mãe, não volto atrás; que hei-de eu dizer, cada vez mais pobre, mais carregado de tributos, mais frígido do arrocho, a soga cada vez mais tesa?
— Não sabe o que diz e é o que lhe vale. À barra da direcção estão grandes homens. Se tivesse uma centelha do senso que neles abunda, não se achava no banco dos réus. Nunca os ouviu falar?
— Nunca ouvi eu outra coisa. Quer que lhe diga, são ladrações num outeiro. Eu quanto mais trabalho e mais poupo, mais miserável me vejo.
— Vamos ao que importa: confessa haver tomado parte no barulho da serra dos Milhafres?
—Confesso, quê? Eu não posso confessar ter feito aquilo que não fiz. Nunca eu veja a luz da salvação se minto.
— Mas foi na turbamulta?
— Fui até certa altura.
— Pois não devia ter ido. Um só passo que deu tornou-o cúmplice.
— Sempre queria ver quem nos roubava...
— Ou quem poderia contribuir para melhorar a sua sorte... Ora diga-me cá: Entraram muitas pessoas no rebuliço?
— Quantos nasceram na malfadada serra dos Milhafres e ouvem pelas noites de inverno uivar o lobo.
— Assistiu à sedição?
— A quê?
— À zaragata?
— Não senhor, a certa altura meu compadre Chico Barrelas disse-me: Voltamos para trás, Alonso. Esta gente corre à perdição. Fomo-nos meter na loja do tio Lêndeas a petiscar e a jogar as cartas.
— Foi um dos que andaram a pregar a guerra ao Governo?
— Não, senhor, ninguém pregou a guerra ao Governo. Nós todos somos gente de paz. Tomáramos nós que nos deixassem. O que se dizia de povo para povo é que íamos ficar desgraçados, sem coiro e camisa.
 O desembargador Rouvinho Estronca Briteiros abriu os braços, sinal de que instar aquele brutamontes, por jeito ou ronha arvorado em rei da madureza, era o mesmo que malhar em ferro frio. E logo o representante do Ministério Público pediu vénia para duas perguntas.
— O réu sabe ler e escrever?
— Gatafunho o meu nome e, lá de ler, arranho... Arranho.
— Que livros lê?
— O Mestre da Vida, o Seringador...
— Ê por conseguinte um homem mais responsável do que inculca a sua rudeza. Peço aos dignos juízes de tomarem na devida conta a minha observação. Quem disparou contra o engenheiro Lisuarte Streit da Fonseca? Não sabe quem foi?
 O réu abanou a cabeça.
— Não seria o réu? Ribelas deu um salto:
— Eu estava na loja do tio Lêndeas quando se deu o barulho.
— Não é o que se afirma nos autos. Mas pode apurar-se... Senhor Presidente, não haveria maneira de convocar para uma das próximas audiências este tal Lêndeas? Lêndeas quê?
— Lêndeas é a alcunha. O nome é Julião Barnabé, de Urrô do Anjo — esclareceu muito solícito o Dr. Labão, advogado dos dois réus dali naturais, pronunciados no processo.
— De sorte poderá ser convocado — obtemperou o Presidente, Dr. Octávio Rouvinho Estronca Briteiros. — Pertence à comarca de Bouça de Rei. Mas o seu depoimento afigura-se-me suficientemente preciso. Não declara que ignora ter conhecimento de que o réu estivesse na sua loja aquele dia?
— Ouviram-lhe dizer: um já pateou... — Tornou o representante do Ministério Público, voltando-se para o réu.
— Se me ouviram dizer: um já pateou, era negócio de chincalhão. Eu estava com uma sorte maluca. Um atrás de outro, abarbatei a meu compadre três quartilhos e um bolo. Como podia eu referir-me ao senhor engenheiro, se em Urrô só pela tardinha se veio a saber o que se passou na serra? Daí lavo as minhas mãos.
— Bem vejo que não procura outra coisa, lavar as mãos como Pilatos. Mas não há água que lhas lave...
— Não há dúvida, senhor, têm volteado muito estrume.
—...Sujas de sangue, digo eu. As testemunhas são formais. Senhor Presidente, insto pela presença do tal Julião Barnabé Lêndeas, se é possível, e por agora ponho ponto no interrogatório deste homem...
 (...)
Quando os Lobos Uivam
Em peças de teatro e obras de ficção (que não sejam fábulas ou histórias para crianças), os nomes de animais nos títulos surgem, quase sempre, em sentido figurado ou metafórico, isto é, remetendo para pessoas ou para as qualidades e atitudes dos humanos que são consideradas animalescas. Alguns exemplos: "As Vespas", do grego Aristófanes; "O Leopardo", do italiano Giuseppe TomasidiLampedusa; "O Lobo das Estepes", do alemão Hermann Hesse; "As Moscas", do francês Jean-Paul Sartre; "A Cotovia", do também francês Jean Anouilh; e "Quando os Lobos Uivam", do português Aquilino Ribeiro. Neste último caso, os lobos são as autoridades do regime salazarista que teimaram em levar por diante a florestação de pinhal nos baldios da Serra de Leomil (também chamada Serra da Nave, e que o autor designou na narrativa por Serra dos Milhafres), mesmo contra a vontade das populações locais.
Helena Matos, na edição da rubrica "O Mundo ao Ouvido" (Antena 1), em que incluiu uma gravação de uivos de lobos, e teceu algumas considerações sobre aqueles animais, menciona o romance "Quando os Lobos Uivam". A simples citação do título é gratuita, já que as personagens da obra aquiliniana são indivíduos da espécie homo sapiens e não os temidos canídeos selvagens. No entanto, podemos admitir a referência como benévola, e por duas ordens de razões: primeira – porque todos os pretextos são bons para sugerir a leitura da suculenta prosa de Aquilino Ribeiro (um escritor actualmente bastante esquecido, mas que é um dos maiores vultos da Literatura Portuguesa do século XX e de sempre); segunda – porque na região da Beira Alta onde se desenrola a acção do romance havia alcateias, pelo menos até ao momento em que foi escrito e originalmente publicado (1958). Terá sido essa a circunstância que inspirou o título ao escritor e que também deu o mote ao jornalista João Paulo Guerra para incluir uivos de lobos no início da reportagem que, em 1995 no âmbito da série "Viagens com Livros" (TSF), realizou na zona dos baldios que foram alvo da prepotência estatal, e cujo registo áudio aproveitamos para resgatar, com a devida vénia ao autor. Uma boa memória da rádio e um notável exemplo de serviço público cultural!
Os lobos, esses foram sendo dizimados, a ponto de desaparecerem das Terras do Demo (como o próprio Aquilino as designou), e se hoje ainda existem em algumas regiões mais setentrionais do território nacional (designadamente no Parque Natural de Montesinho) muito o devemos ao Grupo Lobo, presidido pelo Prof. Francisco Fonseca, que não se tem poupado a esforços em prol do lobo ibérico. A propósito, porque não aproveitou Helena Matos a soberana oportunidade que teve para fazer alusão àquela honorável entidade e ao meritório trabalho que tem desenvolvido no nosso país? Uma omissão absolutamente imperdoável, ademais tratando-se de uma jornalista e suposta investigadora!
O apontamento também deixou muito a desejar na opção que foi feita para a ilustração musical. Em vez de trazer o massificado Michael Jackson e o seu "Thriller", que toda a gente conhece, Helena Matos podia ter subido a fasquia e dado a ouvir a sinfonia de uivos que surge na parte final do tema "Lobos, Raposas e Coiotes", de Maria João e Mário Laginha, ou, ainda melhor, o tema "A Lua e os Lobos", de Rão Kyao, em que o músico imita na flauta precisamente os uivos dos lobos. Isso, sim, era prestar bom serviço público. Da rádio que os contribuintes financiam espera-se algo mais do que banalidades e futilidades que nada acrescentam ao universo de quem ouve.
Como os leitores do blogue "A Nossa Radio" merecem o melhor, aqui se faculta a audição integral das duas peças musicais atrás referidas.

Edição Especial, comemorativa do 50.º aniversário da 1.ª edição.
Prefácio inédito de Álvaro Cunhal
20 Ilustrações de João Abel Manta
«O romance teve um sucesso fulminante. Quando a polícia correu a apreendê-lo, dos 9000 exemplares da primeira tiragem restavam apenas 32 nas livrarias. Os fascistas não se contentaram porém com impedir nova edição. Aquilino foi processado e enviado ao mesmo "odioso" Tribunal Plenário, que corajosamente desmascarara no seu romance.»

Aquilino Ribeiro
 1885 - Nasce no Carregal (concelho de Sernancelhe) em 13 de Setembro, filho natural mais novo de Joaquim Francisco Ribeiro e de Mariana do Rosário Gomes, como sua irmã Maria do Rosário e seus irmãos Melchior e Joaquim. É baptizado na Igreja Matriz dos Alhais (Concelho de Vila Nova de Paiva).
1895 - Frequentava o Colégio da Lapa. Faz exame de instrução primária.
1900 - Entra no Colégio de Lamego, em Lamego. Estuda Filosofia em Viseu. Entra depois no Seminário de Beja, obedecendo a um desejo da sua mãe que queria fazê-lo sacerdote.
1903 - Por falta de vocação, abandona os seus estudos durante a primeira parte do Curso Teológico no Seminário de Beja e fixa-se em Lisboa.
1904 - Regressa a Soutosa (Concelho de Moimenta da Beira)
1906 - Vai para Lisboa. Colabora no jornal republicano A Vanguarda.
1907 - Em parceria com José Ferreira da Silva escreve A Filha do Jardineiro, obra de ficção de propaganda republicana e de crítica às figuras do regime.
1907 - Entra para a Loja Montanha do Grande Oriente Lusitano, em Lisboa, a convite de Luz de Almeida.
1907 - É preso por ser anarquista na sequência de uma explosão no seu quarto na Rua do Carrião, a 28 de Novembro, em Lisboa, na qual morre um carbonário.
1908 - Evade-se da prisão em 12 de Janeiro e durante a clandestinidade em Lisboa mantém os contactos com os regicidas, refugiado numa casa de Meira e Sousa, na Rua Nova do Almada, em frente da Boa Hora.
1910 - Estuda na Faculdade de Letras da Sorbonne. Vem a Portugal após o 5 de Outubro e regressa a Paris, onde conhecera Grete Tiedemann.
1912 - Reside alguns meses na Alemanha.
1913 - Casa com Grete Tiedemann e regressa a Paris. Publica o livro Jardim das Tormentas.
1914 - Nasce o primeiro filho, Aníbal Aquilino FritzTiedemann Ribeiro. Declarada a Primeira Guerra Mundial, Aquilino regressa a Portugal, sem ter terminado a licenciatura.
1915 - É colocado como professor no Liceu Camões, onde ficará durante três anos.
1918 - Publica A Via Sinuosa.
1919 - Entra para a Biblioteca Nacional de Portugal, a convite de Raul Proença. Convive com o chamado grupo da Biblioteca onde pontificam Jaime Cortesão e Raul Proença. Publica Terras do Demo, e a primeira versão do seu conto "Valeroso Milagre" na Revista Atlântida (nº 32), cuja trama se passa no Mosteiro de Nossa Senhora da Assunção de Tabosa, situado na sua freguesia natal, aquando das invasões francesas. É na Biblioteca Nacional que Aquilino Ribeiro é procurado por pessoas de suas relações para lhe mostrarem uma Acta do Regicídio.
1921 - Integra a direcção da revista Seara Nova.
1922 - Publica O Malhadinhas integrado no livro Estrada de Santiago, o qual inclui também uma nova versão do "Valeroso Milagre".
1927 - Entra na revolta de 7 de Fevereiro, em Lisboa. Exila-se em Paris. No fim do ano regressa a Portugal, clandestinamente. Morre a primeira mulher.
1928 - Entra na revolta de Pinhel. Encarcerado no presídio de Fontelo (Viseu), evade-se e volta a Paris.
1929 - Casa em Paris com Jerónima Dantas Machado, filha de Bernardino Machado.
Em Lisboa é julgado à revelia em Tribunal Militar, e condenado.
1930 - Nasce-lhe o segundo filho, Aquilino Ribeiro Machado que viria a ser o 60.º Presidente da Câmara Municipal de Lisboa - (1977-1979).
1931 - Vai viver para a Galiza.
1932 - Volta a Portugal clandestinamente.
1933 - Recebe o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa, pelo seu livro As Três Mulheres de Sansão.
1935 - É eleito sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa.
1946 - Publica Aldeia, Terra, Gente e Bichos.
1951 - Publica Geografia Sentimental.
1952 - Faz uma viagem ao Brasil onde é homenageado por escritores e artistas, na Academia Brasileira de Letras.
1956 - É fundador e presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores.
1957 - Publica A Casa Grande de Romarigães.
1958 - Publica Quando os Lobos Uivam. É nomeado sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa. É militante da candidatura de Humberto Delgado à presidência da República.
1960 - É proposto para o Prémio Nobel da Literatura por Francisco Vieira de Almeida, proposta subscrita por José Cardoso Pires, David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, José Gomes Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Mário Soares, Vitorino Nemésio, Abel Manta, Alves Redol, Luísa Dacosta, Vergílio Ferreira, entre muitos outros.
1961 - Vai a Londres e Paris.
1962 - Nasce-lhe a primeira neta, Mariana, a quem dedica O Livro da Marianinha.
1963 - É homenageado em várias cidades do país por ocasião dos cinquenta anos de vida literária. Morre no dia 27 de Maio. Nessa mesma hora, a Censura comunicava aos jornais não ser mais permitido falar das homenagens que lhe estavam a ser prestadas. É sepultado no Cemitério dos Prazeres.
1974 - É publicado o livro de memórias Um Escritor Confessa-se. Como escreve José Gomes Ferreira no prefácio Aquilino sabe mentir a verdade.
1980 - Vila de Oeiras. Um livro sobre a vila de Oeiras
1982 - A 14 de Abril é agraciado a título póstumo com o grau de Comendador da Ordem da Liberdade1
2007 - A Assembleia da República decide homenagear a sua memória e conceder aos seus restos mortais as honras de Panteão Nacional. A cerimónia de trasladação para a Igreja de Santa Engrácia (Lisboa) ocorreu a 19 de Setembro desse mesmo ano, não obstante objecções por parte de alguns grupos de cidadãos devido ao seu suposto envolvimento no Regicídio de 19082.
A linguagem de Aquilino Ribeiro caracteriza-se fundamentalmente por uma excepcional riqueza lexicológica e pelo uso de construções frásicas de raiz popular, cheias de provincianismos.
Aquilino foi sobretudo um estilista e, por isso, a sua linguagem vernácula é arejada, frequentemente condimentada nos diálogos com expressões entre grotescas e satíricas.
Apesar de ter optado por uma literatura de tradição, Aquilino procurou ao longo da sua vida uma renovação contínua de temas e processos, tornando-se assim muito difícil sistematizar a temática da sua vastíssima obra.
Num número considerável de obras, Aquilino reflecte, ainda que distorcidas pela imaginação, cenas da sua vida: o convívio com as gentes do campo, a educação ministrada pelos sacerdotes, as conspirações políticas, as fugas rocambolescas, os exílios.
Até 1932], ano em que fixa residência na Cruz Quebrada, todos os ambientes, contextos e personagens que Aquilino cria, remetem para a sua querida Beira natal. O Malhadinhas, Andam Faunos pelos Bosques e Terras do Demo constituem o melhor exemplo desta situação. De facto, ver-nos-emos, com uma extrema facilidade, envolvidos com as suas personagens beirãs, os seus costumes, tradições e modos de falar típico. Aquilino Ribeiro como escritor não pode ser enquadrado em nenhuma das escolas e tendências da sua época.
Tem colaboração na II série da revista Alma nova 4 (1915-1918) começada a publicar em Faro em 1914, na revista luso-brasileira Atlantida5 (1915-1920), na Ilustração 6 (1926-), no jornal Miau!7 (1916) e na Revista dos Centenários 8 publicada por ocasião da Exposição do Mundo Português.
Biografia Luís de Camões, Fabuloso e Verdadeiro, um ensaio em dois volumes (1950)
O Romance de Camilo - Obra em 3 volumes - a mais importante biografia de Camilo Castelo Branco já escrita e publicada (1956)
Contos A Filha do Jardineiro (1907)
Jardim das Tormentas (1913)
Valeroso Milagre (1919)
Estrada de Santiago, onde se inclui o Malhadinhas (1922)
Quando ao Gavião Cai a Pena (1935)
Sonhos de uma Noite de Natal (1934)
Memórias Cinco Réis de Gente (1948)
Um Escritor Confessa-se (1974)
Obras para a infância a juventude Romance da Raposa (1924)
Arca de Noé I, II e III (todos de 1936)
O Livro de Marianinha (lengalengas e toadilhas em prosa rimada) (1967)
Romances e novelasA Via Sinuosa (1918)
Terras do Demo (1919)
Filhas da Babilônia (1920)
Andam Faunos pelos Bosques (1926)
O Homem Que Matou o Diabo (1930)
A Batalha sem Fim (1932)
As Três Mulheres de Sansão (1932)
Maria Benigna (1933)
Aventura Maravilhosa (1936)
S. Bonaboião, Anacoreta e Mártir (1937)
Mónica (1939)
O Servo de Deus e a Casa Roubada (1941)
Volfrâmio (1943)
Lápides Partidas (1945)
Caminhos Errados (1947)
O Arcanjo Negro (1947)
A Casa Grande de Romarigães (1957)
Quando os Lobos Uivam (1958)
Arcas Encoiradas (1962)
Casa do Escorpião (1963)
História Os avós dos nossos avós (1943)
Príncipes de Portugal. Suas grandezas e misérias" (1952)


Recensão Crítica
Capa
Nome do autor que procede à recensão (nome do aluno e turma).
Identificação complete da obra (autor(es), data, título e subtítulo, local de edição, editora e número de páginas).
Data da apresentação do trabalho.
Local de apresentação.
Leitura da Obra
Descrição sumária das diversas componentes ou partes (textuais e/ou pós-textuais) da obra mais susceptíveis de serem objecto de estudo crítico.
Apreciação da:
Estrutura geral ou organização da obra.
Importância ou interesse geral da obra, destacando a questão ou questões fundamentais ali tratadas, bem como os métodos e técnicas de investigação, para além dos principais conceitos.
Posição retratada nas ideias do autor relativamente a escolas ou correntes de pensamento.
Disposição de cada uma das partes da obra em termos de relação e coerência expositivas, tendo em conta o tratamento da realidade, que constituem no seu todo o tema de trabalho.
Linguagem (quanto a objectividade e clareza) e do estilo discursivo usado pelo autor da obra.

“Quando os Lobos Uivam"
«O autor intitula este livro de romance, mas com mais propriedade deveria chamar-lhe de romance panfletário, porque todo ele foi arquitectado para fazer um odioso ataque à actual situação política.
Escrito numa prosa viril, classifica o governo de "piratas" e descreve várias Autoridades, Funcionários, Polícia, Guarda Republicana e Tribunais em termos indignos e insultuosos.
Um interrogatório num posto da G.N.R. e uma audiência dum Tribunal Plenário, são focados de uma forma infamantes.
São desnecessárias mais citações, porque basta folhear o livro, encontra-se logo matéria censurável em profusão.
É evidente que, se o original tivesse sido submetido a censura prévia, não teria sido autorizado, porque é, talvez, a obra de maior ataque político que ultimamente tenho lido.
Sucede, porém, estou disso certo, que já devem ter sido vendidos muitas centenas de exemplares, e muitos outros também, já devem ter passado a fronteira, por isso, deixo ao esclarecido critério de V. Exa., decidir se nesta altura, será de boa política mandar apreender o livro, fazendo-lhe (...)»
Com base no relatório, lê-se, foram tomas das seguintes decisões:
« 1) Não autorizada a reedição;
   2) Não permitidas críticas em imprensa;
   3) Apreender os poucos exemplares que, possivelmente, existam (...)»
Despachado assinado pelo censor.

Corria o ano de 1958 quando Aquilino Ribeiro publicou o seu livro-choque "QUANDO OS LOBOS UIVAM". "Aquilino gostava das verdades duras como punhos".
Esta semana, o blog dos forninhenses publicou também um post-choque "OS FILHOS DO CENTRO" que, certamente, desconheciam que no seio de uma população iletrada e ignorante, há gente capaz de se não calar, apesar do preço a pagar.
O enredo do livro-choque de Aquilino Ribeiro,retrata a época do Estado Novo (a história tem lugar nos anos 40 do século XX). Nos nossos dias, Portugal vive num regime bem diferente, onde a liberdade de expressão faz parte dos direitos democráticos. Então tal como uma alcateia que sente indefeso o rebanho, surgem de novo na ribalta, vozes/nomes que, se tivessem alguma vergonha, deveriam permanecer no anonimato, mas não, descem da montanha em cujo cimo se refugiam, espreitando a oportunidade do retorno...
Em pleno Inverno, em que as terras de cultivo não estão ocupadas com as sementeiras: assistimos a uma quase transumância (deslocações de rebanhos para onde havia mais pastos - passava pela serra de Forninhos antigamente duas vezes no ano).
Em Forninhos, já se sentem os uivos dos lobos predadores, sedentos de carne. Andam sobejos - quer dizer ousados, atrevidos - pois resfastelam-se com os pratos fartos, convencidos de que poderão voltar ao repasto, sempre que lhes apetecer. É vê-los aos domingos, de pêlo luzidio e dentes afiados, porque é sempre assim quando se ouve o uivar dos lobos.

TRANSCRIÇÃO do Relatório/Censura N.º 6282 (7 de Fevereiro) relativo a "QUANDO OS LOBOS UIVAM" DE AQUILINO RIBEIRO,
"Quando os Lobos Uivam"
«O autor intitula este livro de romance, mas com mais propriedade deveria chamar-lhe de romance panfletário, porque todo ele foi arquitectado para fazer um odioso ataque à actual situação política.
Escrito numa prosa viril, classifica o governo de "piratas" e descreve várias Autoridades, Funcionários, Polícia, Guarda Republicana e Tribunais em termos indignos e insultuosos.
Um interrogatório num posto da G.N.R. e uma audiência dum Tribunal Plenário, são focados de uma forma infamantes.
São desnecessárias mais citações, porque basta folhear o livro, encontra-se logo matéria censurável em profusão.
É evidente que, se o original tivesse sido submetido a censura prévia, não teria sido autorizado, porque é, talvez, a obra de maior ataque político que ultimamente tenho lido.
Sucede, porém, estou disso certo, que já devem ter sido vendidos muitas centenas de exemplares, e muitos outros também, já devem ter passado a fronteira, por isso, deixo ao esclarecido critério de V.Exa., decidir se nesta altura, será de boa política mandar apreender o livro, fazendo-lhe (...)».
Com base no Relatório, lê-se, foram tomadas as seguintes decisões:
«1) Não autorizada a reedição;
2) Não permitidas críticas em imprensa;
3) Apreender os poucos exemplares que, possivelmente, existam (...)».
Despacho assinado pelo censor.
-/-
Apesar das decisões acima, não devem ter apreendido muitos porque há pelo menos mais de 500 primeiras edições assinadas pelo autor e a venda pela Bertrand esgotou quase no fim de 1958. Dos exemplares editados restavam menos de 100 a 31 de Dezembro de 1958 em armazém. Aquilino sempre vendeu bem no Natal, excepto 1996 e seguintes.

Quando os Lobos Uivam – Aquilino Ribeiro
Publicado em 1958, “Quando os Lobos Uivam” é talvez o romance mais conhecido de Aquilino Ribeiro e um dos últimos que escreveu. Já anteriormente “marcado” pelo regime salazarista, esta obra valeu-lhe um mandato de captura e a apreensão de todos os exemplares editados.
E o que faz deste romance algo “digno” de censura e o seu autor “persona non grata” para o regime?
Serra dos Milhafres, finais dos anos 40, o Estado Novo resolve impor aos beirões uma nove lei: Os terrenos baldios que sempre tinham sido utilizados para bem comunitário e onde essa comunidade retirava parte vital do seu sustento, seriam agora “expropriados” e esses terrenos utilizados para plantar pinheiros. Assim, sem mais nem menos, o Estado chega e diz que, a partir daquele momento, acabou.
Implanta-se um clima de medo nas gentes e é esse clima que Manuel Louvadeus, que havia emigrado para o Brasil anos antes, vem encontrar quando regressa à aldeia.
Homem vivido e culto devido, segundo o próprio, aos muitos livros que por lá havia lido, Manuel tem uma visão para os dois lados e um sentido de justiça que rapidamente o fazem cair nas boas graças das gentes do povo.
Toma então parte da sua gente, homens honestos e humildes que trabalham de Sol a Sol mas que não deixam de viver em condições miseráveis.
A revolta acaba por suceder e entre mortos e feridos tudo acaba numa caçada aos homens por parte da polícia que leva muitos homens à prisão acusados de serem instigadores e cérebros da revolta. O Estado mostra então todo o seu esplendoroso poder.
Obviamente que mais de 50 anos após a sua publicação muitos não entendem o porquê da censura, no entanto não é necessário grandes pesquisas para entender, até porque Aquilino Ribeiro é directo, não se refugia em metáforas ou alegorias.
Aqui representado está a saga dos beirões na defesa dos terrenos baldios perante a ditadura do Estado Novo.
Representado também, ou se quiserem, brilhantemente retratado, a miséria em que vivia o povo beirão que é apenas a mostra da maioria da população portuguesa da altura, assim como a sua ignorância que, sobretudo, grassava no interior de Portugal.
É normal que o romance tivesse enfurecido o regime. Aquilino Ribeiro é demolidor na forma como denuncia a natureza, prepotência e arrogância do Estado, mas vai mais longe, descreve o funcionamento dos Tribunais Plenários fascistas e a ligação do sistema judicial às classes dominantes do país. Estes tribunais que funcionaram de 1945 a 24 Abril 1974, foram um dos mais tenebrosos mecanismos repressivos. Aquilino denuncia a podridão desse mecanismo e da cumplicidade entre magistrados e polícia política.
Algo que me fascinou em Aquilino Ribeiro foi a sua escrita. Poética a forma como constrói a narrativa, utilizando expressões beirãs (confesso que muitas dessas expressões me eram totalmente desconhecidas) que nos situam temporalmente em simultâneo com uma descrição sublime das gentes, transmitindo-nos a sua humildade e a sua natureza que, no fundo, é a natureza, a raiz do povo português.
Enlevante nas palavras, na graça e ironia que coloca, na arte do saber escrever.
Um livro belíssimo, uma pérola da literatura portuguesa, um verdadeiro mestre da arte da escrita.
Compreendo agora porque José Saramago afirmou, quando ganhou o Prémio Nobel da Literatura, que se Aquilino Ribeiro estivesse vivo seria ele a receber o Nobel.

Quando os lobos uivam...
Como tenho defendido há já alguns anos, os parques eólicos transformaram-se num negócio que de ambiente já têm pouco. Daí que as contestações populares começam a surgir, como esta aqui em Sortelha (vd. esta notícia), onde até já intimidações aos que pretendem defender o património natural e construído. Será que as ventoinhas se estão a tornar no «eucalipto» do século XXI?


Quando os lobos uivam
Fala sobre as nossas antigas gentes - os serranos, do confronto do quotidiano com as desenquadradas políticas governativas de território, do poderio arrogante sobre o povo, de honra, até de crimes de honra.
Mas o que mais me apelou foi a linguagem, aquelas expressões que só se escutam hoje da boca dos poucos velhos aldeões.
Admito que o nome de Aquilino Ribeiro (após uma má experiência) me fez tremer, que o meu cérebro a cada frase emperrava como um motor cheio de areia e o seu arranque soava a uma mudança mal metida, que tive a companhia do meu mui velho mas fiel "Dicionário de Português - Este é o dicionário que há-de servir sempre e bem" da Porto Editora - 4ª ed., s.d..
Mas assim que desbloqueou, foi um tirinho até ao fim.
Poderá quiçá ser saudosista aos olhos de hoje ou considerado um cliché o que irei gritar por aí perante o papão de um nome sonante, mas este livro, senhores, este livro é uma delícia!
"Sei que Vosselências ignoram-no, mas eu posso garantir-lhes: o serrano, que os senhores se propõem imolar nas aras de um pretendido progresso, é um misto de desespero, orgulho, mansidão, meio lobo, meio carneiro, formado desta vegetação rastiça e humilde, da paciência imensurável que representa uma rês a encher a barriga percorrendo léguas, aqui desponta um broto, ali apanha uma paveia seca, e de tantas outras coisas que se veêm, calcam e respiram, sem se dar conta."


Aquilino Ribeiro 50 anos depois
Os autores – os melhores, diga-se – fazem eco dentro de nós, deixam rasto. Alguns ressoam na nossa memória e acompanham-nos pela vida fora.
No meu caso, Aquilino é um deles. Dizer que comecei a interessar-me por ele em virtude da aura política que lhe veio do processo movido pelo Estado Novo, quando da publicação de Quando os lobos uivam, talvez seja exagero. É sabido como uma perseguição da PIDE salazarista dava ânimo a qualquer livro, mas Aquilino não precisava disso. A minha sedução pela sua obra é anterior.
 Quando comecei a ganhar gosto pelos livros, Aquilino era então um dos maiores nomes da nossa literatura, se não mesmo o maior, e daí a obrigação de o ler, o dever de o apreciar e o alegre esforço para alcançar esse nível e, consequentemente, essa satisfação, esse puro prazer. Aquilino exigia (e exige) esforço; mas qual o grande autor (o grande amor) que o não exige?
 Há quem o acuse de falta de profundidade psicológica, de uma trama pouco densa e estimulante, de falta de dramaticidade nos seus romances, e até de um formalismo já algo tardio, e, portanto, serôdio. Talvez seja verdade. Não esquecer, porém, outros da mesma época, de grande qualidade, como Tomaz de Figueiredo, João de Araújo Correia, por exemplo, onde o que se manifesta é esse gosto da forma a dar a ler uma realidade social e cultural muito forte e nítida, que se lhes impunha e que eles procuravam traduzir e recriar.
 É pois o tipo de argumento que, face à obra em causa, sempre me pareceu algo deslocado, difícil de integrar na realidade sistémica que, sobretudo no caso de Aquilino, o seu estilo impunha. Porque ele não era fácil, hoje talvez ainda menos, mas o sabor da sua prosa valia (e vale) bem o trabalho de o ler, compensando-nos largamente de tudo.
 Não era de pressas. A sua acção pausada, as suas lentas e gongóricas descrições, os seus largos excursos eruditos ou evocativos, as suas sintaxes envolventes e de frases longas e, sobretudo, o seu léxico rico, vastíssimo, inesperado, inventivo, amiúde extravasando o melhor dicionário, entre o popular, o regionalista e o vernáculo, nunca esquecendo os clássicos (traduzindo, vertendo), nem a latinidade, a sacralidade, a santanidade, e até a liturgia, com sua parafernália de ternos e expressões, numa mistura muito própria que a sua filigrana estilística única e inimitável exigia.
 Não era fácil, não. Mas deleitava. Em Aquilino, como disse, o enredo, interessando talvez menos, não é, todavia o livro sem história à moda de alguns atuais, sobretudo da área do já antigo “novo romance”, ou do desconstrutivismo posterior. Não, o enredo existe e prende, mas é sempre submetido ao seu modo de contar, e este à exigência de uma sintaxe elaborada, frequentemente retorcida, ao seu vocabulário que não perde a oportunidade de pôr ao sol termos esquecidos, de endireitar outros, empenados pelo mau uso, de criar muitos, ali mesmo, para a necessidade do momento, e sempre sob a aba inspiradora de sabor oitocentista e setecentista, que as frases e as palavras evocam, e de uma ancestralidade que ressoa nas nossas reminiscências dir-se-ia que platónicas, se não fosse quase escandaloso dizê-lo hoje.
 É pois uma escrita sempre subordinada ao classicismo da construção, à riqueza e originalidade do vocabulário, ao gosto de uma descrição que não permite uma prosa dinâmica, e menos ainda desestruturada e desconstruída que a literatura contemporânea nos veio propor.
 Aquilino Ribeiro é talvez o nosso último grande clássico. Mas, passados cinquenta anos sobre a sua morte, e depois de tanta experiência, de tantos experimentalismos, artísticos e outros, ainda bem que o foi, e valha-nos isso! É pois um autor para ler devagar, que não se casa bem com a diluição atual duma certa identidade que foi tão nossa, nem com a desestruturação cultural a que se assiste, nem com muitas das regras gramaticais que a moderna literatura começou a praticar, ou a despraticar, nem com a aridez vocabular corrente, nem com a pesporrência da literatura televisiva dominante, nem com a incultura transformada em cultura, nem com o palavrório ininterrupto, embora construído com meia dúzia de palavras. Menos ainda com a moderna vertigem substitutiva dos estímulos, que tira o sabor à vida, e ainda menos com uma era de electrónicas em que tudo desaparece no momento em que aparece, etc. etc.
 Nesta sentido Aquilino é hoje uma força conta a corrente, e, portanto, uma rocha a que nos podemos agarrar. Em suma, um autor com um valor educativo hoje altamente acrescentado.
 É, por outro lado, a imagem dum Portugal que existiu, e de que pouco ou nada já resta: rural, pobre, política e economicamente injusto, mas activo, habitado e animado, demograficamente vivo, humano e humilde, mas teso, finório e boçal, afável e velhaco, troca-tintas e honrado. Disso, desta mistura donde todos descendemos, Aquilino nos dá testemunhos através de tipos humanos inigualáveis, em inúmeras histórias e situações pitorescas, cruéis, hilariantes, traiçoeiras, amenas…
Mas o melhor de Aquilino está no gosto de descrever as paisagens beirãs, as aldeias, as festas, os trabalhos, as pessoas, os bichos; o amor na procura das raízes vocabulares e sintácticas, no trabalho da língua, de sentirmos o formão e a goiva da sua marcenaria fina afeiçoando uma madeira dura e macia, que deixa, depois de bem trabalhada, obra feita. Para durar. E perfeita.
 Aquilino Ribeiro é sobretudo um prosador, a gente sente-o a saborear o que escreve e a amar o que descreve e conta. E ao lê-lo, assim como mergulhamos numa portugalidade antiga que nos moldou os ossos e os sentimentos, para o melhor e o pior, e de que andamos esquecidos, ou a tentar fugir, cheios de prosápia, também usufruirmos de uma espécie de reorganização interior, uma reformulação de alma que todo o sentimento estético nos provoca e engrandece.
 A grande literatura é essa forma incessante de nos reorganizarmos, de acrescentarmos ao que éramos uma outra nova e mais rica forma de ser, de sentir por nós dentro esse oxigénio que a funda enxada, cavando, fortalece e revigora.
 Ler Aquilino é mergulhar nesse Portugal desaparecido, rural, duro, resistente, devoto e anticlerical, macio e cruel, atrasado e finório, que era o mundo que foi o dos nossos pais, avós e tetravós. Para os mais novos é um modo de ter notícia desse tempo perdido, de conhecer os sentimentos, as vozes, os olhares, os valores estéticos e morais de que era feito, e, ao mesmo tempo, ter a experiência de um País profundo, ancestral, resultante da acumulação de muitos sedimentos de gentes, hábitos, culturas, lugares, ocorrências, e que é, desta terra pobre e castigada, muito da sua melhor herança.
 Se todos os portugueses, hoje, pudessem ler, gostar e interpretar Aquilino Ribeiro, pelo que significaria de amor à Pátria, de conhecimento dela e de sentido crítico para os seus defeitos e qualidades, que grande, que incomparável mudança nas mentalidades não sofreríamos todos.

Aquilino Ribeiro em «quando os lobos uivam»
O solo era negro e sujava as mãos. A gente boa sumia-se na emigração. O que sobrenadava era o rebotalho. Pudera, tanto o lavradorzinho da arada como o cabaneiro viviam frigidos com tributos, mais escravos que os negros. Davam de comer à cáfila toda. Sustentavam o fidalgo, o ministro, o doutor, o escrivão, o padre; matavam a fome ao pedinte, ao citote, ao pilho; desfaziam-se em maná, e ficavam nus e viviam nus que nem castanheiros depois de abanados.



Mensagem dos presos políticos do Forte de Peniche a Aquilino Ribeiro
«Senhor Aquilino Ribeiro
Neste ano de 1963, em que perfaz meio século de labor literário, queira escutar mais esta voz que se vem juntar ao coro amigo que o saúda – voz que chega do fundo duma prisão, falando pela boca de mais de uma centena de portugueses encarcerados, há longos anos, pelo único crime de muito amarem a liberdade do seu povo, o progresso da sua Pátria, a Paz no mundo.
Outros dirão dos méritos do escritor, da pujança do seu estilo, da verdade das personagens que criou, da seiva espessa que lhe sobe das raízes mergulhadas no povo e na terra, e vai florescer em fecunda alegria de viver nas páginas dos eus livros, Outros dirão ainda do acordo exemplar entre o homem e o artista, e da íntima comunhão da sua vida com as vicissitudes da vida nacional nos últimos 50 anos. Outros dirão – e nós estamos também entre os que celebram a glória do escritor, sem dúvida uma das figuras cimeiras da nossa história literária.
Mas outra é a especial saudação que o nosso coração e o nosso pensamento nos ditam e aqui lhe trazemos.
Queremos saudar o cidadão corajoso e íntegro, que não se vendeu nem dobrou aos poderosos e aos tiranos, que denunciou com desassombro a torpe mentira dos tribunais políticos e a ferocidade da repressão policial, que exaltou a revolta popular, e que soube fazer frente, com o cajado firme da sua pena de escritor, aos lobos fascistas que assolam os povoados da nossa terra.
Queremos saudar o intelectual generoso e lúcido, que tantas vezes soube erguer alto a sua voz em defesa da paz, contra o furor dos fautores da guerra. Queremos saudar o homem viril e fraterno, pela sua inabalável confiança nas forças populares e no destino dos homens, nas suas conquistas científicas e no seu progresso moral, e confiança que o leva, em meio da noite fascista e ao cabo de setenta anos duma vida tantas vezes dura, a saber ainda olhar em frente, olhar para o sol, e apontar aos companheiros a visão estimulante do futuro radioso da humanidade.
Senhor Aquilino Ribeiro: Longa vida lhe desejamos! Para que possa prosseguir por muitos anos ainda no seu belo trabalho criador. Para que a sua figura altiva de lutador se possa manter presente na frente de combate pela Democracia, a Justiça e a Paz.
E para que, sobretudo, em breve possa ver o sol esplendoroso da Liberdade brilhar de novo e para sempre sobre o nosso querido Portugal.»
Os presos políticos do Forte de Peniche


Quando os Lobos Uivam. Aquilino Ribeiro
“Tornou a olhar para a aldraba. Bato, não bato, que é a que me prende os dedos?, ouviu uma voz… A voz de Filomena, e estacou. Era lua cheia, pelos fins de Março Marçagão, na altura do ano em que os dias são iguais às noites, e pelo tinir dos garfos e pausas intermitentes assentou para consigo que estavam a cear. Miga bem a tigela!, dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. Miga bem, Jaime, que só tens caldo! Depois as vozes calaram-se. Ressoam assim os córregos quando descem das serras e tropeçam nos seixos solevantados. Mas ele que tinha que especular?! Decidiu-se. Bateu uma... duas... três vezes, e postou-se, parado, à escuta, como os mendigos de pois de rezarem o padre-nosso. Mentalmente pôs-se a orçar o tempo que ia passando pelo tempo que levariam a apreender o apelo, a erguer-se da esteira, a poisar a malga, e a abrir-lhe a porta. Demoravam-se... Pareceram-lhe delongas a mais. Não teriam ouvido! Considerando afinal que as pancadas, percutidas frouxas e irresolutas, não se tivessem imposto à atenção, martelou rijo e afoito. Agora sim, uma voz juvenil, abelhuda, destas que no cortiço estão sempre prontas a acudir ao rumor, ergueu-se: Quem está lá? Gente…» In Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, Libraria Bertrand, Lisboa, 1958, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.




Evocação de Aquilino Ribeiro - Quando os Lobos Uivam
"A nação é de todos. A nação tem de ser igual para todos. Se não é igual para todos, é que os dirigentes, que se chamam Estado, se tornaram quadrilha. Se não presta ouvido ao que eu penso e não me deixa pensar como quero, se não deixa liberdade aos meus actos, desde que não prejudiquem o vizinho, tornou-se cárcere."
Triste, senão mesmo trágico, é reconhecer no que Portugal hoje se tornou: numa "quadrilha" mais ou menos institucionalizada que capturou alguns centros de poder e decisão nevrálgicos do aparelho de Estado. E que, para regressar à normalidade da liberdade e da legalidade da vida democrática - tenha de se apoiar na acção-denúncia de um sindicalista (da AT) para interromper o curso gestionário desse "golpe de Estado fiscal" que atingia mortalmente a esmagadora maioria dos portugueses, em benefício dumas dezenas de VIPs, ricos e influentes - cujo papel consistia em financiar a campanha política do XIX Governo (in)Constitucional e gerar um clima global favorável à manutenção do passismo, cujas metástases escavacam o que resta da economia e da sociedade em Portugal.

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Já não é novidade que… existe uma nova «moda literária»: a revisitação de clássicos da literatura mundial e a incorporação – ou o «enxerto» – neles de elementos característicos da ficção científica e do fantástico. A «mania» começou no ano passado com a publicação de «PrideandPrejudiceand Zombies» (que a Gailivro vai traduzir e lançar este ano em Portugal), e tem continuação em «SenseandSensibilityandSeaMonsters» e «AndroidKarenina» (este segundo a obra de Lev Tolstoy); num outro registo (policial, «thriller», e não FC & F), Jane Austen voltou a ser alvo de uma «modernização» em «MurderatMansfieldPark».
Como classificar esta tendência? Adulteração anódina? Homenagem hilariante? Variação vanguardista? O certo é que a «epidemia» já «contagiou» pelo menos uma pessoa em Portugal: Pedro Calvete, que decidiu colocar «qualquer coisa gótica na literatura romântica portuguesa», e o resultado foi «Viagens na Minha Terra com Vampiros». Estará Almeida Garrett a virar-se na sepultura? E o que se seguirá? «A Queda de um Anjo e de um Demónio» (Camilo Castelo Branco)? «O Cibercrime do Padre Amaro» (Eça de Queiroz)? «Quando os Lobisomens Uivam» (Aquilino Ribeiro)? «Charneca em Flor Carnívora» (Florbela Espanca)? «Manhã Submersa por Extra-Terrestres» (Vergílio Ferreira)?
QUANDO OS LOBOS UIVAM...
É nestes dias de Primavera, que mais pressinto o Outono da nossa existência. É por estes caminhos e lugarejos que vou percorrendo neste meu cirandar, que o perfume dos campos, adormecidos na solidão de léguas sem fim, cantam a Elegia de um Tempo de reconciliação, depois das agruras de um Inverno carregado, que nos corta a essência dos sonhos desfeitos. Mas, é neste Tempo, que mais me cruzo com aqueles que percorrem uma fase adiantada do Entardecer da Vida. Ali, na curva da pequena aldeia deserta, vejo “Txico”, sentado num banco de cimento, junto à sua humilde casa. Há muito que a doença lhe mina o corpo e a alma. Tem cataratas e está incontinente, nas suas mais de oito décadas de vida. De vida dura. Do passado, lembra-se de quando se levantava noite escura para, com o seu burrito e os alforges cheios de sapatos dos clientes, percorrer as povoações de Freixial, Tinalhas e Caféde. Era um dia inteiro de viagem. No regresso, o dinheiro da recompensa do esforço despendido, de uma semana curvado sobre os pregos, a sola e a sovela. Agora, resta-lhe a pequena horta, que vai cultivando a muito custo. Para trás, ficaram as caminhadas com o seu trôpego e paciente “Preto”. Quando, nas madrugadas de orvalhada, de cimo dos cabeços, os lobos cantavam o seu lúgubre uivar. E ontem, ao ver o “Txico” sentado numa curva do Tempo, lembrei-me de Aquilino Ribeiro. Estranho pensamentoeste, o meu. Estranha associação de ideiasesta, a minha. Enquanto o sapateiro, de olhar baço, perdido que foi o brilho de outrora, vai meditando nas coisas sérias da vida, não pude deixar de pensar na sua magra pensão de reforma. E ele, na sua bem-aventurada e santa ignorância campesina, jamais desconfiará que, por ordens vindas de um qualquer país Europeu longínquo que mal conhece, o seu magro provento está ao alcance de uma qualquer insensível máquina calculadora, subtraindo-lhe, talvez, mais um pouco do muito pouco que já tem. Ausente de informação, naquele pequeno recanto Beirão, o “Txico” não sabe que está prestes a regressar ao seu sacrificado passado, e a que de novo os lobos Lhe uivem. E que, esfomeados e em alcateia, se preparam para saltar ao seu já longo e penoso caminho. Q.P.

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Serra dos Milhafres, finais dos anos 40, o Estado Novo resolve impor aos beirões uma nove lei: Os terrenos baldios que sempre tinham sido utilizados para bem comunitário e onde essa comunidade retirava parte vital do seu sustento, seriam agora "expropriados" e esses terrenos utilizados para plantar pinheiros. Assim, sem mais nem menos, o Estado chega e diz que, a partir daquele momento, acabou. Implanta-se um clima de medo nas gentes e é esse clima que Manuel Louvadeus, que havia emigrado para o Brasil anos antes, vem encontrar quando regressa à aldeia. Homem vivido e culto devido, segundo o próprio, aos muitos livros que por lá havia lido, Manuel tem uma visão para os dois lados e um sentido de justiça que rapidamente o fazem cair nas boas graças das gentes do povo.
Toma então parte da sua gente, homens honestos e humildes que trabalham de Sol a Sol mas que não deixam de viver em condições miseráveis. A revolta acaba por suceder e entre mortos e feridos tudo acaba numa caçada aos homens por parte da polícia que leva muitos homens à prisão acusados de serem instigadores e cérebros da revolta.
O Estado mostra então todo o seu esplendoroso poder. Aqui representado está a saga dos beirões na defesa dos terrenos baldios perante a ditadura do Estado Novo.




A ASSOCIAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO RURAL LOBOS UIVAM
A ASSOCIAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO RURAL LOBOS UIVAM, fundada em 18 de Fevereiro de 1998, com sede no lugar do Senhor dos Aflitos, freguesia de Caria, concelho de Moimenta da Beira, tem por objecto, a defesa e promoção dos interesses dos produtores e proprietários florestais e o desenvolvimento de preservação e valorização das florestas, dos espaços naturais, da fauna e flora, promover e, coordenar e participar em acções de carácter económico nomeadamente agro-pecuária e florestal e/ou sócio cultural de interesse específico em geral, mas necessário ao desenvolvimento do meio rural, que se insere, bem como de uma maneira geral, a valorização do património fundiário e cultural dos seus associados.

Quando os lobos uivam
Vamos por aqui continuando a relembrar o manancial prosaico de Aquilino Ribeiro, a cultura é sempre uma mais-valia. O título deste postnada tem a ver com os predadores dos ovinos e caprinos, vacas e asnos também como no passado nunca se tinha visto, foi um romance que pôs em alvoroço as forças repressivas salazaristas, cujas edições foram proibidas. O regime de Salazar não admitia críticas mesmo as encapotadas.
Na actualidade os lobos uivam, ou melhor andam sorrateiros às caçadas, por outras razões. Regressando ao meu tempo de jovem os lobos eram mal queridos, odiados, pois a cada passo surripiavam gado miúdo, leia-se ovinos e caprinos, aos lavradores. Durante décadas os larápios eclipsaram-se. Apenas  de vez em quando os naturalistas lamentavam-se que a raça estava em vias de extinção, eram precisas medidas para inverter a situação.
Bem, chegamos agora e os média referem ataques dos lobos aos gados no Montemuro, Gerês, Pinhel e mais, cito de memória. Então uma varinha mágica fez nascer lobos pelas serras!... Os serviços da conservação da natureza não abrem jogo, mas tudo indica, segundo o povo, que foram “botados”. Numa pesquisa na NET há uma herdade na região de Mafra onde estes animais são criados, Centro de recuperação do lobo ibérico.
Era eu um petiz, recordo-me andar lá pela terraum serrano com a carcaça dum carnívoro, ou seria só a samarra, às costas a pedir ajuda por façanha tão do agrado dos pobres lavradores.
Sobre isto passo a citar Manuel de Lima Bastos referindo-se ao livro de Aquilino “Quando ao Gavião Cai a Pena, obra de 1935, diz:
“Era hábito antigo exibir o lobo por quanto povoado montesinho houvesse para recolher as esmolas de preceito que ninguém regateava, as quais rendiam ao afortunado abatedor da fera grossa tanto em maquia tanto em dinheiro como em géneros de boca. António das Arábias apressou-se a preparar o andor onde o bicho seria exibido para logo sair em procissão e iniciar-se a rendosa colecta.  Improvisaram umas andas com duas varas de pinheiro e deitaram a fera em cima. O António das Arábias fez de pároco e rezou-lhe o de profundis:
   Este lobo não ia à missa,
   Nem à missa, nem ao sermão;
   Comia cabra à sexta-feira,
   Não tem absolvição
Logo rompia, em cantochão, o coro dos acompanhantes que engrossava à medida que se incorporavam mais e mais fiéis de quantos lugarejos vizinhos havia para ajudar ao responso do defunto.”
Eu sei que é uma tarefa assaz intrincada, o equilíbrio entre a preservação da espécie e os legítimos interesses das populações do interior. E todos sabemos como o estado foge com o rabo à seringa, paga tarde e mal os prejuízos feitos pelo predador, além de pôr uma série de condições aos utentes do gado, cão de guarda por cada 50 animais ou tê-los a pastar em locais confinados.
Ant.Gonç. (antonio)

Quando os lobos uivam
Quando somos crianças (ou quando um político está na oposição, o que, vendo bem as coisas, é quase o mesmo), tudo parece mais fácil. As soluções são pretas ou brancas, sem meios termos, compromissos ou tons intermédios. Há bons e maus, heróis e inimigos, certo e errado.
A conservação da natureza é um desses campos. Numa sala de conferências, parece evidente que não pode haver futuro sustentável se a actividade humana colidir com a vida selvagem, pelo que os decisores assumem a responsabilidade de, em situação de choque, compensar populações humanas afectadas por consequências indesejadas, mas inevitáveis, provocadas pelo instinto animal. É essa a ideia, por exemplo, do velho programa de indemnização dos proprietários de cabeças de gado abatidas por lobos: desde 1990, instituiu-se que um proprietário de gado ovino, bovino ou caprino deve denunciar ataques que os seus rebanhos venham a sofrer por parte de alcateias, sendo por isso indemnizado em função das suas perdas. A medida visa desencorajar os actos justiceiros dos lesados que, durante tempos imemoriais, faziam justiça por suas mãos e abatiam lobos em resposta a estes ataques.
Como tudo em Portugal, também a lei mostrou debilidades. Para uma população estimada em 300 animais nas nossas fronteiras, o ICNF (enquanto divulgou publicamente dados) dava conta de uma média de 2.700 ataques reportados por ano. Por outras palavras, ou os proprietários abusavam da lei e viam nela uma oportunidade de obter indemnizações ou, para além dos lobos, também os cães assilvestrados faziam danos consideráveis e, nesse caso, entende o legislador que não cabe ao Estado compensar o pastor. Um projecto recente de distribuição de cães de gado a mais de 800 pastores em Montesinho contribuiu para diminuir o número de pedidos de indemnização (e, espera-se, de ataques), mas o pagamento das verbas compensatórias foi sempre lento e controverso.
O tema voltou à agenda com a recente notícia dos ataques de alcateias (ou não) a rebanhos na zona de São Pedro do Sul. A peça da SIC Notícias (disponível por enquanto neste endereço) é um esforço pobre de transferência do assunto da esfera local, onde ele causa natural consternação, para a esfera pública e nacional, onde ele deve ser ponderado, sem cedências ao populismo e ao discurso dominante sobre o legislador que tudo erra.
Para que nos entendamos: não fica claro pela notícia se os ataques são efectivamente produzidos por lobos; não fica claro se os proprietários se queixam, ou não, às autoridades; não fica claro se os “lobos” deixam, ou não, carcaças dos animais que abatem. Mais: é indecente a apreciação sem contraditório ao esforço de repovoamento de lobos na zona da serra de São Macário. Em nenhum momento, o repórter sentiu necessidade de escutar um biólogo ou outro especialista em vida selvagem, que pudesse fornecer uma interpretação alternativa ao acontecimento. Ouviu apenas os proprietários e o presidente da câmara municipal, que fez uso do velho silogismo político tornado célebre por Jim Hacker, o ministro fantoche de “Yes, Minister”: é a vontade do povo, eu sou o seu líder, logo, eu devo... Segui-lo!
Todavia, não escreveria estas linhas se não tivesse visto os últimos segundos da peça noticiosa. Ali se apresenta o “Mata-Lobos” e se escuta, com um certo encanto, a história de batidas aos lobos do passado, quando se podia resolver o problema sem esse aborrecimento que é o estatuto de espécie protegida, que só serve para “nos deixar de pés e mãos atadas”.
Peço a atenção do leitor para alguns recortes que coleccionei ao longo dos anos. Foram extraídos da imprensa portuguesa dos últimos cento e dez anos. Documentam, sem exagero, os mesmos sentimentos de barbárie, de despeito pelo atrevimento do lobo que caça rebanhos, de justiça por conta própria, enraizados na cultura portuguesa. Casos como o de São Pedro de Sul dão conta de que, riscando a superfície, a camada de civilização esbate-se. E estão lá os mesmos sentimentos de sempre.



"Letras Aquilinianas"
Há já meses, "Ave-Azul" destacava a mais do que louvável ideia da Confraria Aquiliniana de promover a edição de uma publicação, de feição pedagógico-didáctica, que divulgasse e perenizasse a obra do Mestre da Nave.
O dia chegou. Faz uma semana que as "Letras Aquilinianas", dirigidas por João Silva de Sousa, foram apresentadas na Lapa. As 220 páginas da publicação, se, por um lado, derivam para um academismo não esperado, por outro, desvelam pequenos e não menos interessantes aspectos que fazem desta publicação, órgão oficial da "Confraria Aquiliniana", um projecto promissor que pode ser fruído, no seu conjunto, por público diverso.
Monárquico e subscritor da petição contra a trasladação de Aquilino, nada me move contra Aquilino, escritor que admiro e, em não poucos momentos, venero. Há, no meio, razões de ideário e a tragédia no Terreiro do Paço. Sempre me encontrei com Aquilino, dele discordando em muito aspectos, lembrando, em voo de mais de um quartel, amostração oral do estranho sortilégio de um dos mais belos "incipit" da literatura portuguesa a mim chegada pela especiosa voz do Dr. e Padre Custódio Lopes dos Santos, que aproveito para homenagear:
"O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado , cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista!"
Sim, vamos ler Aquilino. Tirá-lo do "Canto dos Escritores", em que repousa, é outra coisa. À sombra de um nome, haverá sempre anões em bicos-de-pés. O evento não me incomoda, emociona-me. Quem quer tirar Aquilino da companhia dos escritores?

Revista “Letras Aquilinianas” apresentada em Sernancelhe
Texto de Ana Filipa Rodrigues
A confraria Aquiliniana apresentou, durante a IV Feira Aquiliniana, em Sernancelhe, o primeiro número da revista “Letras Aquilinianas”.
O novo órgão de informação surgiu, segundo a Nota Editorial do director da revista, João Silva de Sousa, “com o propósito de fazer justiça a um dos maiores autores de sempre da Literatura Portuguesa: Aquilino Ribeiro”. Para o regedor da confraria, Jerónimo Costa, a revista irá permitir novamente a “elevação da figura do escritor no panorama literário”“LetrasAquilinianas” servirá também para “dar a conhecer um pouco da confraria, o que está a fazer e pretende vir a fazer”.
O primeiro número da revista é composto por 25 artigos, redigidos por colaboradores de diversas áreas que se “interessam pela obra de Aquilino Ribeiro” e que com “a sua opinião irão contribuir para iludir a problemática em torno do esquecimento do escritor”.
A publicação, para já, tem uma periocidade anual, mas a confraria está a equacionar a hipótese de a revista ser editada semestralmente. “O número de artigos que recebemos superou as nossas expectativas. Era suposto a revista ter cerca de 100 páginas, mas o primeiro número foi publicado com 200 páginas. Neste momento, temos artigos que fariam um novo volume”, refere Jerónimo Costa.
“Letras Aquilinianas” irá “complementar” e não competir com outras iniciativas ligadas ao escritor. O regedor da confraria afirma que tem “admiração” pelos Cadernos Aquilinianos, trabalho que tem vindo a ser publicado desde 1992 pelo Centro de Estudos Aquilino Ribeiro, sedeado no pólo de Viseu, da Universidade Católica. Porém, Jerónimo Costa reconhece que “a obra de Aquilino Ribeiro é muito rica e tem matéria que ainda não foi explorada”.
Os 500 exemplares serão distribuídos pelos colaboradores, sócios, elementos da confraria, pela rede de bibliotecas e serão entregues nas escolas e Câmaras Municipais associadas.
A confraria foi criada a 13 de Setembro de 2004, tendo no ano seguinte enviado um pedido ao Presidente da Assembleia de República, Jaime Gama, para que se efectuasse a transladação dos restos mortais do escritor para o Panteão Nacional. O pedido foi aceite e, em princípio, a transladação irá decorrer em Setembro de 2007. "

Aquilino e os Regicidas
Texto de Henrique Almeida
Após a aprovação no Parlamento do projecto que concede honras de Panteão Nacional a Aquilino Ribeiro, foi posta a circular uma petição com vista a contrariar tal deliberação. No documento, subscrito pelo designado Fórum Democracia Real, discorda-se da trasladação dos seus restos mortais, por, alegadamente, o escritor ter participado na conspiração para o assassinato do rei D. Carlos e de seu filho Luís Filipe. Os signatários admitem, contudo, nunca se ter provado “que o romancista tenha estado no local a 1 de Fevereiro de 1908.”
Vinda de quem vem, não se estranha a rejeição das honras a alguém supostamente implicado em acções de conjura revolucionária. Descontado o excesso de zelo, tendencialmente faccioso, respeite-se a seriedade da investigação histórica. E neste campo, as fronteiras ideológicas não devem afastar os investigadores.
Não é coerente a colagem do epíteto de “terrorista” a quem foi perseguido pelo regime monárquico, por se ter batido frontalmente pelos direitos do povo e pela liberdade de expressão. No início do séc. XX, o discurso pró-republicano identificava-se com a defesa desses interesses. Em muitas das crónicas publicadas na altura (vide Cadernos Aquilinianos), o escritor defende com convicção a emancipação popular através da formação de uma opinião pública esclarecida e crítica de forma demolidora o regime que então agonizava. Na conjuntura deste período (1906-1908), abundavam os motivos de contradição interna do regime e a crise do liberalismo monárquico era acentuada pela ditadura franquista. De resto, o contributo de publicista dado pela efervescente militância de Aquilino não deverá ser esquecido nas comemorações do centenário da implantação da República.
Também não é coerente a argumentação que associa o seu encarceramento com a ligação, muito estreita de facto, a Alfredo Costa e Manuel Buíça, na altura do assassinato. A prisão do escritor ocorre dois meses e meio antes do regicídio, quando se engendravam bombas artesanais no seu quarto, a pedido de Gonçalves Lopes, vítima da explosão. O seu envolvimento em acções destinadas a abalar o poder institucional manifestava-se sobretudo na escrita militante de escândalo, visando a subversão política. Basta ler os corajosos artigos então publicados (por exemplo n’A Vanguarda e no semanário republicano A Beira, de Viseu) e os folhetins A Filha do Jardineiro e Os Bandidos da Serra da Gardunha. As reacções de sarcástica ironia e de incontida ira derivam das circunstâncias de agudização política. Os próprios regeneradores e progressistas reagem contra o rei D. Carlos face ao apoio por este conferido ao governo franquista. João Franco seria assim o alvo a abater e o grande culpado do regicídio, sendo este um acto isolado de dois exaltados, visto os republicanos não estarem preparados para responder à crise provocada pelo desaparecimento do rei. Tem interesse para a história do princípio do século cruzar os documentos existentes (outros terão desaparecido) com as revelações pessoais do livro Um Escritor Confessa-se e o registo ficcional de Lápides Partidas.
Admita-se algum excesso de militância revolucionária de Aquilino. Mas homens de acção foram também os militares de Abril que, felizmente sem mancha de sangue, tenazmente se opuseram ao Estado Novo e possibilitaram a instauração do regime democrático. Ora, usar a arma da escrita para lutar pelas suas convicções não é forma de terrorismo; é, até prova em contrário, lição de cidadania. Essa lição e o lugar cimeiro da sua obra literária conferem a Aquilino as honras de Estado que em breve lhe serão prestadas.


PETIÇÃO "TERRORISMO NÃO DEVE TER HONRAS DE ESTADO"
To: Presidente da Assembleia da República
 A Sua Excelência o Senhor Presidente da Assembleia da República
 Excelência,
 Verificado o cumprimento dos pressupostos legais para o exercício do direito de petição colectiva, no caso uma representação, vêm todos os signatários manifestar a sua discordância com a trasladação dos restos mortais de Aquilino Ribeiro para o Panteão Nacional, por deliberação da Assembleia a que Vossa Excelência preside.
Mais vêm manifestar esta discordância de uma forma determinada e expectante. Determinada e expectante, Senhor Presidente, porque a Assembleia da República, independentemente de considerações de natureza cultural, deve atender ao facto, historicamente provado, de Aquilino Ribeiro ter participado na conspiração para o assassinato do Chefe de Estado de Portugal, em 1 de Fevereiro de 1908, Sua Majestade El-Rei D. Carlos, e Seu Filho, Sua Alteza Real o Príncipe Dom Luís Filipe.
A contradição, Excelência, parece-nos difícil de ultrapassar: considerar herói nacional, propor como exemplo às gerações vindouras, alguém que participou na preparação de atentados terroristas e que foi preso por isso mesmo; alguém cujo processo por participação em atentados bombistas foi levado a tribunal em 13 de Fevereiro de 1908, juntamente com mais dois arguidos; alguém que depois veio branquear o seu passado e sacudir as mãos à varanda de Pilatos, confunde-nos o espírito de portugueses e de ocidentais, defensores da democracia e dos direitos humanos. Com esta trasladação, a instauração da República fica equiparada ao acto do regicídio!
Mas, Senhor Presidente, Herói e Assassino são antónimos. A sua conjunção é uma impossibilidade ética. E, se não se confirmar a impossibilidade legal daí decorrente, são um conceito apenas: um equívoco no coração da própria República! Vossa Excelência, personalidade de elevadíssima idoneidade e dimensão humana, constitui motivo de certeza para todos estes portugueses, em número de e de todos os outros que dentro e fora do território nacional têm o espírito em sobressalto, de que esta ignomínia ficará pela mera tentativa.
É o País inteiro que atento e grato pela procedência desta representação, vem assinar e dirigir a Vossa Excelência este grito muito forte e muito português: Deixem em paz as cinzas de Aquilino Ribeiro! Deixem que a Posteridade lhe teça os elogios literários que merecer! Mas não ergam em símbolo de cidadania quem deu provas de aceitar que os métodos terroristas e o assassinato de um Chefe de Estado são meios procedentes e legítimos para instaurar ideais políticos.
 Não o coloquem no Panteão Nacional!

Excertos do discurso de Aquilino Ribeiro na Sociedade Portuguesa de Escritores, 1963
"Morro insatisfeito. A minha obra é imperfeita e bem o sinto". (...) "A Perfeição, materializada na obra humana, no livro, na estátua, na partitura, é uma hipérbole celeste. Nunca se consegue, e quando se julga conseguir é miragem." (...) "Cultivem a inquietação como uma fonte de renovamento. E, enquanto vivermos, façamos de conta que trabalhamos para a eternidade e que tudo o que é produção do nosso espírito fica gravado em bronzes para juízes implacáveis julgarem à sua hora".

Literatura Portuguesa
Aquilino Ribeiro
(em Janeiro de 1960 o Professor Viera de Almeida propôs a candidatura de Aquilino ao prémio Nobel de Literatura)
Nascido? Em Sernancelhe a 13/09/1885. Em Carregal da Tabosa ou em Carregal?
Falecido? Em Lisboa a 27/05/1963.
Pais?Joaquim Francisco Ribeiro e Maria do Rosário Gomes.
Irmãos? Três:Maria do Rosário, Melchior e Quim.
Estudos? Em Viseu, no Colégio Roseira em Lamego e Seminário de Beja na Faculdade de Letras da Sorbone em Paris.      
Casado? Sim, duas vezes: da primeira, em 1913 com Grete Tiedemann de quem teve um filho Aníbal Aquilino FritzTiedeman Ribeiro; da segunda, em 1929 com Jerónima Dantas Machado (filha de um Presidente da República, Bernardino Machado) da qual teve um filho, Aquilino Ribeiro Machado.
Cargos?Deu aulas no Liceu Camões em Lisboa, foi consultor da Biblioteca Nacional, colaborou na criação da revista Seara Nova
1º Livro? Escrito em 1913- O Jardim das Tormentas.
Participou na campanha eleitoral do General Humberto Delgado
Sócio da Academia de Ciências de Lisboa.
Prémio Literário Ricardo Malheiros- com o romance As Três Mulheres de Sansão
Existe a Fundação Aquilino Ribeiro.



Aquilino Ribeiro: homenagem ao escritor e militante da liberdade
Por decisão unânime do Parlamento, os restos mortais do escritor Aquilino Ribeiro foram trasladados para o Panteão Nacional, com direito a honras de Estado. Aquilino Ribeiro (1885-1963) foi um dos maiores escritores portugueses da segunda metade do século XX, e chegou mesmo a ser proposto para prémio Nobel da Literatura em 1960. A sua veia literária foi sempre inseparável da sua acção cívica. Combatente pela liberdade, insurgiu-se tanto contra o regime monárquico como contra a ditadura do Estado Novo, o que lhe custou, várias vezes durante a sua vida, a prisão e o exílio.
 Aquilino Ribeiro é o décimo português a ser sepultado no Panteão Nacional. Os seus restos mortais serão trasladados do cemitério dos Prazeres para o Panteão Nacional, situado na Igreja de Santa Engrácia, na freguesia de São Vicente de Fora, em Lisboa, numa cerimónia com direito a honras de Estado.
Nascido a 1885 no Concelho de Sernancelhe, Aquilino Ribeiro distinguiu-se pela qualidade da sua obra literária e pela coragem cívica com que combateu pela liberdade, tanto durante a monarquia como em pleno Estado Novo.
Autor de quase três dezenas de contos e romances ・ dos quais destacamos o Malhadinhas (1922),
Quando os Lobos Uivam (1958) e A Casa Grande de Romarigães (1957) ・marcou as suas obras por uma escrita que misturava a literatura clássica com a literatura oral do povo.
Nas palavras do seu filho, Aquilino Ribeiro Machado, à Lusa, uma das características que distinguem a obra de Aquilino Ribeiro é a impressionante galeria de personagens que criou, do mundo rural e urbano, fruto de «uma capacidade de observação e retenção extraordinária».
«O meu pai, perante um cenário, uma paisagem que percorresse e que tivesse deixado para trás aparentemente com um olhar distraído, mais tarde, se vinha a talho de foice descrevê-la num dos seus livros, fazia-o com uma fidelidade e uma impressividade que parecia que tinha andado ali não propriamente um escritor mas um fotógrafo - um fotógrafo que tivesse, com a sua objectiva, a preocupação de salientar o que há de mais significativo e mais importante na imagem», explicou.
Aquilino Ribeiro pertenceu à direcção da revista Seara Nova (1921), e foi fundador e presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores (1956)
A par da sua actividade literária, distinguiu-se pela acção cívica em que se empenhou durante toda a sua vida na defesa das ideias republicanos, da democracia e da liberdade.
Aquilino foi preso duas vezes, fugiu em condições aventurosas em qualquer dessas situações de prisão, interveio com armas na mão contra o regime saído do 28 de Maio, por duas vezes - no 7 de Fevereiro de 1927, em Lisboa, e mais tarde, na revolta do regimento do Pinhel [1928], pela qual foi preso e de onde fugiu, da prisão do Fontelo, em Viseu.
Quando, em 1960, Aquilino Ribeiro foi proposto como candidato ao prémio Nobel da Literatura, foi-o, de acordo com o filho, «como uma resposta dos escritores portugueses mais notórios e mais sonantes, porque o regime lhe moveu um processo judicial pela publicação de Quando os Lobos Uivam».
Francisco Vieira de Almeida, José Cardoso Pires, David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, José Gomes Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Mário Soares, Vitorino Nemésio, Abel Manta, Alves Redol, Luísa Dacosta e Vergílio Ferreira foram alguns dos escritores que apoiaram a sua candidatura. Mas as pressões do regime impediram que Aquilino Ribeiro fosse considerado elegível para um prémio, que , também para Saramago, era mais do que merecido.
«Sei é que quando o Saramago fez uma conferência de agradecimento ao povo que acorreu ao cinema Tivoli, disse, quase a começar, Eu sou um homem de sorte, porque o Aquilino Ribeiro já não é vivo. Porque se fosse vivo, era ele que recebia o Nobel», salientou à Lusa o filho de Aquilino Ribeiro.
Entretanto, um grupo de monárquicos fez correr uma petição contra a trasladação de Aquilino Ribeiro para o Panteão Nacional, por o considerarem ・terrorista・ e ・assassino・. O historiador Fernando Rosas referiu à Lusa que Aquilino Ribeiro conheceu os regicidas mas não participou directamente no atentado que tirou a vida ao Rei D. Carlos e ao Príncipe D. Luís Filipe, em Fevereiro de 1908.
«Há autores que defendem que os regicidas lhe terão comunicado que iam cometer ao tentado», uma hipótese a não descartar, segundo Rosas, tendo até em conta que ele foi testemunha de registo da filha de Buíça, um dos regicidas. «Não há qualquer prova empírica que nos possa dizer que o Aquilino esteve no regicídio que envolveu cinco pessoas mas, aparentemente, nada nos autoriza a dizer que ele era uma delas», enfatizou Rosas.
Aquilino Ribeiro juntar-se-á, assim, aos escritores João de Deus, Almeida Garrett e Guerra Junqueiro, aos Presidentes da República Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, Sidónio Pais e Óscar Carmona, a Humberto Delgado e Amália Rodrigues, bem como a túmulos vazios (cenotáfios) destinados a evocar outras figuras portuguesas como Luís de Camões, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Infante D. Henrique, Afonso de Albuquerque e Nuno Álvares Pereira.

Feira Aquiliniana traz milhares de visitantes à Lapa
Sete anos depois de a Câmara Municipal de Sernancelhe ter lançado a ideia de organizar a Feira Aquiliniana na Lapa, um local mítico e muito ligado à vida e obra do Mestre Aquilino Ribeiro, confirma-se o sucesso deste evento: milhares de pessoas visitaram a feira, apreciaram as peças de teatro, os grupos de concertinas, os bombos, os ranchos folclóricos, a mostra de artesanato e os produtos regionais, e sentem o espírito de uma Lapa mais próxima do que seria em pleno século XX.
Nos dias 29 e 30 de Maio a Lapa ganhou também um colorido bem diferente. Graças às dezenas de expositores, mas principalmente à acção dos alunos da Escola Profissional de Sernancelhe, os trajes da época foram recuperados e os participantes passearam-se pela feira vestindo personagens como o escriba, a lavadeira, o barbeiro, a aguadeira, a peixeira, entre tantas outras.
A feira, que pretende ser também um tributo ao Mestre Aquilino, tem conseguido ao longo dos anos recuperar o sentido de romagem muito próprio da Lapa e que Aquilino descreve de forma impecável nos seus livros. Um tipo de romagem que combinava o sentido religioso com a questão profana do comércio, das tascas, dos comes e bebes.
A acção dos Cucos Malandros, da Tabosa da Cunha, foi decisiva para dar cor e som ao certame. O mesmo sucedeu com os Ranchos Folclóricos de Arnas e Sernancelhe, as concertinas da região, entre outros. Pela primeira vez em sete anos, a animação da Feira Aquiliniana ficou a cargo de grupos do Concelho de Sernancelhe, o que é muito significativo. O teatro também foi uma constante, graças às interpretações dos alunos da ESPROSER de excertos das obras de Aquilino Ribeiro.
Tendo como cenário o conjunto patrimonial formado pela Igreja, Colégio, Casa da Cadeia e Pelourinho, e homenageando a figura do escritor sernancelhense Aquilino Ribeiro, a Feira Aquiliniana conseguiu também revitalizar o espírito etnográfico da Lapa descrito pelo Mestre Aquilino nas suas obras literárias.
O Presidente da Câmara de Sernancelhe, José Mário de Almeida Cardoso, o Vice-Presidente Carlos Silva Santiago e o Vereador das Obras e Urbanismo, Carlos Santos, visitaram os expositores e manifestaram o seu agrado pelo sucesso do certame, assegurando que é, efectivamente, um dos “eventos mais importantes do Concelho de Sernancelhe, quer pela dimensão que atingiu, quer pelo seu papel divulgador da obra de Aquilino Ribeiro”.
Um evento com lugar cativo no calendário regional, que ano após ano foi ganhando o seu espaço e que, por isso, tem futuro.

Quando os lobos uivam
“A serra é agreste, primitiva, mas tem carácter, sem dúvida. Comprazes-te em pintar-lhe as virtudes e encantos sem sombras, e não serei eu que te acoime de parcial. As tintas escuras são para o novelista e tens razão. Decerto que eu, ao chamar-lhe Terras do Demo, não quis designá-las por terras do pecado, porque o pecado seja ali mais grado ou revista aspecto especial que não tenha algures. Nada disso. A serra é portuguesa no bem e no mal. Chamei-lhe assim porque a vida ali é dura, pobrinha, castigada pelo meio natural, sobrecarregada pelo fisco mercê de antigos e inconsiderados erros e abusos, porque em poucas terras como esta é sensível o fadário da existência.”
Aquilino Ribeiro
Lembro-me de Aquilino Ribeiro muitas vezes. Passo regularmente pelo seu velho casarão na Cruz Quebrada, local onde o maior criador da prosa portuguesa do século XX viveu e parece-me sempre estranho imaginá-lo ali, numa espécie de exílio marítimo, a uma dúzia de passadas bem dadas da velha praia do Dafundo, a tal que era muito em voga no tempo de Eça: ” Ah! se tu conhecesses a minha pátria!… E olha que sou capaz de te levar! Em Lisboa é que é! Vai-se ao Dafundo, ceia-se no Silva… Isto aqui é uma choldra!”.
Não estou em Lisboa, nem tenho mesa marcada no Silva. Estou perto das terras do demo, de onde foram extraídos os veios de volfrâmio febril que enriqueceram com lucro efémero os garimpeiros que acendiam charutos com notas de réis e os capitalistas da guerra suja, nas mesmas terras de onde Aquilino Ribeiro extraiu com suor de garimpo a sua poderosa escrita, que combina a acutilância de repórter etnográfico com o relato do fantástico que cresce nos sombrios penedos, nos bosques e na lúgubre luz que tinge estas terras e se insinua na imaginação e crendice das gentes. Escrita humaníssima de matéria real – o homem, a sua circunstância e a sua religiosidade pagã.
Estou em São Pedro do Sul, uma das maiores termas de Portugal, cujas águas sulfuram maleitas respiratórias, reumático e artroses.
 Lembro-me do velho terrorista republicano que se diz ter conspirado para o regicídio do Rei Dom Carlos assim que saio da biblioteca da Casa dos Moinhos do Chão do Mosteiro, acolhedora casa onde fiquei ancorado – há um terraço com ancoradouro para o rio Vouga.
Aquilino foi higienizado das criancinhas porque lhes podia fazer mal ao português, mas poucos adultos o terão lido e não consta que o seu português tenha melhorado com isso
A casa é de António Homem Cardoso, fotógrafo do rei, ou melhor do Duque de Bragança.
 Junto à estante, onde um relógio antigo se emproa com ares de poderes temporais sobre uma bíblia bem encadernada, está um quadro a cinza com um retrato do Rei D. Carlos. Uma pobre alma, mais dada aos prazeres da vida, da caça e das aventuras românticas do que às subtilezas da política. Foi vítima da sua condição e da sua inacção, um mártir para monárquicos recauchutados e saudosistas ao longo do século seguinte, que tudo fizeram para que Aquilino Ribeiro fosse autor proscrito, como acabou por ser.
 O maior prosador português depois de Camilo foi pedagogicamente banido dos manuais escolares na década de 80 e apenas o seu “Romance da Raposa” se mantém perene nalgumas escolas da região que o viu nascer. Aquilino foi higienizado das criancinhas porque lhes podia fazer mal ao português, mas poucos adultos o terão lido e não consta que o seu português tenha melhorado com isso.
 Aquilino será, porventura, o autor português que mais gente começou a ler e o que menos foi lido até ao fim. Poucos resistem ao vocabulário repleto de regionalismos, vernáculo de antanho, calão popular e até de dialecto beirão. Os livros de Aquilino são difíceis de ler sem a vigília de um dicionário e como raramente alguém gosta daquilo que não compreende, lá está o velho Aquilino guardado em formol na estante de lombadas intactas, fóssil como Mestre de uma língua que está morta por falta de uso.
 A mim valeu-me a minha avó Piedade, analfabeta, mas erudita nos regionalismos e ladainhas da Beira, cujo conhecimento me permitiu descobrir a apaixonante obra de Aquilino sem sistemático recurso ao dicionário. Foi a minha avó analfabeta que me ensinou a ler Aquilino e a amá-lo.
 Olho uma outra vez para a aristocrática biblioteca da casa onde me hospedei e não evito um pequeno desdém plebeu e jacobino – há por aqui beataria monárquica a mais.
 Pessoalmente, tenho bem definidas as minhas simpatias – um bombista republicano, humanista feroz, escritor de génio vale mais do que uma sala cheia de aristocratas pífios ou uma caçada pejada de imbecis de sangue azul que nunca leram um livro sobre homens e vivem nos seus castelos de cartas, com duques e cenas tristes.
Deixo a casa do fotógrafo do rei e a margem do Vouga que ando a seguir como cão pisteiro. Preparo a minha montada para continuar viagem pelas terras de Aquilino. O rio, por ora, não se deixa seguir por estrada, vem serpenteando por vales inacessíveis e remotos desde a sua nascente em Sernancelhe. Foi também ali que nasceu Aquilino Ribeiro, na aldeia de Carregal de Tabosa no dia 13 de Setembro de 1885, no mesmo ano em que nascem EzraPound ou DH Lawrence, em que Zola escreve “Germinal”, Mark Twain “HuckleberryFinn” e Louis Pasteur inoculou o soro contra a raiva e circulou pela primeira vez um automóvel – o Benz.
 Filho de um antigo padre, Aquilino Ribeiro vai viver em 1895 para a aldeia da Soutosa, no concelho de Moimenta da Beira, local que passaria a ser o centro geodésico da sua geografia sentimental e que acolhe hoje a Casa Museu Aquilino Ribeiro, gerida pela Fundação com o seu nome.
 Normalmente gosto pouco de casas-museus de escritores e esta não é excepção. Pouco me interessa o espiritismo associado ao reduto de escrita – a escrivaninha, a velha cadeira, o tinteiro, alguns manuscritos, correspondência gatafunhada, os óculos encardidos, o tinteiro e outros objectos pessoais. Tudo isso me cheira voyeurismo estéril, a bolas de naftalina ou a velas de cera que se gastam em ruins defuntos.
 Prefiro mil vezes viajar pelas palavras ou pelos locais sobre os quais um escritor escreveu. Isso, por aqui não é difícil. Basta ler a “Geografia sentimental” de Aquilino ou algumas das suas obras mais gráficas – “Volfrâmio”, “Terras do Demo”, “A Casa Grande de Romarigães” (no Minho) ou “Quando os lobos uivam” e já temos um autêntico roteiro aquiliniano para nos perdermos nos confins da Beira, nas entranhas deste país litoralizado e liofilizado que “está cheio de moralistas que até chateia, precisava era é de ser pasteurizado em merda de uma ponta à outra”, José Cardoso Pires, outro beirão, mais de baixo.
O meu plano era seguir pela EN 16 até Sátão, para reencontrar o Vouga e depois guinar a Norte, rumo à Serra da Lapa, onde burburinha um fio de água que vai engrossando pelas fragas graníticas até dar caudal a um rio que é veia arterial de Portugal e corre até formar a imensa Ria de Aveiro, antes de se esgueirar para o mar, escoltado pelas dunas de São Jacinto e pela Barra de Aveiro.
Como habitualmente, os meus planos saem frustrados, por nenhuma razão aparente ou determinista, apenas pelo facto de ser vítima ocasional da maldição de John Lennon – “A vida é o que acontece enquanto estás ocupado a fazer outros planos”.
Pois bem, hoje não é dia de fazer planos. Está uma chuvinha teimosa, o céu está escorregadio e carregado de um cinzento de administrador-delegado. Aqui metido no meio de um autêntico covão que é São Pedro do Sul, rodeado de serras por todos os lados, é fácil não seguir o caminho.
 É o que faço com notável sentido de desorientação agora que está lançada a atmosfera cultural desta road trip às terras de Aquilino. Não foi premeditada, apenas fruto do acaso a que a estrada convida.
 Tudo o que eu queria era seguir o Vouga pela via sinuosa, mas como um rio tem afluentes, uma viagem também. Aqui chamam-se desvios.
Perdido nas montanhas mágicas
O desvio, alimentado pela voraz curiosidade, leva-me a seguir as setas que indicam a direcção do Bioparque do Pisão. Coisa fina, um bioparque, termo que entra agora na gíria do acepipe nas feiras de turismo, tal como ecopista, ecolodge, geogaitas, etc, etc, etc.
 Para mim, o apelo está em subir uma das serras que fortificam a vila termal – São Macário, Arada e Freita – que no seu conjunto formam o maciço da Gralheira que se estende até Arouca e Castro Daire.
 A partir de São Pedro do Sul, apenas meia dúzia de quilómetros me separam do Parque Florestal do Pisão, local onde nasceu e se realizou o Festival Andanças, antes deste desandar para Castelo de Vide no Alentejo. Há operários num lufa a arranjar o parque para o veraneio que se aproxima que vai trazer gente à piscina, ao rappel e aos caminhos pelas pontes suspensas entre as árvores de copa alta e frondosas.
 Do Carvalhal sigo até Sá, outro povoado pouco ou nada povoado, disperso e sem interesse. São aldeias Remax, onde em cada casebre ruína há um cartaz com o sorriso dentífrico de um agente imobiliário e um número de telefone para quem ninguém liga. Na saída de Sá há uma placa castanha a indicar Serra da Arada. Sinto-me inapelavelmente compelido a seguir esse caminho. Sei que vale a pena seguir as placas castanhas em Portugal – normalmente levam-nos a locais com interesse e raramente resiste ao chamamento de uma serra desconhecida.
 A serra em Portugal é o último bastião inexpugnável da natureza. Protegidas da voragem humana pelos seus difíceis acessos e clima inclemente, as serras apenas autorizam a vida aos que estão dispostos a pagar o preço do sacrifício que ela pede para dar em troca o parco sustento.
 Para viajar de carro e admirar a vastidão da paisagem, as serras são o mais próximo que estamos do fim do mundo, convidando o viajante a vestir a pele de comentador da paisagem, caso o soubesse fazer com propriedade botânica. Não sei, por isso fico-me pelo impressionismo e o violáceo contraste das cores do urze e da carqueija, que na primavera ornamentam a serra com um vestido cândido e florido de primeira comunhão.
 À medida que subimos por uma bela estrada, estreita e bem asfaltada, parece que nos desligamos do mundo, das coisas terrenas e apontamos ao horizonte desconhecido. O desejo de chegar e transpor o alto da serra que se ergue inacessível no horizonte é mais do que um apelo, um desafio. É um tesão do desconhecido.
 Vou galgando quilómetros, sempre em progressão vertical, com o rocinante BMW X3 já velhinho e cansado a resfolgar os seus cavalos Diesel para a escalada.
 A estrada, de “lanços perigosos e ziguezagues mortais”, como escrevia Aquilino, leva-nos a serpentear pela encosta da Serra da Arada até à sua cumeada.
 Na sua vertente a Norte, a Serra da Arada estende a sua passagem para a Serra de São Macário e a da Freita. Há um planalto imenso que dá ao viajante e ilusão da planura. Sigo a convidativa seta que indica o Portal do Inferno e a subida que se segue – um troço com perto de dez quilómetros – é a estrada mais dramática e feroz que já alguma vez fiz em Portugal. Parece uma vertiginosa montanha russa construída no dorso da serra, fintando penedos e penhascos para atingir no Portal do Inferno a sua incrível apoteose.
 O Portal do Inferno é uma passagem estreita erguida a 940 metros de altura, com uma íngreme queda livre para ambos os declives da cumeada, rodeado de dois ribeiros que lhe cavaram a vertigem. Nesta formação granítica quase imagino o Monte Cáucaso, o altar do sacrifício de Prometeu, o imortal que roubou o fogo divino e que foi castigado por Zeus. Durante 30 mil anos, Prometeu estaria acorrentado a uma rocha e uma águia iria todos os dias devorar-lhe o fígado que, graças à sua condição de imortal, se regenerava diariamente. A pesada pena foi comutada por Hércules que libertou Prometeu e no seu lugar colocou um infeliz centauro.
 Eu, como tenho vertigens, não consigo aqui estar parado muito tempo, porque o abrupto do vazio é assustador. Tempo apenas para admirar a formação geológica popularmente chamada de “Garra” desenhada por cursos de água na encosta Nordeste da Serra da Freita, com os sulcos gigantescos a esculpir na encosta uma garra de animal lendário, talvez a serpente de São Macário…
Para reforçar o momento telúrico, o sol rompe pelo vale em baixo, pintando um nítido arco-íris. Pela primeira vez na vida pude ver um arco-íris de cima, como deus o vê.
Se continuar em frente estou já na Serra da Freita e no Geoparque de Arouca, conhecido pelas suas pedras parideiras, que se reproduzem em graníticas cesarianas, mas como tenho em roadbook mental ir lá perder-me um dia, dou meia volta de regresso à Serra de São Macário.
 Quando se anda perdido numa serra custa sempre voltar para trás. Fica na boca um sabor a desistência e a falta de tenacidade. Mas, os deuses da fortuna e a nossa senhora da Boa Viagem viriam dar-me a devida recompensa.
Uma aldeia no fim do mundo
 Nada como andar perdido no meio de uma serra nos confins de Portugal. Não há mapas com escala suficiente para mostrar o caminho e a cobertura 3G faz do Google Maps um acessório inútil. Aqui só há três formas de navegar – ou com cartas militares, que não sei ler, porque não assentei praça por excesso de contingente. Ou perguntando direcções a pessoas, que não as há. Resta a terceira – a improvisação instintiva.
 Os filões de ouro negro já secaram e a febre do volfrâmio há muito que passou. A pastorícia não dá sustento e a agricultura que batalhou contra o granito e o isolamento desta serra de São Macário também já enterrou a enxada na terra madrasta e quase estéril.
 Aqui, no alto da Serra de São Macário, concelho de São Pedro do Sul, só há paisagem. A paisagem apenas enche a barriga ao viajante.
 As gentes da serra foram-se: “O homem das serras traz chumbado ao tornozelo todos os grilhões da servidão forjados nos tempos bárbaros. Passam os reinados, as vagas políticas de democracia e de emancipação social, e ele queda escravo, miserável, para seu bem, não tendo conceito algum da igualdade humana”, escreveu Aquilino.
Na rádio meio enrouquecida pela altitude escuto os candidatos ao Parlamento Europeu em campanha pela lota de Matosinhos. A jornalista diz que o candidato sujou os sapatos de camurça. Os sapatos de camurça dos políticos têm tendência a sujar-se, tal como as suas mãos.
 Aqui no alto da Serra de São Macário estamos a salvo de políticos de sapatos de camurça. As pedras não votam e a Europa está demasiado longe. A Serra de São Macário, agora quase desprovida de vida humana, não aderiu à Europa, nem a Shengen, nem ao diabo que os carregue.
Conta a lenda que aqui no alto da Serra de São Macário havia um povoado primordial, aterrorizado por uma terrível serpente-dragão que se abatia sobre a aldeia, devorando os vivos.
 A população viu-se obrigada a fugir daqui e a procurar santuário num vale abrigado e fortificado até que o eremitão Macário se encheu de brio vingador e deu cabo do canastro à serpente homicida.
 Esse ato corajoso e purificador valeu-lhe a estima do povo que se perpetua todos os anos na Romaria a São Macário. Milhares de peregrinos-foliões deslocam-se aqui para celebrar com tinto, queijo e bons enchidos o heroísmo do santo desinfectador de serpentes. O culto de São Macário é prestado numa pequena capela mandada erguer em 1796 pelo Abade João de Abreu Melo Falcão. A capela é contígua a uma gruta onde se diz ter vivido o santo eremita. É ali que é depositada a imagem de São Macário no dia da romagem. Os romeiros, para a visitar, têm de ir de gatas. Eu cá prefiro ficar de pé e admirar a vista que se alcança deste miradouro a 1053 metros de altura.
 Diz-se que em dias límpidos e claros se pode avistar daqui a Torre dos Clérigos no Porto. Como hoje está um céu plúmbeo, o máximo que avisto é o vale de Sul e do Vouga, as serras de Montemuro e do Caramulo e mais ao sudeste o vulto dominador e altivo da Serra da Estrela.
A tarde vai caindo sobre a serra e por maior que seja o espírito de aventura a barriga começa a dar horas. Queria ainda descobrir as “aldeias preservadas” que as placas indicam, sem especificar quais.
 Arrisco o caminho para Drave, a aldeia abandonada, conhecida por ser o berço da família Martins, com carta genealógica que remonta a 1700. De dois em dois anos realiza-se aqui um encontro de Martins, por isso, se é um deles, já sabe, venha a Drave conhecer o berço da sua família e os seus primos mais afastados. Como não sou Martins, nem escuteiro, acabo por não fazer o caminho todo até Drave – o piso é mau, com pedras afiadas e um furo ao cair da tarde no meio de uma serra perdida é tudo o que este lobo esfaimado não precisa. Fica a habitual promessa de viajante arrependido – voltarei – para a próxima numa boa e destemida pickup e não no meu BMW X3 usado, menino de cidade, comprado a custo.
Preparado para desertar da serra como um soldado napoleónico perdido, passo no regresso por uma placa que indica a direcção da aldeia da Pena e, mais importante do que isso, com uma tabuleta que diz “restaurante”.
Um restaurante perdido aqui no meio da serra? Como é possível?
Aguçado pelos mais dois poderoso factores de mobilidade humana desde o tempo das cavernas – a curiosidade e a fome – sigo a estrada que começa a desfalecer pela íngreme encosta abaixo.
 No fundo, como um ponto cinzento de casarios de xisto e telhados de ardósia (as lousinhas) vejo a aldeia da Pena, enclausurada pela serra, como se quisesse manter-se secreta, anónima, isolada.
 A estrada estreita que desce do Alto de São Macário até à Pena é estreita, vertiginosa e cheia de ganchos. Não parece uma estrada, antes uma escadaria infinita.
 Estaciono no largo à entrada da aldeia e prossigo a penates. A estrada acaba aqui. É o fim da linha, o fim do mundo. Quando um viajante chega a estes locais de fim da linha sente uma irreprimível e estranha alegria. É como alcançar o destino, esgotado as possibilidades, completado a descoberta. É isso que se respira aqui na Pena, aldeia fundeira, que reza a lenda, foi o tal refúgio dos habitantes originais de São Macário, que nunca mais esqueceram o exílio forçado pela serpente-homicida – “É pena”.
Caminho nas ruas estreitas e vazias da aldeia. Pouco mais de uma dezena de casas de xisto, algumas recuperadas, outras em ruína, dispostas em socalco sobre uma pequena ribeira que corre da serra em direcção a um vale verdejante onde pastam cabras e vacas.
 Numa placa de ardósia, abençoada pela Nossa Senhora da Boa Viagem, leio “Adega típica da Pena – Restaurante, café, lembranças originais da Penha”, desço as escadinhas para uma esplanada com mesas corridas de ardósia e entro. Bendita hora. Uma acolhedora casa típica, com artesanato, mel e licores a decorar as paredes e um balcão-santuário com presuntos pendurados a pedir extrema-unção – Isto é a salvação, louvado sejas São Macário.
 Ao balcão, o dono, recebe-nos com uma lista de iguarias. Sinto-me um Cela vagabundo em Espanha, recompensado pelo fadário da aventura.
 Um prato de azeitonas roliças e bem untadas de bom azeite, um prato de queijo com talhadas generosamente medidas, um chouriço assado e uma malga de tinto, produto da casa.
Ao balcão, o dono, recebe-nos com uma lista de iguarias. Sinto-me um Cela vagabundo em Espanha, recompensado pelo fadário da aventura.
 Um prato de azeitonas roliças e bem untadas de bom azeite, um prato de queijo com talhadas generosamente medidas, um chouriço assado e uma malga de tinto, produto da casa.
Aquilino Ribeiro dizia que “O pior dos crimes é produzir vinho mau, engarrafá-lo e dá-lo a beber aos amigos. “Alfredo Brito, 43 anos, natural de Trigais na Cova da Beira, antigo emigrante na Suíça e residente na aldeia da Pena não comete esse crime.
 Serve bom vinho e boa conversa, que vai fatiando com o mesmo sabor do presunto que desfia no prato: “Este presunto é feito dos porcos que crio, tudo a verduras, nada de rações, é por isso que é tão bom.” Não só acredito, como comprovo, repetidamente e com método. Já não comia um presunto assim desde que os meus avós tinham uma salgadeira. Um presunto tenro e guloso que se vai desfazendo na ponta da língua como um beijo.
 Alfredo Brito conta-nos que é um dos sete habitantes da aldeia da Pena – os restantes são a sua mulher, as suas duas filhas de sete e doze anos e a avó, a anciã da aldeia. Além da sua família, apenas mais um casal tem residência neste fim do mundo: “Foi uma opção de vida que fizemos há quinze anos eu e a minha mulher, que é daqui. As minhas filhas já aqui nasceram e não me consigo imaginar a viver noutro lado. Obviamente que o isolamento é duro, mas em compensação tenho aqui tudo o que preciso para viver. Cultivo as hortas, produzo mel e licores, tenho animais – cabras, coelhos e vacas, que pastam livremente por aí e mantenho este restaurante e uma casa de turismo de habitação com dois quartos aqui ao lado.”
Além da agricultura, do restaurante e da criação de gado, Alfredo Brito é também um meticuloso artesão. As suas miniaturas de casinhas de xisto ou os trabalhos em madeira são justificados pela necessidade de ocupar o tempo: “As noites são longas por aqui e sempre me vou entretendo com isto.”
Noites longas que há meia dúzia de anos têm um som que cria um arrepio ancestral na espinha – “Os lobos uivam por aí há noite. E fazem mais do que uivar, matam o gado. Ainda a semana passada me mataram uma égua. Vão descendo da serra para sítios onde se possam alimentar e vão dizimando cabras, ovelhas e vacas. Já vi marcas das suas patas nas ruas da aldeia e numa noite destas apontei o foco de luz lá para baixo, chamei a minha mulher e vimos dois lobos a arrastar uma carcaça. Anda para aí uma alcateia que calculotenha para aí trinta lobos e isso não me deixa muito descansado quando vou para o monte ou quando as minhas filhas andam para aí.”
A reintrodução de uma espécie como a dos lobos numa serra como esta cria sempre inevitáveis tensões com a população local que vê os seus animais domésticos serem depredados: “Era suposto recebermos uma indemnização pelas perdas, mas o processo é tão complexo que isso raramente acontece. Julgo que ao reintroduzirem o lobo nesta serra se deviam ter preocupado com a sua subsistência e posto também corsos e veados. Assim, os lobos esfaimados acabam por atacar os rebanhos e qualquer dia as aldeias.”
Esta conversa recorda-me imediatamente de Manuel Louvadeus, o herói da revolta das gentes da Serra de Milharafe que se rebelaram contra o Estado Novo nos anos 40 por causa da lei dos baldios, que roubava à comunidade o seu parco sustento em prol do progresso e da economia florestal dos pinheiros e das grandes explorações.
 Este é o tema central do romance “Quando os lobos uivam” de Aquilino Ribeiro e passados mais de 70 anos é perturbador saber que o longo braço do Estado ainda aqui chega, agora sob a forma de uma política de conservação das espécies, que apesar de todos os seus méritos, não pode deixar de atender aos anseios e modos de vida das populações locais, por mais escassas ou remotas que sejam.
Despeço-me de Alfredo Brito, com a promessa de voltar para provar as especialidades da casa – o galo de cabidela, a vitela e o cabrito assado – “Ligue um dia antes para matar os animais”. Agradeço aos santinhos não me ter metido em aventuras em direcção a Drave. Pernoitar num BMW X3 a ouvir os lobos a uivar perto de mim, talvez não fosse o melhor programa para um sábado à noite.
 A noite começa a cair sobre esta aldeia do fim do mundo. Dou uma última volta entre os casebres. Um deles é ruína-capoeira, com o galo-senhorio a assomar à porta com pedante curiosidade. A sua crista arrogante acabará em cabidela ou em manjar de lobos esfaimados. Mal ele sabe.
Viajar por sítios destes dá-nos um imenso sentido de escala ou como escrevia Flaubert .”Viajar torna uma pessoa modesta, vê-se como é pequeno o lugar que ocupamos no mundo.”
À medida que me afasto dos telhados de ardósia da Aldeia da Pena e a deixo parada no seu tempo, penso em Alfredo e na sua família, no heroísmo de aqui viver na terra onde os lobos uivam, como no tempo de Aquilino. Uma terra onde nem Cristo nem El-Rei passaram, esquecidas de deus, terras de “penedia, aldeias tristes e obtusas, pinhais, uma impressão de tormento telúrico”, como escrevia Aquilino na sua “Geografia sentimental”.
Terras onde nós podemos fazer a nossa própria geografia sentimental, com eu fiz, nos idos de maio do ano de 2014, para amar como a estrada começa, ou como acaba.
ROAD BOOK
ONDE: A serra de São Macário é uma das quatro formações do maciço da Gralheira, que inclui ainda as serras da Freita, Arada e do Arestal, que são uma cordilheira central do distrito de Viseu. Arouca ou São Pedro do Sul são dois bons aquartelamentos para partir à descoberta destas serras do fim do mundo.
QUANDO: Numa serra, a melhor altura do ano depende do gosto de cada um. O verão para fugir ao calor da planície, a primavera para ver o tapete de cores, o outono para a desfolhada e o inverno para o nevoeiro e frio dos Baskerville, temperado pelas lareiras de estalagem.
DORMIR: A minha sugestão é à beira Vouga, em São Pedro do Sul, uma charmosa estância termal. A “Casa dos Moinhos do Chão do Mosteiro” é uma acolhedora e não demasiado intimista casa de turismo de habitação que oferece alojamento na casa principal, recuperada pelo fotógrafo António Homem Cardoso, retratista oficial da Casa de Bragança. Para empedernidos republicanos, há sempre uns simpáticos bungalows com alpendre sobre a piscina e um ancoradouro para o Vouga, onde os hóspedes podem praticar canoagem ou lerem calmamente os romances desse facínora terrorista republicano chamado Aquilino Ribeiro.
“Casa dos Moinhos do Chão do Mosteiro”
Telefone: 213967456
 Morada: Rua Chão do Mosteiro, 1, 3660-459 São Pedro do Sul
Mail: joanaregaleira@gmail.com
 Preços: A partir de 60 euros
COMER: No fim do mundo da Serra de São Macário há uma estalagem à moda antiga, onde os viajantes podem recompor a têmpora de aventureiros ao sabor de iguarias vindas da terra ou do curral ali ao lado. Chama-se “Adega Típica da Pena” de Alfredo e Ana Brito que escolhera a aldeia da Pena como modo de vida. se for desprevenidamente pode beber malgas de bom vinho caseiro, fatias do melhor presunto, queijo da região e enchidos feitos em casa. Se for prevenido, ligue ao Alfredo um dia antes e encomende um galo à cabidela, cabrito ou uma boa posta de vitela no forno de lenha. Também há dois quartos para fazer a digestão, a sesta e dormir com o som dos lobos a uivar na serra.
“Adega típica da Pena”:
Telefone: 232731808/911997589
adegatípicadapena@hotmail.com




Retratos paisagístico-gastronómicos na obra aquiliniana
Aquilino teve sempre nos olhos e trouxe sempre na alma, as nossas aldeias cimeiras e as várias vilas modestas, algumas sornas de vida vazia que em boa hora satirizou, bem como os sítios mais recônditos e os santos lugares que a marca da história distingue ou o selo da beleza brasona. Citânias, castelos, conventos, ermidas, paisagens vastas, encostas soberbas, outeiros que respiram serenidade, rios sonolentos que tranquilamente se espreguiçam da quietude, por entre choupos, amieiros e moinhos que afrontam o vento, rasgando os imensos vales mansos de pascigo por onde vagueia o gado a toque de arrocho pelo homem da palhoça com carapuça de lã, polainas de junco e tamancos com testeiros de ferro, e pela mulher da capa de burel, vigiados pelos cumes agrestes altaneiros e senhoris, onde lobos uivam lazarentos, tornam-se no labor literário, ecos reminiscentes onde pululam vivos os testemunhos do passado, quais idades distantes de vidas já idas.
É importante insistir no carácter amplamente emotivo e estético da experiência que Aquilino pretendia descrever. Era-o desde a observação atenta e apaixonada do real até à produção emocionada do texto, ao que acresce a intensidade do cântico interior. Daí que o escritor, se o é de verdade, não possa deixar de escrever, como o poeta não pode deixar de compor os seus poemas, como o músico de criar as suas sinfonias, como o namorado de falar da sua amada, como o místico de rezar e cantar.
É entre a dicotomia campo-serra, planície-montanha, que emerge o habitat natural, social, político e económico, que Aquilino prosando poetiza. Nela encontramos prados, hortas, bacelinhos, recortados por regos, onde as águas, que o repartidor administra, vão cantando curso a fora e refrescam as mais profundas raízes; as fontes comunais através das quais se baseia o abastecimento das populações, local de sociabilidade laica onde o Cupido espreita corações; os baldios de combustíveis e de mata-bicho da sofreguidão animal, garante da permanência de uma economia agro-pecuária; a mão-de-obra submissa, por vezes escrava, quando dos mimos grande parte se destina a depósito no celeiro dos abastados; a religiosidade, como uma seara que exige certos cuidados, mas mais litúrgica que interior, como que pigmentada, resultando do “sou assim porque nasci assim”; o carácter do homem das Terras do Demo, que o próprio Aquilino caracteriza como sendo um tipo de tino, que, como a própria serra, tem a alegre e descuidada fleuma da água perdida pelos chavascais, a ligeireza sem causa nem rasto de vento, a frugalidade de um láparo, o ardil do repouso e, em certas ocasiões, a ferocidade de um lobo; a política, onde alguns arregimentavam a sua igrejinha e outros cimentavam os seus caciques. Homens e povos só são batidos, escravizados, reduzidos, quando eles mesmos se desvirtuam, perdendo a noção das forças que os definiram e impuseram. E se o instinto ou o sentimento, exaurido ou afrouxado, não chega para dar essa consciência, é indispensável que a inteligência a procure e a revele, livre de velários de qualquer paixão. Aquilino, sabia-o! E nalgumas das histórias que conta, evidencia-o. Sim, também isso. Nas histórias de algumas personagens individuais. Toda a gente tem uma história, mas algumas, como ele próprio as concebia, eram dignas de ser contadas e ouvidas. São histórias maleáveis, onde encarnam milhares de indivíduos do passado e do presente, e que espartilham o leque de respostas à pergunta: o que somos? Não é como pássaros empoleirados nos fios do descaminho que, ao entrar-mos na trama aquiliniana, nos apercebemos que somos uma série de tentativas de ser, com uma certa constância de memória, de recuperação de passado, de projectos…. ? Talvez seja esta - será possível asseverar - a única parte que da resposta é susceptível de ser comum a todos os que tomam parte desse exercício interjectivo.
Capricha, a paisagem de Aquilino, em mostrar-nos aguarelas constantes de uma região acentuadamente diferenciada de todas as outras. Zona planáltica, circundada de serranias onde abunda o pinheiro a que chamam o rei da Beira Alta. A serra é talvez um dos elementos mais importantes da paisagem Aquiliniana. Ela age como força polarizadora, num habitat onde o homem sente a terra, que é negra como as cobras, à qual se prende como às raízes da própria vida. Ela foi muito tempo o solar do homem primitivo, vagabundo relapso sem outra telha que o céu estrelado.
O portentoso labor aquiliniano é vasto e variado. À imensidão das características que impregna à paisagem soma-se, entre outras, a gastronomia, a qual aparece amiudadamente na sua obra. Tome-se como exemplo as descrições gastronómicas que correm pelas páginas de “O Malhadinhas”, onde logo bem no início se encontra uma referência à instância outonal, primordialmente ligada à gastronomia: “No Outono, assim que as sombrias começavam a cair nas esparrelas, um cristão recolhia-se à toca. Lar bem sortido de lenha, porco na salgadeira, pipinha com o espicho a compasso, o boizana do temporal podia bufar.”
Mais adiante, a propósito das façanhas de caminhante, típicas das jornadas do almocreve Malhadinhas, aparece nova descrição curiosa, desta feita a troca de produtos litorâneos com os das Terras do Demo: “Pois é verdade, ainda me não picava a barba e já eu, desta Barrelas de cara direita, perdida no calcanhar do mundo atrás de caminhos excomungados, batia até a Costa Nova, à cata de sal, de sardinha e doutros géneros daquelas paragens, que ao tempo se vendiam mais caro que os “poses” da botica. E ia trocá-los pelo azeite, a azeitona, o linho em adeitos […].”
Já com o Malhadas a bater poiso noutras paragens, sempre bem-sucedido, quando a hora era de medir forças na afirmação da virilidade, sobretudo quando nos caminhos da aventura se enlaçava o olhar ternurento de Rita, fazendo esquecer Brísida, a pobre mulher do almocreve que, com bebé ao peito, via partir o seu Ulisses com a esperança de o ver voltar, Aquilino enceta nova descrição gastronómica: “De beber, pelo tempo das malhas, damos nós sempre a quem passa. É como cá os senhores, com as uvas, quando andam a vindimar. […] Mas ande, beba-lhe… Estará você mal comido, seu moço? Respondi-lhe que trincara um pedaço de broa com queijo e que me sobrara merenda nos alforges, ainda que a verdade era eu trazer apetite de lobo, para esfandegar um cabrito, se o apanhasse assadinho no espeto. Mas ele, não deu crédito às minhas palavras e, guiando-me até casa, mandou pôr a mesa. […] Comi-lhe bem, bebi-lhe melhor. […] Não me admirei de admirar as parreiras, muito bem tratadas, já com pâmpanos de palmo, o olival que trazia boa promessa, a água que era um Douro, e as colmeias que começavam a sair ao sol da Primavera.”
Para terminar, a festa popular, onde, à típica maneira beirã, se redemoinha, parola, discute, confraterniza, insulta, compra, vende, e sobretudo se come à tripa-forra, isto é, se tira o ventre de miséria até cansar as mandíbulas e não caber mais na pança; e se engabela vinho sem cautela, que Baco protege quando “aqui d’el rei”: “Veio a festa do mártir S. Sebastião, ao tempo das mais faladas pelas redondezas, que dava com a velha Barrelas, durante três dias, nas pantanas do gozo. A gente confessava-se e comungava e, depois com a alma limpa como quando se toma uma dessas boticadas que aliviam o corpo dos maus humores e o deixam livre e lesto para os grandes apetites, era comer, beber, pandegar, mediante a quota de dez tostões quem quer podia sentar-se ao almoço e jantar no dia da festa, e à ceia, com os créscimos, no dia seguinte. […] Certo era haver naquela data enchente forte de vitela, cabritos e peixe, em que o nosso Paiva era abundoso; o vinho corria como de fonte farta, e as zanguizarras da terra e de fora da terra batiam o terreiro, cada qual mais assanhada. Ninguém que se prezasse faltava com a sua finta, certo que lhe ficaria forra com tirar o ventre de misérias e empanturrar-se para uma semana inteira.”
Cambiando agora de obra, deter-nos-emos timidamente no Homem da Nave, de onde se menciona o caldo verde de couves-galegas, as trutas de escabeche, as sardinhas assadas na taverna, o pão taludo como as rodas dos carros onde se entala uma chouriça ou umas talhadas de toucinho, a marrã de Santo André – altura em que quem não mata o porco mata a mulher, o vinho de matar a sede ou de tomar a clássica carraspana de caixão à cova, o feijão, a batata e as hortaliças que representavam acessório nas terras de altitude. O homem da Nave, vivia nas Terras do Demo, onde a existência era penosa como o carregar do madeiro até ao Calvário. Melhor era pão duro que figo maduro, até porque segundo um rifão “Pão e vinho e parte no Paraíso.” Porém, desde que não faltasse o casqueiro, duas azeitonas, uma sardinha corchada e uma cebola crua no açafate, o serrano reinava.
São estas, belas telas, que assim relegadas para a posteridade podem contemplar. Tais telas fazem recordar a uns quantos esses tempos idos, e possibilitam a outros tantos, na actualidade, imaginar tais vivências na primeira pessoa, sobretudo quando lobrigando a paisagem e manducando a gastronomia das Terras do Demo, se nos depara uma mesma realidade com um de aquém e dalém unificados.

Aquilino, o das trutas do rio Coura
 A Associação Portuguesa de Escritores (APE) vai recordar Aquilino Ribeiro (1885-1963), assinalando de uma só cajadada os cinquenta anos da morte do autor de "Terras do Demo" e o centenário da publicação do seu primeiro livro, "Jardim das Tormentas". Faz muito bem a APE, que propõe um interessante programa de conferências, tertúlias e percursos inspirados na vida e nos livros de Aquilino. As comemorações começam já na próxima segunda-feira, dia 25, e prolongam-se até 27 de Maio. A ideia final: divulgar a obra deste homem livre.
 É, de facto, uma belíssima oportunidade para tentar explicar aos portugueses de hoje em dia que escritor não quer dizer pivô ou comentador de telejornal. Uma coisa não implica a outra e vice-versa. E que se pode ser escritor, verdadeiramente escritor, e escrever bem. Não há contradição nisso.
 Pronto, está dito.
 E depois temos a gastronomia aquiliniana, que também vai ser assunto e não é de menos. Aquilino Ribeiro gostava do que era bom e sabia o que era bom. Perdia-se por bolinhos de bacalhau (pastéis de bacalhau, se lido em Lisboa), adorava carne de porco em vinha-d'alhos, conhecia tudo sobre as "dez" maneiras de cozinhar truta. E explicava, fazia questão.
 Ora, há um sítio em Portugal que guarda e serve a cozinha e as palavras de Aquilino. Um santuário gastronómico que certamente não ficará de fora do percurso minhoto agendado pela APE para o dia 21 de Abril e que até será guiado pelo escritor Mário Cláudio, habitual freguês da casa. É o Conselheiro, em Paredes de Coura, restaurante único até nisto: promove Aquilino Ribeiro todos os dias, sem subvenções e sem esperar por cinquentenários ou outros aniversários. Estão lá o caldo-verde, os bolinhos, o porco avinhado em tinto, as trutas assim e assado (foto). "Trutas que pediam boca que as soubesse apreciar", no dizer do mestre. E o Sr. Vilaça encarrega-se de explicar Aquilino em cada um dos seus pratos. E oferece aos seus clientes um opusculozinho cheio de citações, a propósito, do autor de "A Casa Grande de Romarigães". E é tudo tão bom - a comida e as palavras.

Rota Aquiliniana, Beira Alta
Cumprindo o plano de actividades da nossa Universidade do ano lectivo que está a terminar, nos dias 29 e 30 de Junho realizou-se o designado passeio anual, que juntou um grupo de 50 pessoas.
 O programa preestabelecido, com o inestimável e determinante contributo do Sr. Dr. Lima Bastos, escritor e estudioso e inexcedível admirador da Obra de Aquilino Ribeiro, pode considerar-se ambicioso, extenso e abrangente, tendo proporcionado boas surpresas, enriquecimento a nível do conhecimento histórico, sociocultural, lazer e gastronómico da região visitada e do país.
Soutosa - Sr.ª da Lapa - Carregal
 O percurso, com partida de S. João da Madeira, praticamente à hora prevista, incluiu a passagem por Vila Nova de Paiva e Alhais, onde foi baptizado Aquilino, e Soutosa, com visita à casa do escritor beirão, hoje Fundação Aquilino Ribeiro. O espólio e o local são um legado marcante e de uma tranquilidade que merece a nossa admiração.
 Finalizada a visita, seguimos para o Santuário da Serra da Lapa, contíguo ao colégio dos Jesuítas frequentado por Aquilino Ribeiro e próximo da nascente do rio Vouga.
 Sem perda de tempo, o grupo seguiu para o Carregal - onde nasceu Aquilino Ribeiro - com passagem próximo do Convento de N.ªSrª. Da Assunção, na Tabosa, e Pátio do Escritor.
 Antes do almoço, tivemos a oportunidade de contemplar as ruínas do Convento de São Francisco de Caria que, lamentavelmente, se encontram num estado de deplorável de degradação e desprezo.
 O almoço conjunto teve lugar em Moimenta da Beira, Hotel Verdeal.
 De Sernancelheao Convento do Freixinho
 Findo o repasto, dirigimo-nos para Sernancelhe, onde fomos recebidos e obsequiados com um conjunto de prestimosa e detalhada literatura inerente ao concelho, pelo Presidente da Câmara local.
 Ainda em Sernancelhe, tivemos a oportunidade de visitas à Igreja Matriz românica e Museu Paroquial, acompanhados por Monsenhor Cândido Azevedo, arcipreste da localidade, homem estudioso e empenhado, exemplo de vida dedicada ao serviço dos outros e à preservação de um património de valor incomensurável.
 A caminho do Convento do Freixinho - actual Hotel Rural N.ª Sr.ª do Carmo - onde jantámos e pernoitámos, ainda beneficiámos de uma “olhadela” ao Terreiro das Freiras, Moimenta da Beira, bem como à barragem de Vilar no Rio Távora.
 Como o tempo convidava, após a refeição e já refrescados, ainda houve quem aproveitasse para desfrutar de uma bebida retemperante junto à referida barragem, a escassos metros do hotel.
 2.º Dia - Salzedas
 Ucanha - Tarouca
 Dia 30, segundo e último do périplo, partimos pelas 9h30 com destino a Salzedas, onde fomos contemplados com visitas guiadas à Igreja e Convento Ordem de Cister, cujos monumentos e recheio, relativamente conservados, permitiram satisfazer os mais exigentes admiradores de um passado que foi e será marcante para um povo e civilizações vindouras.
 Findas as visitas e como o tempo urgia, seguimos para Ucanha, apreciar a ponte romana sobre o rio Varosa, com torre medieval, onde se circula apenas a pé.
 Como registo e curiosidade, notámos que nos primeiros tempos a ponte funcionava como “Via estreita com portagens”, mas sem via verde; para se passar de uma para outra margem não havia borlas. Não encontramos nos registos, mas presume-se que quando o rio levava pouca água, havia sempre a alternativa a nado.
 Nesta localidade encontra-se bem conservada a casa de um vulto da nossa cultura, Prof. Leite de Vasconcelos.
 Para encerrarmos as visitas, e ainda antes do almoço, que teve lugar na Quinta de Santo Estevão, situada entre Sernancelhe e Aguiar da Beira, visitámos mais uma preciosidade do património arquitectónico cultural, Igreja Matriz e Convento de São João de Tarouca, Ordem de Cister. A visita guiada deixou-nos profundamente deslumbrados, com a certeza de que os que foram sentem-se gratificados e os que ficaram devem aproveitar as próximas oportunidades, sempre que possível.
 Almoço e regresso
 Como corolário, podemos afirmar que, afinal, não há assimetrias quando se trata de enriquecer os conhecimentos, nem cotas/quotas para aquele efeito, pois os limites quantitativos e valorativos dependem da vontade.
 Para finalizar, sublinhe-se que o regresso - chegada à Universidade - foi com a dita pontualidade britânica, ou seja, 18h00, como aprazado.
 Jorge Almeida
 Aluno da Universidade Sénior


Por que os lobos uivam
“Esqueça a bobagem sobre lobos (em inglês) uivando para a Lua. Esses animais preocupam-se tanto com a luz noturna da Terra quanto metaleiros pensam no "HighSchool Musical".
Especialistas em caninos não encontraram nenhuma conexão entre as fases da Lua e o uivo dos lobos [fonte: Busch (em inglês)]. Os lobos cantam com mais freqüência durante a noite porque são animais noturnos. Mas por que apontam suas faces em direção à Lua e às estrelas quando uivam? É tudo uma questão de acústica, visto que projetarseus chamados para cima permite transportar o som mais longe.
Atualmente o uivo dos lobos é uma das mais distintas e bem estudadas vocalizações de animais. Os ancestrais dos cães domesticados, uivam como uma forma de comunicação a longa distância, transportando uma série de informações. Devido ao agudo e à suspensão das notas, os sons dos uivos dos lobos podem alcançar tão longe quanto 9,6 quilômetros na floresta e mesmo 16 quilômetros cruzando a tundra sem árvores [fonte: Musgrave].
Os uivos dos lobos servem de sistemas GPS, cantorias e alarmes de incêndio - tudo junto. Para dizer a verdade, a finalidade dos uivos dos lobos não é assim tão diferente das razões pelas quais os humanos elevam suas vozes ao vento. Em geral, os principais motivos para os lobos uivarem incluem: um brado de reagrupamento para a matilha se encontrar; um sinal para informar a matilha sobre a localização de um lobo; uma advertência para lobos estranhos ficarem fora do território da matilha.
A freqüência dos uivos aumenta durante a noite e pela madrugada adentro quando os lobos caçam [fonte: LopezandBauguess (em inglês)]. Os uivos pontuam o ar mais freqüentemente durante a estação de procriação no inverno, quando os lobos buscam seus pares [fonte: LopezandBauguess (em inglês)]. Como os uivos carregam uma codificação do tamanho corporal e da saúde do lobo (com os animais maiores exibindo tons mais profundos), os machos podem exercitar seus cantos para atrair fêmeas [fonte: Feldhameret al (em inglês)].
Embora pensemos que os lobos uivam sozinhos, eles freqüentemente o fazem em grupo. Esses coros de uivos envolvem membros de uma matilha cantando em uníssono em várias alturas. Juntos, os coros podem incluir até 12 harmonias relacionadas [fonte: LopezandBauguess (em inglês)]. Uivos em grupo podem proteger as matilhas, já que a combinação de harmonias ilude os ouvintes a pensar que há mais lobos presentes [fonte: Harrington (em inglês)]. Ou às vezes, eles uivam apenas pelo divertimento.
Lobos alfa, líderes da matilha, normalmente exibem um uivo mais grave e irão se expressar mais freqüentemente que aqueles com uma posição social mais subserviente [fonte:Feldhameret al (em inglês)]. Os filhotes também praticam uivos conforme amadurecem, imitando os uivos dos lobos adultos [fonte: Harrington (em inglês)]. Porém, lobos solitários podem não uivar tanto para manter seu paradeiro oculto de predadores potenciais, pois não têm a proteção adicional de uma matilha [fonte:Feldhameret al (em inglês)].
Como você pode ver, esses animais primitivos possuem um extenso vocabulário para se expressar. Para aprender mais sobre sua linguagem, visite os links na próxima página.”



III
Ao leitor, caberá quilatar acerca do exposto no capítulo II deste exercício. Para nós, fica a sensação de que tentar um ensaio, por mais insipiente que seja, será sempre, felizmente, “um poço sem fundo”, dado o manancial de textos publicados acerca do autor e da sua obra.
Trata-se, pois, de um critério pessoal, a selecção apurada, outras poderíamos ter efectuado. Contudo, parece-nos ajustada, tendo em conta a visão que retemos do universo aquiliniano, em harmonia com a nossa intenção de nos deixarmos guiar pelos sentidos, ou seja, soltar cá para fora o que fomos vivenciando através das leituras, das auscultações, das contemplações dos espaços e das lucubrações ocasionais.
Rematámos o capítulo II com referências intencionalmente ou supostamente do âmbito exterior à análise literária; formalmente talvez se possa considerar os textos de linguagem informativa, meramente de cariz turístico e comercial. Todavia, isso serve inteiramente o nosso intento e de demonstrar quão é a valia desta figura na cultura e na sociedade portuguesa e no mundo, não obstante as voluntárias omissões políticas e as, sobejamente, tentativas de obliteração.
Para este capítulo, III, tentaremos um exercício de realce dos baldios no tempo e no território, mais que não seja, preconizamos tematicamente homenagear o autor no contexto do seu labor em defesa do povo intrinsecamente agente no processo criativo.
Não o poderíamos tentar, julgamos, sem recorrermos à respectiva historicidade do fenómeno em Portugal, se bem que sucinta e abreviada, dado o objectivo ensaístico.

Baldios, maninhos e bens do concelho na tradição comunitária portuguesa
Nos estudos efectuados pela Junta de Colonização Interna acerca dos baldios em Portugal, em 1939/40, afirma-se que o vocábulo baldio terá derivado do árabe (baladi), ou seja, terreno árido, inculto e inútil. Tradicionalmente a historiografia portuguesa designava-os terrenos maninhos. Eram campos do termo que ficavam pertencendo aos moradores, de domínio comum. Há ainda a designação desses terrenos como logradouros do povo.
Em sentido rigoroso só são baldios aqueles que estão na propriedade comum particular de todos os moradores ou vizinhos de uma determinada aldeia ou região, sendo por isso vedada a qualquer deles individualmente o aproveitamento particularizado de todo ou parte do terreno: trata-se de uma propriedade particular não personalizada. A propriedade pertencia à colectividade não personalizada e todos o que nela ingressava adquiriam gratuitamente direito à fruição e aquele que dela saísse perderia direito sem indeminização. Eram bens inalienáveis cuja administração cabia primeiramente a toda a comunidade, reunida para o efeito, em plenário.
Alguns autores apresentam a seguinte divisão:
- Baldios – Terrenos de uso comum pertença de todos os moradores do termo;
- Maninhos – Terrenos incultos de propriedade particular, usados em comum por um grupo de moradores, mediante foral, arrendamento ou emprazamento estabelecido por um senhorio;
- Bens do Concelho – Propriedade privada administrativa do concelho.
Ao longo do tempo, foi-se esbatendo a distinção inicial entre baldios e maninhos, desaparecendo estes por completo.
Na idade contemporânea, sobretudo no concernente ao tema que nos traz – os baldios em “Quando Os lobos Uivam” de Aquilino Ribeiro – os termos baldio e maninho designam uma mesma realidade, sob a primeira designação cujas características mais salientes são:
- Serem terrenos, geralmente incultos, ou de vegetação espontânea, fornecedores de lenha, matos, pastagens, madeiras, saibros, carvão, águas ou, ainda, grandes extensões de floresta;
- Serem usados e fruídos pelos moradores de um lugar ou lugares, conforme os usos e costumes (direito consuetudinário);
- Cumprirem uma importante função socioeconómica complementar à actividade agrícola, no quadro de uma economia rural de subsistência caracterizada pela pequena propriedade agrícola, de tipo familiar, fornecendo bens indispensáveis à sobrevivência, nomeadamente lenha, pastagens e mato para as estrumarias e currais.
Ora, por Decreto-Lei, nº 27207, de 16 de Novembro, de 1936, o Estado apoderou-se coercivamente de uma vasta área adstrita a baldios nacionais, rondando 300 000 hectares para proceder à sua florestação, ou seja, o Estado chamou a si a plantação de pinheiros em terrenos baldios que até essa data sempre tinham sido administrados pelas comunidades e moradores ou vizinhos cujos proveitos, desse modo, passariam em directo para a fazenda nacional, em detrimento das comunidades locais e regionais.
Eis, pois, o cerne da temática empreendida por Aquilino Ribeiro, através da ficção atrás apresentada numa região deveras importante para a sobrevivência das populações que o autor muito bem conhecia, aliás, julgamos que o autor, ao logo da sua obra só ficcionava a realidade que bem dominava.
Aproveitamos para ilustrar a afirmação que aqui produzimos com algumas dedicatórias publicadas: “Aos Povos serranos; compartes dos baldios. Conselhos directivos dos baldios. Heróis desta gesta de luta em defesa dos baldios contra o roubo e o esbulho perpetrado pelos grandes caciques e senhores, muitas autarquias locais, grandes empresas de celulose, Banco Mundial, grandes interesses imobiliários nacionais e estrangeiros. E em memória de Mestre Aquilino Ribeiro! Justamente considerado pelo povo dos baldios como imortal escritor das suas lutas pela posse e administração dos baldios, invulgarmente simbolizadas em Quando os Lobos Uivam.”
De Quando os Lobos Uivam, podemos extrair, ao acaso, folheando o romance: “Livre e plena propriedade! Na serra não existem divisórias, nem muros, nem coutadas, nem empeços. O lavrador chega e ninguém o coíbe de encher o carro; escolhe o campo o que mais madruga; o mais operoso; o mais apto. (…) Nós não temos tapadas nem bosques. Temos umas belgas à beira do rio, que dão centeio e milho e é a serra que dá o leite e a lã, pois que ali se apascenta o nosso vivo. Quanto à lenha, morando nós lá para os cornos da lua, se não dispusermos da serra, no Inverno morremos entiritados. (…) A serra é dos serranos desde que o mundo é mundo, herdada de pais para filhos. Quem vier para no-la tirar, connosco se há-de haver! (…) No labrugal está toda a gente a postos. Tirarem-nos a serra é o mesmo que arrancarem-nos coiro e cabelo.”
Retomando uma consideração do I capítulo, segundo a qual um analista da obra aquiliniana, o Dr. Mário Soares, desvaloriza, frequentemente e sempre que é chamado a dissertar sobre Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, fundamentamos a nossa asserção por via ideológica. Pois, conhecendo o trajecto político do articulista à luz do excerto que aqui deixámos, fácil será concluir que ao Dr. Mário Soares apavora-se com aquela ideia do povo das serras, dos campos e sobretudo dos usos e costumes, do direito consuetudinário, para quem é fervoroso defensor do direito constitucional num Europa empresarial e capitalista. Estaremos, pois, perante uma questão de análise extemporânea, vincadamente ideológica. Mais nos aproxima a posição pública do escritor José Saramago, Prémio Nobel, quando proferiu que o verdadeiro merecedor do prémio seria Aquilino Ribeiro, pelo exemplo e pela obra cujo legado considerava acima de qualquer outro escritor português. Aliás, Saramago descrevia assim o processo criativo em literatura: ler é viver, escrever pressupõe ter vivido. Era mesmo desse modo que o nosso, até ao momento, Prémio Nobel apresentava Aquilino: figura impar, artista das letras e da comunicação escrita que tanto viveu que possuía bagagem para nos legar tanto de valoroso.
Para os mais distraídos, baldio será uma questão irrelevante, todavia, só se olvidarmos completamente o passado histórico no qual Portugal foi caldeado e ignorarmos de todo a geografia e a etnografia nacionais.
Somos, contudo, de parecer que baldios, bens do concelho, bens colectivos de um grupo restrito são diferentes faces da mesma organização comunitária da propriedade, cujas remotas origens se esvaíram no processode formação, consolidação e projecção social no território. Quem se internar no Portugal de hoje topará certamente com largos e vincados traços da organização comunitária, senão atentemos em Jorge Dias : “ (…) Além dos casos mais perfeito como Vilarinho das Furnas, são frequentes os pastos e os rebanhos comuns nas serras do Gerês, do Soajo, da Cabreira, Amarela, Peneda e Larouco. No Barroso, além dos pastos comuns e, em raras aldeias. Há também as lamas do boi e o forno comum onde as vezeiras, à vez, cozem o pão da família. (…) No Marão (…) rebanhos comuns a pastar nos baldios das povoações e por todas partes são frequentes os moinhos do povo. (…) Na terra fria bragançana, que faz raia com a Espanha, terras de Miranda, Petisqueira, Lombada, Guadramil e para Ocidente em Montezinho e em todos os territórios ao Norte do concelho e Vinhais até Lomba, são frequentes os traços comunitários, quer na fruição comum dos baldios, quer nos rebanhos do povo (vezeiros de porcos), ou ainda nos fornos, lagares, moinhos, forjas (…) Na serra de Montemuro, os rebanhos comuns (…) Depois da serra da Marofa até Sabugal (…) Na serra da Estrela há rebanhos do povo em algumas aldeias, assim como na Lousã (…)”
A capacidade reivindicativa das povoações em defesa dos seus direitos é defendida por António Borges Coelho segundo a qual a posse da terra não resultou essencialmente da vontade, lembrança, génio ou liberdade dos reis e senhores, independentemente da política realista da maioria dos nossos monarcas, mas sobretudo da força e do levantamento dos vilões.
Gama Barros defende que muitos, os sesmeiros , em abusiva interpretação da lei e maleáveis às pressões e influências da burguesia rural entregavam de sesmarias terras incultas de logradouro comum dos povos, invocando o argumento de que não eram cultivadas. Ora, verdadeiramente a lei das sesmarias visa aniquilar o pequeno produtor de gado em favor do grande proprietário.
Nas Ordenações Manuelinas determina-se que os terrenos destinados ao geral proveito dos moradores dos lugares, nos pastos, criações e logradouros de lenha e madeira para as suas casas e lavoura sejam respeitados.
Nas Ordenações Filipinas (1602) estabelece-se intencionalmente a confusão entre baldios e bens do concelho, favorecendo, assim, a passagem dos baldios aos concelhos que os administrassem em proveito próprio. Definem baldios como terras incultas, matos e maninhos e bravios que nunca tinham sido aproveitados e não tendo sido coutados ou reservados pela Coroa.
No século XVIII, verificava-se alguma importância na transformação socioeconómica com reflexos numa acentuada expansão agrícola, mercantil e industrial, nomeadamente: o crescimento demográfico (por volta de 1780 teria cerca de 2,5 milhões de habitantes); a expansão da cultura do milho e da batata (o milho tinha sido introduzido no século XVI); a influência da doutrina económica fisiocrática (subordinando a industria à agricultura); expansão do Brasil (crescimento do comércio externo).
Assim, registaram-se diversas tentativas de grandes proprietários de usurpação de grandes áreas de baldio, com base no Alvará de 23 de Julho de 1766, o que encontrou pela frente a resistência dos moradores que, em quase todos os casos, se levantaram contra essa usurpação, destruindo cercas e vedações.
No século XIX a produção de doutrinas sobre baldios e o seu aproveitamento acentua-se, Alexandre Herculano escreve: (…) A existência de baldios municipais, dos pastos comuns, é um dos mais graves embaraços ao progresso da agricultura entre nós. (…).
Todo o corpo doutrinário do pensamento fisiocrático e liberal conduziu à produção de legislação diversa sobre baldios, correspondendo à divisão dos baldios pelos vizinhos, segundo o Alvará de 27 de Novembro de 1804 e de 11 e Abril de 1815; promove ainda a administração dos baldios para as câmaras municipais, que ditam, através de diversas posturas, as formas a seguir na sua exploração pelos moradores que os usufruem em logradouro comum, contrariando assim os usos e costumes, segundo os quais a usufruição dos baldios era apenas regulada pelas assembleias de moradores dos lugares.
Com o triunfo do liberalismo a partir da Revolução Liberal de 1821, entende-se o baldio como resquício das estruturas feudais e factor de atraso agrícola. Promove-se a propriedade individual e preconiza-se explicitamente a abolição dos baldios. No entanto, os moradores opuseram-se tenazmente à tentativa de desamortização dos baldios, dada a umbilical dependência da sua agricultura em relação a eles. Assim, a Lei dos Forais de 1822, no seu artº 8º, reconhece a razão dos povos ao confirmar a existência da propriedade comunitária e ao definir as formas da sua administração.
A propósito da extinção de alguns concelhos (19 de Julho de 1839), por decreto se fixa a doutrina de que, não obstante as alterações da divisão administrativa, os baldios continuarão a pertencer aos povos, que tradicionalmente os vinham usufruindo. Porém, em 1842, o Código Administrativo concede às câmaras municipais a possibilidade de venderem baldios.
Pela Carta de Lei de 1 de Julho de 1867 é publicado o Código Civil que considera os baldios como “cousas comuns” muito embora os continue a classificar como municipaes e parochiaes e vá ao ponto de proibir o compáscuo nos baldios. Em 1869 é publicada nova lei que visa dar continuidade e precipitar a alienação dos baldios.
A este propósito, deixamos a seguinte carta: “(…) cumpre-me participar a V. Exª que se ameaça alterar a ordem pública n´este concelho, e teem sido a afixadas proclamações nas paredes das casas chamando o povo à revolta, que venho aqui para roubar baldios. Todos os meios tenho empregado para convencer o povo de que o iludem, mas nada posso conseguir deste povo ignorante e mau. E não é só contra mim que se dirigem as ameaças, é também contra as pessoas indicadas como louvados e informadores.
É pois impossível cumprir a minha missão. Não retiro já para Coimbra porque espero as ordens do ex.moSnr. Governador Civil (…)” Mira, 16 de Março de 1888 – Eduardo da Silva Vieira.
Com esta missiva de Mira nos ficamos por referências a leis e posturas em polifonia com a tenacidade dos moradores em torno dos seus baldios cujo discernimento terá chegado com a Revolução de 25 Abril de 1974 que, num processo conturbado e de participação popular impar na sociedade portuguesa moderna e contemporânea, terá encontrado formas e legislação equilibradas.
Regressando, assim, a Aquilino Ribeiro cuja obra empolgou e catalisou posições e energias sobretudo com o seu romance dado à estampa em 1958, não apenas pelo facto ser, na altura, de extrema actualidade e oportuna intervenção politica e social, como é, reconhecidamente, um romance de tese.
Há tempos idos, assistia a uma conferência em plena Sociedade de Geografia, Rua de Santo Antão, em Lisboa, o orador, a propósito de Bento da Cruz, escritor do planalto barrosão, contista e romancista das terras de Montalegre e do Larouco, aplaudia a acção deste escritor ficcionar o real, negligenciando a designada ficção científica dado que o quotidiano se apresenta riquíssimo. Não poderia estar mais de acordo com a ideia pois, mentalmente e passando em revista trechos ou cenas imaginadas a partir de: O Crime do Padre Amaro, A Cidade e as Serras, O Fogo e as Cinzas, Levantado do Chão, O Ano da Morte de Ricardo Reis, o Vale Abraão e, naturalmente, Quando os Lobos Uivam. Lembro-me perfeitamente de me terem ocorrido as obras agora citadas, associando-as aos respectivos espaços geográficos, sociais e psicológicos, bem como ao universo literário de cada um dos respectivos autores. Tal como acontece, por vez, observar um traço ou uma pigmentação e logo assola um Amadeu Souza Cardoso, um Almada Negreiros, um Vasco Fernandes ou um Diogo Teixeira, também uma tirada de Virgílio Ferreira, Luís de Camões, Garrett e Aquilino Ribeiro e até: de menina a levaram da casa de seus pais, de Bernardim Ribeiro.
Na verdade da ponta da caneta de Aquilino Ribeiro, sobre papeis brancos, quadriculados ou em linha horizontal a arte brota cujas letras, frases e períodos inteiros produzem no leitor sensações e conhecimentos tão diversos quanto este tenha capacidade de intuir e aprender; as personagens emergem do tecido social com toda a sua linguagem e expressão vernáculas, adensa-se a psicologia individual e colectiva. Os movimentos e expressões particulares concorrem, alastram e fluem, tocando o pando e o cadinho, de modo a não deixar de lado nenhum de nós. Viajamos pela serra, pela aldeia, vila ou cidade; pelo gabinete, escola, igreja, escritório, oficina ou agra; como poderemos fazê-lo através das incríveis peregrinações saídas da pena de Fernão Mendes Pinto e até pela belíssima e viva crónica de D. João I, de Fernão Lopes. Metaforicamente são obras de marca registada como uma escultura, uma pintura, um desenho ou outra qualquer expressão de vero artista. A este propósito de valia e criatividade romanesca aqui testemunhamos que andámos mais de um período dum ano completo estudando e batalhando nas leituras do Velho e do Novo Testamentos a fim de nos prepararmos para a matéria obrigatória do segundo ano do curso de História, mas, na verdade, aprendemos e apreendemos muito mais com a leitura de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago. Assim aconteceu com a matéria da História do municipalismo que tantas leis, decretos e posturas esmiuçámos para, no fim, tiráramos de sumo muito menos do que extraímos de” Quando os Lobos Uivam” de Aquilino Ribeiro. Razão tinha um professor que nos impunha a leitura de alguns romances e o exercício das ilações dedutivas e indutivas dos processos criativos e de análises económico-sociais e políticas.
O Mestre Aquilino Ribeiro glosou a temática dos baldios a partir do espaço geográfico, social e psicológico das proximidades de Sernancelhe, pois bem, também o poderia ter feito, usando o baldio dos urgais, ali bem no berço da nossa infância, nos Mozinhos. Porventura, não distará mais do que trinta quilómetros, pelas vias rodoviárias actuais. Ou melhor, poderíamos nós fazê-lo se tivéssemos vivido nessa época e se para tal possuíssemos o engenho e a arte.
Henrique Teixeira de Sousa, médico e escritor, da ilha do Fogo, Cabo Verde, ainda no tempo colonial, afirmou publicamente que gostaria de ser para Cabo Verde, então colónia, o mesmo que outros grandes escritores representavam para diferentes regiões do Continente, frisando, se a memória não nos atraiçoa, Manuel da Fonseca (Alentejo), Fernando Namora (Beira-Baixa), Miguel Torga (Trás-os-Montes), Carlos de Oliveira (Lisboa), Virgílio Ferreira e Aquilino Ribeiro (Beira-Alta). Nós arriscaríamos o seguinte: Teixeira de Sousa para Cabo Verde (soberano); Pepetela, Angola; Craveirinha/ Mia Couto, Moçambique; Francisco José Tenreiro/Mário Sacramento, São Tomé e Príncipe; Camilo Castelo Branco/Aquilino Ribeiro/ José Saramago para Portugal, assim como, por exemplo, FiódorDostoiévski/Máximo Gorki para a Rússia; Steinbeck/ Ernest Miller Hemingway, EUA; Victor-Marie Hugo, França; NikosKazantzakis, Grécia; Hermann Karl Hesse, Alemanha; Jane Austen, Inglaterra; Albert Camus Argélia; Gabriel Garcia Marques, Colômbia, isto para não nos alongarmos por mais países, regiões e continentes.